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domingo, 9 de fevereiro de 2020

Reflexões Sobre as Calamidades de Languedoque

Para toda mente atenciosa, para todo homem de fé, especialmente para aqueles que estudam a história do ponto de vista das Escrituras, as guerras em Languedoque são muito sugestivas. Elas são as primeiras já registradas desse tipo. Foi Inocêncio III o precursor novo tipo de guerra. Houve muitos casos de indivíduos sendo sacrificados por causa do sacerdócio católico, tal como Arnaldo de Bréscia, mas essa foi a primeira experiência em grande escala que a Igreja fez para manter sua supremacia pela força das armas. Observe que não foi o exército da Igreja saindo em santo zelo contra o pagão, o muçulmano ou o negador de Cristo, mas a própria Igreja em armas contra os verdadeiros seguidores de Cristo, contra aqueles que reconheciam Sua divindade e a autoridade da Palavra de Deus.

Podemos encher as páginas com citações de seus piores inimigos quanto à firmeza da fé deles, à pureza de sua moral e à simplicidade de suas maneiras. Daremos apenas dois ou três exemplos vindos das mais altas autoridades da igreja de Roma. "Eles negavam", diz Barônio, "a utilidade do batismo infantil; que o pão e o vinho se tornavam corpo e sangue do Senhor pela consagração de um padre; que ministros infiéis tinham direito ao exercício do poder eclesiástico ou a dízimos ou primícias; que a confissão auricular era necessária. Todas essas coisas os miseráveis ​​afirmavam que aprenderam com os Evangelhos e com as Epístolas, e que nada receberiam que não fosse o que encontravam expressamente contido nelas, rejeitando assim a interpretação dos doutores, embora eles mesmos fossem perfeitamente iletrados". Reinerius, o inquisidor e perseguidor dos albigenses, diz: "Eles eram os inimigos mais formidáveis ​​da igreja de Roma, porque possuem uma grande aparência de piedade, porque vivem retamente diante dos homens, creem corretamente em Deus em todas as coisas, e mantêm todos os artigos do credo; no entanto, eles odeiam e ofendem a igreja de Roma e o clero, e em suas acusações são facilmente cridos pelo povo". São Bernardo, que os conhecia intimamente, tendo vivido entre eles, mas que considerava seu dever opor-se a eles como sendo inimigos do papa, admite francamente: "Se você lhes pergunta sobre sua fé, nada pode ser mais cristão do que a resposta deles; se você observa a sua conversa, nada pode ser mais irrepreensível, e o que eles falam, tornam em bem por suas ações. Você pode ver um homem, pelo testemunho de sua fé, frequentar a igreja, honrar os anciãos, oferecer seus dons, fazer sua confissão, receber o sacramento. O que pode ser mais parecido com um cristão do que isso? Quanto à vida e às maneiras, ele não tenta enganar ninguém, não tenta levar a melhor sobre ninguém, não faz violência a ninguém. Ele jejua muito e não come o pão da ociosidade, mas trabalha com as mãos para o seu próprio sustento".*

{*Veja Milner e Gardner, conforme citados na seção anterior.}

Tal era, portanto, o caráter espiritual, moral e social dos albigenses, como evidenciado por seus próprios inimigos. Eles eram verdadeiras testemunhas de Cristo, evidentemente formadas pela graça de Deus para mostrar Seu louvor no mundo. E, se tivéssemos tantos escritos deles quanto têm os reformadores do século XVI, poderíamos talvez descobrir que eles eram mais simples em certos pontos de doutrina do que esses. Mas, segundo a mente do Senhor, outros trezentos anos foram necessários para amadurecer a Europa para a Reforma; durante esse tempo, as artes da impressão e da fabricação de papel foram descobertas.

Qual então, pode-se perguntar, foi o crime dos albigenses? O cerne da ofensa deles era simplesmente este: negavam a supremacia do papa, a autoridade do sacerdócio e os sete sacramentos, conforme ensinado pela igreja de Roma; e, aos seus olhos, não havia criminosos maiores na face de toda a terra; portanto, o extermínio absoluto deles era seu único decreto imutável. Aqueles que escapavam da espada do cruzado tinham de ser apanhados nas armadilhas do inquisidor.

"Em centenas de aldeias", diz o historiador, "todos os habitantes foram massacrados. Desde o saque de Roma pelos vândalos, o mundo europeu nunca lamentou um desastre nacional tão amplo em sua extensão ou tão terrível em seu caráter." Que registro! Que testemunha! E se tais são os registros da terra, quais não serão no céu! Oh, Roma! Roma! Embriagada com o sangue dos santos de Deus e coberta com as execrações de milhões, qual será o teu futuro? Como suportarás as acusações daqueles a quem enganaste com tuas mentiras e a quem fizeste perecer com tua espada? Será que alguém ousará pensar que estamos exagerando? Ouçam o discurso de um dos bispos aos cruzados antes da batalha de Muret: "Todo aquele que confessou seus pecados a um padre, ou tem a intenção de fazê-lo após a batalha, ao morrer obterá a vida eterna e escapará da passagem pelo purgatório. Eu serei vossa garantia no dia do julgamento. Parti, em nome de Cristo." Não era essa uma mentira enganadora de almas? Jezabel, porém, ouvirá sobre isso novamente um dia. "Porque já os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela. Tornai-lhe a dar como ela vos tem dado, e retribuí-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber, dai-lhe a ela em dobro... Portanto, num dia virão as suas pragas, a morte, e o pranto, e a fome; e será queimada no fogo; porque é forte o Senhor Deus que a julga... E nela se achou o sangue dos profetas, e dos santos, e de todos os que foram mortos na terra." (Apocalipse 18:5-24)

Mas Roma, sem saber, traiu seu próprio objetivo. Apesar da terra de Languedoque ter ficado desolada, os albigenses que escaparam da espada fugiram para outros países. Pela graça e boa providência de Deus, eles pregaram o evangelho em quase todas as partes da Cristandade e testemunharam contra as crueldades, as superstições e as falsidades da igreja de Roma. A partir dessa época, começa a perder a confiança e a reverência da humanidade. Assim o Senhor preparou o caminho para Wycliffe e Huss, Melancthon e Lutero.

domingo, 1 de dezembro de 2019

A Dispersão dos Seguidores de Valdo

Quando Valdo fugiu, seus discípulos o seguiram. A dispersão aconteceu de modo similar à que surgiu por ocasião da perseguição de Estêvão. Os efeitos também foram similares: o bendito evangelho acabou sendo ainda mais amplamente disseminado por toda a Europa. O maior poder deles era a posse das Escrituras Sagradas em sua própria língua. Eles liam os Evangelhos; eles pregavam e oravam na língua popular. Muitos deles, sem dúvida, chegaram aos vales de Piemonte e às cidades de Languedoque. Uma nova tradução da Bíblia era, sem dúvida, uma rica adesão aos tesouros espirituais daquele interessante povo.

