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domingo, 9 de fevereiro de 2020

Os Reis da França e os Albigenses

Inocêncio III estava agora morto, e o trono papal foi ocupado por Honório III, que entrou com grande ardor na causa de De Monforte, e foi calorosamente apoiado pelos reis da França. A perspectiva de paz para os pobres albigenses sob o governo brando de Raimundo era algo intolerável para o novo pastor de Roma. Buscando agradar o papa enfurecido e sob o pretexto de cumprir seu voto e garantir seu bem-estar eterno, Luís VIII, filho de Filipe Augusto, conduziu uma cruzada já em 1219. Todas as atrocidades da época anterior foram renovadas -- e até mesmo superadas, se é que isso era possível -- sob a direção do clero. Mas pouparemos o leitor da descrição dessa mistura satânica de engano, hipocrisia, perfídia, baixeza e crueldade selvagem exibidas pelo clero sob a sanção do soberano.

O velho Raimundo morreu, deixando a defesa de seus domínios para o filho, que estava então no vigor de sua idade e esperanças. Milner diz que "ele morreu de doença, em estado de paz e prosperidade, após sua vitória sobre Simão -- e que nenhum homem jamais foi tratado com maior injustiça pelo papado do que ele". Filipe Augusto também morreu, deixando sua coroa para Luís. O jovem De Monforte, no ano de 1224, desesperado pelo sucesso, finalmente desistiu de Languedoque, e Raimundo VII sentou-se no trono de seus antepassados, sem nenhum inimigo a temer, exceto o papa e seu soberano -- seu pastor e seu suserano. Mas Raimundo tinha uma bela porção da França, e Luís não conseguia conter a impaciência de uni-la à sua coroa.

Jezabel novamente trama; ela convoca um concílio em Burges no ano de 1225, no qual Luís é intimado a expurgar a terra dos hereges e a arrecadar dinheiro para esse fim. Luís, de acordo, toma a cruz e, com a participação de seus barões e seus seguidores, o que somava um número de duzentos mil homens, avança mais uma vez para devastar os campos do Languedoque e exterminar todos os hereges conforme os decretos de Roma. Pobre e infeliz terra de Languedoque! Quando será que Roma, o dragão, o devorador dos santos de Deus, ficará saciada com sangue? -- com o sangue de bebês, de crianças pequenas, de mães e donzelas, de pais e jovens desarmados e inofensivos! Um nome poderia ser dado às bestas que simbolizam os impérios caldeu, persa e grego, mas a quarta besta que simboliza o império romano, seja pagão ou papal, a esta não é dado um nome. "Depois disto eu continuei olhando nas visões da noite", diz Daniel, "e eis aqui o quarto animal, terrível e espantoso, e muito forte, o qual tinha dentes grandes de ferro; ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele, e tinha dez chifres" (Daniel 7:7). Por uma questão de interpretação, a visão de Daniel se refere mais diretamente ao poder civil, mas o aspecto eclesiástico da besta como visto em Apocalipse é mais sedento de sangue do que o civil jamais foi.

Temos esse monstro sem nome agora diante de nós no rei da França, instado a medidas extremas pelo papa. Ao aproximarem-se os duzentos mil cruzados sob a bandeira de seu soberano, o coração do povo de Toulouse afundou dentro deles. Cidade após cidade cedeu, pois todos os antigos defensores haviam morrido. "Eles haviam sofrido tantas vezes todos os horrores da guerra em todas as suas formas mais assustadoras, que os barões, cavaleiros e comunas de Languedoque, por unanimidade, buscaram evitar, por meio de concessões oportunas, a continuidade dessas calamidades intoleráveis". Mas exatamente nesse momento em que tudo parecia perdido, a mão do Senhor se interpôs. Uma peste eclodiu no acampamento inimigo. O próprio Luís foi levado por ela, e trinta mil de seus soldados foram varridos pelo contágio. A ruína iminente dos habitantes e da casa de Raimundo foi adiada por mais um pouco de tempo.

Com a morte de Luís VIII, seu filho, que era apenas uma criança, sucedeu ao trono da França, e as rédeas do governo caíram nas mãos de sua mãe, Branca de Castela. Por suas ordens, o cerco a Toulouse foi renovado. As vantagens da guerra estavam todas a favor de Raimundo, mas a glória de suas vitórias, segundo um cronista, foi manchada pela crueldade com que tratava os vencidos que caíam em suas mãos. Esse novo cerco de Toulouse foi prolongado e difícil; os cruzados estavam perdendo a esperança; em sua perplexidade, Fouquet, o gênio do mal e o espírito mentiroso de Toulouse, sugeriu a única forma de se obter um ataque bem-sucedido. Por seu conselho, todas as videiras, o milho e as árvores frutíferas foram destruídas, todas as casas queimadas por quilômetros ao redor da cidade, até que o país se converteu em um deserto desolado; e assim a cidade de Toulouse ficou no meio de um deserto. É claro que, nessa situação, não era possível conseguir nenhum suprimento de qualquer espécie. Essa foi a obra do bispo do lugar -- era sua diocese, eram as pessoas sobre as quais ele havia sido apontado como supervisor! O leitor pode julgar por si mesmo se ele participou mais do espírito do quarto animal de Daniel, ou daquele que diz a todo pastor: "Alimente minhas ovelhas... Alimente meus cordeiros." (João 21, KJV)

Quando esse novo frasco da ira papal foi derramado naquela terra devota, e tudo o que era verde se secou, ​​os habitantes da cidade ficaram tão desanimados, e o espírito de Raimundo, seu líder, tão completamente destruído, que ao fim de três meses a paz foi obtida sob as condições mais humilhantes. O tratado de Paris, que encerrou a guerra por um tempo, foi assinado no mês de abril de 1229. Os termos foram ditados pelo legado papal e aprovados pelo rei da França. Raimundo VII, cujos modos graciosos, juntamente com o senso de seus erros, arrancaram lágrimas de Inocêncio no grande Conselho de Latrão, agora inclina seu pescoço para um jugo estrangeiro e cede a um despotismo espiritual. Ele foi levado pelo legado à igreja em Paris e, assim como seu pai em St. Gilles, com ombros nus e pés descalços, passou pelo mesmo flagelo público e vergonhoso pelas mãos sacerdotais. De joelhos, na igreja de Notre Dame, ele abdicou solenemente toda a sua soberania feudal ao rei da França, e submeteu-se à penitência da igreja. O leitor se lembrará que o pai, em sua penitência, renunciou a sete castelos, mas aqui o filho renuncia a sete províncias. Assim foi ordenado por Aquele que governa sobre todos -- e ordenado para a futura humilhação de Roma -- que a paz de Languedoque redundasse tanto para a vantagem de Roma, assim como para o rápido crescimento da monarquia francesa. Filipe Augusto havia arrancado das mãos fracas de João as posses continentais da coroa inglesa, e agora os domínios do conde de Toulouse e do rei de Aragão, ao norte dos Pireneus, foram acrescentados à coroa francesa. "A posse da Normandia", diz James White, "já havia feito da França uma potência marítima; e agora, com a aquisição das regiões de Narbona e Maguelone de Raimundo VII, ela não apenas estendeu seus limites ao Mediterrâneo, mas, pela extinção de dois vassalos como o conde de Toulouse e o duque da Normandia, fortaleceu de forma incalculável a coroa real."*

