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domingo, 2 de outubro de 2022

A Conversão de Lutero

Tendo obtido algum alívio de seus deveres subalternos, Lutero então voltou a seus estudos com novo zelo. Ler e meditar eram seu deleite. As obras dos Padres, especialmente de Santo Agostinho, atraíram sua atenção. Em certo local do convento havia uma Bíblia presa por uma corrente, e ali o jovem monge recorria muitas vezes para ler a Palavra de Deus, embora ainda não tivesse discernimento espiritual de seu significado. Um dos frades, chamado João Lange, com quem Lutero conversava, possuía um conhecimento considerável tanto do grego quanto do hebraico, línguas que Lutero ainda não havia encontrado tempo para estudar. Mas sua oportunidade havia chegado e ele a abraçou com grande entusiasmo e diligência. Foi assim, na reclusão de sua cela, e com a ajuda de João Lange, que ele começou a aprender grego e hebraico, e assim lançou as bases da maior e mais útil de todas as suas obras -- a tradução da Bíblia em língua alemã. O Léxico Hebraico de Reuchlin acabara de ser publicado, o que também o ajudou muito.

Mas a leitura e os exercícios mentais de Lutero sobre as Escrituras, por não entendê-las, só aumentaram sua angústia. Ter a certeza da salvação era o único grande desejo de sua alma agitada. Fora isso nada poderia lhe dar descanso. Entrara no claustro, tornara-se monge, lutara incessantemente contra o mal do próprio coração, passara noites inteiras de joelhos no chão de sua cela, superara todos os seus irmãos em vigílias, jejuns, e mortificações, mas na perfeição monástica ele não encontrou alívio; isso apenas o mergulhou em um desespero mais profundo, e quase lhe custou a vida. Pelo rigor de seu ascetismo, enfraquecia seu corpo até que sua mente divagava, e então imaginava que via e que estava cercado de fantasmas e demônios. Mas por que isso aconteceu? alguns podem perguntar; ele não era sincero? Certamente, mas ele procurava obter a paz com Deus por meio de seus próprios exercícios religiosos, e nisso ele ficou amargamente desapontado. Ele estava tentando fazer por si mesmo o trabalho que Cristo havia feito por ele – e feito com perfeição. E não estão milhares nos dias de hoje fazendo exatamente a mesma coisa que Lutero fez, só que de forma menos sincera, menos séria, menos abnegada? Eles estão olhando para si mesmos – pode ser apenas para seus sentimentos, ou pode ser para seus atos ou raciocínios, ou suas realizações. Ainda assim, o “eu” é o objeto diante da mente, não Cristo e Sua obra consumada. "Olhai para mim", diz o bendito Senhor; e qual será o resultado imediato? Salvação! — salvação instantânea, completa e pessoal! "Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro" (Isaías 45:22). E a esta verdade toda alma deve se curvar antes que possa provar a doçura da paz com Deus. Mas Lutero ainda ignorava a sublime simplicidade e a glória moral do evangelho da graça de Deus.

Neste período da história de Lutero, para ele não havia sacrifício grande demais que ele pudesse tentar para capacitá-lo a alcançar uma santidade que assegurasse a salvação, e finalmente o céu. Ele realmente pensou em comprar a felicidade eterna por seus próprios esforços; tal é a escuridão da igreja de Roma, e tal foi a ilusão de um de seus filhos mais fiéis. Nos anos seguintes, quando já tinha mais conhecimento, ele escreveu ao duque George da Saxônia: "Eu era realmente um monge piedoso, e segui as regras de minha ordem mais estritamente do que posso expressar. Se algum monge pudesse obter o céu por suas obras monásticas, eu certamente teria direito a isso. Disto podem testemunhar todos os frades que me conheceram. Se tivesse continuado por muito mais tempo, eu teria levado minhas mortificações até a morte, por meio de vigílias, orações, leituras e outros trabalhos." A admissão no céu por seus próprios méritos era o fim que ele almejava, e que ele perseguia com um zelo que punha em perigo sua própria vida.

Do rigor e abstinência de sua vida monástica, tornou-se sujeito a acessos de depressão. Em uma ocasião, dominado pela sensação de sua própria miséria e pecaminosidade, ele se trancou em sua cela e por vários dias e noites se recusou a admitir qualquer pessoa. Um monge amigo, que conhecia um pouco do estado de sua mente, abriu sua cela e ficou alarmado ao encontrá-lo com o rosto no chão e em estado de insensibilidade. Ele foi, depois de alguma dificuldade, restaurado pelo doce canto de alguns meninos do coro, mas desmaiou novamente -- o fardo ainda estava lá. Ele exigia, não a música suave de um hino, mas a música mais doce do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. E isso, pela misericórdia de Deus, estava próximo.

domingo, 6 de setembro de 2020

As Primeiras Ordens Monásticas e as Posteriores

Temos plena consciência de que todos os sistemas humanos devem ser examinados pela Palavra de Deus se quisermos compreender corretamente seu verdadeiro caráter. Não é contrastando o último com o anterior que podemos descobrir o quão longe eles podem ter se distanciado da mente do Senhor. A Palavra do Deus vivo, pela qual todos serão finalmente julgados, deve ser nosso único padrão agora. Pouco importa quais melhorias podem ser encontradas em um sistema em comparação com outro, se ambos são o resultado de invenção humana. Isso é verdade para todas as pessoas e também para todos os sistemas. A Palavra de Deus deve ser a única regra do cristão, e o próprio Cristo a única cabeça e centro, poder e autoridade, no sistema que Ele possui -- a igreja, a assembleia de Deus*. Mas, como em diferentes ocasiões examinamos as escrituras sobre esses pontos, iremos agora, em poucas palavras, falar sobre a diferença entre os sistemas monásticos anteriores e posteriores. **

{*N. do T.: a expressão “assembleia de Deus” aqui não se refere a uma denominação cristã que adotou este nome (tal denominação nem mesmo existia à época do autor), mas sim à igreja de Deus, a universal assembleia (Hebreus 12:23), composta por todos aqueles que pela graça foram salvos e acrescentados a essa igreja (Atos 2:47) ao crerem em Jesus como Salvador.}

