domingo, 30 de outubro de 2016

A Epístola à Igreja em Tiatira

Capítulo 13: Roma e a Expansão de Sua Influência (397 - 590 d.C.)


"E ao anjo da igreja de Tiatira escreve: Isto diz o Filho de Deus, que tem seus olhos como chama de fogo, e os pés semelhantes ao latão reluzente: Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras. Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu. Eis que a porei numa cama, e sobre os que adulteram com ela virá grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras. E ferirei de morte a seus filhos, e todas as igrejas saberão que eu sou aquele que sonda os rins e os corações. E darei a cada um de vós segundo as vossas obras. Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha. E ao que vencer, e guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações, e com vara de ferro as regerá; e serão quebradas como vasos de oleiro; como também recebi de meu Pai. E dar-lhe-ei a estrela da manhã. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas." (Apocalipse 2:18-29)

Pensamos que basta um pouco de discernimento espiritual e um conhecimento moderado sobre a história eclesiástica para ver o papado da Idade Média prenunciado nesta epístola. Vimos em Éfeso o declínio do primeiro amor, em Esmirna a perseguição do poder romano, em Pérgamo vemos Balaão seduzindo a igreja e a unindo ao mundo; mas as coisas são ainda piores em Tiatira. Aqui temos as consequências tristes porém naturais dessa união ímpia. Como poderia ser de outro modo quando qualquer que meramente se submetesse ao rito exterior do batismo fosse considerado como nascido de Deus? A porta foi assim escancarada para que o destruidor e o corruptor entrassem no recinto sagrado da igreja de Deus. Todo o testemunho quanto ao seu caráter celestial e sua separação do mundo estava agora perdido. Ela tinha falsificado a palavra do Senhor que diz aos Seus discípulos: "Não são do mundo, como eu do mundo não sou" (João 17:16). De fato, na aparência, o cristianismo tinha ganhado uma vitória. A cruz era então revestida em ouro e pedras preciosas, mas esta era a glória do mundo, não de um Cristo crucificado. Era, na verdade, o mundo que tinha ganhado a vitória, e a humilhação da igreja assim estava completa.

Apenas o Senhor podia estimar as terríveis consequências de tal estado de coisas. Seus olhos viam a corrupção, as idolatrias, e as perseguições da assim chamada Idade das Trevas, da qual a igreja em Tiatira foi um prenúncio notável. Veremos agora resumidamente o conteúdo da epístola.
  1. Os títulos do Senhor são a primeira coisa a ser observada. Eles são cheios das mais adequadas instruções para os poucos fiéis quando o corpo geral de cristãos está identificado com este mundo. Ele Se apresenta como o Filho de Deus, que tem olhos como chama de fogo, e Seus pés como latão reluzente. Quando Pedro confessou que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo, Ele imediatamente acrescentou: "Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela". E agora, em antecipação a tudo o que estava por vir, Ele chama a atenção para os pensamentos de Seu povo para o fundamento imutável sobre o qual a igreja é construída. Ele também assume os atributos do juízo divino. Fogo é o símbolo dos penetrantes olhos de juízo, como chamas de fogo, de um juízo que a tudo perscruta; e os pés como latão reluzente, do juízo iminente. 

    Aqui temos, então, no caráter que o bendito Senhor toma, a garantia da perfeita segurança do remanescente fiel, e a afirmação do infalível julgamento sobre a falsa profetiza e sua numerosa prole de filhos corruptos -- filhos de sua sedução e corrupção. Jezabel era não apenas uma profetiza como também uma mãe: ela não apenas seduziu o povo de Deus por suas falsas doutrinas, matando também a muitos; como também uma ampla classe dos piores dentre os homens derivou sua existência a partir de sua corrupção [de Jezabel]. Isto é dolorosamente manifesto no decorrer de toda a Idade das Trevas - o "estado de Jezabel" da igreja. Ela se estabeleceu dentro da igreja como se fosse sua própria casa, e decretou a todo o mundo que ela era infalível e que devia ser implicitamente obedecida em todos os assuntos da fé. Concordar com tal suposição blasfema era infidelidade a Cristo; se opôr a ela resultava em sofrimento e morte.

