domingo, 11 de maio de 2025

A Disputa de Marburgo

O senado de Zurique recusara terminantemente permitir que Zuínglio partisse para Marburgo, temendo que algum mal lhe sobreviesse. Mas ele sentia que sua presença na conferência era necessária para o bem da Igreja, e que precisava ir! Assim, preparou-se para a viagem e partiu durante a noite, tendo apenas um amigo por companhia — Rodolph Collin, o professor de grego. Deixou a seguinte nota ao Senado: "Se parto sem vos informar, não é por desprezar vossa autoridade, sapientíssimos senhores, mas porque, conhecendo o afeto que me tendes, prevejo que vossa preocupação opor-se-ia à minha partida." Chegaram sãos e salvos a Basileia, onde se lhes uniu Oekolampadius; e a Estrasburgo, onde se agregaram Bucer, Hedio e Sturm. O grupo chegou a Marburgo em 29 de setembro. Lutero e seus companheiros no dia 30. Ambos os partidos foram cortêsmente recebidos pelo landgrave Filipe de Hesse e hospedados no castelo, à sua própria mesa.

O landgrave, ciente dos sentimentos amargos gerados pela recente controvérsia entre os chefes das partes, propôs prudentemente que, antes da conferência pública, os teólogos mantivessem uma entrevista privada, com vistas a preparar o caminho para a reconciliação e unidade. Conhecendo o temperamento dos homens, designou Lutero para dialogar com Oekolampadius, e Melâncton com Zuínglio. Contudo, tantas foram as acusações de falsa doutrina feitas pelos doutores saxões contra os suíços, que pouco se avançou em direção à unidade, e a questão principal tornou-se ainda mais intrincada. Assim, foi marcada a disputa pública para o dia seguinte, 2 de outubro de 1529.

A conferência geral teve lugar em um aposento interior do castelo, na presença do landgrave e seus principais ministros, tanto políticos quanto religiosos, dos delegados da Saxônia, Zurique, Estrasburgo e Basileia, bem como de alguns estrangeiros eruditos. Uma mesa foi disposta para os quatro teólogos — Lutero, Zuínglio, Melâncton e Oekolampadius. Ao se aproximar, Lutero, tomando um pedaço de giz, escreveu com firmeza sobre o veludo que cobria a mesa, em grandes letras: HOC EST CORPUS MEUM — "Isto é o meu corpo." Desejava manter estas palavras sempre diante de si, para que sua confiança não vacilasse, e seus adversários ficassem confundidos. “Sim,” disse ele, “estas são as palavras de Cristo, e desta rocha nenhum adversário me desarraigará.”

Estando todos reunidos, o chanceler de Hesse abriu a conferência. Explicou seu objetivo e exortou os disputantes à moderação cristã e ao restabelecimento da unidade. Então Lutero, em vez de ir diretamente à questão da Eucaristia, insistiu em um entendimento prévio sobre outros artigos de fé, tais como a divindade de Cristo, o pecado original, a justificação pela fé, etc. Os saxões declararam considerar os suíços pouco ortodoxos nesses e em outros pontos. Qual seria o propósito de Lutero em ampliar o campo de debate, não pretendemos conjecturar; mas os suíços replicaram que seus escritos continham provas suficientes de que, em todos esses pontos, não havia divergência entre eles.

O landgrave, a quem cabia a direção da assembleia, manifestou sua anuência, e Lutero viu-se forçado a abandonar seu intento; mas estava visivelmente irritado e desconfortável, dizendo: “Protesto que divirjo de meus adversários quanto à doutrina da Ceia do Senhor, e sempre dela divergirei. Cristo disse: ‘Isto é o meu corpo.’ Que me provem que um corpo não é um corpo. Rejeito a razão, o senso comum, os argumentos carnais e as provas matemáticas. Deus está acima da matemática. Temos a palavra de Deus; devemos adorá-la e cumpri-la.” Tal foi o início desse célebre debate. O impetuoso e obstinado saxão escrevera seu texto no veludo e agora o apontava com o dedo, dizendo: “Nenhuma consideração me induzirá jamais a me afastar do sentido literal destas palavras, e não ouvirei nem a razão nem o senso, tendo diante de mim as palavras de Deus.” E tudo isso foi feito e dito, note-se, antes mesmo de as deliberações serem abertas, ou que um único argumento fosse apresentado. Essa declaração, aliada à notória teimosia de seu autor, bastava para aniquilar toda esperança de um desfecho satisfatório para a conferência.

