sábado, 23 de abril de 2016

Os Efeitos do Mundanismo na Igreja

O estudante da história da igreja se depara agora com o manifesto e terrível efeito do mundo na igreja. É uma visão muito triste, mas deveria ser uma lição proveitosa para o leitor cristão. O que era nesse período, continua agora, e deverá sempre ser. O Espírito Santo, que habita em nós, não é menos sensível hoje ao hálito poluído e destruidor do mundo do que era naquele tempo.

O que o inimigo não podia fazer por meio de éditos sangrentos e tiranos cruéis, ele conseguiu por meio da amizade com o mundo. Este é um velho estratagema de Satanás. A astuta serpente provou ser mais perigosa do que o leão que ruge. Por meio do favor de grandes homens, e especialmente de imperadores, ele fez com que o clero abaixasse a guarda, conduziu-os a dar as mãos com o mundo, e enganou-os por suas lisonjas. Os cristãos podiam agora erigir templos como os pagãos, e seus bispos eram recebidos na corte imperial em igualdade de condições com os sacerdotes idólatras. Este ímpio relacionamento com o mundo minou os próprios fundamentos do cristianismo deles. Isto se tornou dolorosamente manifesto quando a violenta tempestade da perseguição se sucedeu à  longa calma de sua prosperidade mundana.

Em muitas partes do império, os cristãos tinham desfrutado de paz sem distúrbio por um período de trinta anos, o que não foi bom para a igreja como um todo. Muitos não possuíam a fé vinda de uma ardente convicção, tal como ocorria no primeiro e segundo séculos, mas uma fé vinda da verdade incutida na mente pela educação cristã - o que prevalece hoje em escala alarmante. Uma perseguição irrompendo com grande violência, após tantos anos de tranquilidade, não podia deixar de relevar um processo de refinamento para as igrejas. A atmosfera do cristianismo tinha se corrompido. Cipriano, no Ocidente, e Orígenes, no Oriente, falam do espírito secular que tinha penetrado - do orgulho, luxo e cobiça do clero - nas vidas descuidadas e ímpias das pessoas.

"Se", diz Cipriano, bispo de Cartago, "a causa da doença é compreendida, a cura da parte afetada logo é encontrada. O Senhor provaria o Seu povo; e por causa do regime divinamente prescrito de vida ter sido perturbado na longa temporada de paz, um julgamento divino foi enviado para restabelecer nossa fé caída e, como poderia praticamente dizer, adormecida. Nossos pecados merecem coisa pior, mas nosso gracioso Senhor assim ordenou que tudo isso que ocorreu parece mais uma prova do que uma perseguição. Esquecendo-se do que os crentes faziam nos tempos dos apóstolos, e o que eles deveriam sempre continuar fazendo, os cristãos têm trabalhado com o desejo insaciável de aumentar suas posses terrenas. Muitos dos bispos que, por preceito e exemplo, deveriam ter guiado os outros, negligenciaram seu chamado divino para se envolver no gerenciamento de preocupações mundanas." Sendo esta a condição das coisas em muitas das igrejas, não é difícil imaginar o que aconteceu.

O imperador ordenou que uma rigorosa busca fosse feita por todos os suspeitos de se recusarem ao cumprimento para com o culto nacional. Os cristãos foram obrigados a se conformarem às cerimônias da religião pagã. Em caso de se negarem, ameaças, e depois torturas, eram empregadas para forçar a submissão. Se continuassem firmes, a punição de morte deveria ser infringida especialmente nos bispos, a quem Décio odiava mais amargamente. O costume era, onde quer que o terrível édito fosse seguido até a execução, a escolha de um dia no qual todos os cristãos do local deveriam se apresentar perante o magistrado, renunciar a sua religião, e oferecer incenso no altar do ídolo. Muitos, antes do terrível dia chegar, fugiam para o exílio voluntário. Os bens destes eram confiscados e eles mesmos eram proibidos de retornar, sob pena de morte. Aqueles que continuaram firmes, após repetidas torturas, foram lançados na prisão, quando foram empregados os sofrimentos adicionais da fome e da sede, tentando fazê-los mudar de ideia. Muitos que eram menos firmes e fiéis eram libertados sem sacrificar, comprando eles mesmo, ou permitindo que seus amigos comprassem, um certificado dos magistrados. Mas esta indigna prática foi condenada pela igreja como uma renúncia tácita.