{* Para detalhes mais completos, tanto do lado papal quanto do lado albigense dessa sangrenta guerra, ver: Du Pin, século XIII; Palestras de Sir J. Stephen, vol. 1, pp. 214-242; Milman, vol. 4, pp. 167-238; J. White. pp. 282-289; J. C. Robertson, vol. 3, pp. 340-433; Milner, vol. 3, pp. 92-155; Faiths of the World, de Gardner, "Albigenses".}

A Morte de De Monforte

Com a chegada do velho conde e de seu filho aos muros destruídos de Toulouse, com um grande exército, o medo deu lugar à alegria entusiasmada com que o povo acolheu os Raimundos de volta ao palácio e aos domínios de seus ancestrais. Muitos dos nobres do Languedoque levantaram tropas e  também se dirigiram à cidade. Simão e seu filho, Guido, correram para o local, mas foram vergonhosamente rechaçados. O bispo de Toulouse e a esposa de Simão buscaram a ajuda da França. Uma nova cruzada foi pregada, mas De Monforte não conseguiu manter um exército por mais de quarenta dias, e um grande número se uniu aos Raimundos. O cerco durou nove meses e foi palco de muitos embates ferozes. Na primavera de 1218, De Monforte veio contra Toulouse com uma nova companhia de cem mil cruzados. "Você está prestes a conquistar a cidade", disse o espírito mentiroso, "para invadir as casas, das quais nenhuma alma, nem homem nem mulher, escapará viva; ninguém será poupado na igreja, nem no santuário, nem no hospital!"

Tais eram os conselhos de Roma, mas Deus já havia decretado o contrário. Estando ajoelhado durante uma missa, um grito anunciou que os sitiados haviam feito uma arremetida; levantando-se instantaneamente, Simão colocou-se à frente de seus veteranos e correu para o local do ataque, mas mal imaginava ele que seria pela última vez. Naquele momento, ele foi ferido por uma flecha atirada das muralhas da cidade. Isso evidentemente perturbou seu espírito, e ele tentou se retirar do local por alguns passos quando um pedaço de pedra, atirado de uma máquina, bateu em sua cabeça e a arrancou de seu corpo. Enquanto seu tronco sem vida jazia no chão, seus admiradores ousaram reprovar Deus por sua morte e acusar a justiça divina. Mas devemos ali deixá-los: Simão estava agora diante de Deus, ciente de sua condenação eterna.

O cerco foi retirado e o exército inimigo foi totalmente derrotado. O sino tocou, chamando os cidadãos para oferecerem ações de graças, o que fizeram com tumulto e exultação. Raimundo foi aclamado como seu soberano por direito e agora indiscutível; e novamente o estandarte da casa de St. Gilles ondulava por sobre o palácio e sobre as muralhas de Toulouse.

As Mentiras de Fouquet

O decreto do Concílio de Latrão, que proibia que se continuasse a pregação das cruzadas, privou De Monforte de novos suprimentos. Esse novo estado de coisas reviveu o espírito do jovem Raimundo, que resolveu formar um exército e fazer um esforço heroico para recuperar os domínios conquistados de seu pai. Ele logo estava à frente de uma grande força. A esperança de uma libertação das crueldades de Simão e de ganharem algo de suas soberanias hereditárias animou toda a população de Languedoque. De Monforte, então, tratava Toulouse como uma cidade conquistada, exigindo altos tributos e esforçando-se para adquiri-las das maneiras mais severas. Uma revolta geral dos cidadãos oprimidos era evidente, mas eles imprudentemente aceitaram a traiçoeira mediação de seu bispo, o perverso Fouquet. Ele lhes assegurou que nem um fio de cabelo de suas cabeças seria tocado se concordassem com os termos de De Monforte. Os cidadãos concordaram, e assim ele lhes jurou: "Eu juro por Deus, e pela santa Virgem, e pelo corpo do Redentor, por toda minha ordem, pelo abade e outros dignatários, que vos dou bom conselho, o melhor que eu já dei; se o conde de Monforte infligir sobre vós o mínimo dos males, trazei suas reclamações diante de mim, e Deus e eu vos faremos justiça". Que crueldade! Esse é o papado. Essas eram as ovelhas de seu próprio rebanho. Não estamos falando agora dos direitos ou dos erros da guerra, mas das falsas perfídias daquele que se declarava pastor das ovelhas.

O povo caiu então na armadilha de Satanás. Eles foram tratados como súditos revoltosos e punidos pelo próprio bispo com toda a sua crueldade implacável. O primeiro ato de De Monforte foi "a exigência de trinta mil marcos de prata, a demolição das muralhas e de todas as fortalezas da cidade, e a pilhagem dos habitantes até o último pedaço de pano e porção de comida". Assim eles tiveram que passar o inverno, mas a primavera seguinte trouxe alívio.

Os Conquistadores Brigam Entre Si

A conquista parecia estar completa, e os conquistadores começaram a dividir os espólios; mas Arnaldo e De Monforte brigaram pela coroa ducal de Narbona. Ambos reivindicavam o ducado. O legado (Arnaldo) tinha assumido o arcebispado de Narbona, e ele afirmava que os direitos de soberania secular estariam a isso vinculados, mas De Monforte, que tomou para si o título de Duque de Narbona, indignou-se que um padre pudesse reivindicar essa autoridade secular que ele declarava ser toda sua, como príncipe e soberano de toda aquela terra. A disputa ficou séria. Simão, chamando Arnaldo e todos os seus seguidores de hereges, invadiu e tomou posse da cidade pela força de seu exército; o legado, exercendo sua autoridade espiritual, excomungou o grande cruzado e colocou todas as igrejas da cidade sob interdito. O papa, considerando com inveja o poder formidável desses grandes rivais, e não sentindo ser conveniente interferir sozinho nesse conflito, convocou, em 1215 d.C., o quarto Concílio de Latrão, de modo a pôr fim à cruzada contra os albigenses, e, finalmente, dispor dos territórios conquistados.

