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domingo, 2 de outubro de 2022

Lutero entra para a Universidade de Erfurt

No ano de 1501, Lutero chegou à Universidade de Erfurt, então a mais ilustre da Alemanha. Ele havia chegado aos dezoito anos e entrou com grande entusiasmo nos estudos da humanidade. "Meu pai", diz Lutero, "me manteve lá com muito amor e fidelidade, e me sustentou com o suor de seu rosto". Um de seus biógrafos, moralizando sobre este registro agradecido do filho, observa: "E certamente todos os volumes da história da humanidade não contêm nenhum registro do trabalho braçal de um pai sendo recompensado por uma colheita tão gloriosa como aquela que surgiu da perseverante indústria do mineiro de Mansfeld. Cada gota que caiu daquela testa foi convertida, por uma providência vigilante, para a promoção de seus propósitos, e tornou-se o meio de fertilizar a mente que havia sido destinada a mudar os princípios predominantes do mundo cristão.”* 

 {*Waddington, vol. 1, pág. 34.} 

Há razões para acreditar que outros pensamentos além do cultivo de seu próprio intelecto estavam exercitando a mente de Lutero nesta época. A intervenção misericordiosa de Deus na bondade da família Cotta, e o que ele viu e aprendeu lá, causou uma impressão profunda e duradoura em sua alma. Ele se opunha fortemente ao estudo de Aristóteles, embora seu sistema tivesse grande reputação na faculdade e fosse representado como a melhor -- ou, melhor dizendo -- a única disciplina, por conta de sua razão. "Se Aristóteles não fosse um homem", costumava dizer, "eu não teria hesitado em considerá-lo um demônio"; tão grande era sua aversão à filosofia do grego erudito. As obras dos grandes escolásticos de épocas anteriores, como Escoto, Tomás de Aquino, Ockham e Boaventura, foram-lhe recomendadas como o único meio de piedade e erudição; mas estes eram pouco melhores que a lógica de Aristóteles se o objetivo fosse satisfazer a necessidade de uma consciência perturbada. No entanto, na sabedoria de Deus, era necessário que ele se familiarizasse com esses escritos para que pudesse ser mais capaz e ter um melhor terreno para expor a total inutilidade deles quanto ao serviço e adoração a Deus. Ele também estudou os melhores autores latinos e, tendo sido abençoado com grande poder de discernimento, perseverança e memória retentiva, fez rápido progresso em seus estudos, e cedo adquiriu a reputação de um especialista e hábil dialético. 

No ano de 1503 obteve seu primeiro grau acadêmico de Bacharel em Artes; e em 1505, obteve o de Doutor em Filosofia. Tendo alcançado considerável proficiência em vários ramos da literatura, ele começou, em obediência aos desejos de seu pai, a voltar sua atenção para o assunto da jurisprudência. Mas o Senhor tinha outra obra para Lutero: a graça já estava operando em seu coração. Naquela época, ele era dado a muita oração; e costumava dizer que "a oração é a melhor metade do estudo" - uma boa máxima para todos os estudantes cristãos.  

domingo, 22 de novembro de 2020

A Captura de Constantinopla

Capítulo 32: A Palavra de Deus Impressa (1397-1516 d.C.)

No ano de 1453, após um cerco fechado de 53 dias, a capital da Cristandade oriental caiu nas mãos dos vitoriosos turcos. O imperador, que tinha o nome do fundador de Constantinopla, demonstrou grande bravura durante o cerco; ele jogou fora sua púrpura e lutou na brecha, até que ele, com os nobres que o cercavam, caiu entre os mortos. Este foi o último dos Constantinos e o último imperador cristão de Constantinopla. A maioria dos habitantes que restaram foi vendida como escravos ou massacrada, e cinco mil famílias turcas foram trazidas para a cidade como colonos. Seguiram-se destruição, violência e palavrões, excedendo em muito nossa capacidade de descrevê-los. A antiga igreja de Santa Sofia foi despojada de todas as valiosas oferendas de séculos, as imagens foram quebradas em pedaços e, depois de ter sido palco de grosseiras profanações, foi transformada em uma mesquita. Os tesouros da erudição grega – que alguns dizem terem chegado a cento e vinte mil livros manuscritos – foram destruídos ou dispersos. A conquista estava completa, e Maomé II imediatamente transferiu a sede de seu governo para Constantinopla.