Dionísio, bispo de Alexandria, ao descrever o efeito desse terrível decreto, diz "que muitos cidadãos de reputação consentiam com o édito. Alguns eram impelidos por seus medos, e alguns eram forçados por seus amigos. Muitos ficavam pálidos e trêmulos, que não estavam prontos nem a se submeterem à cerimônia idólatra, nem para resistirem até a morte. Outros suportavam suas torturas  até certo ponto, mas finalmente cediam." Tais foram alguns dos dolorosos e vergonhosos efeitos do relaxamento geral resultante do envolvimento com o presente século mau. É desconfortável para nós, que vivemos em um tempo de grande liberdade civil e religiosa, dizermos coisas duras sobre a fraqueza daqueles que viviam em tais tempos sanguinários. Em vez disso, devemos sentir a vergonha por nós mesmos, e orar para que possamos ser guardados de ceder às atrações do mundo em todas as suas formas. Mas nem tudo era defeito, graças ao Senhor. Vamos olhar por um momento para o lado bom das coisas.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

A Perseguição Geral sob o Reinado de Décio

Décio, no ano 249, conquistou Filipe e colocou-se no trono. Seu reinado é marcante na história da igreja pela primeira perseguição geral. O novo imperador era desfavorável ao cristianismo e zelosamente devoto à religião pagã. Ele resolveu tentar o completo extermínio do primeiro, e restaurar o último à sua antiga glória. Uma das primeiras medidas de seu reinado foi emitir decretos aos governadores para que fizessem cumprir as antigas leis contra os cristãos. Eles foram ordenados, sob pena de perder suas próprias vidas, a exterminar todos os cristãos, completamente, ou trazê-los de volta por meio de sofrimentos e torturas à religião de seus pais.

Desde os tempos de Trajano havia uma ordem imperial de que os cristãos não deviam ser procurados; e havia também uma lei contra acusações privadas que fossem trazidas contra eles, especialmente se fossem por seus próprios servos - como vimos no caso de Apolônio - e essas leis tinham sido geralmente observadas pelos inimigos da igreja; mas agora elas eram totalmente negligenciadas. As autoridades procuravam os cristãos, os acusadores não corriam risco algum, e o clamor popular foi admitido no lugar da evidência formal. Durante os dois anos que se sucederam, uma grande multidão de cristãos em todas as províncias romanas foi banida, aprisionada ou torturada até a morte por vários tipos de punições e sofrimentos. Esta perseguição foi mais cruel e terrível que qualquer outra que a precedeu. Mas a parte mais dolorosa daquelas cenas de cortar o coração foi o estado debilitado dos próprios cristãos diante do triste efeito do conforto e prosperidade mundana.

sábado, 16 de abril de 2016

O Tratamento do Clero pelo Senhor

Mal as novas "igrejas" foram construídas, e os bispos recebidos na corte, e a mão do Senhor se voltou contra eles. Aconteceu dessa maneira:

Maximino, um rude camponês da Trácia, subiu ao trono imperial. Ele tinha sido o principal instigador da morte, se não o verdadeiro assassino, do virtuoso Alexandre. Ele começou seu reinado mandando prender e matar todos os amigos do último imperador. Aqueles que tinham sido seus amigos ele tornou seus próprios inimigos. Ele ordenou que os bispos, e particularmente aqueles que tinham sido amigos íntimos de Alexandre, fossem executados. Sua vingança caiu mais ou menos sobre todas as classes de cristãos, mas principalmente sobre o clero. Não era, no entanto, pelo cristianismo que eles sofreram nessa ocasião, uma vez que Maximino não se importava com qualquer religião, mas por causa da posição que eles tinham alcançado no mundo. Pode haver reflexão mais dolorosa do que esta?

Por volta dessa época destrutivos terremotos em várias províncias reacenderam o ódio popular contra os cristãos em geral. A fúria do povo sob tal imperador era irrestrita e, encorajados por governantes hostis, incendiaram as recém-construídas "igrejas" e perseguiram os cristãos. Mas, felizmente, o reinado desse selvagem imperador teve curta duração. Ele se tornou intolerável pelas pessoas. O exército se amotinou e o matou no terceiro ano de seu reinado, e uma época mais favorável para os cristãos retornou.

O reinado de Gordiano I, de 238 a 244 d.C., e o de Filipe, de 244 a 249, foram amigáveis para com a igreja. Mas repetidamente percebemos que um governo favorável aos cristãos era imediatamente seguido por outro que os oprimia. Foi particularmente o caso nessa época. Sob os sorrisos e o patrocínio de Filipe, o Árabe, a igreja desfrutou de grande prosperidade exterior, mas estava na véspera de uma perseguição mais terrível e mais generalizada do que qualquer outra que já tinha se passado.

