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domingo, 18 de setembro de 2022

O Papado e a Humanidade

Comparativamente, poucos em nossos tempos de paz têm alguma ideia da verdadeira natureza e uma compreensão abrangente do papado. Durante o longo período da Idade Média, desenvolveu-se plenamente; mas sua natureza permanece inalterada até a presente hora. Os tempos e as circunstâncias mudaram, mas não o papado. O clero, incluindo os monges e frades, era uma classe distinta e estava inteiramente à parte do resto da humanidade. Uma linha ampla, profunda e intransponível separava as duas comunidades – o clero e os leigos. As vidas, as leis, a propriedade, os direitos e os deveres sociais de um não eram apenas diferentes dos do outro, mas muitas vezes antagônicos. 

A educação, tal como era, tornara-se privilégio exclusivo do clero. Quem tivesse qualquer desejo de conhecimento, não poderia obtê-lo nem o empregar senão em conexão com o clérigo ou o mosteiro. Os filhos mais novos da nobreza, e até mesmo da realeza, à medida que a igreja se tornava rica e poderosa, juntavam-se à comunidade clerical. Por este meio, os nomes mais famosos da terra foram encontrados entre o clero, e a Igreja e o Estado foram assim unidos. As universidades, as escolas, todos os domínios do intelecto humano, estavam em seu poder. A outra grande divisão da humanidade – os leigos – eram mantidos em total escuridão e ignorância. E ai do homem que se aventurasse a apontar um novo caminho para a inteligência, a liberdade e o poder. O mais leve vislumbre de luz era instantaneamente extinto, e a descoberta era denunciada como mágica e proibida. 

Só os padres podiam ler, escrever, redigir documentos do Estado ou tratados, e elaborar leis. Pela sacralidade de seu caráter e sua superioridade intelectual, eram admitidos nas cortes e nos conselhos dos reis, eram os negociadores e os embaixadores dos soberanos. Mas os segredos e pactos reais não eram tudo o que eles conheciam: o confessionário abria todo o coração de cada um, do mais alto ao mais baixo, diante dos olhos do sacerdócio. Nenhum ato estava além de seu conhecimento, quase nenhum pensamento ou intenção era secreto. Poderia haver murmúrios abafados sobre a avareza, orgulho e licenciosidade do padre, mas ainda assim ele era um padre, um bispo, um papa; seus sacramentos não perdiam sua eficácia, seu veredicto de condenação ou absolvição continuava igualmente válido. Aqueles que duvidavam abertamente do poder do clero em tais assuntos eram hereges, párias, proscritos, apenas combustível adequado para as chamas agora e sempre. 

O papa, como se acreditava universalmente, combinava em sua própria pessoa todos os atributos do poder supremo em matéria de religião e de governo. O poder dos imperadores e reis era derivado, o seu era original. Ele estava armado com autoridade divina para depor monarcas, para absolver os súditos de sua lealdade e de qualquer outra obrigação; e, se necessário, dissolver todos os laços da sociedade. Mas, acima de tudo, ele era autorizado a manter a integridade da fé transmitida a ele por seus predecessores ou definida por ele mesmo como chefe da igreja, para reprimir a dissidência em todas as formas; perseguir até o extermínio todos os que ousassem disputar essa suprema prerrogativa, como rebeldes e traidores de Deus e de Sua igreja; e, a qualquer momento, apelar ao governo secular, sem compensação, para esbanjar vida e dinheiro, trabalho e sentimento, para capacitá-lo a manter a integridade de seu “império espiritual”.* 

 {*Survey, Latin Christianity, de Milman, vol. 6, pág. 357; Resumo de Greenwood, livro 14, cap. 1.} 

A Reforma na Alemanha

O domínio exclusivo da igreja latina (ou católica romana) estava chegando ao fim. Desde o pontificado de Gregório, o Grande, isto é, por quase mil anos, ela reinara suprema. Mas o teutão oprimido agora levantava o braço da rebelião contra a tirania do romano. A guerra terminou com uma grande secessão dos teutões, arrancando do papado uma grande parte de seus domínios, e com a Cristandade partindo-se em pedaços, como o navio em que Paulo navegou para Roma.

Foi nosso desejo apresentar ao leitor uma visão justa do verdadeiro caráter e dos caminhos da igreja de Roma durante o longo período de seu domínio, para que julgue por si mesmo se a história está de acordo com a interpretação que demos da epístola a Tiatira*. Nossas próprias convicções são agora mil vezes mais profundas no final do que eram no início da história, de que demos uma interpretação verdadeira e fizemos uma aplicação justa das palavras do Senhor à igreja em Tiatira. Temos apenas Ele para servir e Ele para agradar ao escrever esta história. Pois por ninguém mais teríamos perscrutado tantos fatos que ocorreram durante esses mil anos. A quantidade do que escrevemos não chega nem perto da quantidade do que deve ser lido para ficarmos satisfeitos quanto à confiabilidade do que está escrito. Além disso, grande parte da história papal é totalmente imprópria para nossas páginas, ou para chegar aos olhos de pessoas civilizadas, muito menos aos olhos do cristão. É melhor deixar seus adultérios e abominações na página que foi escrita em uma época mais rude, pois certamente serão consignados a um lugar peculiarmente escuro nas regiões do inferno.


Por quase trezentos anos, por meio de escolas, novas traduções, versões, prensas e a intolerância da igreja, o Senhor vinha preparando o caminho para o cumprimento de Seu propósito; e, feito isso, o instrumento mais débil foi suficiente para colocar todas essas frentes em plena ação. "Quando o trem é colocado corretamente nos trilhos, uma faísca acidental pode fazer a locomotiva andar." Efetuar grandes resultados por pequenos meios é o caminho da providência divina, para que o poder seja visto como sendo de Deus, e não do homem. Uma ocasião foi fornecida, e Lutero foi o instrumento preparado para colher a gloriosa colheita da grande Reforma. Mas muito trabalho foi feito no campo por muitos corações e mãos nobres que não tiveram o privilégio de colher seus frutos, pelo menos neste mundo. Estes podem ter sido os agentes, mas Lutero foi o instrumento.

Durante esses mil anos, estivemos principalmente envolvidos com o papado e as testemunhas de Cristo; agora veremos o papado e o protestantismo. Mas para que o leitor entenda corretamente a diferença entre os dois, consideraremos cuidadosamente o que era o papado à época do aparecimento de Lutero.

domingo, 13 de setembro de 2020

Reflexões sobre a História do Papado

Traçamos, embora brevemente, a origem, o progresso e a altura mais elevada que alcançou o sistema papal. Isso foi alcançado pelas grandes habilidades de Inocêncio III. Mas quão variada e repleta de contrariedades e contradições é essa história pitoresca e misteriosa! Façamos uma pausa por um momento para refletir sobre as hipocrisias e tiranias, a presumida piedade e a crueldade daquela mulher Jezabel. Foi ela quem enviou os mais devotos de seus filhos nos primeiros tempos para habitar nas solitárias cavernas das montanhas ou no claustro secreto, sob o pretexto de ali contemplarem pacificamente a glória de Deus e serem transformados à Sua imagem. Mas novamente a ouvimos com voz alterada reunindo as miríades de hostes da Europa para sair e resgatar a Terra Santa das garras infames dos filisteus incircuncisos, e defender a bandeira da cruz no santo sepulcro. Ela se torna então insensível aos sentimentos comuns da natureza, insensível às misérias da humanidade e manchada com o sangue de milhões. Durante duzentos anos, ela empregou todo o seu poder na promoção da destruição da vida humana pelas ruinosas expedições à Terra Santa. E como cada Cruzada sucessiva se mostrava mais desesperadora e desastrosa do que a anterior, ela redobrava seus esforços para renovar e perpetuar aquelas cenas de insensatez, sofrimento e derramamento de sangue inigualáveis.

Mas volte-se novamente e veja o duplo aspecto de seu caráter ao mesmo tempo. Quando os cruzados avistaram Jerusalém, eles desceram dos cavalos e descobriram os pés para que pudessem se aproximar das paredes sagradas como verdadeiros peregrinos. Gritos altos foram levantados: “Ó Jerusalém! Jerusalém!”, como se um temor sagrado movesse seus corações. Mas quando o governador se ofereceu para admiti-los como peregrinos pacíficos, eles recusaram. Não, eles estavam decididos a abrir o caminho com suas espadas e arrancar, por meio do ardor militar, a cidade sagrada das mãos dos incrédulos. Mal haviam escalado as paredes e se precipitaram para o massacre indiscriminado de muçulmanos e judeus, enchendo de sangue os lugares sagrados. E então, por um breve momento, a obra de carnificina e pilhagem foi suspensa, para que os peregrinos devotos pudessem realizar suas devoções; mas os lugares onde eles se ajoelhavam em adoração estavam cobertos de montes massacrados. Esta é uma verdadeira imagem do espírito e caráter de Jezabel, manifestado em todas as eras e países. Quando o próprio Domingos ficou com vergonha dos missionários ensanguentados de Inocêncio em Languedoque, tendo visto milhares de camponeses pacíficos assassinados a sangue frio, ele se retirou para uma igreja e orou pelo sucesso da boa causa, e assim as vitórias de Monforte e seus rufiões foram atribuídas às orações do espanhol de “mente santa”. Esta foi uma cruzada, não contra turcos e infiéis, mas contra os santos do Senhor porque eles ousaram falar de certos abusos na “santa mãe igreja”. E, para castigar com mais eficácia seus filhos, ela inventou a Inquisição, esse aparato de perseguição doméstica, tortura e morte.