  2. À medida que as pretensões de Roma falavam cada vez mais alto e as trevas cresciam cada vez mais densas, muitos dos santos de Deus se tornaram cada vez mais devotos a Cristo e a Suas reivindicações. O que é devido a Cristo deve sempre ser a palavra de ordem do cristão, e não o que é devido àqueles em posições elevadas. Parece ter havido uma energia espiritual nessa época que se ergue acima de tudo o que houve desde os dias dos apóstolos. Isto é graça -- a maravilhosa graça de Deus para com Seus verdadeiros santos em um tempo de muita provação. É a linha prateada de Seu próprio amor que é tão preciosa a Sua vista. Podemos nem sempre ser capazes de traçá-la na história eclesiástica, mas lá está ela, e lá ela brilha aos olhos e ao coração de Deus em meio à abundante iniquidade. Isto deve ser notado, e sempre lembrado, como algo de muito encorajamento ao cristão quando colocado em circunstâncias de provas. Ouça o que o Próprio Senhor diz: "Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras". Aqui temos amor, fé e esperança em vivo exercício, os três grandes princípios fundamentais do verdadeiro cristianismo prático; e vemos que as últimas obras são mais que as primeiras. Não nos deparamos com tal testemunho fiel, ou tal medida de devoção, desde os primeiros dias da igreja em Tessalônica. Pode ser, no entanto, que a impiedade ao redor tornou a piedade deles ainda mais preciosa para o coração do Senhor, levando-O a elogiá-los ainda mais. Mas nenhum coração que bate verdadeiramente para Ele em um dia mau passará desconhecido, despercebido ou não recompensado.

  3. No entanto, embora o Senhor ame elogiar o que Ele pode em Seu povo, e observar as coisas boas antes de falar das coisas más, Ele também não tarda em detectar suas falhas. Eles corriam o perigo de adulterarem com a falsa doutrina e com o falso sistema religioso de Jezabel; portanto Ele diz: "Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria" (v. 20). Não obstante a fidelidade de muitas almas fervorosas em Tiatira (ou seja, na igreja medieval), havia também a aceitação pública do espírito do mal: "toleras a mulher Jezabel" (versão Almeida Revisada). Esta era a sombra escura sobre a linha prateada: que às vezes acaba parecendo completamente obscurecida. Mas o Senhor não falhou, como sempre, em levantar testemunhas adequadas para Ele Próprio. Assim como havia santos na casa de César, um Obadias na casa de Acabe, um remanescente fiel em Israel que não tinha se curvado a Baal, assim o Senhor nunca foi deixado sem uma testemunha fiel no decorrer da Idade Média. No entanto, havia uma permissividade ao mal no estado geral de coisas, o que entristecia o coração do Senhor e trazia os Seus juízos.

    "A mulher", pode ser interessante observar, é usada como um símbolo do estado geral; "o homem", é dito, é um símbolo de atividade responsável. Balaão e Jezabel são nomes simbólicos -- um profeta e uma profetiza. O primeiro agiu como um sedutor entre os santos; e a última se estabeleceu dentro da igreja professa e fingia ter absoluta autoridade ali. Isto era ir muito além até mesmo da impiedade de Balaão. Mas todos sabemos o que Jezabel foi quando se assentou como rainha em Israel. Seu nome chega até nós como envolto em crueldades e sangue. Ela odiava e perseguia as testemunhas de Deus; ela encorajava e patrocinava os sacerdotes idólatras e profetas de Baal; ela acrescentava violência à corrupção: tudo virou ruína e confusão. E este é o nome que o Senhor escolheu para simbolizar o estado geral da igreja professa durante a Idade Média. Em Tiatira, Ele, cujos olhos eram como chama de fogo, podia ver a semente daquilo que carregaria tal fruto ruim até dias póstumos, e assim Ele adverte Seu povo para que retenham aquilo que eles já tinham, o que inclui Ele Próprio. "Outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha". Como o estado de Jezabel continua até o fim e nunca pode ser consertado, o Senhor direciona então os olhos da fé do remanescente para Seu próprio retorno -- "Até que eu venha". A brilhante esperança de Sua vinda é assim apresentada como um conforto ao coração em meio à ruína geral; e Seus santos são aliviados, pelo Próprio Senhor, das vãs tentativas dos homens de consertar a igreja {*N. do T.: aqui no sentido de seu testemunho na terra} e o mundo. Que libertação misericordiosa! Mas a pobre natureza humana não pode entendê-la, e assim tenta, vez após outra, consertar questões tanto na igreja como no Estado.