Mas a ambição ilimitada do feroz otomano estava longe de ser satisfeita: ele contemplava nada menos do que a conquista de toda a Cristandade. E de suas vitórias rápidas e fáceis sobre muitos dos principados cristãos menores no Oriente, pareceria que, se a morte não tivesse livrado o mundo de tal tirano, ele poderia ter seguido seu caminho de conquista através do coração da Europa. Que cidade, que reino, que poder, iria prender o invasor feroz? Toda a Europa estremeceu, especialmente a Itália. Dizem que a morte de Nicolau V foi antecipada pela notícia da captura de Constantinopla. A tristeza e o medo partiram o coração do velho. Mas depois de derrubar impérios, reinos e cidades sem número, Maomé II morreu, aos cinquenta anos, de dores internas, supostamente efeitos de veneno.

As notícias sobre essas pesadas calamidades no Oriente espalharam uma profunda escuridão sobre todo o Ocidente. Mas aquilo que ameaçava deter o progresso da civilização e a propagação do Cristianismo foi sobrepujado por uma Providência sábia e boa para o avanço de ambos de uma maneira maravilhosa. A queda de Constantinopla nas mãos dos infiéis levou muitos gregos eruditos para a Itália, e da Itália para muitos outros países da Europa. Aconteceu, justamente nessa época, que o papa reinante, Nicolau V, se distinguiu por seu amor pela literatura, o que ele muito promoveu por sua posição e riqueza. Os refugiados trouxeram os livros que conseguiram resgatar das ruínas de seu império caído. O estudo do grego foi revivido por esses meios e se tornou extremamente popular. Entre esses alunos, aprouve a Deus suscitar homens de mente altamente cultivada e coração devoto, que muito fizeram no preparo do caminho para a grande Reforma.

domingo, 4 de outubro de 2020

A Inglaterra e o Papado

A submissão do rei João a Inocêncio III foi o ponto de virada na história do papado na Inglaterra. Na humilhação do soberano, toda a nação se sentiu degradada. Inocêncio foi longe demais, foi um abuso de poder presumido, mas que se voltou contra si mesmo em seu devido tempo. A Inglaterra jamais poderia esquecer tamanha prostração abjeta de seu rei aos pés de um sacerdote estrangeiro. A partir daquele momento, um espírito de descontentamento com Roma cresceu na mente do povo inglês. As usurpações, as reivindicações exorbitantes do papado, sua interferência na disposição dos bispados ingleses, frequentemente colocando o governo e a igreja em colisão e ampliando a brecha. Mas exatamente quando a paciência dos homens estava quase exaurida pelas muitas queixas práticas contra o papado, foi do agrado de Deus levantar um poderoso adversário para todo o sistema hierárquico -- o primeiro homem que abalou o domínio papal na Inglaterra desde sua fundação, e além disso um homem que amava sinceramente a verdade e pregava-a tanto aos eruditos como às classes mais baixas. Este homem era John Wycliffe, justamente denominado o precursor, ou Estrela da Manhã, da Reforma.

A parte inicial da vida de Wycliffe é envolvida em muita obscuridade; mas a opinião geral é de que tenha nascido de uma linhagem humilde nas redondezas de Richmond, em Yorkshire, por volta do ano de 1324. Seu destino era o de se tornar um estudioso, o que, como somos informados, até os mais humildes daqueles dias podiam aspirar. A Inglaterra era praticamente uma terra de escolas; cada catedral, e praticamente cada mosteiro, tinha a sua; mas jovens com mais ambição, autoconfiança, suposta capacidade e melhores oportunidades aglomeravam-se em Oxford e Cambridge. Na Inglaterra, assim como em toda a cristandade, aquela maravilhosa corrida de uma vasta parte da população em direção ao conhecimento lotou as universidades com milhares de alunos.*

{* Milman, vol. 6, pág. 100.}

John Wycliffe encontrou seu caminho para Oxford. Ele foi admitido como aluno do Queen's College, mas logo foi transferido para o Merton College, a mais antiga, a mais rica e a mais famosa das fundações de Oxford. Supõe-se que ele teve o privilégio de assistir às palestras do muito piedoso e profundo Thomas Bradwardine, e que de suas obras ele derivou suas primeiras visões da liberdade da graça e da absoluta inutilidade de todo mérito humano, no que diz respeito à salvação. Dos escritos de Grosseteste, ele captou pela primeira vez a ideia de que o papa era um anticristo.