E, por mais estranho que possa parecer hoje em dia, e cruel além de qualquer comparação, a destruição em massa da vida e da propriedade humana era a própria energia vital do papado. Ela enriqueceu apropriando-se das contribuições levantadas para o propósito das Cruzadas; e ela se fortaleceu enfraquecendo os monarcas da Europa, exaurindo seus tesouros e despovoando seus países. Assim foi o zelo papal inflamado a uma paixão ardente pelos cruzados e assim passou de Urbano II e do Concílio de Clermont até seus sucessores. Cada pensamento da mente papal, cada sentimento do coração papal, cada mandato emitido do Vaticano, tinha apenas um objetivo em vista: o enriquecimento e fortalecimento da Sé Romana. Não importa o quão subversiva de toda a paz, quão perniciosa para toda a sociedade, ela perseguia seus próprios interesses com uma obstinação inflexível e insensível. As excomunhões eram usadas para os mesmos fins de engrandecimento papal. "O herege perdia não apenas todas as dignidades, direitos, privilégios, imunidades, e até mesmo todas as propriedades, toda a proteção da lei; ele deveria ser perseguido, roubado e condenado à morte, seja pelo curso normal da justiça -- a autoridade secular era obrigada a executar, mesmo com sangue, a sentença do tribunal eclesiástico – ou, se ele se atrevesse a resistir por qualquer meio, por mais pacífico que fosse, era considerado um insurgente, contra quem toda a cristandade poderia, ou melhor, estava obrigada, à convocação do poder espiritual, para declarar guerra; suas propriedades, e mesmo seus domínios, se um soberano, não eram meramente passíveis de confisco, mas a igreja assumia o poder de conceder a outro os bens e propriedades como lhe parecesse melhor.

"O exército que deveria executar o mandato do papa era o exército da igreja, e a bandeira desse exército era a cruz de Cristo. Então começaram as cruzadas, não nas fronteiras contestadas da Cristandade, não em terras muçulmanas ou pagãs na Palestina, nas margens do Nilo, entre as florestas da Livônia ou nas areias do Báltico, mas no próprio seio da Cristandade; não entre os partidários implacáveis ​​de um credo antagônico, mas no solo da França católica, entre aqueles que ainda chamavam a si mesmos pelo nome de cristãos."*

{* Milman, vol. 4, pág. 168; Waddington, vol. 2, pág. 270.}

Esse era, é e sempre será o espírito e o caráter da igreja de Roma. Quão tenebrosa imagem! Quão triste é a reflexão de que aquela que se autodenomina a verdadeira igreja de Deus, a santa mãe de Seus filhos e a representante de Cristo na terra, tenha sido transformada, por instrumentos satânicos, em um monstro das mais repugnantes hipocrisias, e "abomináveis idolatrias!" Ela se tornou a mãe adotiva da mais aberta e ilimitada adoração de imagens, santos, relíquias e pinturas, e da teoria da transubstanciação e da prática do confessionário. Exteriormente, sua ambição inescrupulosa de glória secular, sua intolerância em perseguir até o extermínio todos os que se aventurassem a contestar sua autoridade, sua sede insaciável por sangue humano não têm paralelo nas eras mais bárbaras do paganismo.

E é esta a igreja -- você pode muito bem exclamar em suas reflexões -- é esta a igreja a que tantos estão se juntando nos dias de hoje? Sim, infelizmente; e muitos das classes superiores e inteligentes! Certamente, essas conversões só podem ser fruto do poder ofuscante de Satanás, o deus deste mundo (2 Coríntios 4:3-4). Muitas jovens das melhores famílias da Inglaterra se submeteram, em devoção cega, a ser despojadas de sua cobertura natural e aprisionadas em um convento pelo resto da vida; e muitos da aristocracia, tanto leigos quanto clericais, aderiram à comunhão da igreja romana. Mas ela não mudou: a mudança é com aqueles cuja luz se tornou em trevas, de acordo com a palavra do profeta: “Dai glória ao Senhor vosso Deus, antes que venha a escuridão e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a mude em sombra de morte, e a reduza à escuridão” (Jeremias 13:16). Assim como ela era nos dias de Gregório VII, de Inocêncio III, do cardeal Pole e da Maria Sangrenta (Maria I da Inglaterra), assim é ela ainda hoje quanto ao seu espírito, faltando-lhe apenas o poder. Mas qual será a culpa dos convertidos atuais, tendo o Novo Testamento diante de si e vendo o contraste entre o bendito Senhor e Seus apóstolos, e o papa e seu clero; entre a graça e a misericórdia do evangelho e a intolerância e crueldade do papado! Em vez disso, que meu leitor se lembre da exortação: "Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas… porque todas as nações foram enganadas pelas tuas feitiçarias. E nela se achou o sangue dos profetas, e dos santos, e de todos os que foram mortos na terra” (Apocalipse 18:4,23,24).

O Papado como um Sistema

A Palavra de Deus, que pode tornar os homens sábios para a salvação, foi tirada do povo. Nem mesmo os bispos se envergonhavam de confessar que nunca haviam lido nenhuma parte das Escrituras Sagradas, exceto as que encontravam em seus missais. O serviço religioso era murmurado em uma língua morta, que muitos dos padres não entendiam, e alguns deles mal podiam ler; e o maior cuidado foi tomado para evitar que até mesmo catecismos, compostos e aprovados pelo clero, caíssem nas mãos dos leigos. O sacrifício da missa era representado como a obtenção do perdão dos pecados aos vivos e aos mortos; e as consciências dos homens foram privadas do precioso sacrifício, a obra consumada do Senhor Jesus Cristo. E em vez disso foi colocada uma confiança ilusória nas absolvições sacerdotais, perdões papais e penitências voluntárias.

"Eles eram ensinados", disse o eminente historiador de John Knox, "que se regularmente dissessem suas aves e credos, se confessassem a um sacerdote, pagassem pontualmente seus dízimos e ofertas à igreja, comprassem uma missa, fossem em peregrinação ao santuário de algum santo célebre, se abstivessem de carne às sextas-feiras, ou realizassem algum outro ato prescrito de mortificação corporal, a salvação deles estaria infalivelmente garantida em seu devido tempo; enquanto aqueles que eram tão ricos e tão piedosos a ponto de construir uma capela ou um altar e doá-lo para o sustento de um sacerdote, para realizar missas, obituários e hinos fúnebres, proporcionava uma amenização das dores do purgatório para eles ou para seus parentes na proporção da extensão de sua generosidade. É difícil para nós conceber o quão vazios, ridículos e miseráveis ​​eram os discursos que os monges faziam em seus sermões. Contos lendários sobre o fundador de alguma ordem religiosa, sua maravilhosa santidade, os milagres que ele realizou, seus combates com o diabo, suas penitências, jejuns, flagelações; as virtudes da água benta, crisma, sinal da cruz e exorcismo; os horrores do purgatório, e os números daqueles liberados disso por meio da intercessão de algum santo poderoso; isso tudo, com gracejos baixos, discursos de vanglória e escândalos constituíam os tópicos favoritos dos pregadores e eram servidos ao povo no lugar das doutrinas puras, salutares e sublimes da Bíblia.

"Os leitos dos moribundos eram sitiados, e seus últimos momentos perturbados, por padres avarentos que labutavam para extorquir heranças para si próprios ou para a igreja. Não satisfeitos com a cobrança do dízimo dos vivos, uma exigência foi feita aos mortos: mal o pobre lavrador tivesse dado o último suspiro, o vigário voraz logo vinha e levava consigo seu corpo presente – isto é, um presente do cadáver para o vigário, o que ele fazia sempre que a morte visitava a família.* As censuras eclesiásticas eram fulminadas contra aqueles relutantes em fazer esses pagamentos, ou que se mostrassem desobedientes ao clero. O serviço divino era negligenciado; e, exceto em dias de festas, as igrejas, em muitas partes do país, não eram mais utilizadas para fins sagrados, mas serviam como santuários para malfeitores, locais de tráfico ou resorts para passatempos.