  4. Temos evidentemente três classes de pessoas mencionadas nesta epístola: (1) Os filhos de Jezabel -- aqueles que devem seu nome e lugar cristão ao seu sistema corrupto. Um julgamento impiedoso levará a todos estes. Foi dado espaço para o arrependimento, mas eles não se arrependeram; portanto, o pleno juízo de Deus cairá sobre eles. "Ferirei de morte a seus filhos". (2) Aqueles que não são seus filhos, mas que não fazem oposição a ela: são maleáveis e indolentes. Esta, infelizmente, é uma ampla classe de pessoas em nossos próprios dias. Ela caracteriza a condição pública da cristandade. Sem consciência diante de Deus, eles se contentam em flutuar suavemente correnteza abaixo, em comunhão com algum sistema religioso que lhes pareça mais agradável a suas próprias mentes. Quanto ao que é agradável para a mente de Deus, eles nunca buscam saber. Ainda assim eles são Seus filhos. O juízo para tais é "grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras". (3) O remanescente fiel, os "vencedores". Eles são aqui mencionados como "os demais", ou o remanescente; eles terão poder sobre as nações em associação com Cristo quando Ele vier para reinar. Enquanto isso eles têm essa doce e preciosa promessa: "E dar-lhe-ei a estrela da manhã". Isto é a associação consciente com Ele Próprio até mesmo hoje. A igreja medieval era especialmente culpada de duas coisas: ela arrogante e perversamente buscava possuir poder supremo sobre as nações, e ela perseguia o remanescente fiel dos santos, tais como os valdenses e outros. Mas os santos, uma vez assim perseguidos, ainda possuirão o reino, e reinarão com Cristo por 1000 anos; e todo o sistema de Jezabel será totalmente e para sempre rejeitado: "É forte o Senhor Deus que a julga" (Apocalipse 18:8).

  5. Há apenas mais uma coisa para tomar nota neste esboço da condição pública da cristandade desde o início do sistema papal. A exortação a "ouvir" é colocada após a promessa especial. Isto marca o remanescente como distinto e separado do corpo geral. Nas três primeiras igrejas a palavra de advertência -- "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas" -- vem antes da promessa. Mas nas quatro igrejas finais temos a promessa antes do chamado a ouvir. O significado óbvio dessa mudança é profundamente solene. Nas primeiras três, o chamado a ouvir é dirigido a toda a assembleia, mas nas últimas apenas ao remanescente. Parece que, nestas, é esperado que ninguém ouviria além dos vencedores. O corpo professo geral parece tanto cego como surdo através do poder de Satanás e das poluições de Jezabel; que temível condição! Devemos também ter em mente que os quatro estados, como representados pelas últimas quatro igrejas, continuam até o final da vinda do Senhor. Que Ele possa nos guardar de tudo o que cheire a Jezabel, para que possamos apreciar devidamente nossa união com Ele Próprio e Suas bênção prometidas aos "vencedores".

Tendo então brevemente examinado o quadro divinamente pintado sobre o estado de Jezabel da igreja durante a Idade das Trevas, nos voltaremos agora aos amplos, porém tristes, registros de sua história.

domingo, 16 de outubro de 2016

O Encerramento do Período de Pérgamo

O concílio de Éfeso estava longe de pôr fim a essas contendas vergonhosas. Em vez de restaurar harmonia à igreja, só fez aumentar suas angústias. João, bispo de Antioquia, e outros clérigos orientais, julgaram Cirilo e seus amigos de terem agido muito injustamente e com precipitação inadequada no caso de Nestório: assim ergueu-se uma nova controvérsia, e em meio a isto nasceu uma nova heresia -- o eutiquianismo, que muito perturbou as igrejas orientais por cerca de vinte anos.