{** Ver "Reflexões sobre os Princípios da Asceticismo", Cap. 12.}

O principal, senão o objetivo exclusivo dos primeiros eremitas, anacoretas e ascetas de todos os nomes, era sua própria perfeição religiosa. A instrução ou salvação de outros não fazia parte de seu credo. O isolamento do mundo perigoso e a reclusão em alguma cela solitária, com todas as suas privações, eram considerados necessários para esse fim. À medida que o halo da santidade deles atraía e seduzia outras pessoas, foram construídas casas e cultivadas grandes extensões de terra para as necessidades desta vida. Esses pequenos começos muitas vezes se tornaram os assentamentos mais imponentes de um país. E durante a longa e escura noite da Idade Média, com sua barbárie e feudalismo, os mosteiros frequentemente se mostravam uma grande misericórdia para os doentes, os pobres e os viajantes. Todos devem reconhecer este fato com gratidão. Durante os cinco ou seis séculos que se seguiram à subversão do império ocidental, o sistema monástico tornou-se um poderoso instrumento para corrigir os vícios da sociedade e proteger as classes mais baixas da opressão sem lei do senhor feudal. Hospitalidade, ou o entretenimento de estrangeiros e peregrinos, era um dos usos importantes dos mosteiros naquele tempo. As estalagens para a recepção de viajantes parecem não ter existido antes do século XI. Praticamente os dois únicos edifícios imponentes que chamavam a atenção do viajante naquela época eram o castelo do poderoso barão e a abadia dos monges em oração. Um era guerra, e o outro paz. A religião, o aprendizado e a ciência encontraram um refúgio atrás das paredes do mosteiro, e a verdadeira piedade podia trabalhar pacificamente ali, escrevendo, transcrevendo, coletando e preservando informações úteis.

"Os beneditinos", diz Travers Hill, "eram os depositários do saber e das artes; eles reuniam livros e os reproduziam no silêncio de suas celas, e preservavam dessa forma não apenas os volumes das escrituras sagradas, mas muitas das obras de tradição clássica. Eles começaram a arquitetura gótica; só eles tinham os segredos da química e da ciência médica; eles inventaram muitas cores; foram os primeiros arquitetos, artistas, pintores de vidro, entalhadores e trabalhadores de mosaico nos tempos medievais. Foi um sistema poderoso e fez um bom trabalho no mundo, mas seguiu o caminho de coisas e instituições humanas, ficou intoxicado com seu poder, cegado por seu próprio esplendor e corrompido por sua própria riqueza; seus abades tornaram-se avarentos , seus monges voluptuosos; eles perderam sua simplicidade original; o governo de seu fundador não existia mais na atividade de seus lavradores, seus estudiosos e seus artistas, mas só era encontrado nas palavras mecanicamente lidas na capela. O [HH1] monasticismo engendrou sua própria corrupção, e dessa corrupção veio a morte."

A magnífica abadia de Glastonbury já chegou a cobriu sessenta acres. Antes da queda dos mosteiros na Inglaterra, os comissários reais relatam a esse respeito; que eles nunca tinham visto uma casa tão grande, boa e principesca, com quatro parques contíguos, um grande pesqueiro de cinco milhas, bem abastecido com lúcios, percas, douradas e leuciscos; quatro solares, além da capela, hospital, tribunal, escolas e a grande portaria. Muitas das casas de Glastonbury foram construídas com materiais desta outrora soberba abadia.*

{*Gazetteer, de Johnston.}

Os hábitos dos monges modernos contrastavam perfeitamente com os anteriores. Em lugar de morar dentro das paredes de uma abadia soberba, toda a cristandade em um curto período de tempo foi inundada por hostes de dominicanos e franciscanos. Eles vinham de todos os países e falavam, portanto, todas as línguas e dialetos. Eles pregaram a velha fé em seu mais completo rigor inflexível medieval, em quase todas as cidades e vilas. Lealdade inabalável ao papa e a extirpação da heresia eram seus grandes temas. E os pontífices em troca os protegiam e conferiam a eles os mais altos privilégios e vantagens. Antes de encerrar o século, os mosteiros e conventos da ordem minorita atingiram o surpreendente número de oito mil e eram habitados por pelo menos duzentos mil internos.

sábado, 18 de julho de 2020

Monges Antigos e Modernos

A origem e a história inicial do monasticismo foram cuidadosamente traçadas no Capítulo 12 deste livro; mas, como seu caráter muda completamente no século XIII, será fácil esboçar seu progresso desde os primeiros tempos, e assim, ver mais claramente o contraste. Esse plano também nos dará a oportunidade de olhar a condição interna da igreja de Roma antes que a luz da Reforma penetre e revele suas terríveis trevas.

No final do século III, mas especialmente durante o quarto, os desertos da Síria e do Egito tornaram-se morada de monges e eremitas. Os lugares mais privados e pouco frequentados no vasto deserto foram selecionados pelos primeiros reclusos. Os relatos da santidade deles, de seus milagres e devoção se tornaram a principal literatura da igreja. A infecção se espalhou. Homens ansiosos por se destacar na santidade ou obter a reputação de uma piedade peculiar abraçaram a ordem monástica. A prática prevaleceu tão rapidamente que, antes do início do século VI, estendia-se em igual proporção à própria Cristandade. Havia três classes desses monges antigos. 1. Solitários -- aqueles que moravam sozinhos em lugares distantes de todas as cidades e habitações dos eremitas dos homens. 2. Coenobitas -- aqueles que viviam em comum com os outros na mesma casa para fins religiosos e sob os mesmos superiores. 3. Sarabaítas -- descritos como monges irregulares que peregrinavam, que não tinham regra ou residência fixos. Estes podem ser considerados dissidentes dos Coenobitas, que viviam dentro de seus próprios portões. O muro que os confinava, em alguns casos, também encerrava seus poços e jardins, e tudo o que era necessário para o sustento deles, de modo a não deixar nenhum pretexto nem mesmo para uma relação ocasional com o mundo que eles haviam abandonado para sempre.

