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domingo, 10 de novembro de 2019

A Ira de Inocêncio

Dentre as testemunhas da assinatura da Magna Carta estava Pandolfo, o legado arrogante do papa. Ele viu aquilo como um golpe mortal contra o poder papal na Inglaterra. Inocêncio logo ficou informado da surpreendente notícia. Sua infalibilidade estremeceu com alarme; se enfureceu e jurou, como era de seu costume; franziu a testa, como diz o historiador, e irrompeu em palavras de perplexidade. "O que! Esses barões da Inglaterra presumem destronar o rei que tomou a cruz e  que colocou-se sob a proteção da Sé apostólica? Como podem eles transferir a outros aquilo que é patrimônio da Igreja de Roma? Por São Pedro, não podemos deixar tal crime impune." A grande carta foi declarada pelo papa nula e sem efeito, o rei foi proibido, sob pena de excomunhão, de respeitar o juramento que tinha feito ou as liberdades que tinha confirmado. Mas as censuras espirituais e os editos anulatórios foram recebidos pelos barões com total desconsideração.

A guerra eclodiu; e para a desgraça ainda mais profunda de João, que não tinha exército próprio, ele trouxe do continente bandos de aventureiros e piratas, prometendo-lhes as propriedades dos barões ingleses como recompensas pela bravura. À frente dessas tropas mercenárias, com o auxílio de dois bispos sedentos por guerra, Worcester e Norwich, ele atravessou o país inteiro, desde o canal até o rio Forth. Ele soltou suas hordas ferozes como bestas selvagens em seu reino infeliz. Os barões não tinham feito qualquer preparo para a guerra, e nem suspeitavam da introdução de um exército estrangeiro. Aqui, novamente, vemos as profundezas de Satanás; ele está sempre pronto a dar a outro o poder que ele tiver sobre as nações, desde que aquele a quem ele o dá se submeta inteiramente a sua vontade. "Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares" (Mateus 4:8,9). Foi exatamente o mesmo que ele fez a João, seja tornando-se vassalo do papa, de Maomé ou de Satanás. Por um  curto período de tempo ele foi um mestre imbatível no campo de batalha. Toda a terra foi devastada com fogo e espada. Pilhagem, assassinato e tortura se enfureciam descontroladamente. Nada era tido por sagrado, nada era seguro. Nobres e pedintes fugiam com suas esposas e famílias quando era possível. Os assassinos manchados de sangue do rei e do papa passaram por todo o país com a espada em uma mão e a tocha na outra, enquanto um clamor subia ao céu: "Oh, infeliz Inglaterra! Oh, infeliz país! Que Deus tenha misericórdia de nós, e que Seus juízos caiam sobre o rei e o papa."

O juízo não demorou muito. Nem o céu nem a terra podiam mais tolerar suas crueldades e tiranias. O papa morreu em 16 de julho de 1216, aos 55 anos de idade; apenas um ano, um mês e um dia após a assinatura da Magna Carta. João viveu apenas alguns meses a mais que o papa. Morreu em 12 de outubro de 1216, aos 49 anos de idade, e no décimo sétimo ano de seu reinado. Supõe-se que tenha morrido com o pavor acompanhado pela embriaguez. Enquanto retornava de uma de suas cenas de matança, os vagões reais estavam cruzando as areias de Wash, desde Norfolk até Lincolnshire, quando a maré subiu repentinamente e todos se afundaram no abismo. O acidente encheu o rei de terror; ele sentiu que a terra estava à beira de se abrir e engoli-lo vivo. Ele bebeu copiosas doses de cidra, as quais, juntamente com o medo e o remorso, encerraram os dias do tirano mais cruel e desprezível que já se sentou no trono da Inglaterra. Os nomes dos demais reis cujos vícios são tenebrosos o suficiente para provocar execrações da posteridade são muitas vezes cercados por uma auréola de talento, seja no senado ou no campo de batalha, de modo a mitigar a severidade da sentença. Mas o rei João morre: seu caráter permanece diante de nós de forma não redimida por uma virtude solitária.*

{*Enciclopedia Britânica, vol. 8, p. 721; D'Aubigné, vol. 5, p. 98; Eighteen Christian Centuries, de James White, p. 290.}