Eutiques, abade de um convento em Constantinopla, na ânsia de sua oposição ao nestorianismo, correu ao extremo oposto. Ele foi acusado de inconsistência quanto às doutrinas da encarnação, e denunciado como herege. Isto levou a outro concílio que ocorreu na Calcedônia no ano 451, e que é chamado de Quarto Concílio Geral. Mas os detalhes dessas disputas locais fogem do escopo deste livro. Nosso plano é dar ao leitor um esboço distinto no menor espaço possível, e apenas apresentar alguns poucos detalhes em casos em que o nome da pessoa se tornou um sinônimo para as opiniões que ensinava, tais como Ário, Pelágio, etc., ou quando os eventos, tais como as grandes perseguições, merecem a atenção da igreja ao longo de todas as eras.

Para levar a cabo esses propósitos, será agora necessário voltarmos nossa atenção mais especialmente ao poder crescente e às sublimes pretensões da igreja de Roma. Em Leão, o Grande, podemos ver o encerramento do período de Pérgamo, e a aproximação da monarquia papal. Mas antes de nos aventurarmos nessas águas turbulentas, faremos bem em estudarmos nosso mapa divino -- a história profética de Deus da igreja durante aquele período tenebroso e, muitas vezes, tempestuoso.

Cirilo e a Ortodoxia

Cirilo, bispo de Alexandria, na controvérsia que tinha se erguido, aparece como o grande campeão da ortodoxia. Mas todos os historiadores concordam em atribuir a ele um caráter mais soberbo e contrário ao de um cristão. Ele é acusado de ser movido pela inveja por causa do crescente poder e autoridade do bispo de Constantinopla, e de ser incansável, arrogante e inescrupuloso em seus caminhos. Ele era também tão violento contra os hereges quanto Nestório. Ele perseguiu os novacianos e expulsou os judeus de Alexandria. Um zelo honesto e piedoso pode ter animado esses grandes clérigos, mas eles falharam totalmente em unir ao zelo a prudência e moderação cristã, e logo aliaram ao zelo as piores paixões da natureza humana.

Cirilo foi primeiramente impelido a entrar na controvérsia quando descobriu que cópias dos sermões de Nestório estavam circulando entre os monges no Egito, e que eles tinham abandonado o termo "Mãe de Deus". Ele imediatamente culpou tanto os monges quanto Nestório, e denunciou a novidade como herética. Todas as partes logo se agitaram, e palavras raivosas, que não precisam ser agora repetidas, foram usadas por todos os partidos. É suficiente dizer que, quando Nestório descobriu que Cirilo tinha habilmente conseguido assegurar a influência de Celestino, bispo de Roma, e que ele estava envolvido com outras dificuldades, ele apelou a um concílio geral. Como alguns de seus oponentes já tinham peticionado para tal assembleia, ela foi acordada, e o imperador Teodósio emitiu ordens para uma assembleia em Éfeso no ano 431, que é chamada de Terceiro Concílio Geral. Eles se reuniram em junho. Cirilo, em virtude da dignidade de sua sé, presidiu. Acusações foram postas contra Nestório. Ele foi condenado como culpado de blasfêmia, privado da dignidade episcopal, cortado do sacerdócio em todas as partes, e enviado ao exílio, no qual ele terminou seus dias por volta do ano 450.

Cerca de 200 bispos assinaram a sentença contra Nestório, mas ainda assim permanece a questão, por parte da maioria dos historiadores, se ele era realmente culpado de aderir aos erros pelos quais foi condenado. Mas todos concordam que ele era imprudente e intemperado em sua linguagem, vaidoso de sua própria eloquência, que desconsiderava os escritos dos primeiros "pais", e que era apto a ver heresias em tudo o que diferia da fraseologia dogmática à qual estava acostumado desde jovem. Mas é difícil determinar quem foi o principal causador dessa grande disputa: se foi Cirilo ou Nestório.*

{* Manual dos Concílios, de Landon, p. 225; Neander, vol. 4, p. 141; Mosheim, vol. 1, p. 468.}