Aqueles a quem chamamos de monges hoje em dia são os coenobitas, que vivem juntos em um convento ou mosteiro, fazem votos de viver de acordo com uma certa regra estabelecida pelo fundador e vestem um hábito que marca a distinção de sua ordem.

As revoluções do Ocidente, no século V, mostraram-se favoráveis ​​ao monasticismo. Os bárbaros ficaram impressionados com os números, peculiaridades e professada santidade dos monges. Suas residências, portanto, não foram perturbadas e tornaram-se um refúgio tranquilo dos problemas da época. A superstição lhes dava honra; a riqueza começava a fluir, mas com ela degeneração e corrupção. Já havia espaço para um reformador, e a pessoa que apareceria nesse caráter era o famoso São Bento.

domingo, 27 de maio de 2018

A Degeneração das Regras Monásticas

Mas antes de deixarmos o assunto sobre os mosteiros, tendo olhado para eles sob o comando de Bernardo, pode ser interessante tomar nota do que eles tinham se tornado antes de seu dia, e o que se tornariam depois. A maioria dos antigos mosteiros tinham ficado ricos e sofriam das consequências naturais. Alguns tinham relaxado totalmente sua disciplina, a muito tempo já renunciavam à pobreza, e desconsideravam seu voto de obediência ao abade ou prior. Eles tinham fertilizado seus territórios imediatos; e, embora tivessem agora como desfrutar dos frutos de sua labuta, se afundaram em indolente repouso, e a ociosidade trouxe seus dez mil outros pecados. Milman fala do monasticismo como traçando o mesmo ciclo em todas as eras. Isto é tão verdadeiramente e graficamente descrito que citaremos a passagem inteira. Mas devemos acrescentar que ele deixa de fora nesse parágrafo as terríveis imoralidades, dissensões e insubordinações que sempre foram as consequências da riqueza.

"Agora o deserto, a solidão absoluta, a extrema pobreza, as dificuldades na floresta teimosa e no pântano doentio, a mais exaltada piedade, a devoção que não tinha horas suficientes durante o dia e a noite para seu exercício, as regras que não podiam ser forçadas mais estritamente, o ascetismo fortemente competitivo, a inventiva auto-disciplina, a ingenuidade inexaurível e emulada da auto-tortura, o servilismo prepotente da obediência: e então a fama pela piedade, as prodigiosas ofertas dos fiéis, as concessões do senhor arrependido, as doações do rei cheio de remorso -- a opulência, o poder, a magnificência. A cabana de acácia, a ermida de pedra, e agora o claustro imponente; a igreja humilde de madeira, e agora a soberba e linda abadia; a floresta selvagem e pantanosa, e agora o agradável e úmido bosque; o pântano, e agora um domínio de prados e campos de milho; o riacho ou a torrente da montanha, e agora uma sucessão de calmos tanques e poços, que engordam inumeráveis peixes. O superior, antes um homem curvado em terra com humildade, aflito, pálido, extenuado, com uma grosseira veste amarrada com uma corda, com pés descalços, tornou-se um abade em seu palafrém, em traje rico, com sua cruz prateada trazida diante dele, viajando para tomar seu lugar em meio aos mais nobres do reino."*

{*Latin Christianity, vol. 3, p.330.}

Uma nova ordem, uma nova instituição, cresceram sob a mão de Bernardo. Claraval foi o começo de uma nova era na história do monasticismo. Homens de todas as classes eram atraídos à ordem cisterciense, não obstante o notável rigor de sua disciplina; e vários mosteiros se espalharam nos desertos, seguindo o padrão de Claraval. Mas todo o poder de Bernardo não podia prevenir que as mais amargas invejas e dissimulações indecentes surgissem entre os monges das novas e das velhas ordens, especialmente com o outrora célebre mosteiro de Cluny, que tinha treinado Hildebrando para o trono papal.

São Bernardo e o Monasticismo

Como o cristianismo e o entusiasmo monástico, na teoria da igreja romana, era, nessa época, a única verdadeira perfeição cristã, apresentaremos ao leitor algumas particularidades desse sistema, para que possa julgar, por si mesmo, a extrema cegueira até mesmo de verdadeiros crentes como Bernardo, e a terrível perversão do sagrado nome do Cristianismo. Se as provas não fossem inquestionáveis, seria difícil crer em tais fatos. A renúncia ao mundo, a solidão, o asceticismo, a mortificação severa, eram coisas pregadas quase como se fossem o único caminho seguro para o céu. Os supostos méritos do monastério, e não da obra consumada de Cristo, era a base de admissão por São Pedro aos reinos de glória. Por isso, quanto mais sincero fosse o monge, mais ele infligia a si mesmo todo tipo de tortura e miséria. Este era o engano: "Quanto mais longe do homem, mais próximo de Deus. A santidade era medida pelo sofrimento. Toda a simpatia humana, todos os sentimentos sociais, todos os laços de parentesco, todas as afeições, deveriam arrancadas pelas raízes do espírito que geme; dor e oração, oração e dor, deveriam ser as únicas e incansáveis ocupações de uma vida santa."

Certamente está é uma obra-prima de Satanás, a mais profunda ilusão dos conselhos do inferno. Que a tua santa Bíblia seja teu guia, querido leitor; e descanse com a certeza de que todo o que crê no Senhor Jesus Cristo é, e não apenas será, mas é salvo, e que todo aquele que verdadeiramente crê deve cuidar em manter boas obras, em virtude da natureza divina e do poder do Espírito Santo.  

São Bernardo, Abade de Claraval

O mais celebrado desses homens [do século XII] é o famoso São Bernardo. Ele é considerado o mais brilhante representante da religião católica romana que a igreja teve desde os dias de Jerônimo, Ambrósio, Agostinho, e Gregório. Por meio século, ele aparece diante de nós como o chefe dirigente e governante da Cristandade -- o oráculo de toda a Europa. Os papas são perdidos de vista sob a luz mais clara do abade. "Ele é o centro", diz um de seus biógrafos, "sobre os quais se reúnem os grandes eventos da história cristã, de cuja mente fluem os impulsos que animam e guiam a Cristandade latina, a quem convergem os pensamentos religiosos dos homens. Ele governa, da mesma forma, o mundo monástico, os concílios dos soberanos seculares, e os desenvolvimentos intelectuais da era. Acredita-se, por uma era de admiração, que ele tenha confundido o próprio Abelardo, e que tenha reprimido as mais perigosas doutrinas de Arnoldo de Bréscia". Para aqueles que já leram sobre sua vida, essa imagem não parecerá exagerada. Mas, ao lançarmos luz sobre aqueles tempos, tomaremos nota primeiramente sobre sua criação e educação.