Uma das causas que podem ter contribuído para isso foi a ausência dos cristãos nas cerimônias nacionais que comemoravam o milésimo ano de Roma, em 247 d.C. Os jogos seculares foram celebrados com grandiosidade sem precedentes por Filipe, mas como ele era favorável aos cristãos, eles escaparam da fúria dos sacerdotes pagãos e do populacho. Os cristãos eram agora um corpo reconhecido no Estado, e por mais cuidado que tivessem de evitar se misturar às facções políticas ou às festividades populares, eles eram considerados inimigos de prosperidade do Estado e a causa de todas as calamidades. Chegamos agora a uma mudança completa de governo - um governo que afligiu toda a igreja de Deus.

Os Primeiros Edifícios Públicos para Assembleias Cristãs

Um importante ponto na história da igreja, e que prova sua posição alterada no Império Romano, agora aparece diante de nós pela primeira vez. Foi durante o reinado desse excelente príncipe (Alexandre Severo) que as primeiros edifícios públicos foram levantados para as assembleias de cristãos. Uma pequena circunstância conectada a uma pequena porção de terra em Roma mostra o verdadeiro espírito do imperador e o crescente poder e influência dos cristãos. Esse terreno, considerado de uso geral, foi escolhido por uma congregação como o lugar para uma igreja, mas uma companhia de abastecedores reivindicava que tinha prioridade sobre o uso do terreno. O caso foi julgado pelo imperador, que decidiu conceder o terreno aos cristãos, sob a alegação de que era melhor dedicá-lo à adoração a Deus em qualquer forma do que aplicá-lo a um uso profano e indigno.

Edifícios públicos - chamadas de "igrejas cristãs" - começavam agora a aparecer em diferentes partes do império, e a possuir propriedades na terra. Os pagãos nunca conseguiam entender porque os cristãos não tinham templos nem altares. Suas assembleias religiosas, até essa época, eram realizadas de modo privado. Até mesmos os judeus tinham suas sinagogas públicas, mas os cristãos não se reuniam em algum edifício separado e distinto. A casa particular, as catacumbas, o cemitério de seus mortos, eram os lugares em que ocorriam suas pacíficas congregações. A  privacidade deles, que muitas vezes era, naqueles turbulentos tempos, sua segurança, estava agora passando. Por outro lado, deve também ser observado que essa confidencialidade era muitas vezes utilizada contra eles. Nós vimos como, no princípio, os pagãos não conseguiam entender uma religião sem um templo, e então eram facilmente persuadidos de que essas reuniões privadas e misteriosas, que pareciam evitar a luz do dia, serviam apenas para o pior dos propósitos.

A condição exterior do cristianismo estava agora mudando de maneira incrível - mas infelizmente, não em favor da saúde e crescimento espiritual, como veremos em breve. Havia agora edifícios bem conhecidos nos quais os cristãos se reuniam, cujas portas podiam ficar bem abertas para toda a gente. O cristianismo era agora reconhecido como uma das várias formas de adoração que o governo não proibia. Mas a tolerância aos cristãos durante este período teve o apoio favorável apenas de Alexandre. Nenhuma mudança foi feita nas leis do império em favor dos cristãos, de modo que seu tempo de paz teria um fim com a morte do imperador. Uma conspiração foi formada contra ele pela desmoralizada soldadesca, que não podia suportar a disciplina que o imperador procurava restaurar. E assim o jovem imperador foi morto em seu quarto, aos vinte e nove anos de idade e no décimo terceiro ano de seu reinado.

A Posição Alterada do Cristianismo na Sociedade

Após a morte de Septímio Severo - exceto durante o curto reinado de Maximino - a igreja desfrutou de uma temporada de relativa paz até o reinado de Décio, no ano 249 d.C. Porém, durante o favorável reinado de Alexandre Severo, uma mudança considerável aconteceu na relação do cristianismo com a sociedade. Por toda a sua vida, Alexandre esteve sob a influência de sua mãe, Julia Mamea, que é descrita por Eusébio como "uma mulher distinta por sua piedade e religiosidade." Ela chamou Orígenes, sobre cuja fama ela tinha ouvido falar muito, e aprendeu dele algo sobre as doutrinas do evangelho. Ela se tornou, mais tarde, favorável aos cristãos, mas não há muitas evidências de que ela também tenha sido cristã.