{* O corpo presente era o privilégio do vigário em caso de morte. Nas paróquias rurais, consistia na melhor vaca que pertencia ao falecido e na cobertura superior de sua cama, ou nas melhores roupas da pessoa morta. E esta exigência, que era feita com grande rigor na Escócia e em outros lugares, era separada das taxas comuns exigidas para o enterro do corpo e para a libertação da alma do purgatório. N. do. T.: Esse costume não deve ser confundido com a “missa de corpo presente” adotada pela Igreja Católica no Brasil.}

"A perseguição e a supressão do livre questionamento foram as únicas armas pelas quais seus partidários interessados ​​foram capazes de defender esse sistema de corrupção e impostura. Todas as vias pelas quais a verdade pudesse entrar foram cuidadosamente guardadas. O aprendizado foi rotulado como o pai da heresia. Se qualquer pessoa que tivesse atingido um certo grau de iluminação em meio à escuridão geral começasse a sugerir insatisfação com a conduta dos religiosos e a propor a correção dos abusos, era imediatamente estigmatizado como herege e, se não garantisse sua segurança por meio da fuga, era aprisionado em uma masmorra, ou entregue às chamas. E quando finalmente, apesar de todas as suas precauções, a luz que brilhava ao redor irrompeu e se espalhou por toda a nação, o clero preparou-se para adotar as mais desesperadas medidas sangrentas para sua extinção."

Será agora desnecessário rastrear a origem e o progresso do papado em outras terras. O esboço acima da condição das coisas na Escócia, do século XIII ao século XVI, pode ser suficiente para ilustrar o estado de toda a Europa, e para o propósito da história. Como sistema, é o mesmo em todas as eras e em todos os países. Seu grande dogma sempre foi: a Unidade da Igreja Católica Romana. Seja nas vizinhanças imediatas de Roma ou nas regiões distantes do norte, seu espírito é o mesmo, e deve ser assim até que chegue ao seu fim pelo julgamento direto do próprio Senhor do céu. “Quanto ela se glorificou, e em delícias esteve, foi-lhe outro tanto de tormento e pranto; porque diz em seu coração: Estou assentada como rainha, e não sou viúva, e não verei o pranto. Portanto, num dia virão as suas pragas, a morte, e o pranto, e a fome; e será queimada no fogo; porque é forte o Senhor Deus que a julga.” (Apocalipse 18: 7-8)

domingo, 24 de novembro de 2019

A Cadeia de Testemunhas

Quando comentamos sobre os paulicianos -- as testemunhas de Deus e de Sua verdade no Oriente -- falamos que os encontraríamos novamente no Ocidente. Afirma-se que, em seu zelo missionário, eles se espalharam por toda a Europa; mas se eles continuaram sendo uma seita distinta e característica ou se misturaram-se com outros sectários do Ocidente, esta é uma questão em que não há consenso por parte dos historiadores. Dentre as várias formas de heresia que eram denunciadas pela igreja dominante, dificilmente alguma delas escapou da acusação de maniqueísmo -- o rótulo que era afixado sobre os emigrantes do Oriente. Mas não seria correto dizer, como faziam, que todas as seitas ocidentais eram fruto da missão deles, apesar de serem taxados com o mesmo nome. É mais do que provável, no entanto, que eles tenham encontrado muitos com espírito separatista em relação à igreja católica, embora não o demonstrassem abertamente, e que em tais casos os paulicianos podem ter se tornado seus mestres, podendo, desse modo, perpetuar seus princípios.

As testemunhas ocidentais, sem dúvida, foram o resultado do mesmo espírito de graça e verdade que tinham os paulicianos, através da fidelidade de Deus, que nunca permitiu-Se ficar sem um testemunho na terra, mas não vemos fundamento para falar deles como descendentes dos mal-representados paulicianos. É mais provável que eles fossem uma mistura desses dissidentes da igreja estabelecida.

Procuraremos agora traçar a linha prateada da graça de Deus, que estava trabalhando ativamente, embora sob diferentes formas e nomes, durante o período mais sombrio da opressão papal. Não há dificuldade em identificar as testemunhas de Deus, desde o início da igreja até a Reforma, ou em traçar a cadeia ininterrupta de testemunhas que eram contra a iniquidade de Roma e a favor do verdadeiro evangelho da graça de Deus. Já vimos essa cadeia de testemunhas desde a história dos paulicianos até o século X; veremos agora as seitas mais proeminentes que surgiram no Ocidente antes de e desde esse período.

1. Cláudio de Turim, nascido espanhol, foi um famoso comentarista das Escrituras na corte de Luís, na Aquitânia. Seu patrono, o imperador, o promoveu ao bispado de Turim no ano de 814. Ele é tido na história como o Wycliffe do século IX e um vigoroso defensor do cristianismo primitivo. Ao chegar à diocese, ele encontrou as igrejas cheias de imagens e embelezamentos com flores e guirlandas. Imediatamente e sem cerimônia, ordenou que todos esses ornamentos fossem removidos. Nenhuma distinção deveria ser feita em favor de qualquer imagem, relíquia ou crucifixo; todos deveriam ser retirados para destruição. Ele denunciou a adoração a tais coisas como uma renovação da adoração aos demônios sob outros nomes, o que estava substituindo a pregação da gloriosa ressurreição do Senhor Jesus. Ele declarava também que o ofício apostólico de São Pedro tinha cessado com o fim da vida do apóstolo. Ele, portanto, desprezava as censuras papais e o alegado poder das chaves de São Pedro. Dizem que ele separou sua igreja da comunhão romana.

Mas, como muitos outros reformadores, Cláudio era duro e intemperante em seu zelo. As terríveis corrupções do clero e as idolatrias do povo o levaram a falar e escrever em termos fortes e cheios de paixão, o que não é de se admirar. Mas o Senhor cuidou dele do modo mais maravilhoso possível. Embora fosse um ousado reformador e um destemido iconoclasta em uma cidade italiana, a invisível mão da providência divina permitiu que terminasse seus labores permanecendo ainda nos plenos privilégios de um bispo, apesar de não ter sido livre de oposições.

Como um elo na cadeia de testemunhas, Cláudio ocupa um lugar muito distinto. Sua influência foi grande e amplamente difundida. Teodomiro, abade de um monastério perto de Nismes, ingenuamente confessou, de acordo com Milman, que a maioria dos grandes clérigos transalpinos* pensavam como Cláudio. Assim, a hostilidade contra a igreja católica e seus muitos sacramentos, que mais tarde prevaleceu nos vales alpinos, tem sido geralmente traçada desde esse reformador, Cláudio. Ele morreu no ano de 839. 

{*Transalpino: que se situa além dos Alpes}

domingo, 15 de julho de 2018

Os Sete Sacramentos

No Novo Testamento, onde tudo é claro e simples, lemos apenas de dois sacramentos, ou instituições divinas conectadas a um povo já salvo -- o batismo e a ceia do Senhor. Mas tanto na igreja grega (Ortodoxa Grega) quanto latina (Católica Romana) o número de sacramentos tinha sido grandemente aumentado e colocado de formas variadas por diferentes teólogos. Não era mais uma questão de revelação divina, mas da imaginação humana. Alguns falam de doze sacramentos; mas na igreja ocidental, no final, o místico número de sete foi estabelecido, como se correspondesse à ideia dos sete dons do Espírito Santo. E esses eram: o batismo, a confirmação, a eucaristia, a penitência, a extrema unção, a ordenação e o matrimônio.*

{* Veja J.C. Robertson, vol. 3, pp. 259-272.}

Assim foi a armadilha posta diante dos pés dos verdadeiros seguidores de Cristo. Não importava quão sinceramente um homem cria e obedecia à Palavra de Deus: se desconsiderasse os sacramentos da igreja e suas numerosas cerimônias, expunha-se à acusação e às consequências da heresia. Por outro lado, de nada importava também se a Palavra de Deus fosse totalmente desprezada, desde que a obediência à igreja fosse professada. Mas para todos que seguiam o Senhor de acordo com Sua palavra, era impossível escapar: a rede se estendia por todos os cantos.

A Teologia da Igreja de Roma

Capítulo 23: A Teologia de Roma


Estamos agora cruzando o limiar do século XIII. As grandes personagens e os tempos agitados do século XII ficaram para trás. A reflexão disso tudo é solene. Além da linha que separa as dois períodos, não há como ultrapassá-la de volta. E se a agitação do século XII não estivesse verdadeiramente, embora remotamente, conectada à grande Reforma do século XVI, seria de pouco interesse para nós no século XIX*. Mas nesses homens e em suas épocas vemos as grandes correntes do pensamento e do sentimento humano que tiveram sua ascensão nos mosteiros, e seus resultados na liberdade civil e religiosa que agora desfrutamos sob a boa providência de Deus.

{*N. do T.: O autor viveu no século XIX}

Uma nova geração, uma outra classe de homens, agora ocupa o terreno. Os papas, os primazes, os imperadores, os monges, os filósofos e os demagogos com quem nos familiarizamos abriram espaço para outros. Mas para onde eles foram? Onde estão agora? Apenas fazemos a pergunta para que possamos ser levados a melhorarmos nossos próprios dias e nossas próprias preciosas oportunidades -- para que não precisemos lamentar como o profeta da antiguidade: "Passou a sega, findou o verão, e nós não estamos salvos" (Jeremias 8:20).