Bernardo nasceu de nobre parentesco na Borgonha. Seu pai, Tescelin, era um cavaleiro de grande bravura e piedade, de acordo com as ideias religiosas predominantes na época. Sua mãe, Alèthe, era também bem nascida, e um modelo de devoção e caridade. Bernardo, o terceiro filho deles, nasceu em Fontaines, perto de Dijon, em 1091. Desde sua infância ele era pensativo e devotado à religião e ao estudo. Sua piedosa mãe morreu enquanto ele ainda era jovem, deixando seis filhos e uma filha. Ele foi, então, deixado livre para escolher sua ocupação de vida. Qual seria? Ele não tinha muita escolha: ou seria um cavaleiro lutador ou um monge em jejum e oração. Ele resolveu se retirar do mundo e devotar-se à vida monástica. Aos vinte e três anos, ele entrou para o mosteiro de Cister.

Quando sua família ouviu pela primeira vez sobre sua decisão, ele sofreu muita oposição. Seu pai, Tescelin, e seus dois irmãos, Guido e Geraldo, estavam seguindo o grande Duque da Borgonha em suas guerras, como militares nobres. Mas tal era a força de caráter de Bernardo que ele influenciou seus irmãos, um após o outro, e também sua irmã, a fazerem o voto; e assim toda a família, em um curto período de tempo, desapareceu dentro das paredes do convento.

domingo, 18 de junho de 2017

O Pontificado de Gregório VII

Capítulo 19: O Papa Gregório VII (1049 - 1085 d.C.)


Hildebrando, um nativo da Toscana, nascido na primeira parte do século XI, tinha abraçado, desde de sua infância, as mais rígidas ideias do monasticismo. Não satisfeito com o laxismo* dos monges italianos, ele cruzou os Alpes e entrou para o austero convento de Cluny, na Borgonha, então o mais importante em números, riqueza e piedade.

{*Laxismo: doutrina, tendência ou comportamento que busca suavizar ou limitar as restrições e imposições colocadas pela moral cristã.}

No ano 1049, Bruno, bispo de Toul, vestido com todo o esplendor de um pontífice eleito, e acompanhado pelo séquito*, chegou em Cluny e exigiu a hospitalidade e homenagem dos monges. Bruno era primo de Henrique III, imperador da Alemanha, e tinha sido nominado por ele para preencher o lugar vago na Sé de Roma. Hildebrando, o prior** de Cluny, logo adquiriu grande influência sobre a mente de Bruno. Ele o convenceu de que tinha tomado um passo em falso ao ter aceitado a indicação das mãos de um leigo, e sugeriu-lhe que deixasse de lado as vestimentas pontificais que ele tinha assumido prematuramente, viajasse a Roma como peregrino, e ali recebesse do clero e do povo esse ofício apostólico que nenhum leigo tinha o direito de conceder. Bruno concordou. As visões sublimes de Hildebrando sobre a dignidade eclesiástica prevaleceram sobre a mente mais genial de seu novo amigo. Ele seguiu seu conselho: tirou suas vestes e, tomando o monge como seu companheiro, seguiu sua jornada a Roma com a simplicidade de um peregrino.

{*Séquito: conjunto das pessoas que acompanham outra(s); cortejo que acompanha uma pessoa, ger. distinta, para servi-la ou honrá-la; comitiva.}
{**Prior: pároco; superior de um convento ou de certas ordens religiosas.}

A impressão produzida foi grande, e toda em favor de Bruno. Nenhuma demonstração sacerdotal ou imperial podia ter tido o mesmo poder sobre o povo. Dizem que milagres acompanharam seu caminho, e por suas orações rios caudalosos se contiveram em seus limites naturais. Ele foi aclamado com aclamações universais como Papa Leão IX. Hildebrando foi imediatamente recompensado por seus serviços. Ele foi elevado à classe de cardeal, e recebeu os ofícios de subdiácono de Roma com outros preferenciais. Desde esse tempo ele era praticamente um papa -- o verdadeiro diretor do papado.

domingo, 18 de dezembro de 2016

A Missão de Columba

Columba, um homem piedoso, de descendência real e cheio de boas obras, ficou profundamente impressionado com a importância de se levar o evangelho a outras terras. Ele pensava na Escócia, e determinou-se a visitar o país do famoso Succath. Tendo comunicado sua intenção a alguns de seus companheiros cristãos, que concordaram em acompanhá-lo, a missão foi acordada. Por volta do ano 565 Columba, acompanhado por doze companheiros, navegou das margens da Irlanda em um barco aberto de vime coberto de peles e, após experimentar muita dificuldade em sua pequena e rude embarcação, o nobre grupo missionário chegou às Ilhas Ocidentais -- um conglomerado de ilhas ao largo da costa oeste da Escócia chamado de Hébridas. Eles desembarcaram perto da rocha estéril de Mull, ao sul das cavernas basálticas de Staffa, e fixaram sua morada em uma pequena ilha, mais tarde conhecida como Iona, ou Icolmkill. Lá ele fundou seu monastério, mais tarde tornado tão famoso na história da igreja. A tradição preservou um ponto na costa onde desembarcaram por meio de um montículo artificial, vagamente semelhante a um barco invertido, modelado segundo o padrão dos currach, no qual os piedosos monges navegaram através do mar.*

{* Para detalhes interessantes, veja "The Church History of Scotland from the commence­ment of the Christian era to the present time", de John Cunningham, ministro de Crieff A. and C. Black Edinburgh. 1859.}

Pensa-se que um bom número de cristãos já tinha encontrado um refúgio naquela rocha estéril. Naquele tempo ela devia ser quase completamente isolada das moradas dos homens. As águas das Hébridas são tão tempestuosas que a navegação em barcos abertos deve ter sido extremamente perigosa. O nome Iona significa "A Ilha das Ondas". Além de suas ondas transversais, suas correntes e seus recifes, a pesada maré do Atlântico rola sobre as suas praias. A respeito dos monges de Iona, falaremos de cada um; mas ainda não terminamos com a Irlanda.