Alexandre tinha uma disposição religiosa. Ele tinha muitos cristãos em sua casa, e bispos eram admitidos até mesmo na corte em caráter reconhecidamente oficial. Ele frequentemente usava as palavras de nosso Salvador: "E como vós quereis que os homens vos façam, da mesma maneira lhes fazei vós, também." (Lucas 6:31). Ele tinha essas palavras escritas nas paredes de seu palácio e em outros edifícios públicos. Mas todas as religiões eram consideradas para ele como quase a mesma coisa, e sobre este princípio ele deu ao cristianismo um lugar em seu eclético sistema.

domingo, 10 de abril de 2016

Perpétua e Seus Companheiros

Dentre outros que foram presos e martirizados na África durante essa perseguição, Perpétua e seus companheiros, dentre todas as histórias, merecem um lugar distinto. A história do martírio deles não só carrega todo o selo dessa verdade circunstancial, como também está repleta de toques mais requintados de sentimento e afeição natural. Aqui vemos a bela combinação dos mais ternos sentimentos e dos mais fortes afetos que o cristianismo reconhece em todos os seus direitos, e os torna ainda mais profundos e ternos porque foi a causa do sacrifício deles sobre o altar da total dedicação àquEle que morreu em total dedicação a nós. "O qual me amou", como diz a fé, com propriedade, "e se entregou a si mesmo por mim." (Gálatas 2:20)

Em Cartago, no ano 202, três jovens homens, Revocato, Saturnino e Secundulo, e duas moças, Perpétua e Felicidade, foram presos, todos eles sendo ainda catecúmenos, isto é, novos convertidos que se preparavam para o batismo e comunhão. Perpétua era de boa família, rica e nobre, de educação liberal, e honrosamente casada. Ela tinha cerca de 22 anos de idade, e era mãe de um bebê ainda de peito. Toda sua família aparentemente era cristã, com exceção de seu pai, que ainda era pagão. Nada é dito sobre seu marido. Seu pai era muito apegado a ela, e temia muito a desgraça que seus sofrimentos por Cristo trariam para sua família. Assim ela tinha de lutar não apenas com a morte em sua forma mais terrível, mas também com todo laço sagrado da natureza.

Quando ela foi levada pela primeira vez perante seus perseguidores, seu velho pai veio e pediu que ela se retratasse e dissesse que não era cristã. "Pai", ela respondeu calmamente, apontando para um vaso que estava no chão, "poderia eu chamar esse vaso de qualquer coisa além do que ele é?" "Não", ele respondeu. "Assim também eu não poderia te dizer nada além do que eu sou, uma cristã." Alguns dias depois, os jovens cristãos foram batizados. Apesar de estarem sob guarda, eles não estavam ainda presos na prisão. Mas pouco tempo depois disto, eles foram lançados na masmorra. "Então", ela disse, "eu fui tentada, estava apavorada, pois eu nunca tinha estado em tal escuridão antes. Oh, que dia terrível! O calor excessivo ocasionado pelo número de pessoas, o duro tratamento dos soldados, e, finalmente, a ansiedade por causa do meu bebê, me tornou miserável." Os diáconos, no entanto, conseguiram adquirir para os prisioneiros cristãos um lugar melhor, onde ficavam separados dos criminosos comuns. Tais vantagens podiam geralmente ser adquiridas dos corruptos supervisores das prisões. Perpétua estava agora feliz por ter seu filho consigo. Ela o pegou no colo e exclamou: "Agora, esta prisão se tornou um palácio para mim!".

Após alguns dias houve um rumor de que os prisioneiros seriam examinados. O pai apressou-se até sua filha em grande aflição de espírito. "Minha filha", disse ele, "tenha pena de meus cabelos grisalhos, tenha pena do seu pai, se ainda sou digno de ser chamado seu pai. Se eu a eduquei até a flor da sua juventude, se eu preferi você a todos os seus irmãos, não me exponha a tal vergonha entre os homens. Olhe para o seu bebê - seu filho que, se você morrer, não poderá sobreviver por muito tempo. Deixe seu espírito elevado de lado, para que todos nós não mergulhemos em ruínas. Pois se você morrer, então nenhum de nós jamais terá coragem de falar livremente de novo." Enquanto ele falava isto, ele beijou suas mãos, se lançou a seus pés, suplicando-lhe com termos carinhosos e muitas lágrimas. Mas, embora muito comovida e aflita pela visão do seu pai e sua forte e terna afeição por ela, ela ficou calma e firme, e sentiu-se principalmente preocupada pelo bem de sua alma. "Os cabelos grisalhos de meu pai", disse ela, "me afligem ao considerar que apenas ele da minha família não se regozijaria com meu martírio." "O que acontecerá", disse-lhe ela, "quando eu chegar perante o tribunal, depende da vontade de Deus, pois não permanecemos em pé por nossa própria força, mas apenas pelo poder de Deus."