Chegou o momento, creio, para que as testemunhas de Deus e de Sua verdade tenham um lugar especial em nossa história. Elas têm aparecido proeminentemente, pouco a pouco, diante de nós desde o fim do século XII. Mas, primeiramente, pode ser interessante colocar diante de nossos leitores certas definições e usos teológicos e usos da igreja romana (Igreja Católica Apostólica Romana) nessa época, pois descobriremos que por elas as testemunhas foram julgadas e o papado ganhou seu poder sobre as vidas e liberdades dos santos de Deus. 

domingo, 8 de julho de 2018

Reflexões Sobre o Fim da Grande Luta

Para ajudar o leitor a formar um julgamento justo sobre essa longa e amarga disputa, oferecemos algumas reflexões. Nada, cremos, pode dar ao leitor uma estimativa tão justa do verdadeiro espírito do papado quanto uma história de seus ambiciosos desígnios e de seus meios inescrupulosos de alcançá-los.

Se inquirirmos "Qual foi o verdadeiro objetivo dessa grande e trágica disputa? Que resposta pode ser dada? Foi pelas liberdades espirituais da igreja de Deus, para que ela pudesse ter o privilégio de adorá-Lo e servi-Lo de acordo com o ensino de Sua santa Palavra? Será que o primaz do papa tinha em vista as liberdades civis e religiosas de indivíduos cristãos, ou o bem-estar da humanidade em geral? Ou será que eles ergueram a voz de protesto contra o rei ou sua corte por sua aberta e flagrante violação das leis de Deus, para avisá-los dos juízos vindouros?" Todos os que se esforçaram em examinar os detalhes da controvérsia devem admitir, por mais triste que seja, que nenhum desses dignos objetivos tinha lugar nos pensamentos deles. O objetivo deles era um só, e um só poder sacerdotal! Todas as coisas dignas -- a verdade, o cristianismo, a paz da igreja, a paz da nação, para não falar da glória de Cristo ou das realidades da eternidade -- foram todas sacrificadas sobre o altar das reivindicações idólatras do clero. Becket foi o representante dessas reivindicações. Ele exigiu, para as pessoas e propriedades do clero, que fossem todos considerados de uma santidade absoluta e inviolável. "Do início ao fim", diz Milman, "foi uma luta pela autoridade, pelas imunidades e pelas posses do clero. A liberdade da igreja era a isenção do clero perante a lei, e a reivindicação de sua existência separada, exclusiva e distintiva do resto da humanidade. Deve ser reconhecido por todos que, se o rei tivesse consentido em permitir que os eclesiásticos desprezassem toda a lei -- se ele não tivesse insistido em tomar padres como culpados de homicídios da mesma forma como fazia para com leigos -- ele poderia ter continuado sem reprovação sua carreira de ambição; ele poderia, sem repreensão, ter vivido em direta violação contra cada preceito cristão de justiça, humanidade, fidelidade conjugal, e cometido extorsões sem qualquer contestação do clero, se ele apenas tivesse mantido suas mãos longe dos tesouros da igreja."

Tal é o solene e pesado julgamento de um dignatário da igreja (o historiador e decano Milman), que não pode ser acusado de preconceito contra sua própria classe, mas cujas críticas são consideradas muito valiosas e justas, assim como sua história é, em outros aspectos, muito confiável.

Nós não apenas concordamos com tudo o que o decano diz, mas acrescentaríamos que nenhuma linguagem, por mais pesada e solene que seja, poderia expressar adequadamente as profundezas do mal que foram abrigadas e propagadas pelo sistema papal. Não falamos assim, que seja observado, da igreja católica, ou da igreja eclesiasticamente considerada como algo distinto do papado, mas da ambição secular e das políticas inescrupulosas dos papas, especialmente daqueles desde o tempo de Hildebrando (Gregório VII). Mas houve, não obstante, durante o período mais tenebroso de sua história, muitos queridos santos de Deus em sua comunhão, e que não sabiam nada sobre os caminhos malignos do bispo de Roma e de seu conselho. Isso o próprio Senhor sugere em Sua carta a Tiatira: "Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás" (Apocalipse 2:24). Aqui encontramos um remanescente crente conectado a um sistema que é caracterizado pelas "profundezas de Satanás".

Antes de deixarmos essa já longa história, acrescentamos que a trágica morte de Becket foi imediata e diligentemente embelezada pelos discípulos de sua escola. Biografias e memórias do mártir, como sabemos, foram multiplicadas e espalhadas por todos os cantos com surpreendente esforço. O forte elemento de idolatria, que sempre esteve presente na igreja de Roma, tornou-se então manifesto na Inglaterra. Peregrinações à tumba do mártir para a remissão de pecados viraram moda, e o próprio santo tornou-se um objeto de devoção popular. Peregrinos de todas as partes se reuniram em seu santuário e o enriqueceram com os mais caros presentes e ofertas. Um grande comércio foi feito com artigos que diziam terem sido usados por sua pessoa, e que agora seriam investidos de poderes miraculosos. Tem-se registros de que cerca de cem mil peregrinos de uma vez estiveram em um mesmo dia em Cantuária. Até mesmo Luís VII da França fez uma peregrinação à tumba miraculosa, e doou ao santuário uma joia que foi considerada a mais rica na Cristandade. Mas Henrique VIII ousou saquear o rico santuário, ordenou que o santo fosse desenterrado, que seus ossos fossem queimados, e que suas cinzas fossem lançadas aos ventos.

(Fim do Capítulo 22)

domingo, 10 de junho de 2018

A Pregação de Arnaldo

A essas novas e perigosas doutrinas o povo de Bréscia ouvia com o maior ardor. Ele desdobrou para eles as páginas escuras da história eclesiástica, sobre a qual estivemos também viajando. A cidade inteira ficou em um estado de grande excitação. Não é de admirar o entusiasmo da população, quando ouviram que as riquezas do clero deveriam retornar aos leigos, e que, no futuro, seus pastores deveriam ser mantidos pelas contribuições voluntárias do rebanho. Ele seria um pregador ousado que se atreveria a despertar o povo ao fanatismo com tais apelos e propostas no século XIX, mas o que seria dele no século XII, em meio às trevas, ignorância e superstição? Tal homem foi o reformador prematuro de Bréscia, e, sendo um severo monge de vida irrepreensível, inquestionável quanto a sua ortodoxia, e possuindo a total simpatia da religião popular, seu poder era irresistível. O grande objetivo de seus esforços era a completa derrubada do poder sacerdotal -- a supremacia secular do papa. Ele, assim, se atreveu a colocar a mão no grande esquema papal de domínio universal, e por um momento abalou sua base. O papa foi expulso de seu trono, a república foi proclamada, o estandarte da liberdade levantado, e o governo dos padres abolido. Mas o entusiasmo dos cidadãos era evanescente, sem unidade, e de curta duração. O solo ainda não estava preparado para o crescimento da liberdade. A iniquidade do sistema anticristão ainda não estava completa. A sede de Jezabel ainda não estava saciada com o sangue dos santos de Deus. Milhões ainda pereceriam antes que ela recebesse sua ferida mortal. Isso veremos em breve.

Arnaldo não estava mais seguro na Itália. O ressentimento do clero era mais forte e profundo do que o favor da população. Ele escapou para além dos Alpes, e finalmente encontrou um abrigo seguro e hospitaleiro em Zurique. Ali, foi permitido ao precursor do famoso Zuínglio que tivesse um tempo para lecionar, e o povo simples manteve por muito tempo o espírito de suas doutrinas. Mas não poderia ser permitido que tal homem vivesse em lugar algum. Bernardo observava cada um de seus movimentos. Ele implorou ao papa por medidas extremas, e escreveu raivosamente àqueles que lhe deram abrigo, alertando-os para que tomassem cuidado com a infecção fatal da heresia. Ele repreendeu severamente o bispo diocesano de Zurique por protegê-lo. "Por que", disse ele, "você ainda não afastou Arnaldo há muito tempo? Aquele que consente com o suspeito torna-se suscetível a suspeitas; aquele que favorece alguém sob a excomunhão papal contraria o papa e até mesmo o próprio Senhor Deus. Agora, portanto, que você sabe quem é esse homem, expulse-o do meio de vós; ou, melhor ainda, acorrente-o, para que não faça mais mal".

