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domingo, 22 de novembro de 2020

Os Precursores Imediatos de Lutero

Rastreamos com algum cuidado a cadeia de testemunhas desde o primeiro período da história da Igreja até o início do século XVI. Falta-nos apenas tomar nota de alguns nomes que conectam a linha nobre de testemunhas com o nome e testemunho do grande reformador. Não há elo perdido na corrente divina. Destes, os mais notáveis ​​foram Jerônimo Savonarola, João de Wessália e Wessel Gansfort. 

Jerônimo Savonarola, descendente de ilustre família, nasceu em 1452, em Ferrara. Na infância, ele foi alvo de profundos sentimentos religiosos e, supondo que tivesse sido favorecido com visões celestiais quanto à sua missão, retirou-se do mundo e entrou na ordem dominicana aos 21 anos. Ele se dedicou ao estudo das Sagradas Escrituras, com orações, jejuns e mortificações contínuas. Ele parece ter estado muito interessado nas escrituras proféticas, especialmente em partes como o Apocalipse, que ele gostava de expor, e afirmava com segurança que os julgamentos ameaçadores estavam próximos. Tendo passado sete anos no convento dominicano de Bolonha, foi removido por seus superiores para a Basílica de São Marcos em Florença. Depois de alguns anos, ele foi eleito prior, quando introduziu uma reforma completa e um retorno à simplicidade anterior de comida e vestuário. 

Savonarola era incomparável em seu poder como pregador; mas, como muitos outros naquela época, ele combinou o caráter do político com o do pregador. Reforma era seu único tema -- reforma e arrependimento ele proclamava com a voz de um profeta. Reforma na disciplina da igreja, no luxo e no mundanismo do sacerdócio e na moral de toda a comunidade. Os italianos sendo particularmente sensíveis a todos os apelos e respeitando seus direitos como cidadãos, logo lotaram em multidões a vasta catedral de Florença e ansiosamente se agarraram a suas palavras. Sua pregação assumiu a forma de profecia, ou de alguém autorizado a falar em nome de Deus, embora não pareça que suas predições foram mais do que o resultado de uma firme convicção no governo de Deus e no cumprimento da profecia de acordo com os princípios revelados nas Sagradas Escrituras. Mas, embora estivesse mais ou menos envolvido com as facções políticas da Itália, ele era um cristão fervoroso e um verdadeiro reformador. Ele denunciou implacavelmente a usurpação de Lourenço de Médici, o despotismo da aristocracia e os pecados dos prelados e do clero, sobre os quais lamentava a fria indiferença às coisas espirituais que marcavam o caráter da época. "A igreja já teve", disse ele, "seus sacerdotes de ouro e cálices de madeira; mas agora os cálices eram de ouro e os sacerdotes de madeira -- que o esplendor externo da religião havia prejudicado a espiritualidade." Tão irresistível era sua eloquência que compartilhava de um caráter profético, como se fosse o mensageiro de um Deus ofendido, cuja vingança já estava iminente sobre a Itália, que as multidões acreditaram em sua missão celestial. O povo ficou tão controlado por seus apelos que o efeito moral de suas advertências foi rapidamente perceptível em toda a cidade. "Pela modéstia de seu vestido", diz Sismondi, "seu discurso, seu semblante, os florentinos deram provas de que haviam abraçado a reforma de Savonarola." 

Mas seu curso foi vigiado com o olhar maligno de Jezabel. Uma testemunha destemida não era digna de viver, especialmente na Itália. A luz deve ser apagada; mas como consegui-lo era a dificuldade, pois muitos cidadãos estavam prontos para passar pelas chamas como substitutos de Savonarola. A igreja de Roma, apoiada pelos partidários dos Médici, dedicou-se a esta obra diabólica. Como de costume, seus planos foram baseados em traição e terminaram em perseguição. O enganador Alexandre VI convidou Savonarola em linguagem cortês para visitá-lo em Roma para que pudesse conversar com ele sobre o assunto de seus dons proféticos. Mas ele sabia que o papa não era confiável, apesar de suas palavras lisonjeiras, e se recusou a obedecer. Em seguida, ele propôs elevá-lo ao cardinalato na esperança de colocá-lo sob seu poder; mas Savonarola declarou indignado do púlpito que não teria outro chapéu vermelho senão um tingido com o sangue do martírio. A máscara foi então jogada fora; lisonjas foram trocadas por ameaças e excomunhões. Ele foi denunciado como "semeador de falsa doutrina". Sua destruição foi determinada. Os franciscanos, já com ciúmes da grande fama de um dominicano, entraram na conspiração. Um relato de suas tramas não seria interessante para o leitor, mas eles conseguiram distrair o povo e realizar a queda de seu rival. 

No ano de 1498, Savonarola e seus dois amigos, Domingos e Silvestre, foram apreendidos, presos e torturados. O sistema nervoso do grande pregador, tanto por seus labores como por seus exercícios ascéticos, havia se tornado tão sensível que ele era incapaz de suportar as agonias que lhe eram infligidas. "Quando estou sendo torturado", disse ele, "eu me perco, fico louco: só é verdade o que digo sem tortura." Nesse ínterim, dois legados chegaram de Roma com a sentença de condenação de Alexandre; os prisioneiros foram levados no dia seguinte ao local do senhorio e, após a habitual cerimônia de degradação, foram primeiro enforcados e depois queimados. Suas cinzas foram cuidadosamente recolhidas pelos franciscanos e lançadas no Arno; ainda assim, as relíquias de Savonarola foram preservadas com veneração entre seus muitos amigos e seguidores.

domingo, 1 de novembro de 2020

Reflexões sobre o Caráter do Concílio

O leitor não pode deixar de julgar os princípios que governam os católicos romanos em seu tratamento para com os protestantes, ou assim chamados hereges, tendo o Concílio de Constança diante de si. O caráter de Jezabel nunca muda: como era antes, é hoje e sempre será. A única questão é a oportunidade de sua exibição. E devemos ter em mente que a queima daqueles dois veneráveis ​​arautos da Reforma não foi sob um édito papal, ou um decreto da corte de Roma, mas por um concílio eclesiástico representando toda a igreja de Roma -- na verdade, todos os poderes do mundo romano, tanto civil como eclesiástico. 

O total desprezo pela retratação do enfraquecido Jerônimo e a violação descarada do salvo-conduto do imperador para com Hus são igualmente iníquos e pérfidos. Que confiança pode ser colocada na palavra, na promessa ou no juramento mais sagrado, mesmo de uma cabeça mitrada, mantendo tais princípios? Devemos deixar o leitor julgar por si mesmo; mas que linguagem poderia expressar adequadamente o caráter covarde e traidor de tais princípios e ações? Verdade, retidão, honra, justiça, humanidade, todos são sacrificados publicamente no altar do domínio eclesiástico. 

A heresia de Hus e Jerônimo nunca foi claramente definida. Eles parecem ter conservado até o fim suas primeiras impressões sobre a transubstanciação, a adoração aos santos e à Virgem Maria. Eles testemunharam contra o poder do clero, que por tanto tempo governou e escravizou as mentes dos homens, e expuseram sua avareza e corrupção. Com esses apelos públicos, eles atingiram os próprios alicerces de todo o sistema papal, pelo qual também foram honrados com a coroa do martírio. Mas Deus, que está acima de tudo, estava também acima desses eventos para a propagação do evangelho há muito oculto, e para o amadurecimento da Europa para as mudanças que se aproximavam em quase todas as relações da Igreja e do Estado que foram realizadas no século XVI. Devemos agora olhar por um momento para os efeitos terríveis dos decretos deste concílio geral.

domingo, 13 de setembro de 2020

Reflexões sobre a História do Papado

Traçamos, embora brevemente, a origem, o progresso e a altura mais elevada que alcançou o sistema papal. Isso foi alcançado pelas grandes habilidades de Inocêncio III. Mas quão variada e repleta de contrariedades e contradições é essa história pitoresca e misteriosa! Façamos uma pausa por um momento para refletir sobre as hipocrisias e tiranias, a presumida piedade e a crueldade daquela mulher Jezabel. Foi ela quem enviou os mais devotos de seus filhos nos primeiros tempos para habitar nas solitárias cavernas das montanhas ou no claustro secreto, sob o pretexto de ali contemplarem pacificamente a glória de Deus e serem transformados à Sua imagem. Mas novamente a ouvimos com voz alterada reunindo as miríades de hostes da Europa para sair e resgatar a Terra Santa das garras infames dos filisteus incircuncisos, e defender a bandeira da cruz no santo sepulcro. Ela se torna então insensível aos sentimentos comuns da natureza, insensível às misérias da humanidade e manchada com o sangue de milhões. Durante duzentos anos, ela empregou todo o seu poder na promoção da destruição da vida humana pelas ruinosas expedições à Terra Santa. E como cada Cruzada sucessiva se mostrava mais desesperadora e desastrosa do que a anterior, ela redobrava seus esforços para renovar e perpetuar aquelas cenas de insensatez, sofrimento e derramamento de sangue inigualáveis.

Mas volte-se novamente e veja o duplo aspecto de seu caráter ao mesmo tempo. Quando os cruzados avistaram Jerusalém, eles desceram dos cavalos e descobriram os pés para que pudessem se aproximar das paredes sagradas como verdadeiros peregrinos. Gritos altos foram levantados: “Ó Jerusalém! Jerusalém!”, como se um temor sagrado movesse seus corações. Mas quando o governador se ofereceu para admiti-los como peregrinos pacíficos, eles recusaram. Não, eles estavam decididos a abrir o caminho com suas espadas e arrancar, por meio do ardor militar, a cidade sagrada das mãos dos incrédulos. Mal haviam escalado as paredes e se precipitaram para o massacre indiscriminado de muçulmanos e judeus, enchendo de sangue os lugares sagrados. E então, por um breve momento, a obra de carnificina e pilhagem foi suspensa, para que os peregrinos devotos pudessem realizar suas devoções; mas os lugares onde eles se ajoelhavam em adoração estavam cobertos de montes massacrados. Esta é uma verdadeira imagem do espírito e caráter de Jezabel, manifestado em todas as eras e países. Quando o próprio Domingos ficou com vergonha dos missionários ensanguentados de Inocêncio em Languedoque, tendo visto milhares de camponeses pacíficos assassinados a sangue frio, ele se retirou para uma igreja e orou pelo sucesso da boa causa, e assim as vitórias de Monforte e seus rufiões foram atribuídas às orações do espanhol de “mente santa”. Esta foi uma cruzada, não contra turcos e infiéis, mas contra os santos do Senhor porque eles ousaram falar de certos abusos na “santa mãe igreja”. E, para castigar com mais eficácia seus filhos, ela inventou a Inquisição, esse aparato de perseguição doméstica, tortura e morte.