Esse foi o concílio mais numeroso já realizado na Cristandade. Mas não devemos nos aventurar nem mesmo na mais superficial descrição de seus procedimentos. Vamos apenas observar o que diz respeito ao assunto que estamos tratando: "Raimundo e seu filho, acompanhados pelos condes de Foix e de Comminges, com muitos outros nobres de Languedoque, foram recebidos na presença do papa, que se sentava entre seus cardeais e outros prelados. Eles se ajoelharam perante ele: o jovem Raimundo apresentou cartas de seu tio, o rei da Inglaterra. O monarca inglês expressou sua indignação pela usurpação da herança de Raimundo por Simão de Monforte. O papa ficou comovido com a beleza e graciosidade do jovem príncipe, pensou em seus erros e derramou lágrimas." Esse jovem nobre da antiga casa ancestral de Toulouse, que estava ligado, seja pelo sangue ou pelo casamento, a todos os soberanos da Europa, e que nunca tinha sido acusado da mácula da heresia, tinha sido roubado e despojado pelos agentes do papa, e levado ao exílio. O filho foi seguido pelo pai e pelos outros condes, que reclamaram da injustiça do legado e de De Monforte, da pilhagem de sua terras e do massacre sem escrúpulos de seus súditos. As enormes crueldades de Fouquet foram relatadas por todas as testemunhas, que o denunciaram como sendo o destruidor de mais de dez mil dentre o rebanho confiado aos seus cuidados pastorais.

Algo parecido com pena parecia ter tocado, por um momento, o coração de Inocêncio ao ouvir os depoimentos de tantas nobres testemunhas, todos católicos professos. Muitos membros do concílio também foram tocados com remorso, e falaram a favor dos príncipes conquistados. Mas essa tendência a algo parecido com justiça da parte do concílio levou os partidários de Simão à mais veemente indignação. Eles asseguraram à "Sua Santidade" que, se o legado e De Monforte fossem obrigados a entregar os territórios e feudos que conquistaram, ninguém dali em diante jamais embarcaria novamente na causa da igreja, ninguém jamais se colocaria novamente em perigo em sua defesa. Ainda assim, o papa parecia disposto a ouvir as reclamações dos príncipes, e, levantando sua voz, disse: "Dou permissão a Raimundo de Toulouse e a seus herdeiros de recuperarem suas terras e seus feudos de todos os que os tomaram injustamente". Os prelados ficaram furiosos. O papa ficou consternado diante do poder que tinha criado, e pelo qual ele era agora obrigado a exercer a injustiça. De Monforte foi confirmado em todas as suas conquistas, com exceção do Condado Venaissino, que foi reservado para o jovem Raimundo se sua conduta satisfizesse o legado. Filipe Augusto, rei da França, concordando com a sentença, concedeu a Simão de Monforte a investidura dos condados de Toulouse, de Béziers e de Carcassona, e do ducado de Narbona. Simão estava então no trono que ele tinha alcançado por meio da opressão, da tirania e do sangue. Ele foi proclamado soberano de Toulouse e general dos exércitos de Deus, o filho querido da igreja. O clero e o povo foram saudá-lo com a seguinte saudação blasfema: "Bendito aquele que vem em nome do Senhor". Mas o triunfo dos ímpios dura pouco; seu fim e sua recompensa eterna estavam próximos.

A Batalha de Muret

O papa passava por dificuldades, e assim cedeu à necessidade. Ele sozinho tinha convocado o movimento; mas o poder de controlá-lo escapou de suas mãos. Seus agentes estavam apenas cumprindo suas instruções, e ele não tinha o direito de reclamar. Por necessidade, ele repreendeu severamente o rei de Aragão, o principal apoiador da causa católica na Espanha -- acusou-o de falsas declarações, ameaçando-o com uma cruzada, e confirmando sua sentença de excomunhão contra Raimundo e seus aliados. De Monforte foi proclamado o servo ativo de Jesus Cristo e o invencível defensor da fé católica, e assim foi autorizado a manter suas conquistas. A paciência do longânimo rei de Aragão então se acabou, e, provocado pela insolência do clero, correu para a guerra. À frente de mil cavaleiros e um grande exército, ele cruzou os Pireneus e encontrou os cruzados na pequena cidade de Muret, a cerca de nove milhas de Toulouse. À frente dos guerreiros da cruz com mais sete bispos, apareceu Simão de Monforte, pronto para a guerra. "Seu exército", diz Greenwood, "embora menor em números, consistia na cavalaria pesada da França, ansiosa pela vitória sobre o exército de hereges, visando ganhar, com isso, honra imortal, ou pelo martírio serem levados à presença dos santos no paraíso." A batalha que se seguiu foi feroz, curta e decisiva. Dom Pedro II de Aragão, com muitos de seus nobres, foi contado com os mortos. O remanescente de seu exército, privado de seu comando, dispersou-se, e toda a milícia bruta e mal armada de Raimundo e seus aliados ou foram mortos ao fio da espada ou afogados no rio Garona, até o último homem.

A causa dos albigenses, em consequência da grande vitória de Muret, tornara-se desesperada, e o destino daquela terra devota parecia ter sido decidida para sempre. Raimundo foi despojado de seus territórios; De Monforte foi reconhecido príncipe do feudo e da cidade de Toulouse, assim como dos outros condados conquistados pelos cruzados sob seu comando. Sobrepujado por seus infortúnios e pelas censuras da igreja, Raimundo não ofereceu oposição. Fouquet, o bispo do papa, tomou posse do palácio de seus ancestrais, e, com uma impudência cruel que é difícil de descrever em palavras, ordenou que o nobre conde e sua família se retirassem para a obscuridade. Tais eram, e ainda são, as ternas misericórdias do sacerdócio católico, até mesmo para com seu próprio rebanho, se tido por desobediente, pois o próprio Raimundo nunca foi acusado de heresia, mas sim de apenas abrigar hereges em seus domínios -- ou, em outras palavras, de recusar massacrar a sangue frio seus súditos mais obedientes e leais: esse foi todo o seu crime aos olhos de Roma, e isso o céu certamente um dia julgará.