Contudo, os suíços, a despeito do estilo altivo de Lutero, não recusaram o debate. Sem dúvida, conheciam-lhe o temperamento, pouco se importavam com suas afirmações arrogantes e provavelmente jamais contaram com sua mudança de ideia. “Não se pode negar,” disse Oekolampadius com brandura, “que há figuras de linguagem na Palavra de Deus: como João é Elias, a rocha era Cristo, Eu sou a videira.” Lutero admitiu haver figuras na Bíblia, mas negou que esta última expressão fosse figurativa.

Oekolampadius então lembrou a Lutero que o bendito Senhor disse em João 6: “O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita.” “Ora, Cristo, que disse ao povo de Cafarnaum que a carne para nada aproveita, rejeitou por estas palavras a manducação* oral do corpo. Logo, não a instituiu na Ceia.”

{* Manducação: ato de mastigar, ou comer. }

“Nego,” retrucou Lutero com veemência, “a segunda dessas proposições. Houve uma alimentação material da carne de Cristo, e houve uma alimentação espiritual. Foi da primeira, da alimentação material, que Cristo declarou não aproveitar nada.”

Oekolampadius sugeriu que isso equivalia, de fato, a ceder ao argumento. Admitia-se que devíamos comer espiritualmente; e, se assim fosse, não se comia corporalmente, sendo então inútil a manducação material.

“Não devemos inquirir de que serve,” replicou Lutero; “tudo o que Deus ordena se torna espírito e vida. Se por ordem do Senhor erguermos uma palha, nesse mesmo ato realizamos uma obra espiritual. Devemos atentar para Aquele que fala, e não para o que é dito. Deus fala: então, vermes, escutai! Deus ordena: que o mundo obedeça! E que todos nós nos prostremos juntos, e humildemente beijemos a palavra.”

Cumpre-nos notar, de passagem, que não há razão para supor que a questão da Eucaristia seja abordada em João 6. Esta sequer fora instituída até então. A encarnação, morte e ascensão de Cristo são as verdades fundamentais que o Senhor ali revela aos judeus, como únicos meios de vida eterna e de todas as bênçãos espirituais. “Ele mesmo, a vida eterna que estava com o Pai antes de todos os séculos, se fez carne para não apenas revelar o Pai e ser o padrão perfeito de obediência como homem, mas para morrer, em graça, por nós, e resolver a questão do pecado para sempre, glorificando plenamente a Deus, e a todo custo, na cruz. A não ser que o grão de trigo, como Ele mesmo nos ensinou, caia na terra e morra, fica só; mas, morrendo, produz muito fruto. Sua morte não é aqui considerada como uma oferta a Deus, como tantas vezes em outros lugares, mas como a apropriação, pelo crente, para si mesmo... Ele somente é a vida, sim, embora isso tenha sido adquirido não em viver, mas em morrer por nós, para que a tenhamos n’Ele e com Ele, fruto de sua redenção: a vida eterna como realidade presente, mas plenamente revelada na ressurreição, já verificada e vista n’Ele, como um homem elevado ao céu, onde antes já se assentava como Deus — e que em breve se verá também em nós, no último dia, manifestados com Ele em glória.”

"Jesus, portanto, descendo à terra, sendo morto e ascendendo novamente ao céu, é a doutrina deste capítulo. Como aquele que desceu e foi morto, Ele é o alimento da fé durante Sua ausência nas alturas. Pois é em Sua morte que devemos nos nutrir, a fim de habitar espiritualmente n'Ele, e Ele em nós."*

{* Para um aprofundamento maior deste assunto, veja Bible Treasury, de W. Kelly, vol. 10, p. 357; e Synopsis of the Books of the Bible, de J. N. Darby, vol. 3, p. 432.}

Voltemos agora a Marburgo.

Zuínglio, justamente nesse momento, interveio na discussão. Com argumentos extraídos das Escrituras, da ciência, dos sentidos, etc., pressionou e perturbou profundamente o espírito de Lutero, embora inicialmente se apoiasse firmemente sobre o terreno das Escrituras. Após citar diversas passagens nas quais o símbolo é descrito pela própria coisa significada, ele retomou o argumento iniciado por Oekolampadius pela manhã, a saber, João 6. Concluiu que, diante da declaração do Senhor — "a carne para nada aproveita" —, devemos interpretar de modo semelhante as palavras relativas à Eucaristia.

Lutero — "Quando Cristo diz que 'a carne para nada aproveita', Ele não fala de Sua própria carne, mas da nossa."

Zuínglio — "A alma se alimenta do Espírito, e não da carne."

Lutero — "É com a boca que comemos o corpo; a alma não o come — comemos espiritualmente com a alma."

Zuínglio — "O corpo de Cristo seria, então, um alimento corporal, e não espiritual."

Lutero — "Você é capcioso."

Zuínglio — "De modo algum; mas vós proferis coisas contraditórias."