Wycliffe, de acordo com seus biógrafos, logo se tornou mestre nas leis civil, canônica e municipal; mas seus maiores esforços foram voltados para o estudo da teologia, não como meramente era aquela arte estéril que era ensinada nas escolas, mas como aquela ciência divina que é derivada do espírito, bem como da letra das Escrituras. No processo de tais investigações, ele teve numerosas e formidáveis ​​dificuldades contra as quais lutar. Foi um estudo que a Igreja não aprovou e não previu. O texto sagrado era então negligenciado, os escolásticos ocupavam o lugar da autoridade das Escrituras; a língua original do Novo, assim como do Antigo Testamento, era quase desconhecida no reino. Mas, apesar de todas essas desvantagens e desencorajamentos, Wycliffe seguiu seu caminho com grande perseverança. "Sua lógica", diz alguém, "sua sutileza escolástica, sua arte retórica, seu poder de ler as escrituras latinas, sua erudição variada, podem ser devidos a Oxford; mas o vigor e a energia de seu gênio, a força de sua linguagem, seu domínio sobre o inglês vernáculo, a alta supremacia que ele reivindicou para as Escrituras, que por imenso trabalho ele publicou na língua vulgar – isto vinha dele próprio, estas coisas não podiam ser aprendidas em nenhuma escola, e nem alcançadas por nenhum dos cursos ordinários de estudo. "*

{* Latin Christianity, vol. 6, pág. 103.}

domingo, 27 de setembro de 2020

Reflexões Sobre os Escolásticos

É o bastante – sim, dizemos o bastante – sobre os doutores escolásticos e os filósofos em divindade para o nosso propósito atual. Percorrer vários e selecionar alguns como espécimes genuínos é um trabalho árido e cansativo. Mas eles constituem um certo elo na cadeia de eventos entre os séculos XII e XVI que tem sua importância; e o leitor verá o que significa o termo geral de "os escolásticos" nesse período de nossa história. Uma lição salutar que podemos aprender, pelo menos com os exemplos que temos diante de nós, é sobre a total escuridão e perplexidade da mente, por maior que seja o aprendizado e estudo, quando a Palavra de Deus, em sua divina simplicidade, não é conhecida nem crida. Um único texto, tal como "O justo viverá pela fé", quando usado por Deus nas mãos de Lutero, foi suficiente para limpar as trevas da Idade Média, enquanto os dezessete volumes in-fólio de Tomás de Aquino e todos os outros volumes de todos os grandes escolásticos apenas aprofundaram a escuridão da ignorância e perplexidade quanto ao conhecimento de Deus e o caminho da salvação. O maior desenvolvimento das faculdades naturais da mente humana não conduz nenhum pecador culpado à cruz de Cristo – ao precioso sangue que, somente ele, purifica de todo pecado. O inimigo das almas, aproveitando a crescente fama da filosofia aristotélica, seduziu os melhores dentre os doutores a acreditarem que a obra mais importante em que poderiam se dedicar era a reconciliação do ensino de Cristo com os decretos do filósofo grego, de forma que os estudiosos não pensassem mais deste último do que do primeiro. Tal era o trabalho miserável dos melhores escolásticos da época; mas sem dúvida muitas das mentes mais simples, que não foram cegadas pelas sutilezas da lógica, encontraram o caminho da verdade e da salvação em meio às trevas, embora muito perplexas e desnorteadas.

A igreja de Cristo mal era visível na Europa nessa época, com exceção das igrejas dos vales; ali a verdadeira luz continuou a arder, e milhares encontraram "o caminho mais excelente", apesar de toda a união dos poderes da Terra, tanto seculares como eclesiásticos, para extingui-la. Mas ali estava o verdadeiro edifício de Deus, e as portas do inferno nunca poderiam prevalecer contra as obras de Suas mãos. Agora nos voltamos para renovar nosso conhecimento sobre os valdenses e outros protestantes daquela época.