Ao chegar a hora decisiva - o último dia do julgamento deles - uma imensa multidão se reuniu. O velho pai novamente apareceu, na esperança de poder, pela última vez, mudar a ideia de sua filha. Nesta ocasião ele levou seu neto recém-nascido em seus braços, e pôs-se diante dela. Que momento! Que espetáculo! Seu velho pai, seus cabelos grisalhos, seu tenro bebê: que apelo para uma filha - para o coração de uma jovem mulher! "Tenha pena dos cabelos grisalhos de seu pai", disse o governador, "tenha pena de sua criança indefesa, e ofereça sacrifício em prol da prosperidade do imperador." Assim ela se apresentou perante o tribunal, perante a multidão reunida, perante as admiradas miríades dos céus, perante as tenebrosas hostes do inferno. Mas Perpétua estava calma e firme. À semelhança de Abraão, pai dos que creem, seus olhos não estavam agora em seu filho, mas no Deus da ressurreição. Tendo encomendado seu filho aos cuidados de sua mãe e de seu irmão, ela respondeu ao governador, e disse: "Isto não posso fazer." "Você é cristã?", ele perguntou. "Sim", ela respondeu, "sou cristã". Seu destino estava agora decidido. Eles foram todos condenados a servirem de cruel entretenimento para o povo e os soldados, em uma luta com feras selvagens, na festa de aniversário do jovem Geta, filho mais novo do imperador. Eles retornaram a suas masmorras, regozijando por terem sido capazes de testemunharem e sofrerem por amor a Cristo. O carcereiro, Pudas, foi convertido por meio do comportamento tranquilo dos prisioneiros.

Quando foram levados ao anfiteatro, os espectadores notaram que os mártires tinham uma aparência pacífica e alegre. De acordo com um costume que prevalecia em Cartago, os homens deviam ser vestidos de escarlate como os sacerdotes de Saturno, e as mulheres de amarelo como as sacerdotisas de Ceres, mas os prisioneiros protestaram contra tal procedimento. "Viemos aqui", disseram, "por nossa própria escolha, e não deixaremos que nossa liberdade seja tirada de nós; nós desistimos de nossas vida para não sermos forçados a tais abominações." Os pagãos reconheceram que o pedido deles era justo, e cederam. Após se despedirem entre si com o mútuo beijo do amor cristão, com a esperança certa de logo se encontrarem novamente, estando "fora do corpo, para habitar com o Senhor" (2 Co 5:8), eles foram adiante para a cena de morte em seus trajes simples. A voz de louvor a Deus foi ouvida pelos espectadores. Perpétua estava cantando um salmo. Os homens foram expostos a leões, ursos e leopardos; as mulheres foram atiradas a uma vaca furiosa. Mas todos foram rapidamente libertados de seus sofrimentos pela espada do gladiador, e entraram na alegria do seu Senhor.

A interessante narrativa aqui resumida, e que supõe-se ter sido escrita pelas próprias mãos de Perpétua {* N. do T.: obviamente até o momento anterior ao seu martírio}, respira tal ar de verdade e realismo que conquistou o respeito e confiança de todas as eras. Mas o nosso principal objetivo ao escrevê-la para nossos leitores é apresentá-los a uma imagem viva na qual muitas das melhores qualidades da fé cristã estão belamente mescladas com os mais calorosos e ternos sentimentos cristãos, e para que possamos aprender a não sermos reclamões e murmuradores, mas a suportar todas as coisas por amor de Cristo, para que Sua graça possa brilhar, nossa fé triunfar, e Deus ser glorificado.

Alguns anos após esses eventos, Severo voltou sua atenção para a Grã-Bretanha, onde os romanos estiveram perdendo terreno. O imperador, estando à frente de um exército muito poderoso, rechaçou os nativos independentes da Caledônia, e reconquistou a região ao sul da muralha de Antonino, mas perdeu tantas tropas nas sucessivas batalhas em que foi obrigado a lutar que não achou apropriado forçar suas conquistas além daquele limite. Sentindo o tempo de seu fim se aproximando, ele se retirou para York, onde logo expirou, no décimo oitavo ano de seu reinado, em 211 d.C.