A Diferença Entre Nestório e Seus Oponentes

Nunca houve uma contenda doutrinal na qual os partidos em conflito fossem tão próximos. Ambos aderiam e apelavam ao credo niceno: ambos criam na absoluta Divindade e na perfeita humanidade do Senhor Jesus. Mas foi inferido pelos inimigos de Nestório, especialmente por Cirilo, que ele era inconsistente quanto à encarnação, com base em sua objeção ao termo "mãe de Deus". O significado ou importância do disputado termo, como usado pelos doutores no século anterior, não era o de implicar que a virgem comunicou a vida divina ao Salvador, mas de afirmar a união da Divindade e humanidade em uma Pessoa -- que o "menino nos nasceu, um filho se nos deu", era Deus encarnado. Assim foi atribuída a Nestório a ideia de que ele defendia a mera humanidade do Redentor, e que o Espírito apenas habitou nEle após ter se tornado um homem, como acontecia antigamente com os profetas. Mas Nestório, enquanto viveu, se declarou totalmente oposto a tais opiniões. Também não parece que tais opiniões foram alguma vez afirmadas por ele, mas apenas inferidas por seus adversários com base na sua rejeição do epíteto "Mãe de Deus", e de alguns termos incautos e ambíguos que ele utilizou em seus discursos públicos sobre o assunto.

Anastácio e a Mariolatria

Anastácio, um presbítero que tinha acompanhado Nestório desde a Antioquia, e que era seu amigo íntimo, atacou, em um discurso público, o uso da expressão "Mãe de Deus", que era aplicada à virgem Maria. O termo então posto em oposição tão violentamente tinha do seu lado a autoridade do uso consagrado pela tradição e muitos nomes de grande peso para com o povo. Nestório aprovou o discurso, apoiou seu amigo, e em vários discursos explicou e defendeu seu ataque. Muitos ficaram satisfeitos com esses discursos, e muitos se despertaram contra Nestório e seu amigo: a agitação em Constantinopla foi imensa,  os gritos de "Heresia, heresia!" se ergueram e as chamas de uma grande e dolorosa controvérsia se acenderam.

Os Nestorianos

Como a seita chamada de nestoriana ocupa um lugar importante na história da igreja, vamos tomar nota brevemente de sua formação. Eles são, às vezes, chamados de sírios, uma vez que seu fundador foi um sírio. Cremos que são numerosos na Síria atualmente*, mas não receberam do governo turco a proteção a qual tinham direito, e assim foram expostos a constantes assaltos das tribos predatórias. Milhares de nestorianos nas montanhas do Curdistão, incluindo homens, mulheres e crianças, foram massacrados em 1843, e suas vilas totalmente destruídas pelas tribos curdas. Desde o ano 1834, uma interessante missão foi estabelecida entre eles pelo Conselho Americano de Missões Estrangeiras. O caráter e procedimentos da missão são muito comentados por Dr. Grant, um dos missionários que residiu entre os nestorianos por um tempo considerável, e que tinha estudado seus modos e costumes com grande minúcia e cuidado, e acabou publicando um tratado visando provar que essa interessante classe de pessoas são os descendentes das dez tribos perdidas de Israel. Mas suas conclusões, como outras sobre o mesmo assunto, podem muito bem ser postas em dúvida.**

{* N. do T.: este texto foi escrito no século XIX}
{** Veja Crenças do Mundo, de Gardner, vol. 2, p. 531}

Nestório, um monge sírio, tornou-se um presbítero da igreja em Antioquia. Ele era estimado e celebrado por conta da rígida austeridade de sua vida, e do impressionante fervor de sua pregação. Ele atraiu grandes e atentas audiências, e logo se tornou um grande favorito do povo. No ano 428 ele foi consagrado bispo de Constantinopla. Mas a disciplina do claustro tinha lhe preparado mal para uma posição tão importante na vida pública. Tão logo ele foi promovido a esse nível, ele começou a demonstrar um zelo intemperado contra as várias descrições dos hereges, o que devia-se mais ao fanatismo do monge do que ao espírito tolerante e suave do cristianismo genuíno. Em seu discurso inaugural, dirigindo-se ao imperador Teodósio, o jovem, ele se pronunciou com estas violentas expressões: "Dá-me um país purgado de todos os hereges, e em troca por isto eu lhe darei o céu. Me ajude a subjugar os hereges, e eu lhe ajudarei a subjugar os persas". Mas não demorou muito até que o próprio Nestório fosse também acusado de heresia.

O novo bispo logo em seguida pronunciou sua declaração de guerra contra os hereges por meio de atos de violência e perseguição. Ele excitou tumultos entre o povo: os arianos foram atacados, sua casa de reuniões foi queimada, e outras seitas foram perseguidas. Tais procedimentos, no entanto, logo levantaram contra Nestório, até mesmo dentre os ortodoxos, uma numerosa hoste de inimigos, que buscaram e logo conseguiram sua queda. Aconteceu assim... (continua no próximo tópico).