E, por mais estranho que possa parecer hoje em dia, e cruel além de qualquer comparação, a destruição em massa da vida e da propriedade humana era a própria energia vital do papado. Ela enriqueceu apropriando-se das contribuições levantadas para o propósito das Cruzadas; e ela se fortaleceu enfraquecendo os monarcas da Europa, exaurindo seus tesouros e despovoando seus países. Assim foi o zelo papal inflamado a uma paixão ardente pelos cruzados e assim passou de Urbano II e do Concílio de Clermont até seus sucessores. Cada pensamento da mente papal, cada sentimento do coração papal, cada mandato emitido do Vaticano, tinha apenas um objetivo em vista: o enriquecimento e fortalecimento da Sé Romana. Não importa o quão subversiva de toda a paz, quão perniciosa para toda a sociedade, ela perseguia seus próprios interesses com uma obstinação inflexível e insensível. As excomunhões eram usadas para os mesmos fins de engrandecimento papal. "O herege perdia não apenas todas as dignidades, direitos, privilégios, imunidades, e até mesmo todas as propriedades, toda a proteção da lei; ele deveria ser perseguido, roubado e condenado à morte, seja pelo curso normal da justiça -- a autoridade secular era obrigada a executar, mesmo com sangue, a sentença do tribunal eclesiástico – ou, se ele se atrevesse a resistir por qualquer meio, por mais pacífico que fosse, era considerado um insurgente, contra quem toda a cristandade poderia, ou melhor, estava obrigada, à convocação do poder espiritual, para declarar guerra; suas propriedades, e mesmo seus domínios, se um soberano, não eram meramente passíveis de confisco, mas a igreja assumia o poder de conceder a outro os bens e propriedades como lhe parecesse melhor.

"O exército que deveria executar o mandato do papa era o exército da igreja, e a bandeira desse exército era a cruz de Cristo. Então começaram as cruzadas, não nas fronteiras contestadas da Cristandade, não em terras muçulmanas ou pagãs na Palestina, nas margens do Nilo, entre as florestas da Livônia ou nas areias do Báltico, mas no próprio seio da Cristandade; não entre os partidários implacáveis ​​de um credo antagônico, mas no solo da França católica, entre aqueles que ainda chamavam a si mesmos pelo nome de cristãos."*

{* Milman, vol. 4, pág. 168; Waddington, vol. 2, pág. 270.}

Esse era, é e sempre será o espírito e o caráter da igreja de Roma. Quão tenebrosa imagem! Quão triste é a reflexão de que aquela que se autodenomina a verdadeira igreja de Deus, a santa mãe de Seus filhos e a representante de Cristo na terra, tenha sido transformada, por instrumentos satânicos, em um monstro das mais repugnantes hipocrisias, e "abomináveis idolatrias!" Ela se tornou a mãe adotiva da mais aberta e ilimitada adoração de imagens, santos, relíquias e pinturas, e da teoria da transubstanciação e da prática do confessionário. Exteriormente, sua ambição inescrupulosa de glória secular, sua intolerância em perseguir até o extermínio todos os que se aventurassem a contestar sua autoridade, sua sede insaciável por sangue humano não têm paralelo nas eras mais bárbaras do paganismo.

E é esta a igreja -- você pode muito bem exclamar em suas reflexões -- é esta a igreja a que tantos estão se juntando nos dias de hoje? Sim, infelizmente; e muitos das classes superiores e inteligentes! Certamente, essas conversões só podem ser fruto do poder ofuscante de Satanás, o deus deste mundo (2 Coríntios 4:3-4). Muitas jovens das melhores famílias da Inglaterra se submeteram, em devoção cega, a ser despojadas de sua cobertura natural e aprisionadas em um convento pelo resto da vida; e muitos da aristocracia, tanto leigos quanto clericais, aderiram à comunhão da igreja romana. Mas ela não mudou: a mudança é com aqueles cuja luz se tornou em trevas, de acordo com a palavra do profeta: “Dai glória ao Senhor vosso Deus, antes que venha a escuridão e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a mude em sombra de morte, e a reduza à escuridão” (Jeremias 13:16). Assim como ela era nos dias de Gregório VII, de Inocêncio III, do cardeal Pole e da Maria Sangrenta (Maria I da Inglaterra), assim é ela ainda hoje quanto ao seu espírito, faltando-lhe apenas o poder. Mas qual será a culpa dos convertidos atuais, tendo o Novo Testamento diante de si e vendo o contraste entre o bendito Senhor e Seus apóstolos, e o papa e seu clero; entre a graça e a misericórdia do evangelho e a intolerância e crueldade do papado! Em vez disso, que meu leitor se lembre da exortação: "Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas… porque todas as nações foram enganadas pelas tuas feitiçarias. E nela se achou o sangue dos profetas, e dos santos, e de todos os que foram mortos na terra” (Apocalipse 18:4,23,24).

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Reflexões Sobre as Calamidades de Languedoque

Para toda mente atenciosa, para todo homem de fé, especialmente para aqueles que estudam a história do ponto de vista das Escrituras, as guerras em Languedoque são muito sugestivas. Elas são as primeiras já registradas desse tipo. Foi Inocêncio III o precursor novo tipo de guerra. Houve muitos casos de indivíduos sendo sacrificados por causa do sacerdócio católico, tal como Arnaldo de Bréscia, mas essa foi a primeira experiência em grande escala que a Igreja fez para manter sua supremacia pela força das armas. Observe que não foi o exército da Igreja saindo em santo zelo contra o pagão, o muçulmano ou o negador de Cristo, mas a própria Igreja em armas contra os verdadeiros seguidores de Cristo, contra aqueles que reconheciam Sua divindade e a autoridade da Palavra de Deus.

Podemos encher as páginas com citações de seus piores inimigos quanto à firmeza da fé deles, à pureza de sua moral e à simplicidade de suas maneiras. Daremos apenas dois ou três exemplos vindos das mais altas autoridades da igreja de Roma. "Eles negavam", diz Barônio, "a utilidade do batismo infantil; que o pão e o vinho se tornavam corpo e sangue do Senhor pela consagração de um padre; que ministros infiéis tinham direito ao exercício do poder eclesiástico ou a dízimos ou primícias; que a confissão auricular era necessária. Todas essas coisas os miseráveis ​​afirmavam que aprenderam com os Evangelhos e com as Epístolas, e que nada receberiam que não fosse o que encontravam expressamente contido nelas, rejeitando assim a interpretação dos doutores, embora eles mesmos fossem perfeitamente iletrados". Reinerius, o inquisidor e perseguidor dos albigenses, diz: "Eles eram os inimigos mais formidáveis ​​da igreja de Roma, porque possuem uma grande aparência de piedade, porque vivem retamente diante dos homens, creem corretamente em Deus em todas as coisas, e mantêm todos os artigos do credo; no entanto, eles odeiam e ofendem a igreja de Roma e o clero, e em suas acusações são facilmente cridos pelo povo". São Bernardo, que os conhecia intimamente, tendo vivido entre eles, mas que considerava seu dever opor-se a eles como sendo inimigos do papa, admite francamente: "Se você lhes pergunta sobre sua fé, nada pode ser mais cristão do que a resposta deles; se você observa a sua conversa, nada pode ser mais irrepreensível, e o que eles falam, tornam em bem por suas ações. Você pode ver um homem, pelo testemunho de sua fé, frequentar a igreja, honrar os anciãos, oferecer seus dons, fazer sua confissão, receber o sacramento. O que pode ser mais parecido com um cristão do que isso? Quanto à vida e às maneiras, ele não tenta enganar ninguém, não tenta levar a melhor sobre ninguém, não faz violência a ninguém. Ele jejua muito e não come o pão da ociosidade, mas trabalha com as mãos para o seu próprio sustento".*

{*Veja Milner e Gardner, conforme citados na seção anterior.}

Tal era, portanto, o caráter espiritual, moral e social dos albigenses, como evidenciado por seus próprios inimigos. Eles eram verdadeiras testemunhas de Cristo, evidentemente formadas pela graça de Deus para mostrar Seu louvor no mundo. E, se tivéssemos tantos escritos deles quanto têm os reformadores do século XVI, poderíamos talvez descobrir que eles eram mais simples em certos pontos de doutrina do que esses. Mas, segundo a mente do Senhor, outros trezentos anos foram necessários para amadurecer a Europa para a Reforma; durante esse tempo, as artes da impressão e da fabricação de papel foram descobertas.

Qual então, pode-se perguntar, foi o crime dos albigenses? O cerne da ofensa deles era simplesmente este: negavam a supremacia do papa, a autoridade do sacerdócio e os sete sacramentos, conforme ensinado pela igreja de Roma; e, aos seus olhos, não havia criminosos maiores na face de toda a terra; portanto, o extermínio absoluto deles era seu único decreto imutável. Aqueles que escapavam da espada do cruzado tinham de ser apanhados nas armadilhas do inquisidor.

"Em centenas de aldeias", diz o historiador, "todos os habitantes foram massacrados. Desde o saque de Roma pelos vândalos, o mundo europeu nunca lamentou um desastre nacional tão amplo em sua extensão ou tão terrível em seu caráter." Que registro! Que testemunha! E se tais são os registros da terra, quais não serão no céu! Oh, Roma! Roma! Embriagada com o sangue dos santos de Deus e coberta com as execrações de milhões, qual será o teu futuro? Como suportarás as acusações daqueles a quem enganaste com tuas mentiras e a quem fizeste perecer com tua espada? Será que alguém ousará pensar que estamos exagerando? Ouçam o discurso de um dos bispos aos cruzados antes da batalha de Muret: "Todo aquele que confessou seus pecados a um padre, ou tem a intenção de fazê-lo após a batalha, ao morrer obterá a vida eterna e escapará da passagem pelo purgatório. Eu serei vossa garantia no dia do julgamento. Parti, em nome de Cristo." Não era essa uma mentira enganadora de almas? Jezabel, porém, ouvirá sobre isso novamente um dia. "Porque já os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela. Tornai-lhe a dar como ela vos tem dado, e retribuí-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber, dai-lhe a ela em dobro... Portanto, num dia virão as suas pragas, a morte, e o pranto, e a fome; e será queimada no fogo; porque é forte o Senhor Deus que a julga... E nela se achou o sangue dos profetas, e dos santos, e de todos os que foram mortos na terra." (Apocalipse 18:5-24)

Mas Roma, sem saber, traiu seu próprio objetivo. Apesar da terra de Languedoque ter ficado desolada, os albigenses que escaparam da espada fugiram para outros países. Pela graça e boa providência de Deus, eles pregaram o evangelho em quase todas as partes da Cristandade e testemunharam contra as crueldades, as superstições e as falsidades da igreja de Roma. A partir dessa época, começa a perder a confiança e a reverência da humanidade. Assim o Senhor preparou o caminho para Wycliffe e Huss, Melancthon e Lutero.