A cena estava então pronta para o papa Inocêncio III: as ameaças papais, tendo sido transmitidas por sua vigorosa mão, foram executadas com uma mente disposta e implacável. Ele, que tinha humilhado os grandes reis da Alemanha, França e Inglaterra, e que tinha recebido submissão implícita de quase todas as partes da Cristandade, ainda era renegado como o supremo chefe da igreja pelos valdenses, onde quer que fossem achados. Dificilmente um espírito como o de Inocêncio continuaria a suportar com calma essa resistência a sua vangloriada supremacia universal. Mas qual era o crime deles? Onde eles poderiam ser encontrados? E como eles deveriam ser tratados?

1. Eles tinham a mais alta reputação em todos os lugares, até mesmo por parte de seus piores inimigos, por sua modéstia, simplicidade, honestidade, castidade e temperança. "Em nenhum caso", diz uma alta autoridade que não era muito favorável aos que ele chamava de anti-sacerdotalistas, "a moral e os costumes de Pedro Valdo e dos Cristão Bíblicos Alpinos podiam ser arranhados por seus mais amargos inimigos". O "pecado mortal" deles vinha do apelo que faziam às Escrituras, e somente às Escrituras, em todos os assuntos de fé e adoração. Eles rejeitavam o vasto sistema da tradição-religião mantido pela igreja de Roma. Tanto em vida quanto em doutrina eles eram nobres testemunhas de Cristo e da simplicidade do evangelho; mas isso acabava se constituindo como um poderoso protesto contra a riqueza, o poder e as superstições da religião dominante. Eles rejeitavam os quase inumeráveis sacramentos de Roma, e mantinham a posição de que havia só dois deles no Novo Testamento -- o batismo e a ceia do Senhor. Em geral, podemos dizer que eles anteciparam e defenderam as mesmas doutrinas que, após um lapso de três séculos, seriam promulgados pelos reformadores da Alemanha e da Inglaterra, e que constituem o credo dos protestantes na atualidade.

2. O progresso dos "homens pobres de Lyon", após a perseguição deles, parece ter sido rápido e amplamente estendido. Dizem que eles se espalharam pelo sul da França, para a Lombardia e Aragon. "Em Lombardia e Provença", diz Robertson, "os valdenses tinham mais escolas do que os católicos; seus pregadores disputavam e ensinavam publicamente, enquanto o número e a importância dos patronos que os protegiam fizeram com que fosse perigoso interferir no trabalho deles. Na Alemanha, eles tinham quarenta e uma escolas na diocese de Passau, e eram numerosos nas dioceses de Metz e Toul. Da Inglaterra ao sul da Itália, desde Helesponto até o Ebro, suas opiniões eram amplamente difundidas."*

{* J.C. Robertson, vol. 3, pp. 179-202. Waddington, vol. 2, p. 187. History of France de Sir. J. Stephen, vol. 1, p. 218.}

3. Tal era o estado de coisas quando o papa Inocente III subiu ao trono papal. Com pressentimentos ansiosos e um olho de águia, ele observava esse espírito de independência religiosa, mas a questão era como ele poderia efetivamente esmagá-lo. Além disso, nessa época, como o leitor se lembrará, suas mãos estavam cheias. Ele estivera buscando destruir o equilíbrio de poder na Alemanha e na Itália, contendia com os reis da França e da Inglaterra, dirigia a marcha dos cruzados, e derrubava, por meio deles, o império grego em Constantinopla; mesmo assim ele ficou observando, e se determinou a punir cada dissidência dos dogmas da igreja de Roma e cada exercício da faculdade de pensamento de seus súditos religiosos. Havia altos rumores, por volta dessa época, de que os dois principais focos de desafeto em relação a Roma vinham dos vales de Piemonte e do sul da França. Os cristãos piemonteses floresceram na obscuridade, enquanto os albigenses se tornaram mais notórios, assim como mais perigosos, por causa da proteção que conseguiram nas ricas cidades de Languedoque. Raimundo VI, conde de Toulouse, não apenas favorecia aqueles que eram do credo valdense, considerando-os seus melhores súditos, como também os empregava em sua família, embora declaradamente fosse católico romano. O conde de Foix casou-se com uma valdense e, de suas duas irmãs, uma dizia ser valdense, e a outra catarista, ou puritana.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

A História das Indulgências

Assim prevaleceu o sistema das indulgências em cada vez maior extensão à medida que avançava o tempo; e embora, como consequência de seus gritantes abusos, alguns dos melhores escolásticos não hesitassem em expressar suas objeções ao comércio que estava ocorrendo na venda de indulgências, outros escreviam em favor, e os homens em geral temiam sofrer um longo período de severa penitência e de desagradáveis austeridades, quando podiam obter absolvição imediata por meio de pagamentos pecuniários, ou dando esmola às igrejas e clérigos. Desde o início foi a prática da igreja de Roma impôr obras ou sofrimentos dolorosos sobre os ofensores quando estes eram submetidos com humildade ao que eles chamavam de satisfações; mas quando a penitência era abreviada ou inteiramente remida por alguma consideração em dinheiro ou boas obras, eles chamavam de indulgência. O preço era regulado de acordo com a natureza do crime e as circunstâncias do comprador.