domingo, 19 de janeiro de 2020

O Cerco de Toulouse

Da pilha ardente de quatrocentos seres humanos e dos enforcamentos de vários senhores nobres, o campeão da Igreja, Simão de Monforte, avançou para o cerco de Toulouse. Suas numerosas conquistas tinham feito mais para inflamar do que para satisfazer sua "avidez indisfarçada". Ele esperava acrescentar a seus bens o senhorio de Toulouse e, assim, elevar-se ao nível dos príncipes soberanos. O bispo Fouquet estava em seu acampamento. Esse novo bispo de Toulouse, colocado lá para se adequar ao propósito do papa, é mencionado pelos historiadores como um dos homens mais traiçoeiros, cruéis, sanguinários e sem escrúpulos que já viveram sobre a Terra. Rabenstein foi deposto para que ele tomasse seu lugar, de modo que pudesse trabalhar, de dentro dos portões, a ruína do conde, enquanto os inquisidores e cruzados o faziam do lado de fora. Mas, apesar de toda a perfídia do papa e da bravura de Simão, a maré da sorte estava ao lado de Raimundo. O conde de Toulouse, sob a severa disciplina de uma prolongada calamidade, mostrou que era realmente dotado de coragem e força de caráter. Ele se cercou de seus aliados com seus seguidores, que defenderam a cidade, e também fez ousadas arremetidas por meio de sua guarnição, de tal modo que Simão foi obrigado a encerrar o cerco. Este, no entanto, se vingou devastando os jardins, vinhedos e campos. O estado das coisas agora estava completamente alterado. Raimundo, em vez de agir na defensiva, tornou-se um agressor ativo e enérgico e, antes de decorridos alguns meses, recuperou a maioria dos lugares que haviam sido ocupados pelos cruzados. O princípio feudal dos quarenta dias* causou flutuações contínuas no exército de Simão e, sem dúvida, o impediu de melhorar suas vantagens ao máximo, de modo que seus sucessos foram prejudicados por reveses ocasionais. O triunfo de Raimundo, no entanto, foi apenas uma prorrogação temporária e o prelúdio de uma terrível derrota.

{* Que obrigava os vassalos a servirem por apenas quarenta dias. }

Uma nova cruzada foi pregada na Alemanha e no norte da França; muitos aventureiros, treinados nas guerras da Alemanha e do Oriente, se juntaram ao novo exército. Todas as bênçãos temporais em uma bela região, e, finalmente, o céu, induzia um grande número de pessoas a assumir a cruz dos cruzados. Os arcebispos de Reims e Rouen, os bispos de Paris, Laon e Toul, todos estavam com eles, e Guilherme, arquidiácono de Paris, era o engenheiro chefe do exército. Os pobres e desencorajados albigenses, enquanto se aproximava tal miríade de exércitos, fugiram do campo aberto e buscaram refúgio entre os bosques e montanhas ou nas grandes cidades. Raimundo, sentindo sua própria fraqueza, buscou uma aliança com seu parente Dom Pedro, rei de Aragão, e o galante espanhol prometeu seu apoio; mas antes de se envolver na guerra, fez um apelo ao papa em favor de Raimundo.

Movido pelo apelo do rei e ficando com inveja do crescente poder de De Monforte, o papa, por um momento, pareceu disposto a alterar o rumo de sua política. Ele demonstrou seu descontentamento com os legados: "Eles", disse, "colocaram as mãos em territórios que nunca haviam sido poluídos com heresia". Portanto, ordenou a restituição das terras dos condes de Foix e Comminges e de Gastão de Beam, e também suspendeu suas indulgências aos cruzados. Mas toda essa aparência de justiça ou piedade provinha de um mero sentimento de inveja da mente do papa. Ele logo revogou todas as suas próprias concessões. As cartas de seus legados e inquisidores chegaram absolutamente furiosas -- "Arme-se, meu senhor papa, com o zelo de Fineias; aniquile Toulouse, essa Sodoma, essa Gomorra, com todos os desgraçados que nela há; que nem o tirano, o herege Raimundo, nem mesmo seu jovem filho, levantem suas cabeças, que já estão mais que meio esmagadas, então esmague-as até o final. A purificação de Languedoque não se completará até que a cidade de Toulouse seja arrasada e os cidadãos sejam cortados ao fio da espada. Se os Raimundos puderem erguer a cabeça, tomarão para si outros sete demônios piores que o primeiro. Que a sua sabedoria apostólica triunfe sobre esse mal; não retenha a sua mão desta obra santa e piedosa até que a serpente de nosso Moisés tenha engolido as serpentes desse Faraó; até que os jebuseus com todos os incircuncisos e impuros sejam dispersos, e seu povo se regozije na posse tranquila da terra da promessa."

As Barbáries de Simão e Arnaldo

Simão de Monforte, como senhor feudal do Viscondado de Béziers e Carcassona, foi obrigado, por seu mandato eclesiástico, a extirpar os hereges. Ele, portanto, continuou sua campanha; muitas cidades e castelos caíram em suas mãos, alguns pela força, outros pelo pânico. Na diocese de Albi, sede principal daquelas doutrinas condenadas, a guerra foi conduzida com a mais selvagem crueldade. Quando La Minerve, perto de Narbona, após uma defesa obstinada, se rendeu, alguém em cujo coração ainda restava uma centelha de humanidade propôs que fosse permitido que os vencidos fossem deixados livres caso desistissem de sua heresia; mas termos tão brandos foram contestados pelos monges impiedosos. "Os termos são fáceis demais", exclamaram, "viemos para extirpar hereges, não para lhes mostrar favor!" "Não tenhais medo", respondeu o abade em uma zombaria cruel, "não haverá muitos convertidos". E ele estava certo, mas não no sentido em que falava. Sua intenção era matar todos eles; mas a intenção dos albigenses, ou melhor, o firme propósito que tinham, era aceitar a morte em vez dos termos papais. Enquanto isso, os albigenses se reuniram para orar. O abade de Vaux-Cernay encontrou várias mulheres cristãs em uma casa, silenciosamente envolvidas em oração, e esperando o pior que poderia lhes acontecer. Elas não esperavam piedade desses "santos padres", e estavam preparadas para morrer. Ele também encontrou vários homens de joelhos em outra casa, aguardando pacificamente seu fim. O abade começou a pregar-lhes as doutrinas do papado, mas, em uma só voz, eles o interromperam, e todos exclamaram: "Não queremos nada da sua fé; renunciamos à igreja de Roma, seu trabalho é em vão, pois nem a morte nem a vida nos farão renunciar à verdade que possuímos". Pediu-se que De Monforte falasse com eles. Ele visitou homens e mulheres, ao todo cento e quarenta. "Convertam-se à fé católica", disse ele, "ou subam nessa fogueira". Ele já havia ordenado que uma enorme pilha de madeira seca fosse amontoada. Nenhum dos albigenses vacilou por sequer um momento. Eles negaram a supremacia do papa e a autoridade do sacerdócio; eles não possuíam qualquer cabeça (chefe) senão Cristo, e nenhuma autoridade além de Sua santa Palavra. Irritado de raiva pela constância e calma firmeza deles, ele ordenou que o fogo fosse aceso, e a pilha logo se tornou um monte de chamas. Os destemidos confessores do nome de Jesus, entregando suas almas em Suas mãos, correram voluntariamente para as chamas, como se subissem ao céu em uma carruagem de fogo.