Os Reis da França e os Albigenses

Inocêncio III estava agora morto, e o trono papal foi ocupado por Honório III, que entrou com grande ardor na causa de De Monforte, e foi calorosamente apoiado pelos reis da França. A perspectiva de paz para os pobres albigenses sob o governo brando de Raimundo era algo intolerável para o novo pastor de Roma. Buscando agradar o papa enfurecido e sob o pretexto de cumprir seu voto e garantir seu bem-estar eterno, Luís VIII, filho de Filipe Augusto, conduziu uma cruzada já em 1219. Todas as atrocidades da época anterior foram renovadas -- e até mesmo superadas, se é que isso era possível -- sob a direção do clero. Mas pouparemos o leitor da descrição dessa mistura satânica de engano, hipocrisia, perfídia, baixeza e crueldade selvagem exibidas pelo clero sob a sanção do soberano.

O velho Raimundo morreu, deixando a defesa de seus domínios para o filho, que estava então no vigor de sua idade e esperanças. Milner diz que "ele morreu de doença, em estado de paz e prosperidade, após sua vitória sobre Simão -- e que nenhum homem jamais foi tratado com maior injustiça pelo papado do que ele". Filipe Augusto também morreu, deixando sua coroa para Luís. O jovem De Monforte, no ano de 1224, desesperado pelo sucesso, finalmente desistiu de Languedoque, e Raimundo VII sentou-se no trono de seus antepassados, sem nenhum inimigo a temer, exceto o papa e seu soberano -- seu pastor e seu suserano. Mas Raimundo tinha uma bela porção da França, e Luís não conseguia conter a impaciência de uni-la à sua coroa.

Jezabel novamente trama; ela convoca um concílio em Burges no ano de 1225, no qual Luís é intimado a expurgar a terra dos hereges e a arrecadar dinheiro para esse fim. Luís, de acordo, toma a cruz e, com a participação de seus barões e seus seguidores, o que somava um número de duzentos mil homens, avança mais uma vez para devastar os campos do Languedoque e exterminar todos os hereges conforme os decretos de Roma. Pobre e infeliz terra de Languedoque! Quando será que Roma, o dragão, o devorador dos santos de Deus, ficará saciada com sangue? -- com o sangue de bebês, de crianças pequenas, de mães e donzelas, de pais e jovens desarmados e inofensivos! Um nome poderia ser dado às bestas que simbolizam os impérios caldeu, persa e grego, mas a quarta besta que simboliza o império romano, seja pagão ou papal, a esta não é dado um nome. "Depois disto eu continuei olhando nas visões da noite", diz Daniel, "e eis aqui o quarto animal, terrível e espantoso, e muito forte, o qual tinha dentes grandes de ferro; ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele, e tinha dez chifres" (Daniel 7:7). Por uma questão de interpretação, a visão de Daniel se refere mais diretamente ao poder civil, mas o aspecto eclesiástico da besta como visto em Apocalipse é mais sedento de sangue do que o civil jamais foi.

Temos esse monstro sem nome agora diante de nós no rei da França, instado a medidas extremas pelo papa. Ao aproximarem-se os duzentos mil cruzados sob a bandeira de seu soberano, o coração do povo de Toulouse afundou dentro deles. Cidade após cidade cedeu, pois todos os antigos defensores haviam morrido. "Eles haviam sofrido tantas vezes todos os horrores da guerra em todas as suas formas mais assustadoras, que os barões, cavaleiros e comunas de Languedoque, por unanimidade, buscaram evitar, por meio de concessões oportunas, a continuidade dessas calamidades intoleráveis". Mas exatamente nesse momento em que tudo parecia perdido, a mão do Senhor se interpôs. Uma peste eclodiu no acampamento inimigo. O próprio Luís foi levado por ela, e trinta mil de seus soldados foram varridos pelo contágio. A ruína iminente dos habitantes e da casa de Raimundo foi adiada por mais um pouco de tempo.

Com a morte de Luís VIII, seu filho, que era apenas uma criança, sucedeu ao trono da França, e as rédeas do governo caíram nas mãos de sua mãe, Branca de Castela. Por suas ordens, o cerco a Toulouse foi renovado. As vantagens da guerra estavam todas a favor de Raimundo, mas a glória de suas vitórias, segundo um cronista, foi manchada pela crueldade com que tratava os vencidos que caíam em suas mãos. Esse novo cerco de Toulouse foi prolongado e difícil; os cruzados estavam perdendo a esperança; em sua perplexidade, Fouquet, o gênio do mal e o espírito mentiroso de Toulouse, sugeriu a única forma de se obter um ataque bem-sucedido. Por seu conselho, todas as videiras, o milho e as árvores frutíferas foram destruídas, todas as casas queimadas por quilômetros ao redor da cidade, até que o país se converteu em um deserto desolado; e assim a cidade de Toulouse ficou no meio de um deserto. É claro que, nessa situação, não era possível conseguir nenhum suprimento de qualquer espécie. Essa foi a obra do bispo do lugar -- era sua diocese, eram as pessoas sobre as quais ele havia sido apontado como supervisor! O leitor pode julgar por si mesmo se ele participou mais do espírito do quarto animal de Daniel, ou daquele que diz a todo pastor: "Alimente minhas ovelhas... Alimente meus cordeiros." (João 21, KJV)

Quando esse novo frasco da ira papal foi derramado naquela terra devota, e tudo o que era verde se secou, ​​os habitantes da cidade ficaram tão desanimados, e o espírito de Raimundo, seu líder, tão completamente destruído, que ao fim de três meses a paz foi obtida sob as condições mais humilhantes. O tratado de Paris, que encerrou a guerra por um tempo, foi assinado no mês de abril de 1229. Os termos foram ditados pelo legado papal e aprovados pelo rei da França. Raimundo VII, cujos modos graciosos, juntamente com o senso de seus erros, arrancaram lágrimas de Inocêncio no grande Conselho de Latrão, agora inclina seu pescoço para um jugo estrangeiro e cede a um despotismo espiritual. Ele foi levado pelo legado à igreja em Paris e, assim como seu pai em St. Gilles, com ombros nus e pés descalços, passou pelo mesmo flagelo público e vergonhoso pelas mãos sacerdotais. De joelhos, na igreja de Notre Dame, ele abdicou solenemente toda a sua soberania feudal ao rei da França, e submeteu-se à penitência da igreja. O leitor se lembrará que o pai, em sua penitência, renunciou a sete castelos, mas aqui o filho renuncia a sete províncias. Assim foi ordenado por Aquele que governa sobre todos -- e ordenado para a futura humilhação de Roma -- que a paz de Languedoque redundasse tanto para a vantagem de Roma, assim como para o rápido crescimento da monarquia francesa. Filipe Augusto havia arrancado das mãos fracas de João as posses continentais da coroa inglesa, e agora os domínios do conde de Toulouse e do rei de Aragão, ao norte dos Pireneus, foram acrescentados à coroa francesa. "A posse da Normandia", diz James White, "já havia feito da França uma potência marítima; e agora, com a aquisição das regiões de Narbona e Maguelone de Raimundo VII, ela não apenas estendeu seus limites ao Mediterrâneo, mas, pela extinção de dois vassalos como o conde de Toulouse e o duque da Normandia, fortaleceu de forma incalculável a coroa real."*

{* Para detalhes mais completos, tanto do lado papal quanto do lado albigense dessa sangrenta guerra, ver: Du Pin, século XIII; Palestras de Sir J. Stephen, vol. 1, pp. 214-242; Milman, vol. 4, pp. 167-238; J. White. pp. 282-289; J. C. Robertson, vol. 3, pp. 340-433; Milner, vol. 3, pp. 92-155; Faiths of the World, de Gardner, "Albigenses".}

domingo, 5 de janeiro de 2020

O Verdadeiro Objetivo dos Católicos

O leitor tem agora diante de si o verdadeiro, embora oculto, objetivo desses homens inspirados por Satanás. É a velha e cruel história de Nabote e sua vinha: Jezabel queria as regiões encantadoras do sul como sua própria vinha, e portanto o sangue de Nabote, o jizreelita, tinha que ser derramado. Verá-se pelas ordens secretas do papa a seus legados que a ruína, não somente de Raimundo, mas de todos os príncipes em Languedoque, estava determinada, e que ele tinha enganado o conde Raimundo por uma reconciliação fingida, de modo a separá-lo do resto dos nobres de Languedoque para que pudessem ser destruídos um por um com maior facilidade. Essa era a política de Inocêncio, como vemos escrita de seu próprio punho, e seus legados eram aptos discípulos de seu mestre. Mas os espólios do conde de Toulouse e de todos os seus partidários eram uma questão de necessidade para Simão e para seus aliados, os legados; nada menos do que toda a região sul da França podia satisfazer a avareza de De Monforte e o fanatismo dos ávidos padres. Foi, portanto, determinado que se envolvessem os condes de Foix, Cominges e Beam, com todas as suas dependências territoriais.

O conde de Toulouse era suserano de cinco grandes feudos subordinados. As cortes desses soberanos mesquinhos disputavam umas com as outras em esplendor e bravura. Conta-se que a vida era, para eles, um banquete ou torneio perpétuo. Alguns deles estavam entre os mais distintos dos cruzados no Oriente e tinham trazido para casa muitos costumes de luxo oriental. Não se tratava de hereges, valdenses ou albigenses. Eles eram bons católicos por fora; mas a religião deles não passava de música de trovador. Ainda havia algumas exceções honrosas; podemos traçar a linha prateada da rica graça soberana de Deus nas cortes desses príncipes sensuais. Lemos sobre sobre Almerico, senhor de Montreuil, e sua irmã, dona Geralda de Vetville, que eram albigenses, e que defendiam suas próprias cidades contra os católicos, mas que foram subjugados; e esses senhores e senhoras com muitos outros foram rapidamente destruídos. Almerico, com oitenta nobres, foi trazido perante De Monforte. Ele ordenou que todos eles fossem enforcados, mas a armação de madeira da forca se quebrou, e então eles foram esquartejados. A senhora Geralda foi lançada em um poço e jogaram grandes pedras encima dela. Apenas alguns escaparam do massacre generalizado de Vetville para contar a história. Mas toda aquela região teve um destino similar. O verdadeiro cristão, o cortesão gentil, o cavaleiro galante, a multidão amante dos prazeres que estava tão envolvida com os hábitos luxuosos da região para serem hereges ou fanáticos -- todos tinham de se submeter aos termos papais, ou então deveriam enfrentar a forca, a fogueira ou a espada do carrasco.