Columbano, outro monge de grande santidade, parece ter deixado sua cela cerca de sessenta anos após Columba. Ele nasceu em Leinster, e treinou no grande monastério de Bangor na costa de Ulster. Uma sociedade de 3000 monges, sob o governo de seu fundador, Comgal, foi gerada nesse convento. A igreja na Irlanda ainda era livre; não tinha sido ainda escravizada pela igreja de Roma. Eles eram simples e sinceros em seu cristianismo comparado às formas sem vida e ao elemento sacerdotal do papado. Nem mesmo as construções religiosas desse período se assemelham aos conventos papistas de épocas posteriores. Mesmo assim, eles já tinham viajado para muito além da simplicidade do cristianismo apostólico.

A Palavra de Deus não era o único guia deles. O cristianismo não tinha existido no mundo por 600 anos sem ter contraído muitas corrupções. Ele passou através de muitos eventos de grande importância na história da igreja. O gnosticismo, o monasticismo, o arianismo e o pelagianismo eram gigantescos males naqueles dias; mas o monasticismo era a instituição popular ao final do século VI.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

A Caridade Fervente de Gregório

O caráter de Gregório se distinguia pelo fervor de seus atos de caridade. Embora elevado ao trono papal, ele viveu em um estilo simples e monástico. Seu palácio era cercado pelos pobres sofredores, como tinha sido seu monastério, e o alívio era distribuído com uma mão liberal. Não contente em apenas exercitar sua caridade sozinho, ele poderosamente exortava seus irmãos episcopais a abundarem na mesma. "Que o bispo não pense", diz ele, "que apenas a leitura e pregação são suficientes, ou apenas estudiosamente manter-se em retiro, enquanto a mão que enriquece permanece fechada. Mas que sua mão seja generosa; que faça avanços em direção àqueles que estão em necessidade; que considere as necessidades dos outros como se fossem de si próprio; pois sem essas qualidades o nome do bispo é um título vão e vazio".

A riqueza da Sé romana permitiu-lhe exercitar extensas caridades. Como administrador dos fundos papais, Gregório tem a reputação de ser justo, humano e muito laborioso. Mas seu biógrafos são tão volumosos em seus relatos sobre suas boas obras que chega a ser difícil tentar um breve esboço. No entanto, como podemos estimá-lo como um crente em Cristo, apesar da falsa posição em que estava e sua consequente cegueira quanto ao verdadeiro caráter da igreja, nos deleitamos em demorar um pouco mais em sua memória, e também traçar a linha prateada da graça de Deus apesar da ímpia mistura das coisas seculares e sagradas.

Na primeira segunda-feira de cada mês ele distribuía grandes quantidades de provisões a todas as classes. Os doentes e enfermos eram superintendidos por pessoas designadas para inspecionar todas as ruas. Antes de sentar-se à sua própria refeição, uma porção era separada e enviada aos famintos à sua porta. Os nomes, idades e moradias daqueles que recebiam o alívio papal encheram um grande volume. Tão severa era a caridade de Gregório que, certo dia, ao ouvir sobre a morte de um homem pobre pela fome, condenou-se a si mesmo a uma dura penitência pela culpa de negligência como administrador da divina graça. Mas sua ativa benevolência não se limitava à cidade de Roma; era algo quase mundial. Ele entrava em todas as questões que afetavam o bem-estar de todas as classes, e prescrevia minuciosas regulamentações para todas, para que os pobres não fossem expostos à opressão dos ricos, ou os fracos fossem oprimidos pelos fortes. Mas isto ficará mais evidente quando tomarmos nota  da posição eclesiástica e temporal de Gregório.

domingo, 13 de novembro de 2016

Gregório I, Apelidado de "o Grande" (590 d.C.)

Chegamos agora ao final do sexto século do cristianismo. Neste ponto encerra-se a história do período inicial da igreja, e começa a do período medieval. O pontificado de Gregório pode ser considerado como a linha que separa os dois períodos. Uma grande mudança acontece. As igrejas orientais declinam e recebem pouca atenção, enquanto as igrejas do Ocidente, especialmente a de Roma, atraem amplamente a atenção do historiador. E como Gregório pode ser considerado o homem representativo desse período transicional, nos esforçaremos para colocá-lo de forma justa perante o leitor.

Gregório nasceu em Roma por volta do ano 540, sua família sendo de classe senatorial, e ele próprio sendo o bisneto de um papa chamado Félix, de modo que, em sua descendência, ele herdou tanto a dignidade civil quanto a eclesiástica. Pela morte de seu pai ele se tornou possuidor de grande riqueza, que ele imediatamente dedicou a usos religiosos. Ele fundou e manteve sete monastérios: seis na Sicília, e a outra, que era dedicada a Santo André, na mansão de sua família em Roma. Ele liquidou em dinheiro suas roupas e joias caras e seus móveis e distribuiu aos pobres. Quando tinha cerca de 35 anos ele deixou de lado seus compromissos civis, assumiu sua residência no monastério romano e começou uma vida estritamente ascética. Embora fosse seu próprio convento, ele começou com os mais baixos deveres monásticos. Todo seu tempo era gasto em oração, lendo, escrevendo, e fazendo os mais abnegados exercícios. A fama de sua abstinência e caridade se espalhou por toda a parte. Com o decorrer do tempo ele se tornou abade de seu monastério; e, com a morte do papa Pelágio, ele foi escolhido pelo senado, clero e povo para preencher a cadeira vazia. Ele se recusou, e esforçou-se por vários meios a escapar das honras e dificuldades do papado. Mas ele foi forçadamente ordenado, pelo amor do povo, como bispo supremo.