O seguinte curioso evento, citado por Milner do relato de Burnet, dará ao leitor uma ideia melhor da extensão desse notável comércio do que qualquer coisa que pudéssemos dizer sobre o assunto, e isto aconteceu em uma época em que, devido à Reforma, a venda tinha diminuído consideravelmente: "Burnet nos informa que a escandalosa venda de perdões e indulgências não havia cessado completamente, de maneira alguma, nos países papistas, como é comumente aceito. Ele diz que na Espanha e em Portugal há, em todo o lugar, um comissário que gerencia a venda com as circunstâncias mais infames imagináveis. Na Espanha, o rei, por meio de um acordo com o papa, retém os lucros. Em Portugal, o rei e o papa dividem os lucros.

"No ano de 1709 os corsários de Bristol tomaram de assalto um galeão, no qual acharam quinhentos fardos com indulgências papais... e dezesseis resmas estavam em um fardo, de modo que podia-se contar um total de três milhões e oitocentos e quarenta mil indulgências. Estas eram impostas ao povo e vendidas, a mais barata por três moedas de ouro, mas algumas eram mais caras. Todos eram obrigados a comprá-las durante a Quaresma. Além do relato dado sobre essa viagem, recebi um testemunho em particular sobre isso do Capitão Dampier".*

{* Milner, vol. 3, p. 439}

Mas o leitor estará mais preparado para essa quase incrível afirmação se prosseguirmos até a história do período em que isso ocorreu. Por enquanto, vimos o suficiente para dar ao leitor uma ideia correta do fundamento, caráter e efeitos do tráfico. O sacramento do matrimônio terá um espaço tão importante para nós que precisaremos dar a ele um capítulo especial mais tarde. Assim, deixamos por enquanto o doloroso e interessante assunto sobre a teologia romana, lamentando profundamente as práticas da Cristandade papal, e retornemos a nossa história geral.*

{*Para mais detalhes sobre os sacramentos por escritores católicos, veja Concílio de Trento, de Paulo II, O Catecismo Do Concílio De Trento, de Donovan, End of Controversy, de Milner; e para críticas bastante afiadas sobre essas doutrinas, veja Variations of Popery, de Edgar, assim como os livros de história em geral.}

As Indulgências

O sistema das indulgências papais, que gradualmente se elevou a tais alturas e, finalmente, produziu seus efeitos, requer uma atenção cuidadosa, embora breve. Sempre foi a prática do gênio maligno de Roma introduzir de maneira sutil os maiores males que caracterizam sua história. Imperceptivelmente, a fina ponta da cunha é introduzida pelo espírito que governa sua política, e quando introduzida, toda a máquina do sistema romano é empregado para alcançar o fim pretendido. Por um aparente respeito à memória dos mortos, e uma consideração pelos sinais de sua afeição, a adoração aos santos e às relíquias foi introduzida, o que resultou na maior e mais evidente idolatria. E assim é também com todo o sistema de indulgências. A corrupção eclesiástica, uma vez admitida, foi estabelecida, aumentada, e espalhada de era em era até que toda a Cristandade estivesse tomada por sua iniquidade, e o senso moral e religioso de humanidade, tão insultado pelo infame tráfico de indulgências, resultou em um protesto erguido pela Reforma logo em seguida. 

A principal característica da nova doutrina de indulgências foi a descoberta de um suposto recurso ou tesouro na igreja, que podia ser usado para o perdão dos pecados, sem a necessidade de passar por um doloroso e humilhante processo de penitência, e sem a observância de sacramentos. Alegava-se a existência de um tesouro infinito de mérito em Cristo, na Virgem Maria e nos outros santos, que era mais do que o suficiente para eles próprios. Embora fosse dito que o próprio Salvador fosse a fonte de todos os méritos, muito também se falava sobre os méritos dos santos, e disto surgiu a nova ideia das obras superrogatórias. Pelas obras de penitência dos santos, e por seus sofrimentos não merecidos neste mundo, eles tinham feito mais do que era necessário para sua própria salvação, e por essas obras superrogatórias, juntamente com os superabundantes méritos de Cristo, formou-se um tesouro para o qual o papa possuía as chaves, às quais ele podia aplicar para o alívio dos ofensores, tanto nesta vida quanto no purgatório.  O poder das chaves foi, então, usado como substituição pela eficácia dos sacramentos.

Esta é a teoria papista das indulgências, mas seu caráter anti-bíblico trai seu autor. É claramente anti-bíblico, pois promete remissão de pecados sem arrependimento; e, mesmo em solo católico, sua perversidade é evidente. A indulgência supera o exercício penitencial do indivíduo; dissolve toda a disciplina da igreja; oferece por uma soma de dinheiro o perdão de todos os pecados cometidos, e uma licença por pecados a serem cometidos; dá uma garantia por escrito de libertação das dores do purgatório, e do próprio inferno. Encoraja a mais flagrante iniquidade com a profissão do Cristianismo; de fato, por esse dogma, a moralidade foi cortada da religião. Será que a depravação papal poderia ir mais longe que isso? Homens encorajados a soltar as rédeas dos vícios, a seguir seus próprios maus caminhos, e então simplesmente comprar o perdão eterno, sem quaisquer condições de arrependimento, por uma quantia de dinheiro! Que dia de acerto de contas espera a Jezabel de Roma, e a todos os filhos de sua sedução! Que o Senhor preserve Seu povo de suas seduções agora!

A história coloca a primeira indulgência formal emitida pela igreja católica de Roma na primeira parte do século XI, mas o sistema foi colocado em pleno funcionamento pelas cruzadas. O papa Urbano II, em Clermont, no ano de 1095, proclamou uma indulgência plenária e remissão dos pecados para todos os que participassem da guerra santa. Tornou-se costume, após esse período, conceder indulgências de menor grau. A absolvição de cem anos ou mais de purgatório podia ser adquirida de um bispo ao reparar ou ampliar os edifícios da igreja, ao construir uma ponte ou pela colocação de uma cerca ao redor de um bosque; e também por meio de deveres religiosos extras, como recitar um certo número de orações diante de um determinado altar, peregrinações a relíquias, e coisas parecidas. O papa, de acordo com a teoria do Vaticano, é o dispenseiro soberano do tesouro da igreja, e esse poder ele dispensa aos bispos em suas respectivas dioceses. O papa podia conceder indulgências a todos os cristãos; o poder do bispo é limitado a sua própria diocese.

domingo, 15 de julho de 2018

A Teologia da Igreja de Roma

Capítulo 23: A Teologia de Roma


Estamos agora cruzando o limiar do século XIII. As grandes personagens e os tempos agitados do século XII ficaram para trás. A reflexão disso tudo é solene. Além da linha que separa as dois períodos, não há como ultrapassá-la de volta. E se a agitação do século XII não estivesse verdadeiramente, embora remotamente, conectada à grande Reforma do século XVI, seria de pouco interesse para nós no século XIX*. Mas nesses homens e em suas épocas vemos as grandes correntes do pensamento e do sentimento humano que tiveram sua ascensão nos mosteiros, e seus resultados na liberdade civil e religiosa que agora desfrutamos sob a boa providência de Deus.