Toda a região do sul da França ficou então carregada com a culpa de proteger os hereges; e Raimundo, como senhor suserano, foi convocado a aparecer perante o concílio de Arles. A máscara que até então ocultava a iniquidade selvagem do papa foi tirada. O conde foi ao concílio acompanhado de seu amigo Pedro, rei de Aragão, um católico bom e devoto, que defendeu sua causa e se ofereceu para ser fiador dele. Mas os termos de reconciliação fixados pelos clérigos foram os seguintes -- deixaremos o leitor observá-los cuidadosamente como uma amostra da arrogância e audácia papal naqueles dias: "Que o conde Raimundo deveria dissolver seu exército; que ele deveria demolir todos os seus castelos, despedir todos os comandantes de suas cidades muradas e fortalezas; que ele deveria renunciar a todos os impostos e taxas das quais deriva a principal parte de suas receitas, que ele deveria compelir toda a nobreza e comunidade em seus domínios a vestirem o manto penitencial; que ele deveria entregar todos os seus súditos suspeitos de heresia para serem convertidos ou queimados, conforme o caso; que ele deveria se manter pessoalmente pronto para ir para a Palestina servir sob a irmandade de São João de Jerusalém até que fosse dispensado pelo papa; que cada cabeça de cada família deveria pagar o equivalente a quarenta centavos anualmente ao legado; que ele deveria ser obediente à igreja, pagar todas as despesas que lhe foram cobradas, e durante toda sua vida se submetesse sem contradições. Se todos esses termos forem devidamente satisfeitos, então o legado e o Conde de Monforte lhe restaurará todas as suas terras."*

{* Greenwood, livro 3, cap. 7, p. 546; Milman, vol. 4, p. 218; Sir James Stephen`s Lectures, vol. 1, p. 225. }

A intenção desse novo ultraje era inconfundível; o infeliz conde, desafiando a ordem do concílio, partiu em companhia de seu intercessor, o rei de Aragão. O julgamento foi então dado. "O Conde de Toulouse foi condenado como um herege declarado -- um inimigo da igreja e um apóstata da fé, e seus domínios e propriedades, sejam públicas ou pessoais, serão de posse dos primeiros ocupantes que delas se apropriarem." Esses termos e decretos darão ao leitor uma fraca ideia de como a igreja, usando a mais santificada linguagem e pretensões, conseguia a ruína de um nobre naqueles dias, para que obtivesse posse de suas terras e suas riquezas. Era assim em todo lugar. O príncipe e seu povo deveriam ser afogados em sangue ou consumidos com fogo se suas posses não pudessem ser obtidas por meios mais brandos. Cada Nabote tinha que entregar seu campo a Jezabel, se ela o desejar. E antes de deixar esse ponto, que o leitor tenha em mente que, exatamente nesse momento em que o papa e seus legados trabalhavam pela ruína do conde e dos seus chefes vassalos, os inquisidores Domingos e Reinerius estavam ocupados em um "reconhecimento religioso de toda a área da heresia", tendo a total autoridade do próprio papa para infligir pena de morte aos hereges. Esse terrível tribunal, que então obteve, e até hoje retém, o nome de Inquisição, foi aberto pela primeira vez nesse ano -- um ano de terrível memória, 1210 d.C., em um castelo perto de Narbona.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

A Babilônia de Apocalipse 17

Tem sido nosso desejo, desde o início desta obra, estudar a história de um ponto de vista bíblico, mas mais especialmente à luz das epístolas às sete igrejas do Apocalipse. Os males que estavam apenas brotando estão agora totalmente desenvolvidos. Em Pérgamo, temos Balaão ensinando que "comessem dos sacrifícios da idolatria, e fornicassem"; e em Tiatira, temos Jezabel introduzida, que impunha a idolatria pela força. Mas esses e muitos outros males encontraremos agora concentrados no cálice da falsa mulher de Apocalipse 17.

Penso que não podemos duvidar do significado do símbolo aqui utilizado. Não apenas uma mulher, mas uma mulher indecente e entronizada em meio às corrupções da cidade dos sete montes. "Aqui está a mente que tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes, sobre os quais a mulher está assentada" (Apocalipse 17:9, Almeida Atualizada). Aqui temos um ponto material -- aquilo que sempre caracterizou Roma, tanto na prosa quanto na poesia; como disse alguém, falando de Arnaldo de Bréscia: "No serviço da liberdade, sua eloquência trovejava sobre as sete colinas". Todo leitor sabe de que cidade o historiador está falando por sua descrição. Mas a Palavra de Deus é perfeitamente clara para "a mente que tem sabedoria". Roma é claramente indicada, e suas corrupções religiosas são simbolizadas pela "mãe das prostituições" (Apocalipse 17:5). Mas por que, pode-se perguntar, ela é chamada de Babilônia? O termo é aplicado figurativamente, cremos, assim como Sodoma e o Egito são aplicados a Jerusalém em Apocalipse 11:8: "E jazerão os seus corpos na praça da grande cidade, que espiritualmente se chama Sodoma e Egito, onde também o seu Senhor foi crucificado". Além disso, a Babilônia literal, a capital caldeia, foi construída sobre uma planície -- a planície de Sinar -- e não sobre montes.

Tendo esclarecido esses pontos, e sendo Roma plenamente identificada, aceitamos Apocalipse 17 e 18 como descritivos do papado. O caráter, a conduta, os relacionamentos, e o juízo final de sua Babilônia espiritual, estão aqui colocados diante de nós, não pela pena parcial e imperfeita da história, mas pelo Espírito de Verdade que vê tudo do início ao fim. O sistema papal como um todo é visto moralmente do ponto de vista de Deus. Isto é uma imensa vantagem para o homem de fé. Examinaremos agora, brevemente, algumas de suas mais proeminentes características.

1. Ela é vista em visão como "assentada sobre muitas águas" (v. 1). Isto é explicado pelo anjo no versículo 15 como significando "povos, multidões, nações e línguas". A figura implica que esta falsa mulher, ou o sistema religioso corrupto de Roma, exercita uma influência que arruína a alma sobre essas multidões, nações e línguas. Mas Deus vê tudo e marca tudo: sua história maligna está escrita no céu.

2. Ela é representada como tendo relações sexuais da maneira mais sedutora e indecente com todas as classes. "Com a qual se prostituíram os reis da terra; e os que habitam sobre a terra se embriagaram com o vinho da sua prostituição [fornicação]" (v. 2). Que estado de coisas para aquela que professadamente leva o justo nome de Cristo! O termo "prostituição" ou "fornicação" aqui usado significa, sem dúvida, o poder sedutor do sistema romano em afastar as afeições de Cristo, que é o único verdadeiro objeto da fé para o coração. O padre se coloca entre o coração e o bendito Senhor; a Bíblia é escondida; a mente de Deus é desconhecida; o povo é intoxicado com suas falsidades excitantes; e a verdadeira adoração, não sabem o que é. Toda a terra está corrompida pelo vinho de sua prostituição. Mas seu fim, seu terrível fim, rapidamente se aproxima, "porque os seus pecados se acumularam até o céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela. Tornai a dar-lhe como também ela vos tem dado, e retribuí-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber dai-lhe a ela em dobro" (Apocalipse 18:5,6).

3. Ela é, em seguida, vista como governando e dirigindo o poder civil. "E vi uma mulher montada numa besta cor de escarlata, que estava cheia de nomes de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres" (v. 3). Seja o império romano ressuscitado (Apocalipse 13), ou os diferentes reinos que se ergueram a partir das ruínas de sua unidade imperial, ou todos os governos e principados da terra, a mulher balança seu cetro, ou melhor, sua espada manchada de sangue, sobre todos, como se fosse um domínio seu que foi dado divinamente. O púrpura dos Césares foi reivindicado pelos papas, e "Vossa Santidade" foi proclamado um monarca universal. E essa nova amante do mundo não era assim apenas pelo nome. Ela se vestia de seu antigo nome com um novo poder. A Roma imperial nunca inspirou tanto terror com seus exércitos quanto a Roma papal com suas anátemas. "A Cristandade", disse alguém, "através de todos os seus domínios estendidos de trevas mental e moral, tremia enquanto o pontífice fulminava excomunhões. Monarcas tremiam em seus tronos pelo terror do despotismo papal, e agachavam-se perante seu poder espiritual como os mais insignificantes escravos. O clero considerava o papa como a fonte de sua autoridade subordinada, e o caminho para uma futura promoção. O povo, imerso em profunda ignorância e superstição, via sua supremacia como uma divindade terrena, que decidia pelos destinos temporais e eternos dos homens. A riqueza das nações fluíam para o tesouro sacro, e permitia ao [suposto] sucessor do pescador galileu e chefe da comunidade cristã rivalizar contra o esplendor da pompa e grandeza orientais"*. A extensão de seus domínios excedia de longe as mais vastas conquistas do império. Muitas nações que tinham escapado das garras de ferro da Roma imperial eram mantidas sob o jugo papal. Isto vimos em nossa história das guerras religiosas de Carlos Magno. Dentre essas nações temos a Irlanda, o norte da Escócia, a Suécia, a Dinamarca, a Noruega, a Prússia, a Polônia, a Boêmia, a Morávia, a Áustria, a Hungria, e uma parte considerável da Alemanha. Essas, sabemos, foram reunidas como ovelhas no rebanho do pastor de Roma por missionários tais como Bonifácio; mas, aos olhos de Deus, elas foram escravizadas pela tirania e usurpação da grande corruptora.

{*Variations of Popery, de Edgar, p. 157.}

4. Mas há ainda mais do que apenas se assentar sobre muitas águas e sobre a besta. Ele é cheia de idolatrias e da imundícia de sua prostituição. "A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas; e tinha na mão um cálice de ouro, cheio das abominações, e da imundícia da prostituição" (v. 4). Apesar de toda a sua glória exterior -- aquela que o mundo considera preciosa e bonita -- ela é, aos olhos de Deus, uma mulher indecente com uma bela taça cheia de todas as abominações. Já vimos seu amor tenaz por imagens (de ídolos), as quais são aqui referidas pelo termo "abominações".

5. Suas grandes, ostensivas e exclusivas pretensões de possuir a verdade de Deus. "E na sua fronte estava escrito um nome simbólico: A grande Babilônia, a mãe das prostituições e das abominações da terra" (v. 5). Este é o mais grave e pesado dos pecados de Roma; a horrível falsificação de Satanás e a mais baixa de todas as suas hipocrisias. Sobre a verdade, o mistério celestial, lemos: "Grande é este mistério", diz Paulo, "mas eu falo em referência a Cristo e à igreja" (Efésios 5:32). Mas no lugar de sujeição a Cristo e fidelidade a Ele, ela -- como uma mulher abandonada e desavergonhada -- corrompe, com seu abominável abraço, os grandes da terra. E isso não é tudo. Ela é a mãe -- a mãe das prostituições, que tem muitas filhas. Todo sistema religioso da Cristandade que tende, em qualquer medida, a guiar as almas para longe de Cristo, a engajar suas afeições a coisas que se põem entre o coração e o Homem na glória, está relacionado a essa grande mãe da iniquidade espiritual.

6. Sua sede insaciável pelo sangue dos santos de Deus. "E vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus. Quando a vi, maravilhei-me com grande admiração" (v. 6). Esta estranha visão -- uma mulher -- uma comunidade religiosa, professando ser a verdadeira esposa de Cristo, embriagada com o sangue dos mártires, os santos de Deus, enche a mente do apóstolo com grande admiração. Nem precisamos nos perguntar o porquê. Mas logo também teremos que ver essa estranha vista, não apenas em visão, mas em realidade sem precedentes. Inocêncio III foi o homem que declarou guerra aos camponeses do sul da França e virou a espada do notório Simão de Monforte contra os bem conhecidos Albigenses e Valdenses, e isto sob o pretexto de fazer a vontade de Cristo e de agir sob Sua autoridade.