Quando o castelo chamado Brau se rendeu, De Monforte arrancou os olhos de mais de cem dentre os defensores e vergonhosamente mutilou os demais, deixando um deles com um olho para que pudesse guiar o resto para fora. Disse o abade de Vaux-Cernay que o conde não se deleitava com tais coisas, "pois dentre todos os homens ele era o mais brando", mas fazia essas coisas porque desejava retaliar o inimigo. Tal foi o julgamento do monge historiador. Em Lavaur, a cidade do bom Roger Bernardo, conde de Foix, as barbáries superaram todas as precedentes, até mesmo as dessa terrível guerra. O conde é tido pelos valdenses como sendo um deles. "De todos os príncipes provinciais", diz Milman, "o conde de Foix era o mais poderoso e o mais detestado pela Igreja como favorecedor de hereges. Nesse caso, a acusação era mais uma honra do que uma calúnia. Ele era um homem profundamente religioso, o primeiro a elevar seu estandarte contra De Monforte, e foi um cavaleiro de valor, representando a fé cristã ". Por fim, a cidade caiu nas mãos dos sitiantes; um massacre geral foi permitido; homens, mulheres e crianças foram esquartejados, até que não restasse nada para matar, exceto alguns da guarnição e outros reservados para um destino mais cruel. Quatrocentos foram queimados em uma grande pilha, o que causou uma grande alegria no acampamento inimigo. E em meio a todo esse tumulto, em diabólica crueldade, os bispos e legados cantavam: "Vem, Espírito Santo". Foi aqui que o senhor Almerico, com oitenta nobres, foi levado diante de De Monforte, que ordenou que fossem enforcados, como já vimos. A piedosa dona Geralda também sofreu aqui, uma mulher de quem se diz: "Nenhum homem pobre jamais saiu de sua porta sem ser alimentado".*

{*Latin Christianity, vol. 4, p. 223; Gardner's Faiths of the World, "Albigenses."}

A Guerra Muda de Caráter

O conde Raimundo correu para Toulouse, e fez com que seu banimento e excomunhão, com os duros termos para sua absolvição, fosse lida publicamente em voz alta; os cidadãos ficaram indignados e declararam que prefeririam se submeter às condições mais extremas do que aceitar condições tão vergonhosas. À medida que as notícias se espalhavam de cidade em cidade, o mesmo entusiasmo prevaleceu em todos os seus domínios. O caráter da guerra tinha então mudado completamente. Era evidente para todos que os cruzados estavam determinados a conquistar as províncias com o objetivo de convertê-las em dependências da Sé de Roma; e as províncias estavam igualmente determinadas a resistir aos cruzados como sendo os maiores hipócritas, e a rejeitar a tirania cruel e usurpadora de Roma. Os propósitos professamente religiosos da cruzada se degeneraram em uma guerra de carnificina e pilhagem universal. A nação inteira ficou, assim, em estado de insurreição geral contra a igreja dominante, como se fosse um invasor estrangeiro.

A guerra foi então proclamada, mas os dois lados combatentes eram desiguais. Raimundo parece ter sido um monarca gentil e indolente, muito amado por seu povo, e ambicioso, exceto pelos prazeres e gratificações desta vida. Não há evidências de que ele fosse inclinado à religião albigense, e professava ser um verdadeiro católico romano. Por outro lado, Simão de Monforte, o grande general de Roma, foi considerado o líder militar mais ousado e hábil de seus dias, e o campeão jurado do papado. Ele era regular nos exercícios de sua religião e ouvia missas diariamente. "Mas", observou alguém, "mesmo com as melhores qualidades de Simão, foram combinados alguns dos vícios que não involuntariamente buscam sua santificação na alta profissão religiosa -- uma grande ambição, uma ousada falta de escrúpulos quanto aos meios de perseguir seus objetivos, uma indiferença implacável ao sofrimento humano e uma avidez excessiva e indisfarçada."* À frente de um novo exército de cruzados, para executar a sentença da igreja e ganhar o nobre prêmio dos domínios de Raimundo, ele marchou por aquela terra devota. Carnificina, estupros e as mais selvagens barbaridades, tais que não podem ser descritas, acompanharam todos os seus passos. Os hereges, ou os suspeitos de heresia, onde quer que fossem encontrados, foram obrigados pelo legado Arnaldo e De Monforte a subir em vastas fogueiras em chamas, enquanto os monges se divertiam com seus sofrimentos e zombavam dos gritos das mulheres em chamas.

{* J.C. Robertson, vol. 3, p. 351.}

Todo o país, à medida que o exército papal avançava, tornou-se o cenário das crueldades mais devassas: destruíram vinhas e plantações, queimaram aldeias e fazendas, massacraram camponeses, mulheres e crianças desarmados, espalharam a desolação por toda a terra e depois ainda falavam de seu zelo santificado pela religião. O povo, exasperado, revidou -- o que não é de se admirar -- e uma guerra selvagem foi travada dos dois lados, mas deixarei os detalhes para o historiador civil. Tendo colocado os reais motivos e objetivos do papa nesse ultraje sem paralelo contra a humanidade e a religião, da maneira mais clara que a brevidade permitiria, agora observaremos apenas alguns dos principais compromissos dessa grande luta, que a levaram a um fim, e que manifestam ainda mais plenamente o caráter de Simão e dos monges de Cister, sob a direção e sanção do pontífice.

domingo, 5 de janeiro de 2020

O Verdadeiro Objetivo dos Católicos

O leitor tem agora diante de si o verdadeiro, embora oculto, objetivo desses homens inspirados por Satanás. É a velha e cruel história de Nabote e sua vinha: Jezabel queria as regiões encantadoras do sul como sua própria vinha, e portanto o sangue de Nabote, o jizreelita, tinha que ser derramado. Verá-se pelas ordens secretas do papa a seus legados que a ruína, não somente de Raimundo, mas de todos os príncipes em Languedoque, estava determinada, e que ele tinha enganado o conde Raimundo por uma reconciliação fingida, de modo a separá-lo do resto dos nobres de Languedoque para que pudessem ser destruídos um por um com maior facilidade. Essa era a política de Inocêncio, como vemos escrita de seu próprio punho, e seus legados eram aptos discípulos de seu mestre. Mas os espólios do conde de Toulouse e de todos os seus partidários eram uma questão de necessidade para Simão e para seus aliados, os legados; nada menos do que toda a região sul da França podia satisfazer a avareza de De Monforte e o fanatismo dos ávidos padres. Foi, portanto, determinado que se envolvessem os condes de Foix, Cominges e Beam, com todas as suas dependências territoriais.