{*N. do T.: O autor viveu no século XIX}

Uma nova geração, uma outra classe de homens, agora ocupa o terreno. Os papas, os primazes, os imperadores, os monges, os filósofos e os demagogos com quem nos familiarizamos abriram espaço para outros. Mas para onde eles foram? Onde estão agora? Apenas fazemos a pergunta para que possamos ser levados a melhorarmos nossos próprios dias e nossas próprias preciosas oportunidades -- para que não precisemos lamentar como o profeta da antiguidade: "Passou a sega, findou o verão, e nós não estamos salvos" (Jeremias 8:20).

Chegou o momento, creio, para que as testemunhas de Deus e de Sua verdade tenham um lugar especial em nossa história. Elas têm aparecido proeminentemente, pouco a pouco, diante de nós desde o fim do século XII. Mas, primeiramente, pode ser interessante colocar diante de nossos leitores certas definições e usos teológicos e usos da igreja romana (Igreja Católica Apostólica Romana) nessa época, pois descobriremos que por elas as testemunhas foram julgadas e o papado ganhou seu poder sobre as vidas e liberdades dos santos de Deus. 

domingo, 10 de junho de 2018

A Pregação de Arnaldo

A essas novas e perigosas doutrinas o povo de Bréscia ouvia com o maior ardor. Ele desdobrou para eles as páginas escuras da história eclesiástica, sobre a qual estivemos também viajando. A cidade inteira ficou em um estado de grande excitação. Não é de admirar o entusiasmo da população, quando ouviram que as riquezas do clero deveriam retornar aos leigos, e que, no futuro, seus pastores deveriam ser mantidos pelas contribuições voluntárias do rebanho. Ele seria um pregador ousado que se atreveria a despertar o povo ao fanatismo com tais apelos e propostas no século XIX, mas o que seria dele no século XII, em meio às trevas, ignorância e superstição? Tal homem foi o reformador prematuro de Bréscia, e, sendo um severo monge de vida irrepreensível, inquestionável quanto a sua ortodoxia, e possuindo a total simpatia da religião popular, seu poder era irresistível. O grande objetivo de seus esforços era a completa derrubada do poder sacerdotal -- a supremacia secular do papa. Ele, assim, se atreveu a colocar a mão no grande esquema papal de domínio universal, e por um momento abalou sua base. O papa foi expulso de seu trono, a república foi proclamada, o estandarte da liberdade levantado, e o governo dos padres abolido. Mas o entusiasmo dos cidadãos era evanescente, sem unidade, e de curta duração. O solo ainda não estava preparado para o crescimento da liberdade. A iniquidade do sistema anticristão ainda não estava completa. A sede de Jezabel ainda não estava saciada com o sangue dos santos de Deus. Milhões ainda pereceriam antes que ela recebesse sua ferida mortal. Isso veremos em breve.

Arnaldo não estava mais seguro na Itália. O ressentimento do clero era mais forte e profundo do que o favor da população. Ele escapou para além dos Alpes, e finalmente encontrou um abrigo seguro e hospitaleiro em Zurique. Ali, foi permitido ao precursor do famoso Zuínglio que tivesse um tempo para lecionar, e o povo simples manteve por muito tempo o espírito de suas doutrinas. Mas não poderia ser permitido que tal homem vivesse em lugar algum. Bernardo observava cada um de seus movimentos. Ele implorou ao papa por medidas extremas, e escreveu raivosamente àqueles que lhe deram abrigo, alertando-os para que tomassem cuidado com a infecção fatal da heresia. Ele repreendeu severamente o bispo diocesano de Zurique por protegê-lo. "Por que", disse ele, "você ainda não afastou Arnaldo há muito tempo? Aquele que consente com o suspeito torna-se suscetível a suspeitas; aquele que favorece alguém sob a excomunhão papal contraria o papa e até mesmo o próprio Senhor Deus. Agora, portanto, que você sabe quem é esse homem, expulse-o do meio de vós; ou, melhor ainda, acorrente-o, para que não faça mais mal".

Após várias circunstâncias, como é comum no caso desse tipo de homem, e que não precisamos traçar com detalhes aqui, Arnaldo retornou a Roma. Ali foi-lhe permitido permanecer por algum tempo por causa da fraqueza do pontífice e do estado conturbado da cidade; mas quando o papa Adriano IV subiu a trono de São Pedro, os dias de Arnaldo estavam contados.

Arnaldo de Bréscia

Embora Arnaldo tenha sido um discípulo e um fiel seguidor de Abelardo, é evidente, a partir de todas as informações que podemos reunir sobre ele, que foi um homem de outra ordem. Há motivos para crer que ele tenha sido um cristão sincero, e possuía muitos dos elementos de um reformador, embora em uma época imatura para a reforma. Além disso, ele era político demais -- um grande admirador da velha República Romana -- para ser usado por Deus no estabelecimento de uma fundação sólida para a reforma da igreja. Ele foi honrado com o martírio, mas foi mais por sua defesa da liberdade civil do que por sua sujeição à pregação de Cristo e à Palavra de Deus. No entanto, ele merece nosso respeito e gratidão como um semeador precoce das sementes da grande Reforma.