Tirado da quietude de um claustro e de suas pacíficas meditações ali, Gregório via-se então envolvido no gerenciamento dos mais variados e desconcertantes assuntos tanto da igreja como do Estado. Mas ele estava evidentemente preparado para o grande e árduo trabalho que tinha diante de si. Vamos tomar nota, primeiramente, da fervente caridade de Gregório. 

sábado, 1 de outubro de 2016

Reflexões sobre os Princípios do Asceticismo

É realmente triste refletir sobre os muitos e sérios erros dos grandes doutores, ou dos primeiros "pais", como são usualmente chamados. Não sabemos de nada mais grave e solene do que o fato de que eles enganaram muito as pessoas de então, e que por meio de seus escritos eles têm enganado a igreja professa desde então. Quem é capaz de estimar as terríveis consequências de tais ensinos pelos últimos 1400 anos, pelo menos? A má interpretação e má aplicação da Palavra de Deus é evidentemente a regra para esses líderes, e ensinar a sã doutrina é a exceção. E ainda assim eles são o orgulho e a alegada autoridade para uma grande porção da Cristandade até hoje.

Sobre o assunto do asceticismo, qualquer um com conhecimento comum das Escrituras pode enxergar a ignorância que tinham da mente de Deus, e o quanto pervertiam Sua Palavra. Somos exortados, por exemplo, a "mortificar as obras do corpo", mas nunca a mortificar o próprio corpo. O corpo é do Senhor, e deve ser cuidado. "Não sabeis vós", diz o apóstolo, "que os vossos corpos são membros de Cristo?". Verdadeiramente, devem ser reduzidos à servidão, mas este é o modo mais sábio de cuidar do corpo (Romanos 8:13, 1 Cor 6:15, 9:27). Novamente, o apóstolo diz: "Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra", e então ele explica o que são esses membros: "a fornicação, a impureza, o afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria" (Colossenses 3:5). Estas são as obras do corpo que devemos mortificar -- que devemos entregar à morte de maneira prática; e isto sobre o fundamento de que a carne foi condenada à morte na cruz. "E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências" (Gálatas 5:24). Observe que o versículo não diz que estão crucificando, ou que deveriam crucificar a carne, mas que já a crucificaram. Deus a colocou fora de Sua vista pela cruz, e devemos mantê-la fora de nossa vista pelo auto-julgamento. O corpo, pelo contrário, tem no Novo Testamento um lugar muito importante como o templo do Espírito Santo, mas a tendência do asceticismo é de maltratar o corpo e alimentar a carne. "As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne" (Colossenses 2:23).

Os "pais" parecem ter se esquecido que o asceticismo era fruto da filosofia pagã, e de modo nenhum do cristianismo divino, mas eles parecem nunca terem olhado com cuidado para as Escrituras para conhecerem a mente de Deus sobre esses assuntos. Não tendo entendido a total ruína do homem na carne, eles em vão pensavam que ela podia ser melhorada, e foram assim desviados de inumeráveis maneiras, especialmente quanto à obra de Cristo, o julgamento da carne por Deus, o verdadeiro princípio da adoração, e todo o caminho do serviço cristão.

Tendo visto o estabelecimento do grande sistema monástico que exerceria uma influência tão poderosa em conexão com o cristianismo, a literatura e a civilização através da idade das trevas, deixemos o assunto por enquanto e retornemos à nossa história geral.

domingo, 25 de setembro de 2016

Os Monastérios e o Pontífice Romano

Até quase o final do quinto século, os monastérios eram colocados sob a superintendência dos bispos; os monges eram considerados simplesmente como leigos e não tinham qualquer pretensão de serem classificados entre a ordem sacerdotal. Circunstâncias, no entanto, no decorrer do tempo, levaram os monges a assumir um caráter clerical. Muitos deles se ocupavam no trabalho de ler e expor as Escrituras, e todos eles deveriam estar envolvidos no cultivo da vida espiritual mais elevada. Assim, a população os tinham em muita estima, especialmente quando eles começaram a exercer suas funções clericais além dos confinamentos de suas celas. Invejas logo surgiram entre os bispos e os abades: o resultado foi que os abades, para se libertarem da dependência que tinham de seus rivais espirituais, fizeram uma petição para que tivessem a proteção do Papa de Roma. A proposta foi aceita com prazer, e logo todos os monastérios, grandes e pequenos, abadias, mosteiros e conventos se submeteram à autoridade da Sé de Roma. Isto foi um imenso passo em direção ao poder pontifical de Roma.

O Papa podia agora estabelecer, em quase qualquer canto, uma espécie de polícia espiritual, que agia como uma rede de espiões sobre os bispos, assim como sobre as autoridades seculares. Este evento deve ser observado com cuidado se quisermos acompanhar os caminhos e meios da ascensão do poder, e da derradeira supremacia, do Pontífice Romano.

O sistema monástico logo se espalhou para além dos limites do Egito: e todos os grandes mestres da época, tanto no Oriente quanto no Ocidente, advogavam a causa do celibato e monasticismo. São Jerônimo, em particular, o homem mais erudito de seus dias, é considerado o elo de ligação entre as duas grandes divisões da igreja -- a grega e a romana, ou a oriental e a ocidental. Ele foi o meio pelo qual o celibato e monasticismo foram fortemente levados adiante, especialmente entre as mulheres. Muitas senhoras romanas de classe se tornaram freiras através de sua influência. Ambrósio exaltava tanto a virgindade em seus sermões que as mães de Milão impediam que suas filhas assistissem seu ministério; mas multidões de virgens de outros cantos se reuniam em torno dele para receberem a consagração. Basílio introduziu a vida monástica em Ponto e Capadócia; Martinho, na Gália; Agostinho, na África; e Crisóstomo foi impedido pela sabedoria de sua mãe a se retirar, em sua juventude, a um eremitério remoto na Síria.