A Perseguição na África

Os historiadores dizem que em nenhuma parte do Império Romano o cristianismo tinha criado raízes mais profundas e permanentes do que na província da África. Naquela época, essa região era cheia de ricas e populosas cidades. O tipo africano de cristianismo era totalmente diferente do que era chamado de cristianismo egípcio. O primeiro era mais sincero e apaixonado, e o último era sonhador e especulativo, graças à má influência do platonismo. Tertuliano pertence a este período, e é um verdadeiro exemplo desta diferença; mas veremos mais sobre isso mais adiante. Vamos agora tomar nota de alguns dos mártires africanos.

As Perseguições sob Severo (ano 202 d.C.)

Não foi até cerca do décimo ano de seu reinado que a ferocidade natural de sua mente sombria e implacável se manifestou contra os cristãos. Em 202, após o retorno do oriente, onde ele tinha conseguido grandes vitórias, e sem dúvida se enchido de orgulho, ele estendeu sua mão e impiedosamente se atreveu a deter o progresso do cristianismo - a carruagem do evangelho. Ele aprovou uma lei que proibia, sob severas penas, que qualquer um de seus súditos se tornasse judeu ou cristão. Esta lei, como era de se esperar, acendeu uma severa perseguição contra novos convertidos e cristãos em geral. Ela estimulou seus inimigos a todo o tipo de violência. Grandes somas de dinheiro foram extorquidas de cristãos tímidos por autoridades corruptas como preço pela paz. Embora alguns tenham se submetido em troca de vida e liberdade, esta prática foi veementemente denunciada por outros. Era considerada pelos mais zelosos como degradante para o cristianismo, e uma vergonhosa barganha das esperanças e glórias do martírio. Ainda assim, a perseguição parece não ter sido geral. Ela deixou cicatrizes mais profundas no Egito e na África.

Em Alexandria, Leônidas, pai do famoso Orígenes, sofreu o martírio. Os jovens nas escolas que estavam recebendo uma educação cristã foram submetidos a severas torturas e alguns de seus professores foram presos e queimados. O jovem Orígenes se distinguiu nesta época por seus trabalhos ativos e destemidos nas agora quase desertas escolas. Ele esperava seguir os passos de seu pai, e mais procurava do que evitava a coroa do martírio. E foi justamente na África, um lugar no qual sempre pensamos como um deserto sombrio, miserável e escassamente povoado, que a linha prateada da maravilhosa graça de Deus foi mais distintamente marcada na celestial paciência e fortaleza dos santos sofredores. Temos de convidar nossos leitores a entrar em alguns detalhes a mais sobre isso.

O Cristianismo sob o Reinado de Severo (anos 194 a 210 d.C.)

No início do reinado de Severo, ele era bastante favorável aos cristãos. Um escravo cristão, chamado Próculo, foi o meio de restaurar a saúde do imperador, ao ungi-lo com óleo. Essa notável cura - sem dúvida em resposta à oração - deu aos cristãos grande favor aos olhos de Severo. Próculo recebeu uma posição honrosa na família imperial, e uma criada e um tutor cristão foram contratados para formar o caráter do jovem príncipe. Ele também protegeu da indignação popular homens e mulheres da mais alta classe em Roma - senadores, suas esposas e famílias - que tinham abraçado o cristianismo. Mas, infelizmente, todo esse favor para com os cristãos era meramente resultado de circunstâncias locais. As leis continuaram as mesmas, e a violenta perseguição eclodiu contra eles em determinadas províncias.

sábado, 9 de abril de 2016

De Cômodo à Ascensão de Constantino (anos 180-313 d.C.)

Capítulo 9: De Cômodo à Ascensão de Constantino (anos 180-313 d.C.)