Arnaldo nasceu em Bréscia, na Lombardia -- provavelmente por volta do ano 1105. Em um período inicial de sua sua história ele se separou do clero secular, abraçou a vida monástica, e começou a pregar insensivelmente contra as corrupções, tanto do clero quanto dos monges. Ele parece ter sido possuído por uma convicção interior de que tinha uma comissão divina de pregar contra o orgulho, a luxúria e a imortalidade do sacerdócio, do próprio papa até a classe mais baixa na igreja; e a essa missão ele ousada e destemidamente devotou todas as suas forças. Possuído, de acordo com todos os relatos, do mais vigoroso e desperto estilo de discurso, combinado com uma eloquência que era particularmente copiosa e fluída, ele poderosamente movia as massas para onde quer que pregasse. "Suas palavras", disse Bernardo, "são mais suaves que o azeite e mais afiadas do que a espada". Sua grande ideia era a completa separação da igreja e do Estado. O velho edifício papal --  a hierarquia que tinha se elevado a tais vastas proporções desde os dias de Constantino, e que, sob a ideologia de Gregório VII, aspirava o governo de todo o mundo, e a vinculação de todas as nações da Terra como feudos de São Pedro -- ele ousadamente manteve que deveria ser totalmente demolido e varrido da face da Terra. Ele usava, assim como muitos desde então, e embora sem conhecer sua importância espiritual, o mote: "Meu reino não é deste mundo". Ministros do evangelho, argumentava ele, não deveriam ter qualquer poder além do governo espiritual do rebanho de Cristo, e quaisquer riquezas além dos dízimos e ofertas voluntárias dos fiéis. Os imensos males e discórdias que surgiram na igreja, afirmava ele, eram principalmente devidos às vastas riquezas do pontífice, bispos e padres.

Embora houvesse uma grande medida de verdade em muito do que ele dizia, ele misturou, da maneira mais dolorosa, seu amor à velha liberdade romana à humilde religião de Jesus -- misturou o rígido monge ao feroz republicano. "Se a pobreza era uma característica de Cristo", ele exclamava, "se a pobreza era uma característica de Seus apóstolos, se a única semelhança viva e real dos apóstolos e de Cristo são os monges famintos e mal vestidos, com suas faces afundadas pela fome, seus olhos cabisbaixos, quão longe de Cristo são aqueles bispos principescos, aqueles altivos abades, com seus mantos de pele escarlata e púrpura, que montam em seus curvos palafréns, com seus adereços de ouro, suas esporas de prata, e segurando seus báculos como reis!" Consistentemente com isso, ele também ensinava ao povo "que o soberano secular é a verdadeira fonte de honra, de riqueza, de poder, e para essa fonte deveriam ser revertidas todas as posses da igreja, as propriedades dos mosteiros, as realezas dos papas e dos bispos."*

{*Latin Christianity, vol. 3, p. 333.}

domingo, 3 de junho de 2018

Bernardo e Abelardo

Antes da morte de Inocêncio, Bernardo foi chamado para longe de seu pacífico retiro em Claraval para fazer guerra contra um novo inimigo da igreja: Pedro Abelardo. Esse novo conflito surgiu dos movimentos intelectuais da época, e marca uma época distinta da história da igreja, da literatura e da liberdade espiritual e civil. Vamos atentar brevemente para o que levou a isso.

A maioria de nossos leitores estão cientes de que a erudição que tinha sido acumulada nas línguas latina e grega foram quase inteiramente destruídas pelos bárbaros no século V. O que é conhecida como literatura antiga foi quase completamente perdida quando as nações bárbaras se estabeleceram nas ruínas do império romano. Por completos quinhentos anos, a grosseira ignorância prevaleceu. Qualquer conhecimento que restava foi confinado aos eclesiásticos; e eles, durante esse período, eram proibidos de estudar ou copiar a erudição secular. Não obstante, alguns dos monges, especialmente os da ordem beneditina, coletaram e copiaram manuscritos antigos; e, como diz Hallam: "Nunca deve ser esquecido que, se não fosse por eles, os registros dessa literatura teriam perecido. Não podemos afirmar que, se eles tivessem sido menos tenazes em sua liturgia latina, na tradução Vulgata das Escrituras, e na autoridade dos pais da igreja, menos superstição teria crescido; mas não podemos hesitar em pronunciar que toda a erudição gramatical teria sido deixada de lado. Mas entre eles, embora os exemplos de grosseira ignorância fossem excessivamente frequentes, havia a necessidade de preservar a língua latina, na qual tinham sido escritas as Escrituras, os cânons e as outras autoridades da igreja, assim como as liturgias regulares, e em cuja língua deveriam ser escritas as correspondências dentro da hierarquia clerical. Essa atividade continuou fluindo, mesmo nas piores estações, como um fluxo fino, mas vivo."*

{* Literature of Europe in the Middle Ages, vol. 1, p. 4.}

Dentre esses monges devia haver toda variedade de mentes: algumas, sem dúvida, grosseiras, lentas e mecânicas; outras, refinadas, ativas, questionadoras, que não se deixavam confinar dentro das barreiras da doutrina católica estabelecida, nem se submetia ao poder da ordem sacerdotal. Assim foi; assim provou-se ser. O reformador, o protestante, surgiu da ordem monástica. Houve muitos Luteros prematuros. Em cada insurreição, conta-se, seja religiosa ou mais filosófica, contra o sistema dogmático dominante, um monge foi o líder, e tinha havido três ou quatro dessas inssurreições antes do tempo de Abelardo. Godescalco, no século IX, foi flagelado e aprisionado por sua teimosa confiança no que era chamado de predestinacionismo. João Escoto Erígena, um monge mais erudito da Irlanda ou das ilhas escocesas, foi convidado por Hincmaro, arcebispo de Reims, a se opôr a Godescalco; mas ele não alarmou menos a igreja do que seu antagonista, ao apelar para um novo poder acima da autoridade católica: a razão humana. Ele era um poderoso racionalista, mas especulava em grande parte na teologia escolástica. Sob a censura da igreja, ele fugiu para a Inglaterra, e encontrou um refúgio, conta-se, na nova universidade de Oxford fundada pelo rei Alfredo.

O Grande Concílio de Latrão (1139 d.C.)