A partir do versículo 7, temos a explicação que o anjo dá sobre a visão, e a terrível condenação da Babilônia vinda da mão tanto do homem quanto de Deus, até perto do fim do capítulo 18. Mas como não estamos interpretando todos esses detalhes, não precisamos prosseguir adiante com o solene tema desses capítulos. Acompanhemos agora os passos tenebrosos e manchados de sangue do historiador sob a luz das Escrituras Sagradas.*

{*Para maiores detalhes veja Estudos sobre o Apocalipse, de William Kelly.}

As Indulgências

O sistema das indulgências papais, que gradualmente se elevou a tais alturas e, finalmente, produziu seus efeitos, requer uma atenção cuidadosa, embora breve. Sempre foi a prática do gênio maligno de Roma introduzir de maneira sutil os maiores males que caracterizam sua história. Imperceptivelmente, a fina ponta da cunha é introduzida pelo espírito que governa sua política, e quando introduzida, toda a máquina do sistema romano é empregado para alcançar o fim pretendido. Por um aparente respeito à memória dos mortos, e uma consideração pelos sinais de sua afeição, a adoração aos santos e às relíquias foi introduzida, o que resultou na maior e mais evidente idolatria. E assim é também com todo o sistema de indulgências. A corrupção eclesiástica, uma vez admitida, foi estabelecida, aumentada, e espalhada de era em era até que toda a Cristandade estivesse tomada por sua iniquidade, e o senso moral e religioso de humanidade, tão insultado pelo infame tráfico de indulgências, resultou em um protesto erguido pela Reforma logo em seguida. 

A principal característica da nova doutrina de indulgências foi a descoberta de um suposto recurso ou tesouro na igreja, que podia ser usado para o perdão dos pecados, sem a necessidade de passar por um doloroso e humilhante processo de penitência, e sem a observância de sacramentos. Alegava-se a existência de um tesouro infinito de mérito em Cristo, na Virgem Maria e nos outros santos, que era mais do que o suficiente para eles próprios. Embora fosse dito que o próprio Salvador fosse a fonte de todos os méritos, muito também se falava sobre os méritos dos santos, e disto surgiu a nova ideia das obras superrogatórias. Pelas obras de penitência dos santos, e por seus sofrimentos não merecidos neste mundo, eles tinham feito mais do que era necessário para sua própria salvação, e por essas obras superrogatórias, juntamente com os superabundantes méritos de Cristo, formou-se um tesouro para o qual o papa possuía as chaves, às quais ele podia aplicar para o alívio dos ofensores, tanto nesta vida quanto no purgatório.  O poder das chaves foi, então, usado como substituição pela eficácia dos sacramentos.

Esta é a teoria papista das indulgências, mas seu caráter anti-bíblico trai seu autor. É claramente anti-bíblico, pois promete remissão de pecados sem arrependimento; e, mesmo em solo católico, sua perversidade é evidente. A indulgência supera o exercício penitencial do indivíduo; dissolve toda a disciplina da igreja; oferece por uma soma de dinheiro o perdão de todos os pecados cometidos, e uma licença por pecados a serem cometidos; dá uma garantia por escrito de libertação das dores do purgatório, e do próprio inferno. Encoraja a mais flagrante iniquidade com a profissão do Cristianismo; de fato, por esse dogma, a moralidade foi cortada da religião. Será que a depravação papal poderia ir mais longe que isso? Homens encorajados a soltar as rédeas dos vícios, a seguir seus próprios maus caminhos, e então simplesmente comprar o perdão eterno, sem quaisquer condições de arrependimento, por uma quantia de dinheiro! Que dia de acerto de contas espera a Jezabel de Roma, e a todos os filhos de sua sedução! Que o Senhor preserve Seu povo de suas seduções agora!

A história coloca a primeira indulgência formal emitida pela igreja católica de Roma na primeira parte do século XI, mas o sistema foi colocado em pleno funcionamento pelas cruzadas. O papa Urbano II, em Clermont, no ano de 1095, proclamou uma indulgência plenária e remissão dos pecados para todos os que participassem da guerra santa. Tornou-se costume, após esse período, conceder indulgências de menor grau. A absolvição de cem anos ou mais de purgatório podia ser adquirida de um bispo ao reparar ou ampliar os edifícios da igreja, ao construir uma ponte ou pela colocação de uma cerca ao redor de um bosque; e também por meio de deveres religiosos extras, como recitar um certo número de orações diante de um determinado altar, peregrinações a relíquias, e coisas parecidas. O papa, de acordo com a teoria do Vaticano, é o dispenseiro soberano do tesouro da igreja, e esse poder ele dispensa aos bispos em suas respectivas dioceses. O papa podia conceder indulgências a todos os cristãos; o poder do bispo é limitado a sua própria diocese.

domingo, 10 de junho de 2018

A Pregação de Arnaldo

A essas novas e perigosas doutrinas o povo de Bréscia ouvia com o maior ardor. Ele desdobrou para eles as páginas escuras da história eclesiástica, sobre a qual estivemos também viajando. A cidade inteira ficou em um estado de grande excitação. Não é de admirar o entusiasmo da população, quando ouviram que as riquezas do clero deveriam retornar aos leigos, e que, no futuro, seus pastores deveriam ser mantidos pelas contribuições voluntárias do rebanho. Ele seria um pregador ousado que se atreveria a despertar o povo ao fanatismo com tais apelos e propostas no século XIX, mas o que seria dele no século XII, em meio às trevas, ignorância e superstição? Tal homem foi o reformador prematuro de Bréscia, e, sendo um severo monge de vida irrepreensível, inquestionável quanto a sua ortodoxia, e possuindo a total simpatia da religião popular, seu poder era irresistível. O grande objetivo de seus esforços era a completa derrubada do poder sacerdotal -- a supremacia secular do papa. Ele, assim, se atreveu a colocar a mão no grande esquema papal de domínio universal, e por um momento abalou sua base. O papa foi expulso de seu trono, a república foi proclamada, o estandarte da liberdade levantado, e o governo dos padres abolido. Mas o entusiasmo dos cidadãos era evanescente, sem unidade, e de curta duração. O solo ainda não estava preparado para o crescimento da liberdade. A iniquidade do sistema anticristão ainda não estava completa. A sede de Jezabel ainda não estava saciada com o sangue dos santos de Deus. Milhões ainda pereceriam antes que ela recebesse sua ferida mortal. Isso veremos em breve.

Arnaldo não estava mais seguro na Itália. O ressentimento do clero era mais forte e profundo do que o favor da população. Ele escapou para além dos Alpes, e finalmente encontrou um abrigo seguro e hospitaleiro em Zurique. Ali, foi permitido ao precursor do famoso Zuínglio que tivesse um tempo para lecionar, e o povo simples manteve por muito tempo o espírito de suas doutrinas. Mas não poderia ser permitido que tal homem vivesse em lugar algum. Bernardo observava cada um de seus movimentos. Ele implorou ao papa por medidas extremas, e escreveu raivosamente àqueles que lhe deram abrigo, alertando-os para que tomassem cuidado com a infecção fatal da heresia. Ele repreendeu severamente o bispo diocesano de Zurique por protegê-lo. "Por que", disse ele, "você ainda não afastou Arnaldo há muito tempo? Aquele que consente com o suspeito torna-se suscetível a suspeitas; aquele que favorece alguém sob a excomunhão papal contraria o papa e até mesmo o próprio Senhor Deus. Agora, portanto, que você sabe quem é esse homem, expulse-o do meio de vós; ou, melhor ainda, acorrente-o, para que não faça mais mal".

Após várias circunstâncias, como é comum no caso desse tipo de homem, e que não precisamos traçar com detalhes aqui, Arnaldo retornou a Roma. Ali foi-lhe permitido permanecer por algum tempo por causa da fraqueza do pontífice e do estado conturbado da cidade; mas quando o papa Adriano IV subiu a trono de São Pedro, os dias de Arnaldo estavam contados.

domingo, 9 de abril de 2017

O Resumo de Mosheim

"No Oriente, desígnios sinistros, rancores, contendas e conflitos eram, em todos os lugares, predominantes. Em Constantinopla, ou Nova Roma, eram elevados à cadeira patriarcal aqueles que eram favoráveis à corte; e ao perderem esse favor, um decreto do imperador tirou-lhes de suas posições elevadas. No Ocidente, os bispos rodeavam as cortes dos príncipes, e se entregavam a toda espécie de voluptuosidade: enquanto o clero inferior e os monges eram sensuais e, pelos vícios mais grosseiros, corrompiam o povo a quem se destinavam a reformar. A ignorância do clero, em muitos lugares, era tão grande que poucos deles podiam ler ou escrever. Assim, sempre que uma carta devia ser escrita, or qualquer coisa de importância tivesse de ser firmada por escrito, recorria-se, geralmente, a algum indivíduo cuja fama lhe investia com uma certa destreza em tais assuntos...

"Os bispos e os chefes de monastérios detinham muitos bens imobiliários ou propriedade fundiária pela posse feudal; pelo que, quando uma guerra irrompia, eles eram convocados pessoalmente para o acampamento militar, atendidos por um número de soldados que eram obrigados a se apresentarem aos seus soberanos. Reis e príncipes, além de poderem recompensar seus servos e soldados por seus serviços, muitas vezes se apoderavam de propriedade consagrada, dando-as a seus dependentes; em consequência, os padres e monges, antes apoiados por eles, buscavam alívio para suas necessidades de cometer qualquer tipo de crimes e embustes inimagináveis.

"Poucos daqueles que foram elevados, nessa época, às mais altas posições na igreja, podem ser elogiados por sua sabedoria, erudição, virtude e outros dons adequados a um bispo. A maior parte deles, por seus numerosos vícios, e todos eles, por sua arrogância e cobiça de poder, ocasionaram desgraças às suas próprias memórias. Entre Leão IV, que morreu em 855 d.C., e Bento III, uma mulher que escondeu seu sexo e assumiu o nome de João, conta-se, abriu seu caminho ao trono pontifício por sua própria esperteza e engenhosidade, e governou a igreja por um tempo. Ela é comumente chamada de Papisa Joana. Durante os cinco séculos subsequentes as testemunhas desse evento extraordinário são inúmeras, mas nenhuma, antes da Reforma de Lutero, considerou isso como algo inacreditável ou vergonhoso para a igreja.

"Todos concordam que nesses dias sombrios o estado do cristianismo era, em todos os lugares, muito deplorável; não apenas pela incrível ignorância, a mãe da superstição e degradação moral, como também por outras causas... A ordem sagrada, tanto no Oriente quanto no Ocidente, era composta principalmente por homens analfabetos, estúpidos, ignorantes de tudo concernente à religião... O que os pontífices gregos eram é demonstrado pelo único exemplo de Teofilato que, como testificam historiadores confiáveis, fazia tráfico de tudo o que era sacro, e não ligava para nada que não fosse seus cachorros e cavalos. Mas, embora os patriarcas gregos fossem homens muito indignos, ainda assim possuíam mais dignidade e virtude do que os pontífices romanos. Um fato reconhecido por todos os melhores escritores, sem exceção até mesmo daqueles que advogam a autoridade papal, é que a história dos bispos romanos nesse século é uma história, não de homens, mas de monstros, uma história das mais atrozes vilanias e crimes.