Antes de terminarmos este assunto pode ser interessante, de uma vez por todas, tomar nota sobre o crescimento e estabelecimento dos conventos.

domingo, 18 de setembro de 2016

A Primeira Sociedade de Ascetas

A forma mais antiga em que o espírito asceta se desenvolveu na igreja cristã não se deu na formação de sociedades ou comunidades, como encontramos mais tarde, mas na seclusão de indivíduos isolados. Eles acreditavam, embora equivocados, que eles tinham um chamado especial para se esforçarem por uma vida cristã mais elevada; e, a fim de atingir essa eminente santidade, impuseram sobre si mesmos as mais severas restrições. Eles se retiravam para lugares desertos onde podiam se entregar a si mesmos em fechada meditação nas coisas divinas, e onde suas mentes pudessem estar inteiramente abstraídas de todos os objetos naturais e de quaisquer deleites para os sentidos. Tanto homens quanto mulheres supunham que deviam empobrecer seus corpos em vigílias, jejuns, trabalhos e autoflagelo. Como o corpo era considerado uma carga opressiva e um obstáculo para suas aspirações espirituais, eles competiam entre si sobre quão longe podiam carregar suas auto-mortificações. Eles sobreviviam à base das mais insanas e doentias dietas: às vezes se abstinham da comida e sono até que a natureza estivesse totalmente esgotada. O contágio dessa nova invenção de Satanás se espalhou por toda a parte. O misterioso recluso era tido como necessariamente investido de uma santidade particular. A célula do eremita era visitada pelos nobres, eruditos e devotos -- todos desejosos de prestar homenagem ao homem santo de Deus; e assim o orgulho espiritual foi engendrado pela bajulação do mundo. A partir deste momento a vida monástica era tida em tal estima que muitos a adotaram como um emprego altamente honorável; e, posteriormente, formaram-se comunidades, ou instituições monásticas.

Pacômio, que era, como Antônio, um nativo de Tebas, se converteu ao cristianismo no início do século IV. Após praticar austeridades por algum tempo, foi informado por um anjo em seus sonhos de que ele tinha feito um progresso suficiente na vida monástica, e que agora deveria se tornar um mestre para outros. Pacômio fundou, então, uma sociedade na ilha do Nilo. Assim começaram os ascetas a viver em associação. A instituição logo se estendeu de tal forma que, antes da morte do fundador, chegou a oito monastérios, com 3000 monges; e no começo do século seguinte o número de monges já passava dos 50000. Eles viviam em células que, cada uma, continham três monges. Eles eram comprometidos à obediência absoluta dos comandos de Aba, ou pai. Eles vestiam uma roupa peculiar, sendo seu principal artigo uma pele de cabra, em imitação a Elias que, como João Batista, era tido como um exemplo da condição monástica. Eles nunca podiam se despir: eles dormiam com suas roupas, e em cadeiras construídas de tal forma que os mantivessem numa postura quase vertical. Eles rezavam muitas vezes por dia em jejum no quarto e sexto dia da semana, e se comunicavam no sábado e no dia do Senhor (domingo). Suas refeições eram feitas em silêncio, e com capuzes sobre seus rostos, de modo que ninguém pudesse ver seu vizinho. Eles dedicavam-se à agricultura e variadas formas de indústria, e tinham todas as coisas em comum, à imitação dos primeiros cristãos após o dia de Pentecostes*. Pacômio fundou sociedades similares para mulheres.

{* Robertson, volume 1; Neander, volume 3; Crenças do Mundo, de Gardner, volume 2.}

As Virtudes e Falhas de Antônio

Antônio era evidentemente sincero e honesto, embora fosse totalmente equivocado e enganado pelos artifícios e poder de Satanás. No lugar de agir de acordo com a comissão do Salvador aos Seus discípulos, "ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura" (Marcos 16:15), ou de seguir Seu exemplo de andar fazendo o bem, ele achou que podia alcançar uma espiritualidade mais elevada retirando-se do meio da humanidade, e devotando-se à austeridade da vida e à comunhão ininterrupta com o céu. Ele era um cristão, mas totalmente ignorante da natureza e objetivo do cristianismo. A santidade na carne foi seu único grande objetivo, embora o apóstolo tivesse dito: "Em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum" (Romanos 7:18). Portanto, tudo foi um fracasso, total fracasso: como sempre deve ser, se pensarmos que há qualquer coisa boa na natureza humana, ou tentarmos nos tornar melhores em nós mesmos. Em vez de conseguir santificar sua natureza por meio dos jejuns e do ócio, ele descobriu que toda paixão foi estimulada a uma maior atividade.

"Dessa maneira, em sua solidão", nos diz Neander, "ele teve que enfrentar muitos conflitos em suas faculdades mentais, os quais talvez poderiam ter sido evitados caso se envolvesse com algum tipo de vocação que exigisse o uso de todas as suas forças. As tentações contra as quais ele teve que batalhar foram das mais numerosas e poderosas, pois estava entregue à ociosa ocupação com si mesmo e se ocupava em lutar contra as imagens impuras que constantemente vinham do abismo de corrupção de dentro de seu coração, no lugar de esvaziar a si mesmo, dedicando-se a trabalhos mais dignos, ou de desviar o olhar para a eterna fonte de pureza e santidade. Em um período posterior, Antônio, com uma convicção fundada em longos anos de experiência, reconheceu isso e disse aos seus monges: 'Não ocupemos nossas imaginações pintando espectros e espíritos malignos; não atribulemos nossas mentes como se estivéssemos perdidos. Em vez disso, confortemo-nos e alegremo-nos todo o tempo, como aqueles que foram redimidos; e sejamos conscientes de que o Senhor está conosco, o Mesmo que os venceu e os tornou em nada. Lembremo-nos sempre que, se o Senhor está conosco, o inimigo não pode nos fazer mal. Os espíritos do mal aparecem de formas diferentes para nós, de acordo com o estado de mente com que eles nos encontram... Mas se nos encontrarem gozosos no Senhor, ocupados na contemplação da bem-aventurança futura e das coisas do Senhor, refletindo que tudo está nas mãos do Senhor, e que nenhum espírito maligno pode fazer qualquer mal ao cristão, eles afastam-se, em confusão, da alma que eles veem preservada por tais bons pensamentos."*

{* História Geral da Igreja, vol. 3, p. 310. Veja também História da Igreja, por James Craigie Robertson, vol. 1, p. 295.}