As Primeiras Grandes Escolas de Erudição

O surgimento de escolas públicas ou academias no século XII e o aumento da atividade intelectual, sem dúvida, contribuíram muito para o enfraquecimento do papado e da aristocracia feudal. Isso abriu caminho para o surgimento e o estabelecimento do terceiro estado no reino -- as classes médias -- e para o empreendimento comercial. O iluminismo e as liberdades da Europa avançaram continuamente a partir desse período. Escolas foram erguidas em quase todos os lugares, a sede de conhecimento aumentou. "Os reis e príncipes da Europa, vendo as vantagens que uma nação pode tirar do cultivo da literatura e das artes úteis, convidaram homens eruditos para seus territórios, estimularam o gosto pela informação e recompensaram-nos com honras e emolumentos." Mas com tal aumento da atividade mental, muitas doutrinas e opiniões loucas e perigosas foram ensinadas. A teologia escolástica, a filosofia aristotélica e o direito civil e sagrado tiveram seu lugar e reputação. Foi por volta dessa época, meados do século XII, que as grandes universidades de Oxford, Cambridge e Paris foram fundadas, além de muitas outras no continente. Grego e hebraico foram estudados e palestras dadas na forma de exposições e comentários sobre as Sagradas Escrituras, que o Senhor poderia usar para abençoar os estudantes e, por meio deles, a outros.

“Para impor alguma restrição”, diz Waddington, “a essa grande licenciosidade intelectual -- para reavivar algum respeito pelas autoridades antigas -- para erguer alguma barreira, ou pelo menos algum marco, para a orientação de seus contemporâneos, Pedro Lombardo publicou seu célebre ‘Livro das Sentenças’”. Tendo estudado por algum tempo na famosa escola de Bolonha, ele seguiu para Paris com o propósito de prosseguir seus estudos em divindade. O Livro das Sentenças é uma coleção de passagens dos Pais apostólicos, especialmente de Santo Hilário, Santo Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho -- uma triste mistura, sem dúvida, de verdade e erro; mas o Senhor estava acima de tudo e poderia usar sua própria Palavra, embora misturada com sutilezas da moda, para a conversão e bênção das almas. Por muito tempo, isso manteve uma indiscutível supremacia nas escolas de teologia, e seu autor foi elevado a grandes honras.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Inocêncio e os Reis da Terra

As diferentes características da Babilônia que o Espírito de Deus nos mostrou tão distintamente nesses capítulos (Apocalipse 17 e 18), e que são tão odiadas por Ele, encontraremos muito plenamente demonstradas na história desse pontífice. Mas é necessário que nós,  tanto o leitor quanto o escritor deste livro, vigiemos contra o espírito da Babilônia que se insinua para nossos próprios corações. Não devemos supôr que ela esteja confinada somente ao papado, embora lá ela esteja publicamente entronizada e será publicamente tratada em juízo. A menos que estejamos reunidos em torno do Jesus rejeitado, e andando com Ele na comunhão de Seus sofrimentos e na esperança de Suas glórias, corremos o risco de sermos pegos na armadilha. Homens, homens cristãos, frequentemente conectam o prazer presente de prosperidade e o prazer no mundo ao nome e à sanção de Cristo. Esse é a própria essência da Babilônia -- a mistura profana de Cristo e do mundo, do celestial e do terreno. Aquele que professa fé em um Cristo rejeitado, e que ao mesmo tempo tem seu coração no mundo que O rejeitou, está profundamente imbuído do espírito de Babilônia. É como alguém que verdadeiramente se apega ao Príncipe do céu, e continua dando ouvidos às lisonjas e aceitando os favores do príncipe deste mundo. E não vemos, infelizmente, em todo o lugar, a indulgência de desejos mundanos na profissão do nome do Senhor? Esta é a inconsistência, a confusão, que é tão ofensiva a Deus, e que Ele julgará de maneira tão terrível. Que o Senhor possa nos guardar de buscar misturar a cruz e a glória celestial de Cristo com este presente mundo mau.