"A essência da religião foi pensada, tanto pelos gregos como pelos latinos, de modo a consistir na adoração de imagens,  em honrar os santos que partiram, em buscar por e preservar relíquias e em enriquecer padres e monges. Dificilmente um indivíduo se aventurava a se aproximar de Deus antes do assunto de interesse ter sido devidamente buscado por meio de imagens e santos. Todo o mundo estava insanamente ocupado em juntar relíquias e procurá-las."*

{* História, de Mosheim, vol. 2, p. 184 & 272.}

Nada mais, pensamos, precisa ser dito, no momento, quanto à natureza -- raiz e ramos -- do sistema papal. Pela boca de pelo menos três testemunhas competentes, tudo o que foi dito de Roma, desde o início do período de Tiatira, foi confirmado. E não foi dito nem metade, especialmente sobre o assunto da imoralidade. Não poderíamos transferir para nossas páginas a devassidão dos padres e monges. Alguns pensam que o papado caiu no ponto mais profundo de degradação nos séculos IX e X. Por muitos anos a mitra papal foi usada livremente pela infame Teodora e suas duas filhas, Marózia e Teodora. Tal era seu poder e sua influência maligna, por meio de suas vidas licenciosas, que colocavam na cadeira de São Pedro quem elas queriam -- homens ímpios como elas próprias. Nossas páginas seriam contaminadas por um relato de suas abertas e descaradas imoralidades. Tal foi a sucessão papal. Certamente Jezabel foi realmente representada por essas mulheres, e na influência que obtiveram sobre os papas e sobre a cidade de Roma. Mas, infelizmente, Jezabel, com todas as suas associações, corrupções, tiranias, idolatrias e usos da espada civil, foi muito fielmente representada pelo papado desde sua própria fundação.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Uma Nova Jezabel no Poder (842 d.C.)

Após a morte do imperador Teófilo, Teodora, sua viúva, governou como regente durante o período de minoridade de seu filho. Seu apego dissimulado à idolatria era bem conhecido do sacerdócio, e não muito tempo após a morte de Teófilo ela se dedicou ao completo cumprimento de seu grande objetivo. Quando o caminho ficou limpo, um festival solene foi marcado para a restauração das imagens. "Todo o clero de Constantinopla, e todos os que podiam se reunir dos arredores, se encontraram diante do palácio do arcebispo e marcharam em procissão com cruzes, tochas e incenso à igreja de Santa Sofia. Ali eles se encontraram com a imperatriz e seu pequeno filho Michael. Eles fizeram o circuito da igreja, com suas tochas ardendo, prestando homenagem a cada estátua e pintura, que foram cuidadosamente restauradas, para nunca mais serem apagadas até tempos depois por iconoclastas ainda mais terríveis, os turcos otomanos."*

{* Cristianismo Latino, vol. 2, p. 202.}

Após um restabelecimento tão triunfante das imagens, o partido vitorioso sem dúvida pensou que havia chegado o tempo de propôr e tentar assegurar outro triunfo; eles agora instavam a imperatriz a empreender a total supressão dos paulicianos. Eles tinham pregado contra imagens, relíquias e a madeira podre da cruz. Eles não podiam continuar vivendo, e os católicos atingiram esse objetivo! Um decreto foi emitido sob a regência de Teodora, que decretou que os paulicianos deveriam ser exterminados por fogo e espada, ou trazidos de volta à igreja grega. Mas eles recusaram todas as tentativas que foram feitas para ganhá-los, e assim o feroz demônio da perseguição foi solto entre eles. Seus inquisidores exploraram as cidades e montanhas da Ásia menor e executaram sua comissão da maneira mais cruel possível. Os números da seita, e a severidade da perseguição, podem ser julgados pelas multidões que foram mortas pela espada, decapitadas, afogadas ou consumidas nas chamas. Afirma-se, tanto pelos historiadores civis quanto eclesiásticos, que, em um curto reinado, cem mil paulicianos foram condenados à morte. Houve alguma vez uma filha mais genuína de Jezabel do que esta? Ela nem mesmo tinha um Acabe para fazer este trabalho cruel por ela, mas com suas próprias mãos, por assim dizer -- infelizmente, as mãos de uma mulher -- por seu próprio decreto, ela assassinou cem mil santos de Deus*, restabeleceu a adoração aos ídolos, e nutriu com favor real os padres idólatras de Roma.

{* Não pretendemos afirmar que todos os que foram mortos por Teodora eram cristãos verdadeiros. Não podemos julgar o coração; mas eles professavam ser e voluntariamente morreram como mártires.}

A história da iconoclastia foi notável pela influência feminina. Helena foi a primeira a sugerir e encorajar a veneração por relíquias; Irene foi a restauradora da adoração de imagens quando ameaçada de destruição; e agora Teodora não apenas restabelece a idolatria que seu marido tinha se esforçado para suprimir, como também persegue os verdadeiros adoradores. Certamente a mulher Jezabel -- símbolo da igreja dominante na Idade das Trevas -- tem seu antítipo nessas três mulheres, especialmente as duas últimas. A semelhança é marcante demais para ser questionada. Mas todo o sistema do catolicismo respira esse terrível espírito, e é caracterizado pelas tenebrosas características do caráter de Jezabel. A palavra do Senhor não pode ser quebrada. "Ninguém fora como Acabe, que se vendera para fazer o que era mau aos olhos do Senhor; porque Jezabel, sua mulher, o incitava". Este é o tipo (figura). O antítipo é: "Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu." (1 Reis 21:25, Apocalipse 2:20,21)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Silvano em Cibossa

Constantino [de Mananalis], que se denominou Silvano, dirigiu seus primeiros apelos aos habitantes de um lugar chamado Cibossa, na Armênia, a quem ele chamou de macedônios. "Eu sou Silvano", disse ele, "vós sois macedônios". Ali ele fixou sua residência e trabalhou com energia incansável por quase trinta anos; por meio dele muitos foram convertidos, tanto da Igreja Católica quanto do zoroastrismo. Com o tempo, tendo a seita se tornado suficientemente considerável para atrair atenção, a questão foi reportada ao imperador e um decreto foi emitido em 684 contra Constantino e as congregações paulicianas. A execução do decreto foi confiada a um oficial da corte imperial chamado Simeão. Ele tinha ordens de executar o mestre e de distribuir seus seguidores entre o clero e em monastérios, com vista à recuperação deles. O governo, sem dúvida, agiu conforme a direção da Igreja [Católica]; como no caso de Acabe, "porque Jezabel, sua mulher, o incitava." (1 Reis 21:25). Mas o Senhor está acima de tudo, e Ele pode tornar a ira do homem em louvor para Si.

Simeão colocou Constantino -- o principal objeto de vingança dos padres -- perante um grande número de companheiros, e ordenou-lhes que o apedrejassem. Eles se recusaram e, em vez de obedecer, todos largaram as pedras com as quais tinham se armado, com exceção de um rapaz; e assim Constantino foi morto por uma pedra da mão daquele jovem sem coração --  seu próprio filho adotivo Justus. Este ingrato apóstata foi exaltado pelos inimigos dos paulicianos como um outro Davi que, com uma pedra, derrubou um outro Golias -- o gigante da heresia. Mas do apedrejamento de Constantino, assim como do apedrejamento de Estêvão, um novo líder se ergueu na pessoa do seu assassino imperial. O que Simeão tinha visto e ouvido causou impressões em sua mente que ele não podia ignorar. Ele começou a conversar com alguns dos sectários, e o resultado foi que ele se tornou um de seus convertidos. Ele retornou à corte imperial, mas após passar três anos em Constantinopla com grande inquietação, ele fugiu, deixando todas as suas propriedades para trás, e assumiu sua residência em Cibossa onde, sob o nome de Tito, tornou-se o sucessor de Constantino Silvano.

Cerca de cinco anos após o martírio de Constantino o mesmo renegado Justus traiu os paulicianos. Ele conhecia, como traidor de outrora, os hábitos e movimentos da comunidade, e também onde ele seria recompensado por sua traição. Ele foi ter com o bispo de Colônia e reportou o reavivamento e disseminação da assim chamada heresia. O bispo comunicou essa informação ao Imperador Justiniano II e, em consequência, Simeão e uma grande quantidade de seus seguidores foram queimados até a morte em uma grande pira funerária. O cruel Justiniano em vão pensou ter extinguido o nome e a memória dos paulicianos em uma única conflagração, mas o sangue dos mártires pareceu apenas ter multiplicado seu número e sua força. Uma sucessão de mestres e congregações surgiram de suas cinzas. A nova seita se espalhou por todas as regiões adjacentes, Ásia Menor, Ponto, as fronteiras da Armênia e a oeste do Eufrates. Eles suportaram, durante muitos reinos sucessivos, com paciência cristã, a ira intolerante dos governadores através da instigação dos padres. Mas o preço pela crueldade, como observaremos, deve, sem dúvida, ser recompensado pela devoção sanguinária de Teodora, que restaurou as imagens na igreja oriental.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Monotelismo e Iconoclastia

Enquanto os árabes sob Abu Bakr e Omar estavam invadindo os países gregos, e arrancando província após província do império, o imperador contentou-se em enviar exércitos para repeli-los e permaneceu em sua capital para a discussão de questões teológicas. Desde a conclusão de suas guerras bem-sucedidas contra a Pérsia, a religião tinha se tornado quase o objetivo exclusivo de sua solicitude. Duas grandes controvérsias estavam, no momento, agitando todo o mundo cristão. A primeira dessas, a assim chamada controvérsia monotelista, pode ser descrita, em geral, como um reavivamento, sob uma forma um pouco diferente, da velha heresia monofisita, ou de Eutiques. Sob o nome geral dos monofisitas estão compreendidos os quatro principais ramos de separatistas da igreja oriental: os jacobitas sírios, os coptas, os abissinianos e os armênios. O originador dessa numerosa e poderosa comunidade cristã foi Eutiques, abade de um convento de monges em Constantinopla, no século V. Os monofisitas negavam a distinção das duas naturezas em Cristo; os monotelitas, por outro lado, negavam a distinção da vontade, divina e humana, no bendito Senhor. Uma tentativa bem-intencionada, porém frustrada, do imperador Heráclito, foi reconciliar os monofisitas à igreja grega. Mas, como o som da controvérsia é raramente ouvido dentre os sectários orientais após esse período, e como um relato detalhado de suas disputas não seria de nenhum interesse aos nossos leitores, deixamos isto para as páginas da história eclesiástica.*

{* Para maiores detalhes sobre as diferentes seitas, veja Dicionário das Igrejas Cristãs e Seitas, de Marsden, e Crenças do Mundo, de Gardner.}