Após várias circunstâncias, como é comum no caso desse tipo de homem, e que não precisamos traçar com detalhes aqui, Arnaldo retornou a Roma. Ali foi-lhe permitido permanecer por algum tempo por causa da fraqueza do pontífice e do estado conturbado da cidade; mas quando o papa Adriano IV subiu a trono de São Pedro, os dias de Arnaldo estavam contados.

domingo, 27 de maio de 2018

São Bernardo, Abade de Claraval

O mais celebrado desses homens [do século XII] é o famoso São Bernardo. Ele é considerado o mais brilhante representante da religião católica romana que a igreja teve desde os dias de Jerônimo, Ambrósio, Agostinho, e Gregório. Por meio século, ele aparece diante de nós como o chefe dirigente e governante da Cristandade -- o oráculo de toda a Europa. Os papas são perdidos de vista sob a luz mais clara do abade. "Ele é o centro", diz um de seus biógrafos, "sobre os quais se reúnem os grandes eventos da história cristã, de cuja mente fluem os impulsos que animam e guiam a Cristandade latina, a quem convergem os pensamentos religiosos dos homens. Ele governa, da mesma forma, o mundo monástico, os concílios dos soberanos seculares, e os desenvolvimentos intelectuais da era. Acredita-se, por uma era de admiração, que ele tenha confundido o próprio Abelardo, e que tenha reprimido as mais perigosas doutrinas de Arnoldo de Bréscia". Para aqueles que já leram sobre sua vida, essa imagem não parecerá exagerada. Mas, ao lançarmos luz sobre aqueles tempos, tomaremos nota primeiramente sobre sua criação e educação.

Bernardo nasceu de nobre parentesco na Borgonha. Seu pai, Tescelin, era um cavaleiro de grande bravura e piedade, de acordo com as ideias religiosas predominantes na época. Sua mãe, Alèthe, era também bem nascida, e um modelo de devoção e caridade. Bernardo, o terceiro filho deles, nasceu em Fontaines, perto de Dijon, em 1091. Desde sua infância ele era pensativo e devotado à religião e ao estudo. Sua piedosa mãe morreu enquanto ele ainda era jovem, deixando seis filhos e uma filha. Ele foi, então, deixado livre para escolher sua ocupação de vida. Qual seria? Ele não tinha muita escolha: ou seria um cavaleiro lutador ou um monge em jejum e oração. Ele resolveu se retirar do mundo e devotar-se à vida monástica. Aos vinte e três anos, ele entrou para o mosteiro de Cister.

Quando sua família ouviu pela primeira vez sobre sua decisão, ele sofreu muita oposição. Seu pai, Tescelin, e seus dois irmãos, Guido e Geraldo, estavam seguindo o grande Duque da Borgonha em suas guerras, como militares nobres. Mas tal era a força de caráter de Bernardo que ele influenciou seus irmãos, um após o outro, e também sua irmã, a fazerem o voto; e assim toda a família, em um curto período de tempo, desapareceu dentro das paredes do convento.

domingo, 7 de maio de 2017

O Fluxo do Rio da Vida

Como é bom o Senhor, o grande Cabeça [Chefe] da igreja, que envia a muitas terras distantes as águas vivas do santuário, quando Roma, o centro da Cristandade, estava estagnada e corrompida. Nessa mesma época, Barônio, o famoso analista da igreja romana, e cuja parcialidade quanto à Sé Romana é notória, clama: "Quão deformada e assustadora era a face da igreja de Roma! A santa Sé caiu sob a tirania de duas mulheres relaxadas e desregradas, que colocavam e tiravam bispos ao seu bel-prazer, e (o que tremo ao pensar e falar) colocaram seus galantes na cadeira de São Pedro", etc. Referindo-se ao mesmo período, Arnoldo, bispo de Orleans, exclama: "Ó miserável Roma! Tu que antigamente apresentavas tantas grandes e gloriosas luminárias aos nossos ancestrais, em que prodigiosa escuridão não caíste, o que te tornará infame a todos os séculos posteriores."*

{*Conforme dado por Du Pin, vol. 2, p. 156.}

Enquanto tal era o estado de Roma, a capital da corrupta Jezabel, o fluxo vital de vida eterna do exaltado Salvador fluía livremente nas extremidades do império. Muitas nações, tribos e línguas tinham recebido o evangelho com as muitas bênçãos que ele lhes trazia. Sem dúvida, ele estava saturado com muitas superstições; mas a Palavra de Deus, até então, e o nome de Jesus, tinham sido introduzidos entre eles; e o Espírito de Deus pode obrar maravilhas com esse tão bendito nome e com essa tão bendita Palavra. O Salvador era pregado; o amor de Deus e a obra de Cristo parecem ter sido ensinados com uma unção divina carregada de convicção aos rudes bárbaros. Era a obra do próprio Deus e o cumprimento de Seus próprios propósitos. Em tal caso, não diria Paulo: "nisto me regozijo, sim, e me regozijarei"? (Filipenses 1:18)

domingo, 12 de março de 2017

Adriano Envia Carlos Magno

O papa então enviou mensagens com a maior pressa pedindo a ajuda imediata de Carlos, e ao mesmo tempo diligentemente supervisionava, em pessoa, os preparativos militares para a defesa da cidade e a segurança de seus tesouros. E, de acordo com uma velha estratégia de Roma, [o papa] Adriano enviou três bispos para intimidar o rei e ameaçá-lo de excomunhão se ele ousasse violar a propriedade da igreja. O papa, deste modo, ganhou tempo, e Carlos, com sua usual rapidez, reuniu suas forças, cruzou os Alpes e sitiou Pavia. Durante o cerco, que continuou por vários meses, Carlos fez uma visita ao papa com grande pompa, e foi recebido com toda a honra. Ele foi aclamado pelos nobres, senadores e cidadãos como patrício de Roma e o filho obediente da igreja, que tinha obedecido tão rapidamente a convocação de seu pai espiritual e veio libertá-los dos odiosos e temidos lombardos. Quando as festividades sacras terminaram, Carlos e seus oficiais retornaram ao exército.

Pavia, com o tempo, caiu. Desidério, sucessor do grande e sábio Luitprando, foi destronado, e tomou refúgio em um monastério -- o habitual asilo dos reis destronados; seu valente filho Adalgis fugiu para Constantinopla; e assim expirou o reino dos lombardos, os inimigos mortais dos italianos, e o grande obstáculo para a agressividade papal. O caminho estava então limpo para que o conquistador desse ao papa um reino, não apenas no papel, como fez seu pai Pepino, mas em cidades, províncias e rendimentos públicos. E assim ele fez, e assim ratificou o magnânimo presente de seu pai. Como senhor pela conquista, Carlos Magno presenteou aos sucessores de São Pedro, por uma concessão absoluta e perpétua, o reino da Lombardia; e, como dizem alguns, de toda a Itália. Ao mesmo tempo Carlos reivindicou o título real, e exerceu um tipo de soberania sobre toda a Itália e até mesmo sobre a própria Roma. Mas o papa, estando então seguro na posse do território, podia bem dispôr-se a permitir todas as honras reais ao seu grande benfeitor.

domingo, 5 de março de 2017

Os Paulicianos na Europa

Por volta da metade do século VIII, o imperador Constantino V, também conhecido como Coprônimo, seja como um favor ou como um castigo, transferiu um grande número de paulicianos para a Trácia, um posto avançado do império, e ali eles agiram como uma missão religiosa. Por essa emigração suas doutrinas foram introduzidas e difundidas na Europa. Eles parecem ter trabalhado com grande sucesso entre os búlgaros. Foi de modo a guardar a jovem igreja da Bulgária que Pedro da Sicília, por volta do ano 870, escreveu ao arcebispo dos búlgaros um tratado alertando-o contra a infecção dos paulicianos. Este documento é a principal fonte de informação quanto à seita. No século X o imperador João Tzimisces conduziu uma nova grande migração dos paulicianos aos vales do monte Haemus. A história deles após esse período se passa na Europa. Eles foram favorecidos com uma livre tolerância na terra de seu exílio, o que muito suavizou a condição deles e fortaleceu sua comunidade. A partir desses assentamentos búlgaros o caminho deles se abriu para a Europa Ocidental. Muitos búlgaros nativos se associaram a eles; daí o nome dos búlgaros, de uma forma pejorativa, ter se tornado uma denominação de ódio vinculada aos paulicianos em todas as regiões.

Quanto à história religiosa subsequente desse interessante povo, os historiadores são bastante divididos. Não se sabe deles senão pelos escritos de seus inimigos; portanto, na justiça comum, somos obrigados a suspender nossa fé em suas declarações. Uma coisa, no entanto, é certa: eles protestavam contra a adoração a santos e imagens dos católicos, e contra a legitimidade do sacerdócio pelo qual a idolatria era defendida. Eles também protestavam contra muitas coisas nas doutrinas, na disciplina e na assumida autoridade da igreja de Roma. Os escritores católicos geralmente falam deles como maniqueístas, o tipo mais odioso de hereges. Mas há alguns escritores protestantes, que examinaram com grande cuidado tudo o que pode lançar luz sobre a história deles, que chegaram à conclusão de que eles eram inocentes das heresias que lhes foram imputadas, e afirmam que eles foram as testemunhas fiéis e verdadeiras de Cristo e de Sua verdade durante um período muito obscuro da Idade Média.*

{* Para detalhes e uma pesquisa mais cuidadosa, veja Hora Apocalyptica, vol. 2, 249-344, 5ª edição.}

Voltemos agora a nossa história geral.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Uma Nova Jezabel no Poder (842 d.C.)