É perfeitamente claro, a partir desses conselhos aos monges, que Antônio era não apenas um cristão sincero, mas que ele tinha um bom conhecimento do Senhor e da redenção, embora tivesse sido tão completamente desviado por um coração enganado. Nunca estamos seguros a menos que nos movamos sobre as linhas diretas da Palavra de Deus. O sistema que esse homem introduziu em seus falsos sonhos de aperfeiçoamento da carne se tornou, no decorrer do tempo, um canteiro de devassidão e vício. E assim continuou por mais de mil anos. Somente no século XVI a luz divina da abençoada Reforma, lançando luz sobre um cenário de densas trevas morais, revelou a arraigada corrupção e as flagrantes enormidades das diferentes ordens monásticas. Os monges daquele tempo, como enxames de gafanhotos, cobriam toda a Europa; eles proclamavam em todos os lugares, como nos informa a História, a devida obediência à santa mãe igreja, a devida reverência aos santos, e mais especialmente à Virgem Maria, a eficácia das relíquias, os tormentos do purgatório, e as benditas vantagens decorrentes de indulgências. Mas enquanto os monges perdiam sua popularidade e influência na Reforma, uma nova ordem foi necessária para ocupar o seu lugar e fazer sua obra má: e isto foi encontrado na Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola -- os jesuítas. Mas temos de olhar mais uma vez para o inicio da história do monasticismo.

domingo, 11 de setembro de 2016

A Origem e Crescimento do Monasticismo

Antes de abordarmos o período da "igreja de Tiatira", pode ser interessante tomar nota do surgimento e crescimento das primeiras tendências ascéticas. A influência do monasticismo foi, de fato, muito grande durante a idade das trevas, e em todas as igrejas ocidentais. Vamos traçar seu caminho desde sua fonte. É interessante conhecer o início das coisas, especialmente de coisas importantes e influentes.

Durante a violência da perseguição sob Décio, por volta do ano 251, muitos cristãos fugiram ao exílio voluntário. Dentre esses estava um jovem chamado Paulo de Alexandria, que fez sua morada no deserto de Tebas, no Alto Egito. Pouco a pouco ele se tornou ligado ao modo de vida que adotou por necessidade, e é celebrado como o primeiro eremita cristão, embora não tivesse fama ou influência na época: não tanta como seu grande sucessor imediato.

Antônio (ou Antão), que é considerado o pai do monasticismo, nasceu em Cooma, no Alto Egito, por volta do ano 251. Na infância e juventude, conta-se que era de disposição contemplativa, séria e com tendência ao isolamento. Ele pouco se importava com o aprendizado mundano, mas desejava ardentemente o conhecimento das coisas divinas. Antes de alcançar a idade de 19 anos, ele perdeu seus pais, e tomou posse de uma propriedade considerável. Uma dia, na igreja, aconteceu do evangelho referente ao jovem rico ter sido lido perante a assembleia. Antônio considerou as palavras do Salvador como se fossem enviadas do céu para ele. "Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu; vem, e segue-me" (Lucas 18:22). Ele imediatamente doou sua terra aos habitantes de sua aldeia, vendeu o resto de suas propriedades e deu tudo aos pobres, exceto uma pequena porção que ele reservou para o cuidado de sua única irmã. Em outra ocasião ele ficou profundamente impressionado com as palavras do Senhor: "Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã" (Mateus 6:25-34), e tomando essas palavras em sentido literal, despojou-se do resto de suas propriedades e mandou sua irmã a uma sociedade de virgens piedosas para que ela pudesse ser livre de todos os cuidados com coisas terrenas e abraçasse uma vida de rígido asceticismo.

Conta-se que Antônio tenha visitado Paulo, o eremita, e todos os ascéticos mais famosos dos quais tinha ouvido falar, esforçando-se a aprender de cada um suas virtudes distintivas, e a combinar todas as suas graças em sua própria prática. Ele se fechou em uma tumba, onde viveu por dez anos. Por excessivos jejuns, exaustão, e uma imaginação acima do normal, ele imaginava-se atormentado por espíritos malignos, com quem ele tinha muitos e sérios conflitos. Antônio se tornou famoso. Muitos visitavam sua morada fora do comum na esperança de vê-lo, ou de ouvir o barulho de seus conflitos com os poderes das trevas. Mas ele saiu de sua tumba e passou a habitar em um castelo em ruínas perto do Mar Vermelho por outros vinte anos. Ele aumentou suas mortificações visando superar os espíritos malignos, mas as mesmas tentações e conflitos o seguiram.

Estranho como possa parecer, esse marcante e iludido homem tinha um verdadeiro coração para Cristo, e um coração terno para com seu povo. A perseguição sob Máximo (311) o tirou de sua célula para as cenas públicas em Alexandria. Sua aparição causou um grande efeito. Ele se dedicou aos sofredores, exortando-os a manterem inabalável confiança em suas confissões de Cristo, e manifestando grande amor aos confessores nas prisões e nas minas. Ele se expôs, de todas as maneiras, ao perigo, ainda que ninguém se aventurava a tocá-lo. Supunha-se que um tipo de santidade inviolável cercava esse homem misterioso que parecia um fantasma. Quando a fúria da perseguição passou, ele fugiu para um novo lugar de isolamento, ao lado de uma alta montanha. Ali ele cultivou uma pequena porção de terra; multidões se aglomeravam para ouvi-lo; e um grande número o imitava. Os tristes vinham a ele para serem confortados, os perplexos para serem aconselhados, e os inimigos para serem reconciliados. Milagres lhe foram atribuídos, e sua influência não tinha limites.

No ano 352, quando tinha 100 anos de idade, ele apareceu uma segunda vez em Alexandria. Ele o fez para contrariar a propagação do arianismo, e defendeu com toda sua influência a verdadeira fé ortodoxa. Sua aparição produziu uma grande sensação, multidões se aglomeravam para ver o monge -- o homem de Deus, como lhe chamavam -- e ouvi-lo pregar, e muitos pagãos foram convertidos ao cristianismo por meio dele. Antônio e seus monges eram apoiantes firmes e poderosos do credo niceno. Ele viveu até a idade de 105 anos, e morreu apenas alguns dias antes de Atanásio ter encontrado um refúgio entre os monges do deserto, em 356.

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