A iconoclastia, ou o surto de destruição de imagens, merece uma consideração mais detalhada. Ela penetrou no coração da Cristandade como nenhuma outra controvérsia tinha feito até então, e forma uma importante época na história da Sé Romana. Jezabel agora aparece em suas verdadeiras cores, e, deste momento em diante, seu caráter maligno é indelevelmente estampado no papado. Os papas que então preenchiam a cadeira de São Pedro defendiam e justificavam abertamente a adoração a imagens. Este foi, certamente, o início do papado -- a maturidade do sistema de desonra a Deus. Os fundamentos do papado foram descobertos, e assim tornou-se evidente que a perseguição e a idolatria eram os dois pilares sobre os quais seu domínio arrogante repousava.

sábado, 24 de dezembro de 2016

O Único Grande Objetivo do Papado

A cada dia tornava-se mais e mais evidente que não poderia haver paz sólida para Roma, nem fundamento seguro para a supremacia já alcançada, a menos que fosse alcançada a derrubada total tanto dos poderes gregos quanto lombardos na Itália, e a apropriação de seus espólios pela santa Sé. Este era então o único grande objetivo dos sucessores de São Pedro e a batalha que eles tinham que lutar. Mas, assim como a vinha de Nabote, o jizreelita, isso deveria ser possuído por bem ou por mal. Jezabel conspira, e a morte de Nabote é realizada. A história dos reis lombardos e da grande controvérsia iconoclástica durante os séculos VII e VIII lançam muita luz sobre os meios usados para alcançar esse fim; mas disso tudo podemos dizer apenas uma palavra para passarmos adiante, e sugerir aos nossos leitores a consulta direta à história geral.*

{* Veja especialmente a Cathedra Petri de Greenwood.}


"Há abundante fundamento histórico para acreditar", diz Greenwood, "que esse objetivo havia, por essa época, se moldado muito distintamente na mente do papado: o território de seu inimigo religioso, o imperador, devia ser definitivamente anexado ao patrimônio de São Pedro, juntamente a um Estado territorial muito mais extenso à medida que a oportunidade viesse ao alcance.  Mas restava a árdua e aparentemente impossível tarefa de arrancar essas potenciais aquisições das mãos do inimigo lombardo. E, de fato, todo o curso da política papal estava então direcionada ao cumprimento desse único objetivo."

domingo, 4 de dezembro de 2016

A Superstição e a Idolatria de Gregório

Ambição misturada com humildade e superstição misturada com fé caracterizavam o grande pontífice. Esta estranha mistura e confusão era, sem dúvida, o resultado de sua falsa posição. É difícil entender como um homem de tão bom senso pôde se tornar tão degradado pela superstição a ponto de acreditar na operação de milagres por meio de relíquias, e recorrer a tais coisas para a confirmação da verdade das Escrituras. Mas a triste verdade é que, em vez de devotar-se aos interesses de Cristo, ele foi cegado pelo grande e absorvente objetivo: os interesses da igreja de Roma. Paulo podia dizer: "Uma coisa faço"; e também "Uma coisa sei". Primeiro, devemos saber que somos perdoados e aceitos; então, fazer as coisas que agradam a Cristo é o elevado e celestial chamado do cristão. "Para conhecê-lo, e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições, sendo feito conforme à sua morte... Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus" (Filipenses 3:10-14). Tal era, e deveria sempre ter sido, o espírito e o anelo do cristianismo. Mas o que encontramos ao final do sexto século? Qual era a "uma coisa" que Gregório tinham em vista? Claramente não eram as reivindicações de um Cristo celestial, e conformidade com Ele em Sua ressurreição, sofrimentos e morte. Podemos seguramente afirmar que o grande objetivo de sua vida pública foi estabelecer além de qualquer disputa o bispado universal de Roma. E para este fim, em vez de levar almas a deliciarem-se nos caminhos de Cristo, assim como nEle Próprio, o que Paulo sempre fez, ele buscava fazer avançar suas reivindicações da Sé Romana pela idolatria e corrupção. Nem mesmo o espírito de perseguição estava totalmente ausente.

O monasticismo, sob o patrocínio de Gregório, especialmente de acordo com as regras mais estritas de Bento, foi grandemente revivido e amplamente estendido. A doutrina do purgatório, respeito por relíquias, a adoração de imagens, a idolatria dos santos e dos mártires, o mérito das peregrinações a lugares santos, foram todos ensinados ou sancionados por Gregório, como coisas conectadas ao seu sistema eclesiástico. E temos de reconhecer que tudo isso são características inegáveis da atividade de Balaão e da corrupção de Jezabel.

Mas agora passemos ao século VII. A Idade das Trevas está próxima, e tenebrosa de fato ela é. O papado começa a assumir uma forma definida. E, como chegamos em nossa história ao final de uma era do cristianismo e ao começo de outra, podemos fazer uma pausa proveitosa por um momento para fazer um levantamento geral do progresso do evangelho em diferentes países.

Reflexões sobre a Missão de Agostinho e o Caráter de Gregório

Agostinho [de Cantuária] é mencionado por alguns historiadores como um cristão devoto, e seu empreendimento missionário como um dos maiores nos anais da igreja. Mas, sem querer diminuir um degrau sequer da grandeza do homem ou de sua missão, não podemos nos esquecer que as Escrituras são o único padrão verdadeiro de caráter e obras. Ali aprendemos que o fruto do Espírito é "amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança" (Gálatas 5:22). E, certamente, o grande clérigo não manifestou para com seus irmãos, os cristãos britânicos, a graça do amor, a paz, ou a conciliação; pelo contrário, ele era orgulhoso, imperioso, soberbo e vanglorioso.

Esses sérios defeitos em seu caráter não eram desconhecidos a Gregório, como ele diz, em uma carta endereçada a ele: "Eu sei que Deus tem realizado, através de você, grandes milagres entre o povo, mas lembremo-nos de que, quando os discípulos disseram com alegria ao divino Mestre: 'Senhor, pelo teu nome, até os demônios se nos sujeitam', Ele lhes respondeu: 'Alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus'*. Enquanto Deus assim emprega sua agência, lembre-se, meu querido irmão, de julgar a si mesmo secretamente por dentro, e conhecer bem o que você é. Se você ofendeu a Deus em palavras ou ações, preserve essas ofensas em seus pensamentos para reprimir a vanglória de seu coração, e considere que o dom de milagres não lhe é concedido por si mesmo, mas para aqueles cuja salvação você está trabalhando para conseguir". Em outra carta ele o alertou contra a "vaidade e pompa pessoal", e lembrou-lhe "que o pálio de sua dignidade devia ser usado no serviço da igreja, e não para ser colocado em competição com o púrpura real nas ocasiões estatais".

{* Lucas 10:17-20.}

Agostinho era totalmente inadequado para uma missão que requeria paciência e uma terna consideração pelos outros. A igreja britânica tinha existido por séculos, seus bispos tinham tomado parte em grandes concílios eclesiásticos e assinado seus decretos. Os nomes de Londres, York e Lincoln são encontrados nos registros do Concílio de Arles (314 d.C.), de modo que devemos, no mínimo, respeitar nos britânicos o desejo deles de aderirem à liturgia transmitida pelos seus ancestrais, e de resistir à suposição estrangeira da supremacia espiritual de Roma. Agostinho falhou completamente em se aproveitar das lições de humildade que tinha recebido de seu grande mestre, e assim tem menos motivo de reivindicação sobre nossa estima e admiração.

O grande clérigo Gregório, assim como seu grande missionário, não sobreviveu muito tempo após a conquista espiritual da Inglaterra. Desgastado por seus grandes labores e enfermidades, ele morreu no ano 604, assegurando a seus amigos que a expectativa da morte era seu único consolo, e pedindo-lhes que orassem por sua libertação dos sofrimentos corporais.

A conduta de Gregório durante os treze anos e seis meses em que foi bispo de Roma demonstra um zelo e uma sinceridade dificilmente igualada na história da igreja romana. Ele era laborioso e abnegado no que ele acreditava ser o serviço de Deus, e em seu dever para com a igreja e para com toda a humanidade. A coleção de suas cartas, quase 850 em seu número, carrega um amplo testemunho de sua capacidade e atividade em todos os assuntos dos homens, e em todas as esferas da vida. "De tratar com reis patriarcas ou imperadores sobre as mais elevadas preocupações da Igreja e do Estado, ele passava a dirigir o gerenciamento de uma fazenda, ou ao alívio de algum aflito peticionário em alguma dependência distante de sua Sé. Ele aparece como um papa, como um soberano, como um bispo, como senhorio. Ele toma medidas para a defesa de seu país, para a conversão dos pagãos, para a repreensão e reconciliação dos cismáticos", etc.*

{* J.C. Robertson, vol. 2, p. 4.}

Mas, não obstante as variadas excelências de Gregório, ele era profundamente infectado com os princípios e o espírito da época em que vivia. O espírito de Jezabel estava evidentemente trabalhando ainda em sua juventude. Em vão procuramos por qualquer coisa parecida com a simplicidade cristã na igreja de Deus dessa época. Não podemos duvidar da piedade do próprio Gregório; mas, como um eclesiástico, o que ele era? Envenenado até o fundo do coração pela grosseira ilusão das reivindicações universais da cadeira de São Pedro, ele não podia arriscar nenhum rival, como vemos em sua oposição determinada e amarga às pretensões de João, bispo de Constantinopla; e, o que era ainda mais tenebroso, vemos o mesmo espírito em sua exultação ao saber sobre o assassinato do imperador Maurício e sua família pelo cruel e traiçoeiro Flávio Focas, simplesmente porque Gregório presumiu que Maurício fosse culpado do que ele considerou heresia. Ao que parece, Maurício apoiou o que Gregório julgou ser usurpação da parte de João, ao assumir o título de bispo universal. Mas mesmo sancionar tal afirmação não era qualquer pequeno crime na mente do pontífice romano. E assim foi com Gregório. Quando a notícia da sangrenta tragédia chegou a seus ouvidos, ele se alegrou; pareceu a ele ser uma luz de dispensação providencial para a libertação da igreja de seus inimigos. As própria fontes de caridade parecem ter secado nos corações de todos os que já se sentaram em um trono papal, quando se tratava de rivais eclesiásticos. A justiça, a franqueza, a humanidade, e todo sentimento correto do cristianismo acabam cedendo às dominantes reivindicações da falsa igreja. Até mesmo Gregório se curvou e foi terrivelmente corrompido pela "mulher Jezabel" (Apocalipse 2:20).

domingo, 30 de outubro de 2016

A Epístola à Igreja em Tiatira

Capítulo 13: Roma e a Expansão de Sua Influência (397 - 590 d.C.)