Após a morte do imperador Teófilo, Teodora, sua viúva, governou como regente durante o período de minoridade de seu filho. Seu apego dissimulado à idolatria era bem conhecido do sacerdócio, e não muito tempo após a morte de Teófilo ela se dedicou ao completo cumprimento de seu grande objetivo. Quando o caminho ficou limpo, um festival solene foi marcado para a restauração das imagens. "Todo o clero de Constantinopla, e todos os que podiam se reunir dos arredores, se encontraram diante do palácio do arcebispo e marcharam em procissão com cruzes, tochas e incenso à igreja de Santa Sofia. Ali eles se encontraram com a imperatriz e seu pequeno filho Michael. Eles fizeram o circuito da igreja, com suas tochas ardendo, prestando homenagem a cada estátua e pintura, que foram cuidadosamente restauradas, para nunca mais serem apagadas até tempos depois por iconoclastas ainda mais terríveis, os turcos otomanos."*

{* Cristianismo Latino, vol. 2, p. 202.}

Após um restabelecimento tão triunfante das imagens, o partido vitorioso sem dúvida pensou que havia chegado o tempo de propôr e tentar assegurar outro triunfo; eles agora instavam a imperatriz a empreender a total supressão dos paulicianos. Eles tinham pregado contra imagens, relíquias e a madeira podre da cruz. Eles não podiam continuar vivendo, e os católicos atingiram esse objetivo! Um decreto foi emitido sob a regência de Teodora, que decretou que os paulicianos deveriam ser exterminados por fogo e espada, ou trazidos de volta à igreja grega. Mas eles recusaram todas as tentativas que foram feitas para ganhá-los, e assim o feroz demônio da perseguição foi solto entre eles. Seus inquisidores exploraram as cidades e montanhas da Ásia menor e executaram sua comissão da maneira mais cruel possível. Os números da seita, e a severidade da perseguição, podem ser julgados pelas multidões que foram mortas pela espada, decapitadas, afogadas ou consumidas nas chamas. Afirma-se, tanto pelos historiadores civis quanto eclesiásticos, que, em um curto reinado, cem mil paulicianos foram condenados à morte. Houve alguma vez uma filha mais genuína de Jezabel do que esta? Ela nem mesmo tinha um Acabe para fazer este trabalho cruel por ela, mas com suas próprias mãos, por assim dizer -- infelizmente, as mãos de uma mulher -- por seu próprio decreto, ela assassinou cem mil santos de Deus*, restabeleceu a adoração aos ídolos, e nutriu com favor real os padres idólatras de Roma.

{* Não pretendemos afirmar que todos os que foram mortos por Teodora eram cristãos verdadeiros. Não podemos julgar o coração; mas eles professavam ser e voluntariamente morreram como mártires.}

A história da iconoclastia foi notável pela influência feminina. Helena foi a primeira a sugerir e encorajar a veneração por relíquias; Irene foi a restauradora da adoração de imagens quando ameaçada de destruição; e agora Teodora não apenas restabelece a idolatria que seu marido tinha se esforçado para suprimir, como também persegue os verdadeiros adoradores. Certamente a mulher Jezabel -- símbolo da igreja dominante na Idade das Trevas -- tem seu antítipo nessas três mulheres, especialmente as duas últimas. A semelhança é marcante demais para ser questionada. Mas todo o sistema do catolicismo respira esse terrível espírito, e é caracterizado pelas tenebrosas características do caráter de Jezabel. A palavra do Senhor não pode ser quebrada. "Ninguém fora como Acabe, que se vendera para fazer o que era mau aos olhos do Senhor; porque Jezabel, sua mulher, o incitava". Este é o tipo (figura). O antítipo é: "Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu." (1 Reis 21:25, Apocalipse 2:20,21)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Silvano em Cibossa

Constantino [de Mananalis], que se denominou Silvano, dirigiu seus primeiros apelos aos habitantes de um lugar chamado Cibossa, na Armênia, a quem ele chamou de macedônios. "Eu sou Silvano", disse ele, "vós sois macedônios". Ali ele fixou sua residência e trabalhou com energia incansável por quase trinta anos; por meio dele muitos foram convertidos, tanto da Igreja Católica quanto do zoroastrismo. Com o tempo, tendo a seita se tornado suficientemente considerável para atrair atenção, a questão foi reportada ao imperador e um decreto foi emitido em 684 contra Constantino e as congregações paulicianas. A execução do decreto foi confiada a um oficial da corte imperial chamado Simeão. Ele tinha ordens de executar o mestre e de distribuir seus seguidores entre o clero e em monastérios, com vista à recuperação deles. O governo, sem dúvida, agiu conforme a direção da Igreja [Católica]; como no caso de Acabe, "porque Jezabel, sua mulher, o incitava." (1 Reis 21:25). Mas o Senhor está acima de tudo, e Ele pode tornar a ira do homem em louvor para Si.

Simeão colocou Constantino -- o principal objeto de vingança dos padres -- perante um grande número de companheiros, e ordenou-lhes que o apedrejassem. Eles se recusaram e, em vez de obedecer, todos largaram as pedras com as quais tinham se armado, com exceção de um rapaz; e assim Constantino foi morto por uma pedra da mão daquele jovem sem coração --  seu próprio filho adotivo Justus. Este ingrato apóstata foi exaltado pelos inimigos dos paulicianos como um outro Davi que, com uma pedra, derrubou um outro Golias -- o gigante da heresia. Mas do apedrejamento de Constantino, assim como do apedrejamento de Estêvão, um novo líder se ergueu na pessoa do seu assassino imperial. O que Simeão tinha visto e ouvido causou impressões em sua mente que ele não podia ignorar. Ele começou a conversar com alguns dos sectários, e o resultado foi que ele se tornou um de seus convertidos. Ele retornou à corte imperial, mas após passar três anos em Constantinopla com grande inquietação, ele fugiu, deixando todas as suas propriedades para trás, e assumiu sua residência em Cibossa onde, sob o nome de Tito, tornou-se o sucessor de Constantino Silvano.

Cerca de cinco anos após o martírio de Constantino o mesmo renegado Justus traiu os paulicianos. Ele conhecia, como traidor de outrora, os hábitos e movimentos da comunidade, e também onde ele seria recompensado por sua traição. Ele foi ter com o bispo de Colônia e reportou o reavivamento e disseminação da assim chamada heresia. O bispo comunicou essa informação ao Imperador Justiniano II e, em consequência, Simeão e uma grande quantidade de seus seguidores foram queimados até a morte em uma grande pira funerária. O cruel Justiniano em vão pensou ter extinguido o nome e a memória dos paulicianos em uma única conflagração, mas o sangue dos mártires pareceu apenas ter multiplicado seu número e sua força. Uma sucessão de mestres e congregações surgiram de suas cinzas. A nova seita se espalhou por todas as regiões adjacentes, Ásia Menor, Ponto, as fronteiras da Armênia e a oeste do Eufrates. Eles suportaram, durante muitos reinos sucessivos, com paciência cristã, a ira intolerante dos governadores através da instigação dos padres. Mas o preço pela crueldade, como observaremos, deve, sem dúvida, ser recompensado pela devoção sanguinária de Teodora, que restaurou as imagens na igreja oriental.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

A Origem dos Paulicianos (653 d.C.)

Os gnósticos, que tinham sido tão numerosos e poderosos durante os primeiros dias do cristianismo, eram então um obscuro remanescente, principalmente confinados às aldeias ao longo das margens do Eufrates. Eles tinham sido expulsos pelos todo-poderosos católicos das capitais do Oriente e do Ocidente, e o restante de suas diferentes seitas passaram sob o genérico e odioso nome dos maniqueístas.

Nessa região, na aldeia dos Mananalis, próximo à Samósata, viveu por volta do ano 653 um homem chamado Constantino, que é descrito pelos escritores romanos como descendente de uma família maniqueísta. Logo após a conquista dos sarracenos da Síria, um diácono armênio, que retornava do cativeiro entre os sarracenos, tornou-se hóspede de Constantino. Em reconhecimento de sua hospitalidade o diácono presenteou-o com um manuscrito contendo os quatro Evangelhos e as quatorze Epístolas de São Paulo. Este era, de fato, um presente raro, uma vez que as Escrituras já eram escondidas dos leigos. O estudo desses livros sagrados produziu uma revolução completa em seus princípios religiosos, e em todo o curso subsequente de sua vida. Alguns dizem que ele tinha sido treinado no gnosticismo, outros, que ele era um membro da igreja grega estabelecida; mas, seja como possa ter sido, aqueles livros tornaram-se então seu único estudo e a regra de sua fé e prática.