O espírito do papado é todo voltado a este mundo, com as mais elevadas pretensões de ser todo para Cristo. "Eu me sento como uma rainha", diz ela, "e não sou viúva, e não verei tristeza". O domínio sempre foi seu único desejo -- domínio sobre a Igreja e o Estado, sobre o mar e a terra, sobre as almas e corpos dos homens, com poder para abrir e fechar os portões do céu e do inferno ao seu bel-prazer. Assim pensava Inocêncio, e assim agiu ele como veremos a seguir.

Lotário de Conti era o nome original de Inocêncio. Ele era da casa dos Condes de Segni, uma das grandes famílias romanas. Sob a instrução de seus dois tios, os cardeais de São Sérgio e São Paulo, as grandes habilidades naturais de Lotário lhe tornaram promissor quanto ao tipo de distinção que seus amigos e parentes tanto desejavam. Mais tarde, ele adquiriu grande fama por sua erudição nas escolas de Roma, de Bolonha e de Paris, mas a lei canônica era seu tema de estudo favorito. Na morte de Celestino III, ele foi devidamente eleito para a cadeira de São Pedro, e consagrado em 22 de fevereiro de 1198, com a tenra idade de trinta e sete anos. Os cardeais o saudaram pelo nome de Inocêncio em testemunho a sua vida "irrepreensível".

domingo, 10 de junho de 2018

O Alvorecer da Luz na Idade das Trevas

Durante a última parte do século XI, encontramos nomes famosos como Lanfranco, Anselmo e Berengário. Um novo impulso foi dado à atividade intelectual pelo trabalho desses e de outros professores eminentes. Foi por volta dessa época que as velhas escolas catedráticas se desenvolveram em seminários de aprendizagem geral, e estes se tornaram os ancestrais de nossas universidades modernas. Essa atividade intelectual, após um longo período de apatia, tornou-se extremamente atrativa, de modo que milhares se aglomeravam para assistirem às aulas, e, como homens há muito tempo privados da árvore do conhecimento, abraçaram com entusiasmo o que ouviam. No fundo, foi uma reação contra a autoridade dogmática da igreja, pois ensinava aos homens que, a partir daí, era possível raciocinar e inquirir.

Pedro Abelardo foi o mais audacioso, e de longe o mais popular de todos os professores sobre dialética -- que declarava ser a ciência ou a arte de discriminar a verdade do erro pela razão humana. Esse notável homem nasceu em 1079, perto de Nantes, na região francesa da Bretanha. Seu pai, Berengário, foi senhor do castelo de Le Pallet, e embora Pedro fosse seu filho mais velho, desde cedo preferia "os conflitos de disputas de argumentos aos troféus dos exércitos", e assim, renunciando à herança familiar de seus irmãos, entregou-se à vida acadêmica. Foi primeiro aluno de Roscelino, e depois de Guilherme, arquidiácono de Paris, e também de Anselmo, professor de teologia de Lauduno. Mas não precisamos entrar em detalhes sobre a longa e extraordinária história desse homem. É uma história de vitórias, crimes e infortúnios. Ele foi, ao mesmo tempo, o representante e a vítima da teologia escolástica que pôs em perigo o poder e a constituição da igreja romana. Ele foi o primeiro exemplo de um homem que professava a ciência da teologia e que não era um padre. Por onde ia, milhares de acadêmicos entusiastas lhe rodeavam. "Multidões", diz o biógrafo de Bernardo, "somando milhares, cruzavam altas montanhas e amplos mares, e suportavam todo tipo de inconveniência da vida, para desfrutar do privilégio de ouvir as aulas de Abelardo". "Sua eloquência", disse outro, "era tão fascinante que o ouvinte se encontrava irresistivelmente levado pela correnteza; e se um oponente fosse forte o suficiente para se levantar contra ele, a agudeza de sua lógica era tão infalível quanto a torrente de sua oratória, e em todos os combates levava o prêmio"*.