"E ao anjo da igreja de Tiatira escreve: Isto diz o Filho de Deus, que tem seus olhos como chama de fogo, e os pés semelhantes ao latão reluzente: Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras. Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu. Eis que a porei numa cama, e sobre os que adulteram com ela virá grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras. E ferirei de morte a seus filhos, e todas as igrejas saberão que eu sou aquele que sonda os rins e os corações. E darei a cada um de vós segundo as vossas obras. Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha. E ao que vencer, e guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações, e com vara de ferro as regerá; e serão quebradas como vasos de oleiro; como também recebi de meu Pai. E dar-lhe-ei a estrela da manhã. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas." (Apocalipse 2:18-29)

Pensamos que basta um pouco de discernimento espiritual e um conhecimento moderado sobre a história eclesiástica para ver o papado da Idade Média prenunciado nesta epístola. Vimos em Éfeso o declínio do primeiro amor, em Esmirna a perseguição do poder romano, em Pérgamo vemos Balaão seduzindo a igreja e a unindo ao mundo; mas as coisas são ainda piores em Tiatira. Aqui temos as consequências tristes porém naturais dessa união ímpia. Como poderia ser de outro modo quando qualquer que meramente se submetesse ao rito exterior do batismo fosse considerado como nascido de Deus? A porta foi assim escancarada para que o destruidor e o corruptor entrassem no recinto sagrado da igreja de Deus. Todo o testemunho quanto ao seu caráter celestial e sua separação do mundo estava agora perdido. Ela tinha falsificado a palavra do Senhor que diz aos Seus discípulos: "Não são do mundo, como eu do mundo não sou" (João 17:16). De fato, na aparência, o cristianismo tinha ganhado uma vitória. A cruz era então revestida em ouro e pedras preciosas, mas esta era a glória do mundo, não de um Cristo crucificado. Era, na verdade, o mundo que tinha ganhado a vitória, e a humilhação da igreja assim estava completa.

Apenas o Senhor podia estimar as terríveis consequências de tal estado de coisas. Seus olhos viam a corrupção, as idolatrias, e as perseguições da assim chamada Idade das Trevas, da qual a igreja em Tiatira foi um prenúncio notável. Veremos agora resumidamente o conteúdo da epístola.
  1. Os títulos do Senhor são a primeira coisa a ser observada. Eles são cheios das mais adequadas instruções para os poucos fiéis quando o corpo geral de cristãos está identificado com este mundo. Ele Se apresenta como o Filho de Deus, que tem olhos como chama de fogo, e Seus pés como latão reluzente. Quando Pedro confessou que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo, Ele imediatamente acrescentou: "Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela". E agora, em antecipação a tudo o que estava por vir, Ele chama a atenção para os pensamentos de Seu povo para o fundamento imutável sobre o qual a igreja é construída. Ele também assume os atributos do juízo divino. Fogo é o símbolo dos penetrantes olhos de juízo, como chamas de fogo, de um juízo que a tudo perscruta; e os pés como latão reluzente, do juízo iminente. 

    Aqui temos, então, no caráter que o bendito Senhor toma, a garantia da perfeita segurança do remanescente fiel, e a afirmação do infalível julgamento sobre a falsa profetiza e sua numerosa prole de filhos corruptos -- filhos de sua sedução e corrupção. Jezabel era não apenas uma profetiza como também uma mãe: ela não apenas seduziu o povo de Deus por suas falsas doutrinas, matando também a muitos; como também uma ampla classe dos piores dentre os homens derivou sua existência a partir de sua corrupção [de Jezabel]. Isto é dolorosamente manifesto no decorrer de toda a Idade das Trevas - o "estado de Jezabel" da igreja. Ela se estabeleceu dentro da igreja como se fosse sua própria casa, e decretou a todo o mundo que ela era infalível e que devia ser implicitamente obedecida em todos os assuntos da fé. Concordar com tal suposição blasfema era infidelidade a Cristo; se opôr a ela resultava em sofrimento e morte.

  2. À medida que as pretensões de Roma falavam cada vez mais alto e as trevas cresciam cada vez mais densas, muitos dos santos de Deus se tornaram cada vez mais devotos a Cristo e a Suas reivindicações. O que é devido a Cristo deve sempre ser a palavra de ordem do cristão, e não o que é devido àqueles em posições elevadas. Parece ter havido uma energia espiritual nessa época que se ergue acima de tudo o que houve desde os dias dos apóstolos. Isto é graça -- a maravilhosa graça de Deus para com Seus verdadeiros santos em um tempo de muita provação. É a linha prateada de Seu próprio amor que é tão preciosa a Sua vista. Podemos nem sempre ser capazes de traçá-la na história eclesiástica, mas lá está ela, e lá ela brilha aos olhos e ao coração de Deus em meio à abundante iniquidade. Isto deve ser notado, e sempre lembrado, como algo de muito encorajamento ao cristão quando colocado em circunstâncias de provas. Ouça o que o Próprio Senhor diz: "Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras". Aqui temos amor, fé e esperança em vivo exercício, os três grandes princípios fundamentais do verdadeiro cristianismo prático; e vemos que as últimas obras são mais que as primeiras. Não nos deparamos com tal testemunho fiel, ou tal medida de devoção, desde os primeiros dias da igreja em Tessalônica. Pode ser, no entanto, que a impiedade ao redor tornou a piedade deles ainda mais preciosa para o coração do Senhor, levando-O a elogiá-los ainda mais. Mas nenhum coração que bate verdadeiramente para Ele em um dia mau passará desconhecido, despercebido ou não recompensado.

  3. No entanto, embora o Senhor ame elogiar o que Ele pode em Seu povo, e observar as coisas boas antes de falar das coisas más, Ele também não tarda em detectar suas falhas. Eles corriam o perigo de adulterarem com a falsa doutrina e com o falso sistema religioso de Jezabel; portanto Ele diz: "Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria" (v. 20). Não obstante a fidelidade de muitas almas fervorosas em Tiatira (ou seja, na igreja medieval), havia também a aceitação pública do espírito do mal: "toleras a mulher Jezabel" (versão Almeida Revisada). Esta era a sombra escura sobre a linha prateada: que às vezes acaba parecendo completamente obscurecida. Mas o Senhor não falhou, como sempre, em levantar testemunhas adequadas para Ele Próprio. Assim como havia santos na casa de César, um Obadias na casa de Acabe, um remanescente fiel em Israel que não tinha se curvado a Baal, assim o Senhor nunca foi deixado sem uma testemunha fiel no decorrer da Idade Média. No entanto, havia uma permissividade ao mal no estado geral de coisas, o que entristecia o coração do Senhor e trazia os Seus juízos.

    "A mulher", pode ser interessante observar, é usada como um símbolo do estado geral; "o homem", é dito, é um símbolo de atividade responsável. Balaão e Jezabel são nomes simbólicos -- um profeta e uma profetiza. O primeiro agiu como um sedutor entre os santos; e a última se estabeleceu dentro da igreja professa e fingia ter absoluta autoridade ali. Isto era ir muito além até mesmo da impiedade de Balaão. Mas todos sabemos o que Jezabel foi quando se assentou como rainha em Israel. Seu nome chega até nós como envolto em crueldades e sangue. Ela odiava e perseguia as testemunhas de Deus; ela encorajava e patrocinava os sacerdotes idólatras e profetas de Baal; ela acrescentava violência à corrupção: tudo virou ruína e confusão. E este é o nome que o Senhor escolheu para simbolizar o estado geral da igreja professa durante a Idade Média. Em Tiatira, Ele, cujos olhos eram como chama de fogo, podia ver a semente daquilo que carregaria tal fruto ruim até dias póstumos, e assim Ele adverte Seu povo para que retenham aquilo que eles já tinham, o que inclui Ele Próprio. "Outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha". Como o estado de Jezabel continua até o fim e nunca pode ser consertado, o Senhor direciona então os olhos da fé do remanescente para Seu próprio retorno -- "Até que eu venha". A brilhante esperança de Sua vinda é assim apresentada como um conforto ao coração em meio à ruína geral; e Seus santos são aliviados, pelo Próprio Senhor, das vãs tentativas dos homens de consertar a igreja {*N. do T.: aqui no sentido de seu testemunho na terra} e o mundo. Que libertação misericordiosa! Mas a pobre natureza humana não pode entendê-la, e assim tenta, vez após outra, consertar questões tanto na igreja como no Estado.

  4. Temos evidentemente três classes de pessoas mencionadas nesta epístola: (1) Os filhos de Jezabel -- aqueles que devem seu nome e lugar cristão ao seu sistema corrupto. Um julgamento impiedoso levará a todos estes. Foi dado espaço para o arrependimento, mas eles não se arrependeram; portanto, o pleno juízo de Deus cairá sobre eles. "Ferirei de morte a seus filhos". (2) Aqueles que não são seus filhos, mas que não fazem oposição a ela: são maleáveis e indolentes. Esta, infelizmente, é uma ampla classe de pessoas em nossos próprios dias. Ela caracteriza a condição pública da cristandade. Sem consciência diante de Deus, eles se contentam em flutuar suavemente correnteza abaixo, em comunhão com algum sistema religioso que lhes pareça mais agradável a suas próprias mentes. Quanto ao que é agradável para a mente de Deus, eles nunca buscam saber. Ainda assim eles são Seus filhos. O juízo para tais é "grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras". (3) O remanescente fiel, os "vencedores". Eles são aqui mencionados como "os demais", ou o remanescente; eles terão poder sobre as nações em associação com Cristo quando Ele vier para reinar. Enquanto isso eles têm essa doce e preciosa promessa: "E dar-lhe-ei a estrela da manhã". Isto é a associação consciente com Ele Próprio até mesmo hoje. A igreja medieval era especialmente culpada de duas coisas: ela arrogante e perversamente buscava possuir poder supremo sobre as nações, e ela perseguia o remanescente fiel dos santos, tais como os valdenses e outros. Mas os santos, uma vez assim perseguidos, ainda possuirão o reino, e reinarão com Cristo por 1000 anos; e todo o sistema de Jezabel será totalmente e para sempre rejeitado: "É forte o Senhor Deus que a julga" (Apocalipse 18:8).

  5. Há apenas mais uma coisa para tomar nota neste esboço da condição pública da cristandade desde o início do sistema papal. A exortação a "ouvir" é colocada após a promessa especial. Isto marca o remanescente como distinto e separado do corpo geral. Nas três primeiras igrejas a palavra de advertência -- "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas" -- vem antes da promessa. Mas nas quatro igrejas finais temos a promessa antes do chamado a ouvir. O significado óbvio dessa mudança é profundamente solene. Nas primeiras três, o chamado a ouvir é dirigido a toda a assembleia, mas nas últimas apenas ao remanescente. Parece que, nestas, é esperado que ninguém ouviria além dos vencedores. O corpo professo geral parece tanto cego como surdo através do poder de Satanás e das poluições de Jezabel; que temível condição! Devemos também ter em mente que os quatro estados, como representados pelas últimas quatro igrejas, continuam até o final da vinda do Senhor. Que Ele possa nos guardar de tudo o que cheire a Jezabel, para que possamos apreciar devidamente nossa união com Ele Próprio e Suas bênção prometidas aos "vencedores".

Tendo então brevemente examinado o quadro divinamente pintado sobre o estado de Jezabel da igreja durante a Idade das Trevas, nos voltaremos agora aos amplos, porém tristes, registros de sua história.

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