Inocêncio, agora o indiscutível mestre de Roma, reuniu em Latrão um concílio geral. Nunca Roma ou qualquer outra cidade tinha presenciado um concílio com tantos participantes. Mil bispos e incontáveis dignatários eclesiásticos estavam presentes. Os discursos e os decretos ilustram  como era o cristianismo da época. A autoridade feudal do papa foi o grande assunto. Ele declarou que "na medida em que Roma é a metrópole do mundo, da qual todo poder terreno flui, assim também o trono pontifício é a fonte de toda a autoridade e dignidade eclesiástica; e que todo o cargo ou dignidade deve ser recebida das mãos do pontífice romano como um feudo da Sé Romana, e considerado como grande senhor feudal espiritual".

Como de costume em tais ocasiões, Inocêncio anulou todos os decretos de seu adversário Anacleto. Ele foi entregue aos reinos de Satanás, e os clérigos que dele tinham recebido a consagração cismática foram depostos. Eles foram convocados para aparecerem perante o papa vingativo, que atacou-os com censuras indignadas, tirou-lhes o bastão episcopal de suas mãos, arrancou-lhes a manta de seus ombros, e tirou deles os anéis episcopais. Depois disso, como se para consumar a mais vil hipocrisia, foi restabelecida em sua máxima extensão a "paz de Deus" -- uma cessação das brigas e conflitos privados. Mas o cânon que mais nos interessa nesse celebrado concílio foi dirigido contra uma classe de homens, que em pouco tempo se forçarão a tomar nossa atenção. "Expulsamos da igreja como hereges aqueles que, sob a aparência de religião, condenam o sacramento do corpo e do sangue de Cristo, o batismo de crianças, o sacerdócio", etc. Essa anátema, e aqueles contra a qual foi lançada, são como os tênues vestígios da aurora da grande luta pela liberdade religiosa que resultou na gloriosa Reforma.

O restante da vida desse miserável homem foi gasto quase que inteiramente em guerras, não obstante seu restabelecimento da "paz de Deus". Ele, de fato, liderou uma força armada contra Rogério da Sicília, o amigo de Anacleto, mas caiu como um prisioneiro de guerra nas mãos dos normandos. Intimidados pelo seu cativo sagrado, eles se curvaram diante dele, obtiveram sua bênção e o enviaram de volta para casa. Tal era a superstição dos reis, tal era a terrível iniquidade do papa. Mas sua vida se esgotava rapidamente, e logo ele estará diante do tribunal do Juiz de toda a terra. "Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal" (2 Coríntios 5:10).

No dia 24 de setembro de 1143, o pontífice deu seu último suspiro, em meio ao tumulto da revolução e conflitos populares, e Celestino II reinou em seu lugar.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Os Nestorianos e os Paulicianos

A ascensão dos nestorianos no século V e seu grande zelo missionário já foram mencionados. Em sua chefia havia um bispo, conhecido pelo título de Patriarca da Babilônia. Sua residência era originalmente na Selêucia. Desde a Pérsia, conta-se, eles levaram o evangelho para o Norte, para o Oriente e para o Sul. No século VI eles pregaram o evangelho com grande sucesso aos hunos, aos indianos, aos medos e aos elamitas: na costa de Malabar e nas ilhas do oceano grandes números se converteram. Seguindo o curso do comércio, os missionários tomaram o caminho da Índia à China, e penetraram pelos desertos até sua fronteira setentrional [mais ao norte]. Em 1625 uma pedra foi descoberta, pelos jesuítas, próximo a Singapura, que leva uma longa inscrição, parte em siríaco e parte em chinês, gravando os nomes dos missionários que tinham trabalhado na China, e a história do cristianismo naquele país desde o ano 636 a 781. Mas a propagação do cristianismo, pensa-se, despertou o ciúme do Estado e, após testemunharem o sucesso do evangelho e experimentarem perseguição, eles provavelmente foram exterminados, ou fugiram, por volta do fim do século VIII. Os nestorianos foram patrocinados por alguns dos reis persas, e sob o reinado dos califas eles foram protegidos e prosperaram grandemente. Eles assumiram a designação de cristãos caldeus, ou assírios, e ainda existem sob esse nome.*

{* Veja Crenças do Mundo (Faiths of the World), vol. 2, p. 527; e J.C. Robertson, vol. 2, p. 163.}

As doutrinas, o caráter e a história dos paulicianos têm sido assuntos de grande controvérsia; mas não lhes foi permitido falar por eles mesmos para a posteridade. Seus escritos foram cuidadosamente destruídos pelos católicos, e eles nos são conhecidos apenas através de relatos de inimigos amargos que os rotulam como hereges, e como os ancestrais dos reformadores protestantes. Por outro lado, alguns escritores protestantes aceitam o pedigree, e afirmam que eles foram os mantenedores de um cristianismo puramente bíblico, que pode ter parecido herético pelo papado. Esta última circunstância, pelo que já demonstramos, é facilmente crível. As mais dolorosas corrupções, tanto na doutrina quanto na adoração da igreja católica, tinham sido não apenas admiradas, como forçadas, muito antes do surgimento dos paulicianos. Nem o espírito nem a simplicidade do evangelho permaneceram; portanto, o cristianismo bíblico deve ter parecido aos adoradores de imagens como uma heresia.

Passando por cima de muitos nomes individuais desde a época de Santo Agostinho, que foram testemunhas dignas da verdade, vamos falar diretamente da origem dos paulicianos.

A Linha Prateada da Graça Soberana

Capítulo 16: Europa (653 d.C. - 855 d.C.)


A monarquia papal está agora estabelecida. A corte da França e o papado estão unidos. Roma está agora separada do Oriente, e se torna o centro de influência sobre todo o Ocidente. Mas tendo traçado as tenebrosas linhas da apostasia no cristianismo latino desde o início do século IV até o início do século IX, voltemo-nos um pouco e esforcemo-nos em traçar a linha prateada da soberana graça de Deus naqueles que se separaram da comunhão da igreja latina durante o mesmo período. Se Satanás estava ativo em corromper a igreja no sentido exterior, Deus estava ativo na coleta dos Seus em meio a massa corrupta, e em fortalecê-los como Suas próprias testemunhas especiais. Desde os dias de Agostinho [de Hipona], a nobre testemunha de Sua graça contra o pelagianismo na Cristandade ocidental, até a Reforma, pode ser traçada uma linhagem de testemunhas fiéis que testificaram contra a idolatria e tirania de Roma, e que pregavam a salvação por meio da fé em Cristo Jesus sem obras de mérito*. Além de multidões que se alimentavam às escondidas, tanto em conventos quanto em famílias, da simples verdade do evangelho, observamos brevemente alguns dos mais proeminentes que formam um importante elo na grande cadeia de testemunhas, especialmente ligados à história da igreja na Europa.