{*Life and Times of Bernard, Morrison, p. 290; Eighteen Christian Centuries, White, p. 266.}

Abelardo escreveu, assim como lecionou, sobre muitos assuntos importantes; mas ele não era sábio no que diz respeito às doutrinas fundamentais do cristianismo. E mesmo assim, em toda Europa, nenhum campeão da verdade e ortodoxia podia ser encontrado para enfrentar em combate esse gigante herético. Bernardo de Claraval, com o tempo, recebeu inúmeros apelos. Uma carta de Guilherme, abade de São Teodorico, tirou-o de seu claustro. O santo e o erudito em lógica se encontraram em Sens, em 1140. O rei da França estava presente, com um grande número de bispos e eclesiásticos. Abelardo estava cercado de seus discípulos, e Bernardo com dois ou três monges. Um se dirigiu a razão de poucos, e o outro inflamou os corações e paixões de todas as classes. Um foi apoiado por seus admiradores, e o outro por adoradores. Um tinha sido denunciado como herege, e o outro tinha a reputação de ser o homem mais santo de sua época, acima de reis, clérigos, e até mesmo do papa. Sob tais circunstâncias, Abelardo não tinha chances. Ele logo sentiu o poder que estava contra ele, e, antes que as passagens incriminadas fossem todas lidas, ele ergueu-se e disse, para o espanto de todos os presentes: "Eu me recuso a ouvir mais, ou a responder a qualquer pergunta; eu apelo a Roma"; e deixou a assembleia.

Alguns dizem, em explicação para essa conduta inesperada, que as fileiras de rostos hostis que ele viu diante dele, não apenas apagaram seu entusiasmo, como também fizeram com que ele sentisse que sua vida estava em perigo. Ouvindo que um relatório do concílio tinha chegado em Roma, e que tinha sido condenado pelo papa, ele, em sua angústia, pediu socorro ao "venerável" Pedro de Cluny, que, por pena de seus infortúnios, ofereceu-lhe asilo em seu mosteiro, embora fosse oposto a suas doutrinas.

Podemos apenas observar, de passagem, que a bem conhecida história dos sofrimentos de sua bela Eloísa deu origem a uma nova ideia sobre o lugar da mulher na sociedade, sem a qual nenhuma civilização verdadeira poderia ter acontecido. Até esse período, a igreja olhara declaradamente com desdém para a mulher, pois ela tinha sido a primeira a cair em transgressão. Mas a tocante história dos infortúnios de Eloísa levou à elevação da mulher ao seu devido lugar no círculo social.

Abelardo, caído e de coração partido, após passar cerca de dois anos nas solidões de Cluny, recebendo muita bondade de seu caridoso abade, e satisfazendo seus juízes eclesiásticos com a humildade de seu arrependimento, encerrou sua agitada vida no ano de 1142. Seus princípios viveram em muitos de seus discípulos, e um deles merece uma atenção especial.

domingo, 3 de junho de 2018

Bernardo e Abelardo

Antes da morte de Inocêncio, Bernardo foi chamado para longe de seu pacífico retiro em Claraval para fazer guerra contra um novo inimigo da igreja: Pedro Abelardo. Esse novo conflito surgiu dos movimentos intelectuais da época, e marca uma época distinta da história da igreja, da literatura e da liberdade espiritual e civil. Vamos atentar brevemente para o que levou a isso.

A maioria de nossos leitores estão cientes de que a erudição que tinha sido acumulada nas línguas latina e grega foram quase inteiramente destruídas pelos bárbaros no século V. O que é conhecida como literatura antiga foi quase completamente perdida quando as nações bárbaras se estabeleceram nas ruínas do império romano. Por completos quinhentos anos, a grosseira ignorância prevaleceu. Qualquer conhecimento que restava foi confinado aos eclesiásticos; e eles, durante esse período, eram proibidos de estudar ou copiar a erudição secular. Não obstante, alguns dos monges, especialmente os da ordem beneditina, coletaram e copiaram manuscritos antigos; e, como diz Hallam: "Nunca deve ser esquecido que, se não fosse por eles, os registros dessa literatura teriam perecido. Não podemos afirmar que, se eles tivessem sido menos tenazes em sua liturgia latina, na tradução Vulgata das Escrituras, e na autoridade dos pais da igreja, menos superstição teria crescido; mas não podemos hesitar em pronunciar que toda a erudição gramatical teria sido deixada de lado. Mas entre eles, embora os exemplos de grosseira ignorância fossem excessivamente frequentes, havia a necessidade de preservar a língua latina, na qual tinham sido escritas as Escrituras, os cânons e as outras autoridades da igreja, assim como as liturgias regulares, e em cuja língua deveriam ser escritas as correspondências dentro da hierarquia clerical. Essa atividade continuou fluindo, mesmo nas piores estações, como um fluxo fino, mas vivo."*