Constantino pensou então em formar uma nova seita, ou melhor, em restaurar o cristianismo apostólico. Ele renunciou e jogou fora seus livros maniqueístas, como dizem seus inimigos; abjurou ao maniqueísmo e tornou uma lei para seus seguidores que não lessem qualquer outro livro além dos Evangelhos e das Epístolas do Novo Testamento. Isto pode ter dado aos seus inimigos o pretexto para acusá-los de rejeitarem o Antigo Testamento e as duas epístolas de São Pedro. Mas é mais que provável que eles não possuíssem essas porções da Palavra de Deus. É de se temer, no entanto, a partir de seu apego e devoção peculiar aos escritos e ao caráter de São Paulo, que outras Escrituras foram negligenciadas.

É geralmente aceito que a palavra pauliciano foi cunhada a partir do nome do grande apóstolo dos gentios. Seus cooperadores, Silvano, Timóteo, Tito e Tíquico eram representados por Constantino e seus discípulos; e suas congregações, como se espalharam por diferentes lugares, eram chamadas segundos os nomes das igrejas apostólicas. É difícil perceber como nesta assim chamada "inocente alegoria" os católicos poderiam ter sido tão gravemente ofendidos com os paulicianos, ou nisto encontrado um pretexto para caçá-los com fogo e espada. E mesmo assim o fizeram, como veremos a seguir. Seu "pecado imperdoável" era sua separação da igreja do Estado, seu testemunho contra a superstição e apostasia, e seu reavivamento de uma memória de um cristianismo primitivo puro.

Os Nestorianos e os Paulicianos

A ascensão dos nestorianos no século V e seu grande zelo missionário já foram mencionados. Em sua chefia havia um bispo, conhecido pelo título de Patriarca da Babilônia. Sua residência era originalmente na Selêucia. Desde a Pérsia, conta-se, eles levaram o evangelho para o Norte, para o Oriente e para o Sul. No século VI eles pregaram o evangelho com grande sucesso aos hunos, aos indianos, aos medos e aos elamitas: na costa de Malabar e nas ilhas do oceano grandes números se converteram. Seguindo o curso do comércio, os missionários tomaram o caminho da Índia à China, e penetraram pelos desertos até sua fronteira setentrional [mais ao norte]. Em 1625 uma pedra foi descoberta, pelos jesuítas, próximo a Singapura, que leva uma longa inscrição, parte em siríaco e parte em chinês, gravando os nomes dos missionários que tinham trabalhado na China, e a história do cristianismo naquele país desde o ano 636 a 781. Mas a propagação do cristianismo, pensa-se, despertou o ciúme do Estado e, após testemunharem o sucesso do evangelho e experimentarem perseguição, eles provavelmente foram exterminados, ou fugiram, por volta do fim do século VIII. Os nestorianos foram patrocinados por alguns dos reis persas, e sob o reinado dos califas eles foram protegidos e prosperaram grandemente. Eles assumiram a designação de cristãos caldeus, ou assírios, e ainda existem sob esse nome.*

{* Veja Crenças do Mundo (Faiths of the World), vol. 2, p. 527; e J.C. Robertson, vol. 2, p. 163.}

As doutrinas, o caráter e a história dos paulicianos têm sido assuntos de grande controvérsia; mas não lhes foi permitido falar por eles mesmos para a posteridade. Seus escritos foram cuidadosamente destruídos pelos católicos, e eles nos são conhecidos apenas através de relatos de inimigos amargos que os rotulam como hereges, e como os ancestrais dos reformadores protestantes. Por outro lado, alguns escritores protestantes aceitam o pedigree, e afirmam que eles foram os mantenedores de um cristianismo puramente bíblico, que pode ter parecido herético pelo papado. Esta última circunstância, pelo que já demonstramos, é facilmente crível. As mais dolorosas corrupções, tanto na doutrina quanto na adoração da igreja católica, tinham sido não apenas admiradas, como forçadas, muito antes do surgimento dos paulicianos. Nem o espírito nem a simplicidade do evangelho permaneceram; portanto, o cristianismo bíblico deve ter parecido aos adoradores de imagens como uma heresia.

Passando por cima de muitos nomes individuais desde a época de Santo Agostinho, que foram testemunhas dignas da verdade, vamos falar diretamente da origem dos paulicianos.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Reflexões sobre a Missão de Agostinho e o Caráter de Gregório

Agostinho [de Cantuária] é mencionado por alguns historiadores como um cristão devoto, e seu empreendimento missionário como um dos maiores nos anais da igreja. Mas, sem querer diminuir um degrau sequer da grandeza do homem ou de sua missão, não podemos nos esquecer que as Escrituras são o único padrão verdadeiro de caráter e obras. Ali aprendemos que o fruto do Espírito é "amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança" (Gálatas 5:22). E, certamente, o grande clérigo não manifestou para com seus irmãos, os cristãos britânicos, a graça do amor, a paz, ou a conciliação; pelo contrário, ele era orgulhoso, imperioso, soberbo e vanglorioso.

Esses sérios defeitos em seu caráter não eram desconhecidos a Gregório, como ele diz, em uma carta endereçada a ele: "Eu sei que Deus tem realizado, através de você, grandes milagres entre o povo, mas lembremo-nos de que, quando os discípulos disseram com alegria ao divino Mestre: 'Senhor, pelo teu nome, até os demônios se nos sujeitam', Ele lhes respondeu: 'Alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus'*. Enquanto Deus assim emprega sua agência, lembre-se, meu querido irmão, de julgar a si mesmo secretamente por dentro, e conhecer bem o que você é. Se você ofendeu a Deus em palavras ou ações, preserve essas ofensas em seus pensamentos para reprimir a vanglória de seu coração, e considere que o dom de milagres não lhe é concedido por si mesmo, mas para aqueles cuja salvação você está trabalhando para conseguir". Em outra carta ele o alertou contra a "vaidade e pompa pessoal", e lembrou-lhe "que o pálio de sua dignidade devia ser usado no serviço da igreja, e não para ser colocado em competição com o púrpura real nas ocasiões estatais".

{* Lucas 10:17-20.}

Agostinho era totalmente inadequado para uma missão que requeria paciência e uma terna consideração pelos outros. A igreja britânica tinha existido por séculos, seus bispos tinham tomado parte em grandes concílios eclesiásticos e assinado seus decretos. Os nomes de Londres, York e Lincoln são encontrados nos registros do Concílio de Arles (314 d.C.), de modo que devemos, no mínimo, respeitar nos britânicos o desejo deles de aderirem à liturgia transmitida pelos seus ancestrais, e de resistir à suposição estrangeira da supremacia espiritual de Roma. Agostinho falhou completamente em se aproveitar das lições de humildade que tinha recebido de seu grande mestre, e assim tem menos motivo de reivindicação sobre nossa estima e admiração.

O grande clérigo Gregório, assim como seu grande missionário, não sobreviveu muito tempo após a conquista espiritual da Inglaterra. Desgastado por seus grandes labores e enfermidades, ele morreu no ano 604, assegurando a seus amigos que a expectativa da morte era seu único consolo, e pedindo-lhes que orassem por sua libertação dos sofrimentos corporais.

A conduta de Gregório durante os treze anos e seis meses em que foi bispo de Roma demonstra um zelo e uma sinceridade dificilmente igualada na história da igreja romana. Ele era laborioso e abnegado no que ele acreditava ser o serviço de Deus, e em seu dever para com a igreja e para com toda a humanidade. A coleção de suas cartas, quase 850 em seu número, carrega um amplo testemunho de sua capacidade e atividade em todos os assuntos dos homens, e em todas as esferas da vida. "De tratar com reis patriarcas ou imperadores sobre as mais elevadas preocupações da Igreja e do Estado, ele passava a dirigir o gerenciamento de uma fazenda, ou ao alívio de algum aflito peticionário em alguma dependência distante de sua Sé. Ele aparece como um papa, como um soberano, como um bispo, como senhorio. Ele toma medidas para a defesa de seu país, para a conversão dos pagãos, para a repreensão e reconciliação dos cismáticos", etc.*

{* J.C. Robertson, vol. 2, p. 4.}

Mas, não obstante as variadas excelências de Gregório, ele era profundamente infectado com os princípios e o espírito da época em que vivia. O espírito de Jezabel estava evidentemente trabalhando ainda em sua juventude. Em vão procuramos por qualquer coisa parecida com a simplicidade cristã na igreja de Deus dessa época. Não podemos duvidar da piedade do próprio Gregório; mas, como um eclesiástico, o que ele era? Envenenado até o fundo do coração pela grosseira ilusão das reivindicações universais da cadeira de São Pedro, ele não podia arriscar nenhum rival, como vemos em sua oposição determinada e amarga às pretensões de João, bispo de Constantinopla; e, o que era ainda mais tenebroso, vemos o mesmo espírito em sua exultação ao saber sobre o assassinato do imperador Maurício e sua família pelo cruel e traiçoeiro Flávio Focas, simplesmente porque Gregório presumiu que Maurício fosse culpado do que ele considerou heresia. Ao que parece, Maurício apoiou o que Gregório julgou ser usurpação da parte de João, ao assumir o título de bispo universal. Mas mesmo sancionar tal afirmação não era qualquer pequeno crime na mente do pontífice romano. E assim foi com Gregório. Quando a notícia da sangrenta tragédia chegou a seus ouvidos, ele se alegrou; pareceu a ele ser uma luz de dispensação providencial para a libertação da igreja de seus inimigos. As própria fontes de caridade parecem ter secado nos corações de todos os que já se sentaram em um trono papal, quando se tratava de rivais eclesiásticos. A justiça, a franqueza, a humanidade, e todo sentimento correto do cristianismo acabam cedendo às dominantes reivindicações da falsa igreja. Até mesmo Gregório se curvou e foi terrivelmente corrompido pela "mulher Jezabel" (Apocalipse 2:20).