O conde de Toulouse era suserano de cinco grandes feudos subordinados. As cortes desses soberanos mesquinhos disputavam umas com as outras em esplendor e bravura. Conta-se que a vida era, para eles, um banquete ou torneio perpétuo. Alguns deles estavam entre os mais distintos dos cruzados no Oriente e tinham trazido para casa muitos costumes de luxo oriental. Não se tratava de hereges, valdenses ou albigenses. Eles eram bons católicos por fora; mas a religião deles não passava de música de trovador. Ainda havia algumas exceções honrosas; podemos traçar a linha prateada da rica graça soberana de Deus nas cortes desses príncipes sensuais. Lemos sobre sobre Almerico, senhor de Montreuil, e sua irmã, dona Geralda de Vetville, que eram albigenses, e que defendiam suas próprias cidades contra os católicos, mas que foram subjugados; e esses senhores e senhoras com muitos outros foram rapidamente destruídos. Almerico, com oitenta nobres, foi trazido perante De Monforte. Ele ordenou que todos eles fossem enforcados, mas a armação de madeira da forca se quebrou, e então eles foram esquartejados. A senhora Geralda foi lançada em um poço e jogaram grandes pedras encima dela. Apenas alguns escaparam do massacre generalizado de Vetville para contar a história. Mas toda aquela região teve um destino similar. O verdadeiro cristão, o cortesão gentil, o cavaleiro galante, a multidão amante dos prazeres que estava tão envolvida com os hábitos luxuosos da região para serem hereges ou fanáticos -- todos tinham de se submeter aos termos papais, ou então deveriam enfrentar a forca, a fogueira ou a espada do carrasco.

Toda a região do sul da França ficou então carregada com a culpa de proteger os hereges; e Raimundo, como senhor suserano, foi convocado a aparecer perante o concílio de Arles. A máscara que até então ocultava a iniquidade selvagem do papa foi tirada. O conde foi ao concílio acompanhado de seu amigo Pedro, rei de Aragão, um católico bom e devoto, que defendeu sua causa e se ofereceu para ser fiador dele. Mas os termos de reconciliação fixados pelos clérigos foram os seguintes -- deixaremos o leitor observá-los cuidadosamente como uma amostra da arrogância e audácia papal naqueles dias: "Que o conde Raimundo deveria dissolver seu exército; que ele deveria demolir todos os seus castelos, despedir todos os comandantes de suas cidades muradas e fortalezas; que ele deveria renunciar a todos os impostos e taxas das quais deriva a principal parte de suas receitas, que ele deveria compelir toda a nobreza e comunidade em seus domínios a vestirem o manto penitencial; que ele deveria entregar todos os seus súditos suspeitos de heresia para serem convertidos ou queimados, conforme o caso; que ele deveria se manter pessoalmente pronto para ir para a Palestina servir sob a irmandade de São João de Jerusalém até que fosse dispensado pelo papa; que cada cabeça de cada família deveria pagar o equivalente a quarenta centavos anualmente ao legado; que ele deveria ser obediente à igreja, pagar todas as despesas que lhe foram cobradas, e durante toda sua vida se submetesse sem contradições. Se todos esses termos forem devidamente satisfeitos, então o legado e o Conde de Monforte lhe restaurará todas as suas terras."*

{* Greenwood, livro 3, cap. 7, p. 546; Milman, vol. 4, p. 218; Sir James Stephen`s Lectures, vol. 1, p. 225. }

A intenção desse novo ultraje era inconfundível; o infeliz conde, desafiando a ordem do concílio, partiu em companhia de seu intercessor, o rei de Aragão. O julgamento foi então dado. "O Conde de Toulouse foi condenado como um herege declarado -- um inimigo da igreja e um apóstata da fé, e seus domínios e propriedades, sejam públicas ou pessoais, serão de posse dos primeiros ocupantes que delas se apropriarem." Esses termos e decretos darão ao leitor uma fraca ideia de como a igreja, usando a mais santificada linguagem e pretensões, conseguia a ruína de um nobre naqueles dias, para que obtivesse posse de suas terras e suas riquezas. Era assim em todo lugar. O príncipe e seu povo deveriam ser afogados em sangue ou consumidos com fogo se suas posses não pudessem ser obtidas por meios mais brandos. Cada Nabote tinha que entregar seu campo a Jezabel, se ela o desejar. E antes de deixar esse ponto, que o leitor tenha em mente que, exatamente nesse momento em que o papa e seus legados trabalhavam pela ruína do conde e dos seus chefes vassalos, os inquisidores Domingos e Reinerius estavam ocupados em um "reconhecimento religioso de toda a área da heresia", tendo a total autoridade do próprio papa para infligir pena de morte aos hereges. Esse terrível tribunal, que então obteve, e até hoje retém, o nome de Inquisição, foi aberto pela primeira vez nesse ano -- um ano de terrível memória, 1210 d.C., em um castelo perto de Narbona.

sábado, 28 de dezembro de 2019

O Cerco de Carcassona

De Béziers, de onde nada então restava além de uma pilha de corpos em chamas, os cruzados seguiram em direção a Carcassona. Enquanto avançavam, encontraram os campos desolados. O terrível exemplo de Béziers encheu de terror todos os corações. Os habitantes dos vilarejos indefesos fugiram ao verem as ruínas fumegantes da forte cidade de Béziers. Inúmeros lamentos acompanharam os passos imundos dessas hostes de Satanás. Eles se puseram diante das muralhas de Carcassona: Roger comandava pessoalmente a cidade, suportando um longo cerco com grande coragem. Simão de Monforte era o chefe do lado atacante. Do outro lado, Roger era visto se expondo em todo o lugar como chefe dos defensores, e animava a coragem deles por palavras e por exemplo. Durante quarenta dias o cerco perdurou, e os sitiadores foram repelidos com grandes perdas; e, se não fosse uma traição do abade Arnaldo, Raimundo-Roger teria triunfado. Foi assim que as coisas aconteceram:

Os soldados da cruz eram obrigados a servir por apenas quarenta dias, tanto pela lei feudal quanto como requisito para ganhar todos os privilégios dos cruzados. No final desse período, muitos dos líderes e da grande massa das tropas voltaram para casa desapontados e insatisfeitos. O calor excessivo, a escassez de água, a atmosfera infectada com os mortos não enterrados, a astúcia, crueldade e perfídia dos padres, tudo isso levou muitos a saudar o fim do mandato feudal. Nessas condições extremas e cercado de tropas desordenadas, o abade recorreu à astúcia -- os ardis de Satanás. O nobre e corajoso visconde foi levado a uma conferência. Sob o juramento do legado e dos barões do exército de que a boa fé seria mantida, Roger saiu com trezentos de seus seguidores. Mas uma fé herética tão formidável não deveria ser mantida na mente dos perseguidores, e logo que ele começou a propor termos, o legado exclamou que nenhuma fé deveria ser mantida com alguém que tinha sido tão infiel ao seu Deus, e ordenou que acorrentassem o visconde e prendessem seus seguidores. Mas ele logo foi aliviado de sua humilhação e sofrimento pela morte, que foi popularmente atribuída à mão de Simão. O povo, consternado com a perda de seu chefe, abandonou a cidade e escapou por meio de uma passagem subterrânea, mas os padres se consolaram apreendendo cerca de quatrocentos desses cidadãos, que foram enforcados e queimados pelo crime comum de heresia.

A cidade de Carcassona e a herança nobre de Raimundo-Roger estavam agora nas mãos do partido papal, e, de acordo com a lei da conquista, inteiramente a sua disposição. O legado e seu clero apresentaram essas terras ricas a Simão de Monforte como as primícias de uma vitória gloriosa sobre os hereges, e assim ele foi aclamado como Visconde de Béziers e Carcassona, prometendo manter suas dignidades e territórios, sob a condição de pagar um tributo anual ao papa como suserano dos territórios conquistados.

A eleição de Simão foi confirmada pelo papa, apesar dos grandes princípios de justiça e de fé dos tratados terem sido violados de maneira tão clara e descarada; mas o rei de Aragão, como suserano da região, recusou investir Simão em suas novas posses. A conquista parecia estar completa, mas não foi realmente assim. O duque de Borgonha, o conde de Nevers e outros nobres franceses retiraram-se da cruzada, ficando grandemente ofendidos com a arrogância dos mercenários do papa. Simão de Monforte, sendo assim deixado com uma força comparativamente pequena, foi incapaz de manter sua posição. Muitas cidades e castelos que tinham sido tomados pelo partido papal perderam-se novamente, e uma guerra incessante foi continuada, agora marcada pela feroz exasperação do povo e pelas crueldades mais implacáveis de ambos os lados. De Monforte escreveu desesperado aos prelados da Cristandade pedindo um novo exército.

A trombeta de Roma soou novamente: uma nova cruzada foi anunciada. "Enxames de monges", diz Greenwood, "saídos de inúmeros claustros e mosteiros da ordem cisterciense, pregando perdição aos hereges e perdões ilimitados a todos os que derramassem sangue -- mesmo que fosse de apenas uma pessoa -- da ninhada amaldiçoada. Não havia crime tão terrível, nenhum vício tão enraizado no coração, que uma campanha de quarenta dias contra esses marginalizados não limpasse, até mesmo o último vestígio de culpa, nem deixasse para trás o menor senso de remorso." Atraídos pela promessa de grandes espólios terrenos no sul ensolarado e da eterna felicidade no céu, inumeráveis tropas de fanáticos reuniram-se ao estandarte de De Monforte. Na primavera de 1210, ele recebeu um grande reforço sob o comando de sua esposa, e a guerra recomeçou com nova fúria. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

A Babilônia de Apocalipse 17

Tem sido nosso desejo, desde o início desta obra, estudar a história de um ponto de vista bíblico, mas mais especialmente à luz das epístolas às sete igrejas do Apocalipse. Os males que estavam apenas brotando estão agora totalmente desenvolvidos. Em Pérgamo, temos Balaão ensinando que "comessem dos sacrifícios da idolatria, e fornicassem"; e em Tiatira, temos Jezabel introduzida, que impunha a idolatria pela força. Mas esses e muitos outros males encontraremos agora concentrados no cálice da falsa mulher de Apocalipse 17.

Penso que não podemos duvidar do significado do símbolo aqui utilizado. Não apenas uma mulher, mas uma mulher indecente e entronizada em meio às corrupções da cidade dos sete montes. "Aqui está a mente que tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes, sobre os quais a mulher está assentada" (Apocalipse 17:9, Almeida Atualizada). Aqui temos um ponto material -- aquilo que sempre caracterizou Roma, tanto na prosa quanto na poesia; como disse alguém, falando de Arnaldo de Bréscia: "No serviço da liberdade, sua eloquência trovejava sobre as sete colinas". Todo leitor sabe de que cidade o historiador está falando por sua descrição. Mas a Palavra de Deus é perfeitamente clara para "a mente que tem sabedoria". Roma é claramente indicada, e suas corrupções religiosas são simbolizadas pela "mãe das prostituições" (Apocalipse 17:5). Mas por que, pode-se perguntar, ela é chamada de Babilônia? O termo é aplicado figurativamente, cremos, assim como Sodoma e o Egito são aplicados a Jerusalém em Apocalipse 11:8: "E jazerão os seus corpos na praça da grande cidade, que espiritualmente se chama Sodoma e Egito, onde também o seu Senhor foi crucificado". Além disso, a Babilônia literal, a capital caldeia, foi construída sobre uma planície -- a planície de Sinar -- e não sobre montes.

Tendo esclarecido esses pontos, e sendo Roma plenamente identificada, aceitamos Apocalipse 17 e 18 como descritivos do papado. O caráter, a conduta, os relacionamentos, e o juízo final de sua Babilônia espiritual, estão aqui colocados diante de nós, não pela pena parcial e imperfeita da história, mas pelo Espírito de Verdade que vê tudo do início ao fim. O sistema papal como um todo é visto moralmente do ponto de vista de Deus. Isto é uma imensa vantagem para o homem de fé. Examinaremos agora, brevemente, algumas de suas mais proeminentes características.

1. Ela é vista em visão como "assentada sobre muitas águas" (v. 1). Isto é explicado pelo anjo no versículo 15 como significando "povos, multidões, nações e línguas". A figura implica que esta falsa mulher, ou o sistema religioso corrupto de Roma, exercita uma influência que arruína a alma sobre essas multidões, nações e línguas. Mas Deus vê tudo e marca tudo: sua história maligna está escrita no céu.