O cristianismo
, sob os sucessores de Aurélio, desfrutou de uma temporada de relativo repouso e tranquilidade. A depravação de Cômodo foi útil no tocante aos interesses dos cristãos após seus longos sofrimentos sob seu pai, e o breve reinado de muitos dos imperadores que se seguiram não os deram tempo de combater o crescimento do cristianismo. "Durante pouco mais que um século", diz Milman, "desde a ascensão de Cômodo até a de Diocleciano, mais de vinte imperadores passaram como sombras ao longo da trágica cena do palácio imperial. O império do mundo se tornou o prêmio de façanhas mirabolantes, ou o precário troféu da soldadesca sem lei. Uma longa linhagem de aventureiros militares, muitas vezes estranhos ao nome, à raça e à linguagem de Roma - africanos, pireneus, árabes e godos - agarraram o inconstante cetro do mundo. A mudança de soberanias era quase sempre uma mudança de dinastia, ou, por alguma estranha fatalidade, cada tentativa de restabelecer um sucessão hereditária era frustrada pelos vícios ou pela imbecilidade da segunda geração."

Assim os cristãos tiveram cerca de cem anos de relativo descanso e paz. Havia, sem dúvida, muitos casos de perseguição e martírio durante esse período, mas tais casos eram mais o resultado de hostilidade pessoal contra algum indivíduo do que algum tipo de política sistemática do governo contra o cristianismo. O primeiro e imponente objetivo de cada imperador que se sucedia era assegurar seu disputado trono. Eles não tinham tempo de se dedicarem à supressão do cristianismo, ou às mudanças sociais e religiosas dentro do império. Assim a grande Cabeça da igreja - que é também "sobre todas as coisas a cabeça da igreja" (Efésios 1:22) - tornou a fraqueza e insegurança do trono o meio indireto da força e prosperidade da igreja.

Mas embora o reinado de Cômodo tenha sido geralmente favorável ao progresso do cristianismo, houve um notável exemplo de perseguição que devemos tomar nota.

Apolônio, um senador romano, renomado pela erudição e filosofia, era um cristão sincero. Muitos da nobreza de Roma, com toda sua família, abraçaram o cristianismo nessa época. A dignidade do senado romano sentiu-se reduzida por tais novidades. Supõe-se que isto tenha levado à acusação de Apolônio perante o magistrado. Seu acusador, baseado em uma velha e não revogada lei de Antonino Pio, que decretava cruéis punições contra os acusadores dos cristãos, foi sentenciado à morte e executado. O magistrado pediu ao prisioneiro, Apolônio, que desse um relato de sua fé perante o senado e a corte. Ele obedeceu, e ousadamente confessou sua fé em Cristo. Consequentemente, por um decreto do senado, ele foi decapitado. Alguns dizem que este é o único registro, em toda a história, de um julgamento no qual tanto o acusado quanto o acusador sofreram judicialmente. Mas a mão do Senhor estava nisto, e muito acima do acusador e do magistrado, Perenius, que condenou os dois. A partir deste período muitas famílias de distinção e opulência em Roma professaram o cristianismo, e às vezes encontramos cristãos na família imperial.

Após um reinado de cerca de 12 anos, o indigno filho de Aurélio morreu dos efeitos de um copo de vinho envenenado.

Pertinax
, imediatamente após a morte de Cômodo, foi eleito pelo senado para ocupar o trono; mas após um breve reinado de sessenta e seis dias, ele foi morto por insurgentes. Seguiu-se uma guerra civil, e Septímio Severo finalmente obteve o poder soberano de Roma.

sábado, 2 de abril de 2016

A Origem do Bispo Metropolitano

Igrejas assim constituídas e reguladas rapidamente se espalharam por todo o império. No gerenciamento de seus assuntos internos cada igreja era essencialmente distinta da outra, embora andassem em comunhão espiritual com todas as outras e as considerassem parte da única igreja de Deus. Mas, com o aumento do número de crentes e a extensão das igrejas, variações na doutrina e na disciplina surgiram, o que nem sempre podia ser resolvido nas assembleias individuais. Isto deu origem aos concílios, ou sínodos. Estes eram compostos principalmente por aqueles que tomavam parte no ministério. Mas quando os representantes das igrejas eram assim reunidos, logo se descobria que o controle de um presidente era necessário. A menos que haja respeito e submissão pela ação soberana do Espírito Santo na igreja, haverá anarquia sem um presidente. O bispo da capital da província era geralmente apontado para presidir, sob o elevado título de bispo metropolitano. Em seu retorno para casa era difícil deixar de lado essas ocasionais honrarias, então ele logo reivindicava para si o título pessoal e permanente de bispo metropolitano.