{* Literature of Europe in the Middle Ages, vol. 1, p. 4.}

Dentre esses monges devia haver toda variedade de mentes: algumas, sem dúvida, grosseiras, lentas e mecânicas; outras, refinadas, ativas, questionadoras, que não se deixavam confinar dentro das barreiras da doutrina católica estabelecida, nem se submetia ao poder da ordem sacerdotal. Assim foi; assim provou-se ser. O reformador, o protestante, surgiu da ordem monástica. Houve muitos Luteros prematuros. Em cada insurreição, conta-se, seja religiosa ou mais filosófica, contra o sistema dogmático dominante, um monge foi o líder, e tinha havido três ou quatro dessas inssurreições antes do tempo de Abelardo. Godescalco, no século IX, foi flagelado e aprisionado por sua teimosa confiança no que era chamado de predestinacionismo. João Escoto Erígena, um monge mais erudito da Irlanda ou das ilhas escocesas, foi convidado por Hincmaro, arcebispo de Reims, a se opôr a Godescalco; mas ele não alarmou menos a igreja do que seu antagonista, ao apelar para um novo poder acima da autoridade católica: a razão humana. Ele era um poderoso racionalista, mas especulava em grande parte na teologia escolástica. Sob a censura da igreja, ele fugiu para a Inglaterra, e encontrou um refúgio, conta-se, na nova universidade de Oxford fundada pelo rei Alfredo.

domingo, 4 de junho de 2017

O Aprendizado dos Árabes Importado para a Cristandade

O papa Silvestre II, que ocupava a cadeira de São Pedro quando nasceu a primeira manhã do século XI sobre a Europa, formou o elo entre a sabedoria e erudição dos árabes e a ignorância e credulidade dos romanos. Ele tinha estudado nas escolas muçulmanas na cidade real de Córdova, onde tinha adquirido muito conhecimento útil quanto a esta vida, os quais ele começou a ensinar e praticar em Roma. Mas tal era a sombria superstição do povo em geral que eles atribuíram suas grandes conquistas às artes mágicas, e acreditavam que tais poderes podiam apenas ser possuídos através de um pacto com o maligno. Por eras após o papa Silvestre ele foi lembrado com horror, como se o trono de São Pedro tivesse sido ocupado por um necromante. Mas à medida que o tempo passou e as trevas do século X ficavam cada vez mais para trás, ergueu-se uma raça de homens que eram distintos, não apenas por grandes realizações filosóficas, mas também pelo estudo das Sagradas Escrituras e pela devoção  ao progresso do cristianismo. Pessoas aprendendo a ler e a buscar o significado das palavras, naquele tempo, especialmente em conexão com os escritos sagrados, foram bênçãos para a humanidade. A superioridade do século XI sobre o século X deve ser atribuída principalmente às melhorias e avanços no aprendizado, como um meio nas mãos do Senhor para a bênção do povo.

Mas devemos nos ocupar com mais algumas palavras sobre Silvestre. Seria injusto deixar um homem tão importante e tão bom sob a escura sombra dos preconceitos do povo. Ele é mencionado pela história esclarecida e imparcial como o mais eminente prelado de sua época. Seu nome próprio era Gerbert. "De erudição sem igual, e de piedade irrepreensível, foi Gerbert de Ravena", diz Milman. Ele foi tutor, guia e amigo de Roberto, o filho e sucessor do rei Hugo Capeto, que, por uma grande mas silente revolução, foi levado ao trono da imbecil raça de Carlos Magno no ano 987. O pupilo real parece ter tirado proveito das instruções de Gerbert. Ele subiu ao trono da França por volta do ano 996, e reinou até o ano 1031. Ele foi um grande amigo do aprendizado e da erudição, morreu em lamentos e foi apelidado de "o Sábio". Em 998 Gerbert foi apontado como papa por Oto III, Imperador da Alemanha, quando tomou o nome de Silvestre II. Ele morreu em 22 de maio de 1003.