{* Veja Hora Apocalyptica, de E. B. Elliot, vol. 2, p. 219.}

domingo, 18 de setembro de 2016

As Virtudes e Falhas de Antônio

Antônio era evidentemente sincero e honesto, embora fosse totalmente equivocado e enganado pelos artifícios e poder de Satanás. No lugar de agir de acordo com a comissão do Salvador aos Seus discípulos, "ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura" (Marcos 16:15), ou de seguir Seu exemplo de andar fazendo o bem, ele achou que podia alcançar uma espiritualidade mais elevada retirando-se do meio da humanidade, e devotando-se à austeridade da vida e à comunhão ininterrupta com o céu. Ele era um cristão, mas totalmente ignorante da natureza e objetivo do cristianismo. A santidade na carne foi seu único grande objetivo, embora o apóstolo tivesse dito: "Em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum" (Romanos 7:18). Portanto, tudo foi um fracasso, total fracasso: como sempre deve ser, se pensarmos que há qualquer coisa boa na natureza humana, ou tentarmos nos tornar melhores em nós mesmos. Em vez de conseguir santificar sua natureza por meio dos jejuns e do ócio, ele descobriu que toda paixão foi estimulada a uma maior atividade.

"Dessa maneira, em sua solidão", nos diz Neander, "ele teve que enfrentar muitos conflitos em suas faculdades mentais, os quais talvez poderiam ter sido evitados caso se envolvesse com algum tipo de vocação que exigisse o uso de todas as suas forças. As tentações contra as quais ele teve que batalhar foram das mais numerosas e poderosas, pois estava entregue à ociosa ocupação com si mesmo e se ocupava em lutar contra as imagens impuras que constantemente vinham do abismo de corrupção de dentro de seu coração, no lugar de esvaziar a si mesmo, dedicando-se a trabalhos mais dignos, ou de desviar o olhar para a eterna fonte de pureza e santidade. Em um período posterior, Antônio, com uma convicção fundada em longos anos de experiência, reconheceu isso e disse aos seus monges: 'Não ocupemos nossas imaginações pintando espectros e espíritos malignos; não atribulemos nossas mentes como se estivéssemos perdidos. Em vez disso, confortemo-nos e alegremo-nos todo o tempo, como aqueles que foram redimidos; e sejamos conscientes de que o Senhor está conosco, o Mesmo que os venceu e os tornou em nada. Lembremo-nos sempre que, se o Senhor está conosco, o inimigo não pode nos fazer mal. Os espíritos do mal aparecem de formas diferentes para nós, de acordo com o estado de mente com que eles nos encontram... Mas se nos encontrarem gozosos no Senhor, ocupados na contemplação da bem-aventurança futura e das coisas do Senhor, refletindo que tudo está nas mãos do Senhor, e que nenhum espírito maligno pode fazer qualquer mal ao cristão, eles afastam-se, em confusão, da alma que eles veem preservada por tais bons pensamentos."*

{* História Geral da Igreja, vol. 3, p. 310. Veja também História da Igreja, por James Craigie Robertson, vol. 1, p. 295.}

É perfeitamente claro, a partir desses conselhos aos monges, que Antônio era não apenas um cristão sincero, mas que ele tinha um bom conhecimento do Senhor e da redenção, embora tivesse sido tão completamente desviado por um coração enganado. Nunca estamos seguros a menos que nos movamos sobre as linhas diretas da Palavra de Deus. O sistema que esse homem introduziu em seus falsos sonhos de aperfeiçoamento da carne se tornou, no decorrer do tempo, um canteiro de devassidão e vício. E assim continuou por mais de mil anos. Somente no século XVI a luz divina da abençoada Reforma, lançando luz sobre um cenário de densas trevas morais, revelou a arraigada corrupção e as flagrantes enormidades das diferentes ordens monásticas. Os monges daquele tempo, como enxames de gafanhotos, cobriam toda a Europa; eles proclamavam em todos os lugares, como nos informa a História, a devida obediência à santa mãe igreja, a devida reverência aos santos, e mais especialmente à Virgem Maria, a eficácia das relíquias, os tormentos do purgatório, e as benditas vantagens decorrentes de indulgências. Mas enquanto os monges perdiam sua popularidade e influência na Reforma, uma nova ordem foi necessária para ocupar o seu lugar e fazer sua obra má: e isto foi encontrado na Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola -- os jesuítas. Mas temos de olhar mais uma vez para o inicio da história do monasticismo.

domingo, 11 de setembro de 2016

Os Modernos Pedobatistas

A igreja de Roma e todos os que seguem os "pais" confessam que a origem de sua prática é a tradição. Mas há muitos outros em nossos dias, como tem sido desde a Reforma*, que detêm o batismo infantil com base nos escritos do Novo Testamento. As seguintes são as principais passagens as quais eles se referem: "Deixai vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o reino de Deus"... "De outra sorte os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos"... "Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos"... "Criai-os na doutrina e admoestação do Senhor". E muitos apoiam seus argumentos principalmente no batismo de famílias, e alguns também com base na aliança abraâmica. Veja Marcos 10:14; 1 Coríntios 7:14; Atos 2:39; Efésios 6:4; Atos 16:33; Gênesis 17.