Os bispos e presbíteros, até por volta desse tempo, eram geralmente vistos como iguais, ou a mesma coisa, sendo os termos usados como sinônimos. Mas agora os bispos se consideravam investidos com poder supremo na direção da igreja, e estavam determinados a se manterem nessa autoridade. Os presbíteros se recusavam a lhes conceder essa nova e auto-assumida dignidade, e buscavam manter sua própria independência. Assim se ergueu a grande controvérsia entre os sistemas presbiterianos e episcopais, que continuam até hoje, e da qual poderemos tratar com mais detalhes mais adiante. Foi dito o suficiente para mostrar ao leitor o início de muitas coisas que ainda vivem diante de nós na igreja professa. Na consagrada ordem do clero será encontrada a semente da qual surgiu todo o sacerdócio medieval, o pecado da simonia {*N. do T.: simonia é a venda de "favores divinos"}, as leis do celibato, e a terrível corrupção da idade das trevas. *

{* Para mais detalhes, veja Neander, vol.1, p. 259; Mosheim, vol. 1, p. 91; Bingham, vol. 1.}

Tendo visto o que estava acontecendo dentro da igreja desde o início, e especialmente entre seus líderes, vamos agora continuar a história geral a partir da morte de Marco Aurélio.

A Origem das Dioceses

Os bispos que viviam nas cidades eram, quer pelas suas próprias pregações, quer pela pregação dos outros - presbíteros, diáconos ou o povo - os responsáveis pelo surgimento de novas igrejas nas cidades e vilas vizinhas. Essas assembleias jovens, muito naturalmente, continuavam sob o cuidado e proteção das igrejas das cidades por meio das quais eles tinham recebido o evangelho e se tornado em novas igrejas. Províncias eclesiásticas eram, assim, formadas gradualmente, o que os gregos mais tarde denominaram dioceses. Os bispos das cidades reivindicavam o privilégio de nomear ofícios e cargos a essas "igrejas rurais"; e as pessoas a quem eles concediam suas instruções e cuidados eram chamados de bispos distritais. Estes formavam uma nova classe que ficava entre os bispos e presbíteros, sendo considerados inferiores àqueles e superiores a estes. Assim foram criadas novas distinções e divisões, e os ofícios e cargos se multiplicaram.

O Que Era um Bispo Nos Primeiros Tempos?

O mais humilde camponês está familiarizado com a grandeza mundana de um bispo, mas ele pode não saber como um ministro de Cristo, e um sucessor de um humilde pescador da Galileia, chegou a tal dignidade. Nos dias dos apóstolos, e por mais de cem anos depois, o ofício de um bispo era uma obra laboriosa, mas uma "boa obra". Ele era encarregado de uma única igreja, que podia estar normalmente reunida em uma casa particular. Ele não estava lá como um "senhor sobre a herança de Deus" (1 Pedro 5:3), mas na realidade como um ministro e servo, instruindo o povo, e cuidando dos doentes e pobres pessoalmente. Os presbíteros, sem dúvida, ajudavam na gestão dos assuntos gerais da igreja, e também os diáconos; mas o bispo tinha a parte principal do serviço. Ele não tinha autoridade, no entanto, de decretar ou sancionar qualquer coisa sem a aprovação do presbitério e do povo. Não havia, então, o pensamento de "clero inferior" sob ele. E nesse tempo as igrejas não tinham renda, com exceção de contribuições voluntárias do povo que, moderados como sem dúvidas eram, deixavam uma pequena quantia para o bispo para ajudar os pobres e necessitados.

Mas naqueles primeiros tempos os oficiais da igreja continuavam, muito provavelmente, em seus antigos ofícios e ocupações, para sustento de si mesmos e de suas famílias, do mesmo modo que antes. "Um bispo", diz Paulo, "deve ser dado à hospitalidade" (Tito 1:8). E isso ele não poderia ser se sua renda dependesse das ofertas dos pobres. Não foi até por volta do ano 245 que o clero passou a receber salário, e foram proibidos de seguir com seus empregos do mundo; mas próximo ao fim do segundo século surgiram circunstâncias na história da igreja que afetaram grandemente a humildade e simplicidade original de seus supervisores, e que tenderam à corrupção da ordem sacerdotal. "Essa mudança começou", diz Waddington, "perto do início do segundo século; e é certo de que nesse período encontramos as primeiras denúncias de corrupção incipiente  do clero." A partir do momento em que os interesses dos ministros se tornaram totalmente distintos dos interesses do cristianismo, pode-se considerar que muitas e grandes mudanças para pior tinham começado. Vamos tomar nota de algumas circunstâncias, e em primeiro lugar, a origem das dioceses.

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