Lutero — "Se Deus me apresentasse maçãs selvagens, eu as comeria espiritualmente. Na Eucaristia, a boca recebe o corpo de Cristo, e a alma crê em Suas palavras."

A essa altura, a linguagem de Lutero tornava-se cada vez mais confusa e contraditória; como se as quatro palavras ["Isto é o Meu corpo"] não devessem ser tomadas nem "figurada nem literalmente", e ainda assim parecesse ensinar que deveriam ser compreendidas em ambos os sentidos. Zuínglio julgou ter-se alcançado o absurdo, e que não se obteria mais nenhum proveito seguindo por tal trilha argumentativa. Defendeu, com base numa visão mais ampla das Escrituras, que o pão e o vinho da santa Eucaristia não são o verdadeiro corpo e sangue do Senhor Jesus, mas apenas representações destes.

Lutero, contudo, não se deixou abalar. Repetiu: "Isto é o Meu corpo", apontando com o dedo para as palavras escritas diante dele. "'Isto é o Meu corpo', e nem o próprio diabo me afastará disso. Tentar compreendê-lo é afastar-se da fé."

Embora nenhuma impressão favorável tenha sido causada na mente de Lutero, muitos dos ouvintes ficaram impressionados com a clareza e simplicidade dos argumentos de Zuínglio, e muitos corações se abriram para a verdade sobre este tema tão importante. Francis Lambert, o principal teólogo da Hesse, que até então professara constantemente a doutrina luterana da Eucaristia, estava entre os mais notáveis convertidos. Era amigo pessoal e grande admirador de Lutero, mas a consciência o impeliu a confessar a verdade. "Quando vim a esta conferência", disse ele, "desejava ser como uma folha de papel em branco, sobre a qual o dedo de Deus pudesse escrever Sua verdade. Agora vejo que é o Espírito que vivifica; a carne para nada aproveita. Creio com Oekolampadius e Zuínglio." Os doutores de Wittenberg lamentaram profundamente essa deserção; mas tentaram minimizar exclamando: "Volubilidade típica de estrangeiro!" — ao que o ex-franciscano, outrora de Avinhão, respondeu: "Acaso foi São Paulo volúvel por ter-se convertido do farisaísmo? E nós mesmos, fomos volúveis por termos abandonado as seitas perdidas do papado?"

Grande agitação se instalou na sala, mas a hora do intervalo chegara, e os disputantes retiraram-se com o príncipe para o jantar.

À tarde, a conversa foi retomada por Lutero, que disse: "Creio que o corpo de Cristo está no céu, mas também creio que está no sacramento. Pouco me importa se isso contraria a natureza, desde que não contrarie a fé. Cristo está substancialmente no sacramento, tal como nasceu da Virgem."

Oekolampadius, citando 2 Coríntios 5:16, declarou: "Não conhecemos mais Cristo segundo a carne."

"Segundo a carne significa", disse Lutero, "neste versículo, segundo nossas afeições carnais."

"Então responda-me, Dr. Lutero," disse Zuínglio, "Cristo ascendeu aos céus; e se está no céu em relação ao Seu corpo, como pode estar no pão? A Palavra de Deus nos ensina que Ele foi, em tudo, feito semelhante a Seus irmãos (Hebreus 2:17). Logo, não pode estar, ao mesmo tempo, presente em cada um dos mil altares onde se celebra a Eucaristia."

"Se eu quisesse argumentar assim," replicou Lutero, "poderia provar que Jesus Cristo teve uma esposa, que tinha olhos negros e que viveu em nossa boa terra da Alemanha. Pouco me importam as matemáticas."

"Não se trata aqui de matemática," respondeu Zuínglio, "mas do que diz São Paulo aos Filipenses: que Cristo assumiu a forma de servo e foi feito à semelhança dos homens."

Sentindo-se em perigo de ser movido ou afastado de sua posição original, Lutero recuou às suas quatro palavras, exclamando: "Caríssimos senhores, já que meu Senhor Jesus Cristo disse Hoc est corpus meum, creio que Seu corpo está realmente ali."

Cansado da inflexível obstinação e irracionalidade de Lutero, Zuínglio se aproximou dele com ímpeto e, batendo sobre a mesa, disse: "Manténs, então, doutor, que o corpo de Cristo está localmente na Eucaristia; pois dizes: 'o corpo de Cristo está ali — ali — ali.' Isso é um advérbio de lugar. Logo, o corpo de Cristo é de tal natureza que existe em um lugar. Se está em um lugar, está no céu — e, portanto, não está no pão."

"Repito," respondeu Lutero com veemência, "que nada tenho com provas matemáticas. Assim que as palavras da consagração são pronunciadas sobre o pão, o corpo está ali, ainda que seja o mais ímpio dos padres quem as pronuncie."