domingo, 28 de maio de 2017

O Reavivamento das Letras pelos Árabes

Encontramo-nos agora com um fenômeno um tanto curioso e inesperado na história da literatura durante essa Idade das Trevas, e embora possa não dizer respeito propriamente à linha de nossa história da igreja, é interessante e importante demais para ser ignorado. Os professos mestres da Cristandade estavam, nessa época, como é bem conhecido, mergulhados nas profundezas da ignorância. Mas descobrimos que os sarracenos tinham se levantado para ser os estudantes e os mestres da literatura nacional da Grécia. E este era o marcante estado das coisas no início do século XI.

Já vimos que no século VII os companheiros e sucessores de Maomé desolaram a face da terra com seus exércitos, e a obscureceu pela sua ignorância e pelos atos de barbárie atribuídas a eles -- tais como o incêndio da biblioteca de Alexandria, o que atestava seu desprezo pelo aprendizado, e a aversão pelos monumentos que destruíam. No século VIII eles parecem ter se estabelecido nos países que subjugaram e, com as vantagens de um clima mais agradável e um solo mais rico, começaram a estudar as ciências e os conhecimentos úteis. "No século IX", diz o decano Waddington, "sob o favor de um sábio e magnânimo califa, eles aplicaram o mesmo ardor pela busca de literatura que tinham até então pelos exércitos e armas. Amplas escolas foram fundadas nas principais cidades da Ásia, Bagdá, e Cufa, e Bassora; numerosas bibliotecas foram formadas com cuidado e diligência, e homens de erudição e ciência foram solicitamente convidados para a esplêndida corte de Almamunis. A Grécia, que tinha civilizado a república romana, e estava destinada, em eras posteriores, a iluminar as extremidades do Ocidente, foi então chamada a tornar o fluxo de seu conhecimento em direção ao seio estéril da Ásia; pois a Grécia ainda era a única terra que possuía uma literatura original. Suas produções mais nobres foram então traduzidas para a língua dominante do Oriente, e os árabes tiveram prazer em perseguir as especulações, ou a se submeter às regras, de sua filosofia.

"O impulso assim dado ao gênio e indústria da Ásia foi comunicado com inconcebível rapidez ao longo das margens do Egito e da África até as escolas de Sevilha e Córdova; e o choque não foi menos sentido por aqueles que o receberam por último. Dali em diante o gênio da erudição acompanhava até mesmo os exércitos dos sarracenos. Eles conquistaram a Sicília; desde a Sicília invadiram as províncias ao sul da Itália e, como que para completar a excêntrica revolução da literatura grega, a sabedoria de Pitágoras foi restaurada na terra de sua origem pelos descendentes dos guerreiros árabes."*

{* História, de Waddington, vol. 2, p. 44}

O Reavivamento da Literatura

O início do século XI não foi apenas famoso pela difusão de grande habilidade arquitetônica, mas também de energias renovadas da mente humana nos vários departamentos da aprendizagem. A longa, aborrecida e inquestionável crença de eras seria então perturbada por uma investigação livre e saudável.

A energia intelectual da Europa, dizem, esteve em condição de decadência gradual desde o século V até metade do século VIII, e embora a condição das ilhas britânicas e os trabalhos do venerável Beda possam parecer fornecer alguma exceção à regra geral, foi nesses tempos que a ignorância alcançou seus limites mais amplos e obscuros. Bede, como podemos observar de passagem, é referenciado como o homem que mais eminentemente merecia ser chamado de professor da Inglaterra. Ele nasceu no ano 673, na vila de Jarrow, na Nortúmbria; ele foi um monge e um padre, mas um homem muito devoto, laborioso e piedoso: a instrução aos jovens foi um dos grandes objetivos de sua vida, no qual perseverou até suas últimas horas: ele morreu em meio aos seus amados acadêmicos, em 26 de maio de 735.*

{* Neander, vol. 5, p. 197.}

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