2. Ela é representada como tendo relações sexuais da maneira mais sedutora e indecente com todas as classes. "Com a qual se prostituíram os reis da terra; e os que habitam sobre a terra se embriagaram com o vinho da sua prostituição [fornicação]" (v. 2). Que estado de coisas para aquela que professadamente leva o justo nome de Cristo! O termo "prostituição" ou "fornicação" aqui usado significa, sem dúvida, o poder sedutor do sistema romano em afastar as afeições de Cristo, que é o único verdadeiro objeto da fé para o coração. O padre se coloca entre o coração e o bendito Senhor; a Bíblia é escondida; a mente de Deus é desconhecida; o povo é intoxicado com suas falsidades excitantes; e a verdadeira adoração, não sabem o que é. Toda a terra está corrompida pelo vinho de sua prostituição. Mas seu fim, seu terrível fim, rapidamente se aproxima, "porque os seus pecados se acumularam até o céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela. Tornai a dar-lhe como também ela vos tem dado, e retribuí-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber dai-lhe a ela em dobro" (Apocalipse 18:5,6).

3. Ela é, em seguida, vista como governando e dirigindo o poder civil. "E vi uma mulher montada numa besta cor de escarlata, que estava cheia de nomes de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres" (v. 3). Seja o império romano ressuscitado (Apocalipse 13), ou os diferentes reinos que se ergueram a partir das ruínas de sua unidade imperial, ou todos os governos e principados da terra, a mulher balança seu cetro, ou melhor, sua espada manchada de sangue, sobre todos, como se fosse um domínio seu que foi dado divinamente. O púrpura dos Césares foi reivindicado pelos papas, e "Vossa Santidade" foi proclamado um monarca universal. E essa nova amante do mundo não era assim apenas pelo nome. Ela se vestia de seu antigo nome com um novo poder. A Roma imperial nunca inspirou tanto terror com seus exércitos quanto a Roma papal com suas anátemas. "A Cristandade", disse alguém, "através de todos os seus domínios estendidos de trevas mental e moral, tremia enquanto o pontífice fulminava excomunhões. Monarcas tremiam em seus tronos pelo terror do despotismo papal, e agachavam-se perante seu poder espiritual como os mais insignificantes escravos. O clero considerava o papa como a fonte de sua autoridade subordinada, e o caminho para uma futura promoção. O povo, imerso em profunda ignorância e superstição, via sua supremacia como uma divindade terrena, que decidia pelos destinos temporais e eternos dos homens. A riqueza das nações fluíam para o tesouro sacro, e permitia ao [suposto] sucessor do pescador galileu e chefe da comunidade cristã rivalizar contra o esplendor da pompa e grandeza orientais"*. A extensão de seus domínios excedia de longe as mais vastas conquistas do império. Muitas nações que tinham escapado das garras de ferro da Roma imperial eram mantidas sob o jugo papal. Isto vimos em nossa história das guerras religiosas de Carlos Magno. Dentre essas nações temos a Irlanda, o norte da Escócia, a Suécia, a Dinamarca, a Noruega, a Prússia, a Polônia, a Boêmia, a Morávia, a Áustria, a Hungria, e uma parte considerável da Alemanha. Essas, sabemos, foram reunidas como ovelhas no rebanho do pastor de Roma por missionários tais como Bonifácio; mas, aos olhos de Deus, elas foram escravizadas pela tirania e usurpação da grande corruptora.

{*Variations of Popery, de Edgar, p. 157.}

4. Mas há ainda mais do que apenas se assentar sobre muitas águas e sobre a besta. Ele é cheia de idolatrias e da imundícia de sua prostituição. "A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas; e tinha na mão um cálice de ouro, cheio das abominações, e da imundícia da prostituição" (v. 4). Apesar de toda a sua glória exterior -- aquela que o mundo considera preciosa e bonita -- ela é, aos olhos de Deus, uma mulher indecente com uma bela taça cheia de todas as abominações. Já vimos seu amor tenaz por imagens (de ídolos), as quais são aqui referidas pelo termo "abominações".

5. Suas grandes, ostensivas e exclusivas pretensões de possuir a verdade de Deus. "E na sua fronte estava escrito um nome simbólico: A grande Babilônia, a mãe das prostituições e das abominações da terra" (v. 5). Este é o mais grave e pesado dos pecados de Roma; a horrível falsificação de Satanás e a mais baixa de todas as suas hipocrisias. Sobre a verdade, o mistério celestial, lemos: "Grande é este mistério", diz Paulo, "mas eu falo em referência a Cristo e à igreja" (Efésios 5:32). Mas no lugar de sujeição a Cristo e fidelidade a Ele, ela -- como uma mulher abandonada e desavergonhada -- corrompe, com seu abominável abraço, os grandes da terra. E isso não é tudo. Ela é a mãe -- a mãe das prostituições, que tem muitas filhas. Todo sistema religioso da Cristandade que tende, em qualquer medida, a guiar as almas para longe de Cristo, a engajar suas afeições a coisas que se põem entre o coração e o Homem na glória, está relacionado a essa grande mãe da iniquidade espiritual.

6. Sua sede insaciável pelo sangue dos santos de Deus. "E vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus. Quando a vi, maravilhei-me com grande admiração" (v. 6). Esta estranha visão -- uma mulher -- uma comunidade religiosa, professando ser a verdadeira esposa de Cristo, embriagada com o sangue dos mártires, os santos de Deus, enche a mente do apóstolo com grande admiração. Nem precisamos nos perguntar o porquê. Mas logo também teremos que ver essa estranha vista, não apenas em visão, mas em realidade sem precedentes. Inocêncio III foi o homem que declarou guerra aos camponeses do sul da França e virou a espada do notório Simão de Monforte contra os bem conhecidos Albigenses e Valdenses, e isto sob o pretexto de fazer a vontade de Cristo e de agir sob Sua autoridade.

A partir do versículo 7, temos a explicação que o anjo dá sobre a visão, e a terrível condenação da Babilônia vinda da mão tanto do homem quanto de Deus, até perto do fim do capítulo 18. Mas como não estamos interpretando todos esses detalhes, não precisamos prosseguir adiante com o solene tema desses capítulos. Acompanhemos agora os passos tenebrosos e manchados de sangue do historiador sob a luz das Escrituras Sagradas.*

{*Para maiores detalhes veja Estudos sobre o Apocalipse, de William Kelly.}

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