Que o leitor atente bem a esta afirmação. Trata-se, certamente, de blasfêmia — ainda que não intencional — proferida por um homem iludido. Segundo este dogma, o Senhor, queira ou não, deve descer ao pão idólatra do padre, por mais iníquo que este seja, no momento em que este murmura as palavras da consagração. Isso é o papismo em sua mais ousada blasfêmia.

O landgrave, percebendo que a discussão se acirrava, propôs uma breve pausa. Como a razão e a justiça estavam de um lado só, pouco interesse restava em acompanhar o curso do debate. Zuínglio e Oekolampadius haviam sustentado suas teses com Escrituras, filosofia e testemunho dos mais antigos pais da Igreja, mas tudo era rebatido com uma única e invariável resposta: "Isto é o Meu corpo." E, como se desejasse insultar e exasperar os teólogos suíços, Lutero tomou o pano de veludo onde estavam escritas as palavras Hoc est corpus meum, arrancou-o da mesa, ergueu-o diante de seus olhos e disse: "Vede, vede, este é o nosso texto. Vós ainda não nos afastastes dele, como havíeis vangloriado, e não nos importam outras provas."

Depois de tamanha exibição de fraqueza e insensatez, acompanhada da pretensão de infalibilidade, não havia esperança de tirar Lutero de sua posição, nem razão alguma para prolongar a conferência. A discussão, contudo, foi retomada na manhã seguinte, mas ao fim do dia, as partes continuavam igualmente distantes da reconciliação. Uma severa epidemia — o suor inglês — assolava a Alemanha naquela época, e havia alcançado Marburgo durante a conferência, o que sem dúvida apressou seu desfecho. Os estragos da peste eram terríveis; todos estavam tomados de temor e desejosos de deixar a cidade.

"Senhores," exclamou o landgrave, "não podeis separar-vos assim; nada mais pode ser feito para sanar a ruptura? Será que esse único ponto de divergência dividirá irremediavelmente os amigos da Reforma?" "Não há meio," disse o chanceler, "dos teólogos chegarem a um entendimento, como tão sinceramente deseja o landgrave?"

"Conheço apenas um meio para isso," respondeu Lutero, "e é este: que nossos adversários creiam como nós." "Não podemos," replicaram os suíços. "Pois bem," disse Lutero, "abandono-vos ao juízo de Deus, e oro para que Ele vos ilumine." "Faremos o mesmo," acrescentou Oekolampadius.

Zuínglio permaneceu em silêncio, imóvel, mas profundamente comovido enquanto essas palavras eram ditas. Por fim, seus afetos vivos romperam o dique, e ele rompeu em lágrimas diante de todos.

sábado, 10 de maio de 2025

A Convocação a Marburgo

Tais eram os doutores cristãos e tais os seus sentimentos, os quais o político landgrave buscava incansavelmente reconciliar. O pensamento é verdadeiramente humilhante e lança uma sombra sombria sobre o caráter de Lutero. Filipe, em seus esforços pacíficos, demonstrou muito mais espírito cristão nesta e em outras ocasiões do que o grande Reformador — ainda que não tenha sido, talvez, sob a ótica cristã. Mas não julgamos os motivos; há Um que julgará os segredos de todos os homens. (1 Cor. 4:5)

A conexão desta grande disputa com os movimentos políticos da Alemanha tornava-a de profundo interesse e ansiedade para os chefes protestantes. Era o maior obstáculo à sua união; e sem unidade, que poderiam fazer perante adversários tão poderosos como Roma e o Imperador? Os teólogos papistas observavam com maliciosa satisfação o crescimento e a amargura dessa vergonhosa dissensão, e empregavam toda a sua arte para dela tirar proveito. O landgrave evidentemente lamentava essa divisão mais do que os teólogos de Wittenberg e, então, decidiu, sem mais delongas, promover uma conferência e, se possível, uma reconciliação entre os líderes das diferentes partes. Sobre as grandes verdades fundamentais da revelação, os reformadores alemães e suíços estavam de acordo. Apenas num ponto divergiam — a maneira pela qual Cristo está presente no pão e no vinho da santa Eucaristia. Parece que Filipe considerava toda a questão como pouco mais que uma disputa de palavras, como ele mesmo diz: “Os luteranos não querem ouvir falar em aliança com os zuinglianos; pois bem, acabemos então com as contradições que os separam de Lutero.” Assim, ele convocou os principais teólogos da Saxônia, da Suíça e de Estrasburgo para reunirem-se em Marburgo no outono de 1529.