{* Pelos reformadores, e mais tarde pelos puritanos, foram feitos esforços para encontrar nas Escrituras o que a igreja de Roma tinha mantido como tradição; os protestantes recorriam à Bíblia para tudo, e os católicos para os "pais".}

Os anti-pedobatistas, ou "os batistas", como chamam a si mesmos, simplesmente afirmam que, em todas as alusões ao batismo nos escritos dos apóstolos, ele é uniformemente associado à fé no evangelho, e que tais expressões como "sepultados com Ele pelo batismo"  e "plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte" (Romanos 6:4,5), etc., devem significar que a pessoa assim batizada tem parte com Cristo pela fé. E, além disso, defendem que, como o batismo é uma ordenança de Cristo, deve necessariamente ser celebrada exatamente como Ele designou. Eles afirmam que nada além das Escrituras diretas devem ser o fundamento de nossa fé e prática nas coisas divinas. E sendo o batismo algo cuja ministração é necessária, e de maneira prescrita, sem a qual seria apenas uma noção na mente humana, essas coisas, portanto, são tão necessárias como o próprio batismo. E, portanto, segue que os verdadeiros candidatos devem ser apenas crentes professos, e o verdadeiro modo, que é apenas a imersão, são coisas necessárias para o verdadeiro batismo cristão*.

{* Reflexões sobre a História de Wall, de Gale, vol. 3, p. 84}

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Um Resumo das Sete Igrejas

  • Éfeso: Em Éfeso o Senhor detecta a raiz de todo o declínio. "Deixaste teu primeiro amor". Ela é ameaçada a ter seu castiçal removido a menos que se arrependa. Período: da era apostólica até o final do segundo século.
  • Esmirna: A mensagem a Éfeso é geral, mas para Esmirna é específica. E, apesar de aplicada àquela assembleia naquele tempo, ela prefigura, de forma muito marcante, as repetidas perseguições pela qual a igreja passou sob os imperadores pagãos. No entanto, Deus pode ter usado o poder do mundo para deter o progresso do mal dentro da igreja. Período: do segundo século até Constantino.
  • Pérgamo: Aqui temos o estabelecimento do Cristianismo por Constantino como a religião do Estado. Em vez de perseguir os cristãos, ele os patrocina. A partir daí a queda da igreja avança rapidamente. Sua aliança profana com o mundo resultou em sua mais triste e profunda queda. Foi então que ela perdeu o verdadeiro sentido de sua relação com Cristo no Céu, e de seu caráter como peregrina e estrangeira na Terra. Período: do começo do quarto século até o sétimo século, quando o papado foi estabelecido*.
  • Tiatira: Em Tiatira vemos o papado da idade média, em semelhança à Jezabel, praticando todo o tipo de maldade, e perseguindo os santos de Deus, sob o disfarce de zelo religioso. No entanto, havia um remanescente temente a Deus em Tiatira, a quem o Senhor conforta com a brilhante esperança de Sua vinda, e com a promessa de poder sobre as ações, quando o próprio Senhor reinará. Mas a palavra de exortação ao remanescente é: "Mas o que tendes, retende-o até que eu venha" (Apocalipse 2:25). Período: do estabelecimento do papado até a vinda do Senhor. Este período vai até o fim, mas é caracterizado pela idade das trevas (idade média).
  • Sardes: Aqui vemos a parte Protestante da Cristandade que surgiu após a grande Reforma. As características falhas do papado desaparecem, mas o novo sistema não tem vida em si mesmo. "Tens nome de que vives, e estás morto" (Apocalipse 3:1). Mas há, ainda, verdadeiros santos dentro desses sistemas sem vida, e Cristo conhece a todos. "Mas também tens em Sardes algumas pessoas que não contaminaram suas vestes, e comigo andarão de branco; porquanto são dignas disso" (Apocalipse 3:4). Período: do século XVI até hoje. Período marcado pelo início do Protestantismo após a Reforma.
  • Filadélfia: A igreja da Filadélfia apresenta um remanescente fraco, porém fiel à palavra e ao nome do Senhor Jesus. O que os caracterizava era o fato de guardarem a palavra da paciência de Cristo, e de não negarem Seu nome. A condição deles não era marcada por qualquer exibição de poder, nem de coisa alguma grande externamente, mas de uma próxima, íntima e pessoal comunhão com o Senhor. Ele está no meio deles como o Santo e o Verdadeiro, e é representado como sendo o dono da casa. Ele possui "a chave de Davi". Os tesouros da palavra profética estão disponíveis para aqueles que estão dentro. Eles estão também desfrutando de Sua paciência, e na expectativa de Sua vinda. "Como guardaste a palavra da minha paciência, também eu te guardarei da hora da tentação que há de vir sobre todo o mundo, para tentar os que habitam na terra." Período: especialmente a partir da primeira parte do século XIX.
  • Laodiceia: Em Laodiceia temos mornidão - indiferença, latitudinarismo** ou ecumenismo - mas com altas pretensões, um espírito arrogante, e grande auto-suficiência. Este é o último estado daquela que leva o nome de Cristo sobre a Terra. Mas, que lástima! Isso é intolerável para Ele. Sua condenação final é chegada. Tendo separado, para Si mesmo, cada verdadeiro crente das corrupções da Cristantade, o Senhor os vomita de Sua boca. Aquilo que deveria ter sido doce a Seu paladar se tornou enjoativo, e é lançado fora para sempre. Período: começando quase em paralelo ao período de Filadélfia, mas especialmente próximo à cena final. Está ativa no período em que vivemos agora.
Tendo assim tomado uma visão geral das sete igrejas, devemos agora nos esforçar, com a ajuda do Senhor, a traçar brevemente estes diferentes períodos da história da igreja. Nosso propósito é examinar mais detalhadamente cada uma das sete epístolas enquanto avançamos com nosso estudo para que possamos verificar, à luz da Palavra, os diferentes períodos por elas referidos, e o quanto os fatos da história da igreja ilustram a história apresentada nas Escrituras nesses dois capítulos. Que o Senhor possa nos guiar, para o refrigério e bênção de Seus queridos.

(* O título "Papa" foi primeiramente adotado por Higino no ano de 139, e o Papa Bonifácio III induziu Focas, Imperador do Leste, a concedê-lo ao prelado de Roma em 606. Ainda com a conivência de Focas, a supremacia do papa sobre a igreja cristã foi estabelecida - Dicionário de Dados de Haydn)
(** Nota do tradutor: latitudinarismo é uma seita inglesa que sustenta a máxima tolerância religiosa e a doutrina de que todos os homens se salvarão. Similar ao universalismo}

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