A Inglaterra Rendida a Roma

Como se não fosse do interesse ou da intenção de "Sua Santidade" permitir que os assuntos fossem levados a extremos, o vigilante papa viu que tinha chegado sua hora de interferir. Dois legados, Pandolfo e Durando, foram enviados com as exigências finais de Inocêncio a João. Eles o asseguraram de que o rei da França estava pronto para invadir a Inglaterra com um grande exército e uma frota poderosa, e que ele viria acompanhado de arcebispos, bispos e clérigos a quem João havia banido; que eles transfeririam sua lealdade a seu rival Filipe, e que colocariam a coroa em sua cabeça. Com muitas declarações como essas, eles aterrorizaram o rei, que perdeu todas as suas posses pessoais, e lançou-se a si mesmo e ao seu reino nas mãos dos legados, sem reservas. Com uma mesquinhez de espírito e uma submissão abjeta que não conhecia limites, ele colocou sua coroa aos pés dos arrogantes legados, renunciou a Inglaterra e a Irlanda às mãos do papa, jurou homenagem a ele como seu suserano, e fez um juramento de lealdade aos seus sucessores. Os termos desse notável juramento são longos e prolixos demais, mas a substância, a essência deles, é apresentado pela Enciclopédia Britânica como segue:

"Eu, João, pela graça de Deus Rei da Inglaterra e Senhor da Irlanda, de modo a expiar meus pecados, de minha própria livre vontade e pelo conselho de meus barões, concedo à Igreja de Roma, ao Papa Inocêncio e a seus sucessores, o reino da Inglaterra e todas as demais prerrogativas de minha coroa. Irei doravante considerar-me como vassalo do papa. Serei fiel a Deus, à Igreja de Roma, ao papa, meu mestre, e aos seus sucessores legitimamente eleitos. Prometo pagar-lhe um tributo de 1000 merks*, a saber, 700 pelo reino da Inglaterra e 300 pelo reino da Irlanda." Essa memorável submissão ocorreu no dia 15 de maio de 1213, no décimo quarto ano de seu reinado, na casa dos Templários, não muito longe de Dover.

{*Merk é uma antiga moeda de prata escocesa, que valeria, nos dias de hoje, cerca de uma libra esterlina. Esse montante deveria ser pago anualmente, além do dinheiro devido à cadeira de Pedro.}

Esse juramento foi feito pelo rei ajoelhado diante de todo o povo e com suas mãos levantadas entre aqueles legados. As testemunhas que atestaram o juramento foram: um arcebispo, um bispo, nove condes e quatro barões. Tendo então concordado com a posse de Langton como primaz da Inglaterra, ele recebeu de volta a coroa que deveria ter perdido. O cauteloso e político Pandolfo, tendo recebido a lealdade do rei da Inglaterra e oitenta mil libras esterlinas como compensação pelos bispos exilados, rapidamente juntou as escrituras e os sacos de dinheiro e apressou-se a reunir os clérigos banidos na Normandia para dividir o dinheiro. Em seguida, apressou-se ao acampamento do rei Filipe Augusto e, encontrando o exército no ponto de embarque para a Inglaterra, friamente informou o rei "que não havia então mais necessidade de seus serviços; e que, na verdade, qualquer tentativa de invadir o reino, ou de perturbar o rei da Inglaterra, seria altamente ofensivo para a santa Sé, em virtude de que esse reino era agora parte e parcela do patrimônio da igreja: era, portanto, seu dever dispensar seu exército, e ele próprio retornar para casa em paz". Quando Filipe descobriu que havia sido tão estupidamente enganado, rompeu em uma tempestade de injúrias indignadas contra o papa. "Ele tinha sido arrastado para uma enorme despesa; tinha chamado para a guerra toda a força de seus domínios, sob a promessa ilusória de um reino e da remissão de seus pecados; tudo isso ele tinha feito em súplica ardente para com o papa. E então toda a cavalaria da França, em armas ao redor de seu soberano, deveria ser dispensada como servos contratados quando não havia mais uso para seu serviço?" Porém, a fúria do rei foi respondida com uma fria repetição da ordem: "Desista das hostilidades contra o vassalo da Santa Sé."*

{*Cathedra Petri, livro 13, p. 588.}

O desapontamento e mortificação de Filipe foram grandes; mas, não se atrevendo a ofender o papa e não estando disposto a se desfazer de seu exército sem ao menos tentar alguma empreitada, ele desceu a Flandres (região flamenga). Fernando, o conde, embora fosse um aliado da França, tinha entrado em uma liga secreta anti-francesa com João, o que deu  a Filipe um justo pretexto para voltar suas armas contra esse vassalo revoltado. Porém, as frotas da Inglaterra se uniram aos flamengos, e assim a tentativa de conquistar Flandres terminou em uma derrota vergonhosa. Os ingleses capturaram trezentos navios e destruíram cerca de cem outros: enquanto Filipe, vendo ser impossível impedir que o resto caísse nas mãos do inimigo, incendiou-os ele mesmo, e então abandonou a empreitada. Tal foi a pesada perda e desconforto de Filipe no decorrer da profunda trama arquitetada por Inocêncio.

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