Zuínglio aceitou o convite com toda a alegria e se preparou para comparecer na data marcada. Mas Lutero — geralmente tão audaz e intrépido, como vimos reiteradas vezes — expressou a maior relutância em encontrar-se com Zuínglio. Os vários panfletos que haviam trocado sobre o tema em questão haviam deixado em sua mente uma impressão tão forte quanto ao poder de Zuínglio, que ele procurou, por meios indignos, evitar o encontro. Contudo, os insistentes rogos do landgrave por fim prevaleceram. Assim escreveu Lutero a Filipe:

“Recebi vossas ordens para ir a Marburgo, para uma disputa com Oekolampadius e seu partido, sobre a diferença sacramental, em vista da paz e unidade. Embora tenha muito pouca esperança de tal união, como também não posso senão louvar em alto grau vosso zelo e cuidado, tampouco me recusarei a assumir um encargo que, para nós, talvez seja sem esperança e perigoso; pois não quero dar ocasião a que nossos adversários digam que estavam mais inclinados à concórdia do que eu mesmo. Sei muito bem que não lhes farei concessões indignas... E, se não cederem a nós, todo o vosso esforço será em vão.” Suas cartas privadas neste período expressam o mesmo parecer e respiram o mesmo espírito. Toda a questão já estava discutida e encerrada na mente de Lutero antes mesmo de iniciar a viagem. Mas seu espírito estava longe de encontrar-se tranquilo. Ele tinha a íntima convicção de que a vitória seria dos suíços. Essa convicção se comprova plenamente pelas seguintes proposições:

1. Lutero escreveu, por si e por Melâncton, que só poderiam comparecer à conferência com a condição de que “alguns papistas honestos estivessem presentes como testemunhas contra aqueles futuros Thrasos* e santos vaidosos... Se não houvesse juízes imparciais, os zuinglianos teriam grandes chances de vangloriar-se da vitória.” Essa é uma passagem estranha na história dos teólogos saxões, e revela um retrocesso nos princípios da Reforma; especialmente tratando-se do autor de “Cativeiro Babilônico” e do denunciador do Anticristo. Teria Lutero esquecido que os papistas estavam comprometidos com a presença real mais do que qualquer outro partido da Cristandade? E, no entanto, propõe-nos como juízes imparciais. Que mudança, ainda que momentânea, naquele grande homem! Como explicar tal atitude? Lutero já não se firmava no sólido fundamento da Palavra de Deus, mas sim no terreno falso de uma superstição absurda. Não podia ter o senso da presença divina nem de sua aprovação. E não é de se admirar que manifestasse tamanha fraqueza e incoerência. Em vez de confiar no Deus vivo e desprezar papas e imperadores, volta-se de maneira lastimável a seus antigos inimigos para serem seus amigos e refúgio na discussão que se avizinhava. Que solene lição para todos os cristãos! Que a Palavra escrita e viva seja nosso recurso e refúgio em todo tempo. Acrescentamos apenas que Filipe era antipapista demais para dar ouvidos à proposta de Lutero; esta, portanto, caiu por terra, deixando a seus autores a vergonha que a história imparcial lhes atribuiu.

{* Thrasos refere-se a um conceito personificado da ousadia na mitologia grega. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Thrasos }

2. Numa carta geralmente atribuída a Melâncton, escrita ao Príncipe Eleitor já em 14 de maio, vai-se ainda mais longe: “Que o príncipe se recuse a permitir nossa viagem a Marburgo, de modo que possamos alegar tal desculpa.” “Mas o Eleitor,” diz D’Aubigné, “não quis prestar-se a tão vergonhosa manobra; e os reformadores de Wittenberg viram-se compelidos a atender ao pedido do landgrave.”

3. Outra proposta foi sugerida, que revela ainda mais o temor e as dúvidas dos teólogos saxões — “que entre os teólogos convidados da Suíça para a controvérsia, Zuínglio não estivesse entre eles.” Mas essa proposta tampouco pôde ser acolhida; os convites já haviam sido expedidos, e Filipe estava demasiado ofendido com a obstinação de Lutero para ouvir-lhe os apelos. Tais minúcias só merecem ser registradas por revelarem a diferença que há no mesmo homem quando defende a verdade de Deus e quando sustenta o insensato dogma da consubstanciação. No primeiro caso, permanece pela fé, e a graça lhe confere coragem moral, firmeza e nobreza de caráter; no segundo, vemo-lo exibir os mais lastimáveis traços de fraqueza, desconfiança e dissimulação. É a presença de Deus e a fé n’Ele que fazem tamanha diferença; como canta o poeta:

Deus é por mim? Não temo, embora todos se levantem contra mim;

Quando invoco a Cristo, meu Salvador, a hoste do mal foge

Meu amigo, o Senhor Todo-Poderoso, e Aquele que me ama, Deus!

Que inimigo me fará mal, mesmo que venha como uma inundação?