A Hierarquia Católica Romana Formada na Inglaterra

Gregório, ao ouvir sobre o grande sucesso de Agostinho, enviou-lhe mais missionários, que carregaram com eles um número de livros, incluindo os Evangelhos, utensílios cerimoniais, vestimentas, relíquias, e o pálio que deveria investir Agostinho como Arcebispo da Cantuária. Ele também orientou-lhe que consagrasse doze bispos em sua província; e, caso achasse vantajoso para a propagação da fé, que estabelecesse outro metropolita em York, que deveria então ter autoridade de nominar outros doze bispos para os distritos nortenhos da ilha. Tais foram os rudimentos da igreja inglesa; e tal era a exagerada impaciência de Gregório pela supremacia eclesiástica, que ele estabelecia um plano de governo para locais antes de terem sido visitados pelos evangelistas.

"Na visão eclesiástica do caso", diz Greenwood, "a igreja anglo-saxônica era a filha genuína de Roma. Mas, além dos limites desse estabelecimento, nenhum direito de parentesco pode ser atribuído a ela dentro das ilhas britânicas. Uma numerosa população cristã ainda existia nos distritos nortenhos e ocidentais, cujas tradições não davam apoio à alegação romana de maternidade. O ritual e disciplina das igrejas britânicas, galesas e irlandesas diferiam em muitos pontos daquelas de Roma e dos latinos em geral. Eles celebravam a festa da Páscoa em conformidade com a prática das igrejas orientais, e na forma de tonsura*, assim como no rito batismal, ele seguiam o mesmo modelo: diferenças que, por si só, parecem suficientes para excluir toda a probabilidade de um pedigree puramente latino".**

{* N. do T.: Corte circular, rente, do cabelo, na parte mais alta e posterior da cabeça, que se faz nos clérigos; cercilho, coroa. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.}

{** Cathedra Petri, livro 3, p. 215.}


Agostinho, então à frente da hierarquia composta de doze bispos, imediatamente fez a ousada tentativa de trazer a antiga igreja britânica sob a jurisdição romana. Através da influência de Etelberto ele obteve uma conferência com alguns dos bispos britânicos em um lugar que, naquela época, foi chamado de "carvalho de Agostinho", em Severn. Ali o clero romano e o britânico se encontraram pela primeira vez; e a primeira e imperiosa exigência de Agostinho foi: "Reconheçam a autoridade do bispo de Roma". "Desejamos amar todos os homens", eles humildemente responderam, "e qualquer coisa que fizermos por vocês, faremos também a este a quem chamam de Papa". Surpresos e indignados com sua recusa, Agostinho os exortou a adotarem os costumes romanos quanto à celebração da Páscoa, à tonsura e à administração do batismo, para que uma uniformidade de disciplina e adoração pudesse ser estabelecida na ilha. A isto eles positivamente se recusaram. Tendo recebido o cristianismo, primeiramente, não de Roma, mas do Oriente, e nunca tendo reconhecido a igreja romana como sua mãe, eles viam-se como independentes da Sé de Roma. Um segundo e um terceiro concílio foi realizado, mas sem melhores resultados. A Agostinho foi claramente dito que a igreja britânica não reconheceria homem algum como supremo na vinha do Senhor. O arcebispo exigiu, argumentou, censurou, realizou milagres; mas tudo sem efeito -- os britânicos eram firmes. Por fim, lhe disseram que eles não podiam se submeter nem à soberba dos romanos, nem à tirania dos saxões. Despertado à irada indignação pela quieta firmeza deles, o zangado sacerdote exclamou: "Se vocês não receberem os irmãos que lhes trazem paz, vocês receberão inimigos que lhes trarão guerra. Se vocês não se unirem conosco para mostrar aos saxões o caminho da vida, vocês receberão deles o golpe da morte". O arrogante arcebispo retirou-se, e supõe-se que tenha morrido pouco tempo depois, em 605 d.C., mas sua profecia de mal agouro cumpriu-se logo após sua morte.

Edelfrido
, um dos reis anglo-saxões, ainda um pagão, juntou um numeroso exército e avançou em direção a Bangor, o centro do cristianismo britânico. Os monges fugiram em grande alarme. Cerca de 1250 deles se refugiaram em um local afastado, onde concordaram em continuar juntos em oração e jejum. Edelfrido se aproximou e, ao ver um número de homens desarmados, perguntou quem eram. Ao dizerem-lhe que eram os monges de Bangor que tinham vindo a orar pelo sucesso de seus conterrâneos: "Então", ele clamou, "embora não tenham armas, estão lutando contra nós"; e ordenou a seus soldados que caíssem sobre os monges em oração. Cerca de 1200, conta-se, foram mortos, e apenas cinquenta escaparam em fuga. Assim o domínio de Roma começou na Inglaterra, o que continuou por quase mil anos.

Se Agostinho tinha realmente algo a ver com o assassinato dos monges, parece difícil dizer. Aqueles que tomam uma forte visão protestante do caso afirmam claramente que seus últimos dias foram ocupados em fazer arranjos para o cumprimento de sua própria ameaça. Outros, que tomam uma visão oposta, negam que haja qualquer evidência de que ele influenciou os pagãos para a terrível tragédia. Mas, seja como for, uma suspeita tenebrosa deve sempre pairar sobre a política de Roma. As próprias palavras vingativas de Agostinho, e toda sua história, confirmam a suspeita. Tal era a natureza da intolerante Jezabel -- quando o argumento falhava, ela apelava para a espada. A partir de então o romanismo caracterizou-se pela arrogância e sangue. A antiga igreja da Britânia, que era limitada aos distritos montanhosos do País de Gales, gradualmente diminuiu e desapareceu.*

{* Gardner, vol. 1, p. 391.}

domingo, 6 de novembro de 2016

Leão I, Apelidado de "O Grande"

Podemos prosseguir, sem interrupção, do nome de Inocêncio para o de Leão, que ascendeu à cadeira de São Pedro no ano 440, e a ocupou por 21 anos. Ele era notável por suas habilidades políticas, erudição teológica e grande energia eclesiástica. Ele sustentava, com a arrogância de romano e com o zelo de clérigo, que todas as pretensões e todas as práticas em sua igreja eram questões para a contínua sucessão apostólica. Contudo, parece que ele era firme na fé quanto à salvação, e zelosamente oposto a todos os hereges. As igrejas orientais tinham perdido o respeito da Cristandade pelas suas longas e vergonhosas controvérsias. Poder, e não sutilezas, era a ambição de Roma. Leão condenou toda a raça de hereges, desde Ário a Eutiques; mas mais especialmente a heresia maniqueísta.

Por seus grandes esforços e extraordinário gênio ele levantou as reivindicações do bispo romano como sendo o representante de São Pedro a uma altura nunca antes vista. "O apóstolo", diz ele, "foi chamado Petra, a pedra, por cuja denominação ele é constituído o fundamento... Em sua cadeira habita a sempre viva, a super-abundante, autoridade. Que os irmãos, portanto, reconheçam que ele é o primaz de todos os bispos, e que Cristo, que não nega a ninguém seus dons, ainda assim não os concede a ninguém exceto por meio dele."*

{* Cathedra Petri, de Greenword, vol. 1, p. 348.} 

Tomando devida consideração pelo caráter dos tempos e pelas opiniões oficiais e inerentes, cremos que Leão era sincero em suas convicções, e provavelmente um cristão. De coração ele cuidava do povo de Deus, e mais de uma vez, por suas orações e sagacidade política, salvou Roma dos bárbaros. Quando Átila, o mais terrível dos conquistadores estrangeiros, com suas incontáveis hostes, pairava sobre a Itália, pronto para cair sobre a indefesa capital, Leão foi adiante o "Destruidor" no nome do Senhor, e como o chefe espiritual de Roma, e tão fervorosamente orou por seu povo que as paixões selvagens do huno se acalmaram e, para espanto de todos, ele concordou com os termos pelos quais a cidade foi salva do caos e abate. Mas o principal objetivo da vida de Leão, e a que ele cumpriu plenamente, foi estabelecer as bases da grande monarquia espiritual de Roma. Durante seu pontificado ele foi o nome mais conhecido no império, se não em toda a Cristandade. Ele morreu no ano 461.

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