Eu sei, eu creio, eu digo sem medo

Que Deus, o Altíssimo, o mais poderoso, me ama para sempre,

Em todos os momentos, em todos os lugares, Ele está ao meu lado

Ele governa a fúria da batalha, a tempestade e a maré


Karlstadt, Lutero e Zuínglio

Andreas Bodenstein, mais conhecido como Dr. Karlstadt, outrora professor em Wittenberg, iniciou o ataque. Este homem é reputado como sendo tanto capaz quanto instruído, e verdadeiramente devotado à causa da Reforma; mas, por conta de suas visões extremas sobre o assunto e da impetuosidade de seu espírito, suas medidas foram radicais e revolucionárias. Desejava que todas as imagens fossem destruídas e todos os ritos do papado abolidos de uma só vez. Já o encontramos anteriormente. Foi um dos primeiros e mais calorosos amigos de Lutero, mas havia rejeitado a noção luterana da presença real na Eucaristia — pecado imperdoável aos olhos do Reformador. Além disso, dera demasiado apoio e incentivo aos excessos dos anabatistas, ou “profetas celestiais”, como eram chamados, o que forneceu a Lutero algum pretexto para lançar sobre sacramentários e anabatistas a mesma condenação. Mas isso era extremamente injusto, visto que Zuínglio e seus seguidores se opunham ao fanatismo dos chamados profetas tanto quanto Lutero e seus colegas.

Em refutação ao Dr. Karlstadt, Lutero escreveu um panfleto contra esses profetas em 1525, no qual afirma “O Dr. Karlstadt se afastou de nós e tornou-se nosso mais amargo inimigo. Embora lamente profundamente tal escândalo, ainda assim me regozijo por Satanás haver mostrado o casco fendido, e por estar sendo envergonhado por meio destes seus profetas celestiais, que há muito espreitavam e murmuravam em segredo, mas que jamais se atreveriam a vir à luz se eu não os houvesse atraído com um florim: o qual, pela graça de Deus, foi gasto tão bem que não me arrependo. Mas ainda toda a infâmia da trama não foi revelada, pois mais coisas permanecem ocultas, como há tempos suspeito. Sei também que o Dr. Karlstadt há muito fermentava esta heresia em sua mente, embora até agora não tivesse tido coragem de propagá-la.”

Zuínglio, então, se convenceu de que o tempo do silêncio havia passado. Embora simpatizasse com os pontos de vista de Karlstadt acerca da Eucaristia, desaprovava fortemente seu estilo ofensivo e sua leviandade.

Em 1525, publicou um importante tratado intitulado "Sobre a verdadeira e a falsa religião". Nele, declarou plena e claramente suas próprias visões a respeito da Eucaristia, além de condenar veementemente o espírito sedicioso dos anabatistas e os erros dos papistas sobre a matéria em debate. Logo surgiu um opositor com um panfleto "Contra o novo erro dos sacramentários*". Zuínglio respondeu ainda em 1525, aproveitando a ocasião para lembrar aos seus oponentes — os luteranos — que fossem menos pessoais em seus insultos, e mais racionais e bíblicos em seus argumentos. Havia nos escritos dos suíços uma brandura e um respeito de que os saxões eram completos estranhos; até mesmo Melâncton, por vezes, refletia o espírito violento de seu mestre.

{* Sacramentários foi o nome pelo qual ficaram conhecidos os cristãos que se opunham à doutrina católica da transubstanciação. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sacrament%C3%A1rios }

Oekolampadius, amigo íntimo de Zuínglio, pregava em Basileia a simples doutrina do Novo Testamento sobre a Ceia do Senhor, exatamente nesse período. Mas, ao perceber que seus adversários estavam a associá-lo a Karlstadt, publicou e defendeu suas próprias ideias. O efeito desse livro foi grande: escrito com espírito cristão, repleto do raciocínio mais rigoroso e dos argumentos mais justos, tanto das Escrituras quanto dos mais eminentes Pais da Igreja, levou muitos a considerar as novas opiniões. O próprio Erasmo quase se converteu. “Surgiu um novo dogma”, escreve a um amigo, “segundo o qual não há nada na Eucaristia senão pão e vinho. Refutar isso tornou-se agora tarefa difícil; pois Johannes Oekolampadius o fortaleceu com tantas evidências e argumentos que até os próprios eleitos quase poderiam ser seduzidos por ele.”

Logo surgiu uma resposta injuriosa a esse livro, assinada por quatorze teólogos alemães, com prefácio escrito por Lutero. Zuínglio ficou profundamente ofendido e queixou-se das injúrias lançadas a um irmão reformador por seus irmãos alemães: “Nada vi nesta era menos digno de louvor que esta réplica, tanto pela violência com que ataca a Sagrada Escritura quanto por seu orgulho e insolência desmedidos. Oekolampadius, dentre todos os homens o mais inofensivo, verdadeiro modelo de toda espécie de piedade e saber — ele, de quem a maioria deles aprendeu o que sabe de letras — é tratado por eles de maneira tão infame, com tamanha ingratidão filial, que nos vemos chamados não a censurar, mas a execrar tal comportamento.”*

{*Waddington, vol. 2, pp. 346–370.}

Assim prosseguia a controvérsia. Lutero estava profundamente aflito e surpreso ao ver tantos homens instruídos e piedosos aderirem às ideias de Zuínglio; muitos dos quais tinha ele em altíssima estima agora se mostravam favoráveis às novas posições. Isso era fel e absinto para o espírito de Lutero, enchendo-o de dor e ira inexprimíveis. Em suas cartas e escritos daquele tempo, expressava-se com os termos mais desmedidos e impensados. Chamava-os de “meus Absalões, conjuradores sacramentais, cuja loucura, em comparação, os papistas são adversários moderados — os instrumentos satânicos da minha tentação.” Os seguidores de Lutero adotaram o tom de seu mestre, e este transferiu para essa controvérsia toda a veemência e obstinação de sua própria natureza. Desde aproximadamente o fim do ano de 1524 até o ano de 1529, Lutero escrevera com tamanha violência contra os suíços — e tão pouco contra os papistas — que se dizia sarcasticamente, por boca de Erasmo: “os luteranos estão ansiosos por retornar ao seio da igreja.”

As Primeiras Concepções de Zuínglio

Ulrico Zuínglio, o grande Reformador suíço e contemporâneo de Lutero, diferia inteiramente tanto do ensino de Roma quanto dos Reformadores saxões no tocante à presença real de Cristo na santa ceia. Os suíços, já de longa data, sustentavam opiniões contrárias tanto às de Roma quanto às da Saxônia. Desde os primeiros passos de sua jornada cristã, Zuínglio havia sido tocado pela simplicidade das Escrituras a respeito da Ceia do Senhor. Na Palavra de Deus, leu que Cristo deixara este mundo e subira para junto do Pai nos céus; e que tal verdade deveria ser objeto de fé e esperança especial para os seus discípulos. Vemos isso ensinado com clareza no livro dos Atos dos Apóstolos: “E, estando com os olhos fitos no céu, enquanto ele subia, eis que junto deles se puseram dois homens vestidos de branco. Os quais lhes disseram: Homens galileus, por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir”. Assim, vemos que o bendito Senhor ascendeu de forma pessoal, corporal, visível; e que retornará da mesma maneira, mas não antes do fim da presente dispensação, ou era, da Igreja. “O qual convém que o céu contenha até aos tempos da restauração de tudo” (Atos 1:10-11; 3:21).

As palavras de nosso bendito Senhor: “Isto é o Meu corpo” — “Isto é o Meu sangue”; Zuínglio sustentava serem de caráter figurado, implicando nada além de que o pão e o vinho sacramentais eram simplesmente símbolos ou emblemas do corpo de Cristo, e que a ordenança ou instituição era uma comemoração de Sua morte por nós. “Fazei isto em memória de Mim... Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha.” (1 Coríntios 11:22-28)

Durante vários anos, Zuínglio manteve em privado essas concepções acerca da Ceia do Senhor, mas, conhecendo o poder que a antiga doutrina da Igreja exercia sobre as mentes ignorantes e supersticiosas do povo, não as professava abertamente. No entanto, crendo que em breve chegaria o tempo da proclamação pública da verdade, e antevendo a oposição que haveria de enfrentar, procurou, com diligência — embora discretamente — espalhar a verdade e fortalecer sua posição. Cartas sobre o assunto foram enviadas a muitos homens eruditos da Europa, na esperança de influenciá-los a examinar a Palavra de Deus, ainda que não viessem a concordar com as concepções dos Reformadores suíços. Mas, enquanto Zuínglio aguardava silenciosamente o momento oportuno para falar com franqueza, outro, com mais zelo do que sabedoria, imprudentemente publicou um panfleto contra a doutrina de Lutero sobre a Ceia do Senhor, e assim desencadeou a tempestade da controvérsia, que rugiu com grande violência por quatro anos.

A Controvérsia Sacramentária

Capítulo 37 - A Controvérsia Sacramentária (1529 d.C.)

A doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia fora estabelecida na Igreja Romana desde o quarto Concílio de Latrão, no ano de 1215. Por trezentos anos, a missa e a transubstanciação constituíram os principais baluartes de Roma, bem como sua maior blasfêmia. A ideia da presença corpórea de Cristo na santa ceia lançava sobre esta uma auréola de importância sagrada, despertava a imaginação do povo e nela enraizava profundamente suas afeições. Foi a origem de muitas cerimônias e superstições, fonte de imensa riqueza e domínio para o clero, e atribuía-se ao pão consagrado a realização dos mais estupendos milagres, tanto entre os vivos quanto entre os mortos. Assim, tornou-se a pedra angular do edifício papal.

Lutero, como sacerdote e monge, cria firmemente neste mistério de iniquidade, e jamais, ao longo de toda a sua carreira, dele se libertou inteiramente. Pecou contra Deus e contra sua própria consciência ao aceitar a ordenação sacerdotal, e desde então parece ter recaído sobre sua mente uma cegueira judicial quanto ao suposto poder do sacerdote sobre os elementos. A transubstanciação — ou seja, a real conversão do pão e do vinho no verdadeiro corpo e sangue de Cristo pela consagração sacerdotal — era então, como ainda o é, uma doutrina reconhecida pela Igreja de Roma. Aqueles que disso duvidassem eram denunciados como infiéis.

Como reformador, Lutero abandonou o termo “transubstanciação” e adotou, se é que isso seja possível, outro ainda mais inexplicável: “consubstanciação”. Renunciou à ideia papal de que, após a consagração, o pão e o vinho deixavam de existir, sendo convertidos na substância material do corpo e sangue de Cristo. Sua estranha concepção era que o pão e o vinho permaneciam exatamente como eram — pão verdadeiro e vinho verdadeiro — mas que, juntamente com eles, encontrava-se também presente a substância corpórea do corpo humano de Cristo. Nenhuma invenção humana — podemos afirmar sem receio — jamais igualou esta doutrina papista em absurdidade, inconsistência e contradições irreconciliáveis. “As mãos do sacerdote”, disse o Pontífice Urbano num grande Concílio romano, “são elevadas a uma dignidade não concedida sequer aos anjos: a de criar Deus, o Criador de todas as coisas, e de oferecê-Lo em sacrifício para a salvação de todo o mundo. Tal prerrogativa, ao elevar o papa acima dos anjos, torna execrável qualquer submissão pontifícia aos reis.” A tudo isso, o sagrado sínodo respondeu com a máxima unanimidade: Amém. Com efeito, este parece ser o último teste da credulidade humana, e a consumação da blasfêmia humana.*

{* Para a autoridade histórica sobre essa blasfêmia inacreditável, consulte o livro Variations of Popery, p. 384, de Samuel Edgar.}

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Sumário

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Sumário:


Prefácio
Introdução
Capítulo 1 - Verdades FundamentaisCapítulo 2 - De Pentecostes ao Martírio de Estêvão
Capítulo 3 - De Estêvão ao Apostolado de Paulo
Capítulo 4 - Os Apóstolos e os Pioneiros
Capítulo 5 - As Duas Primeiras Viagens de Paulo
Capítulo 6 - A Terceira Viagem de Paulo
Capítulo 7: Roma e seus Governantes (64 d.C. - 177 d.C.)
Capítulo 8: A História Interna da Igreja (107 d.C. - 245 d.C.)
Capítulo 9: Roma e seus Governantes (180 d.C. - 313 d.C.)
 Capítulo 10: O Período de Pérgamo (313 d.C. - 606 d.C.)
Capítulo 11: Roma e seus Governantes (313 d.C. - 397 d.C.)
Capítulo 12: A História Interna da Igreja (245 - 451 d.C.) 
Capítulo 19: O Papa Gregório VII (1049 - 1085 d.C.) 
Capítulo 22: Inglaterra (1162 - 1174 d.C.)
Capítulo 23: A Teologia de Roma
Capítulo 24: O Papa Inocêncio III (1190-1216 d.C.)
Capítulo 25: França (814-1229 d.C.)
Capítulo 26: A Ordem Monástica (480-1275 d.C.)
Capítulo 27: O Amanhecer da Reforma (1155-1386 d.C.)
Capítulo 28: O Declínio do Poder Papal (1216-1314 d.C.)
Capítulo 29: Os Precursores da Reforma (1150-1594 d.C.)
Capítulo 30: O Testemunho e o Triunfo de Wycliffe (1324-1417 d.C)
Capítulo 31: Boêmia (1409-1471 d.C.)
Capítulo 32: A Palavra de Deus Impressa (1397-1516 d.C.)
Capítulo 33: Lutero: A Reforma na Alemanha (1483-1517 d.C.)
Capítulo 34: Lutero: A Reforma na Alemanha (1517-1521 d.C.)
Capítulo 35: Lutero: A Reforma na Alemanha (1521-1529 d.C.)

Capítulo 36: Protestantismo: Alemanha (1526 d.C. - 1529 d.C.)

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