Como o Homem é Responsável?

Mas onde, pode-se perguntar, e de que forma entra a responsabilidade do homem? Certamente o homem é responsável por considerar que Deus é verdadeiro, e aceitar como justo, por mais humilhante que seja, Seu julgamento sobre sua natureza e caráter. "Se recebemos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior" (1 João 5:9).  Aceite esse quadro sombrio que Deus pinta sobre o homem e diga: este sou eu, isto é o que eu tenho feito e o que eu sou. A salvação é pela fé: não pelo arbítrio (desejo), escolha, ou obras, mas sim pelo crer. "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele... E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más." (João 3:16-19)

Como poderia alguém deixar de ver que uma responsabilidade é criada por essa demonstração de bondade divina em Cristo, e uma de caráter tão óbvio, solene e considerável? Tanto é assim, de fato, que a evidência é decisiva e final, e que o incrédulo será julgado diante de Deus. Não é uma questão, perceba, deles não encontrarem perdão, mas de preferirem as trevas à luz para que continuem em pecado. Isto é o que Deus coloca contra eles, e como poderia haver um fundamento mais justo e razoável de condenação? Impossível. Que possa ser a feliz condição de todos os que leem essas páginas de se curvarem à humilhante sentença das Escrituras sobre nossa natureza, e de nos considerarmos pecadores perdidos à vista de Deus. Que assim um Deus todo misericordioso e gracioso nos encontre na grandeza de Seu amor, e nos abençoe com tudo o que é devido a Cristo, como o Salvador da humanidade.

domingo, 9 de outubro de 2016

Reflexões sobre a Condição do Homem e a Graça de Deus

Se o mero raciocínio humano fosse permitido nessa controvérsia, ela seria interminável. Mas se a autoridade da Palavra de Deus é respeitada, ela logo se resolve. Que há algo bom na natureza humana caída, e que o homem, como tal, tem poder para escolher o que é bom e rejeitar o que é mal, são coisas que estão na raiz do pelagianismo em suas numerosas formas. A total ruína do homem é negada, e todas as ideias de graça divina que parecem inconsistentes com o livre arbítrio do homem são excluídas desse sistema. Mas o que diz as Escrituras? Uma única linha da Palavra de Deus satisfaz o homem da fé. E isto deveria ser o único argumento do mestre, do evangelista e do cristão em particular. Devemos sempre tomar o terreno da fé contra todos os adversários.

Em Gênesis 6, Deus expõe Sua opinião sobre a natureza humana caída. "E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente". Deus não podia encontrar nada no homem além do mal, e mal sem cessar. Novamente, no mesmo capítulo, lemos: "E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra". Não alguma carne, observemos, mas toda a carne tinha corrompido seu caminho sobre a terra. Aqui temos o juízo de Deus sobre a natureza corrupta; mas, ao mesmo tempo, Ele revela Sua graça soberana para redimir a condição do homem assim julgado. Deus provê uma arca de salvação, e então anuncia o convite: "Entra tu e toda a tua casa na arca" (Gênesis 7:1). A cruz é o testemunho, e a grande expressão, das grandes verdades figuradas pela arca. Ali temos de um modo, como em nenhum outro lugar, o juízo de Deus sobre a natureza humana com todo o seu mal; e, ao mesmo tempo, a revelação de Seu amor e graça em toda sua plenitude de poder salvífico.*

{* Para detalhes, veja Notas sobre o Livro de Gênesis.}

Mas todas as Escrituras são consistentes com Gênesis 6 e a cruz de Cristo. Tome, por exemplo, Romanos 5 e Efésios 2. No primeiro é dito estarmos "fracos"; mas no último, que estamos "mortos", mortos em delitos e pecados. O apóstolo, mais no início da Epístola aos Romanos, com muito cuidado prova a ruína do homem e a justiça de Deus, e aqui temos Seu amor demonstrado no grande fato da morte de Cristo por nós. "Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios". Mas por que é dito "a seu tempo"? Porque o homem tinha sido plenamente provado ser não apenas "ímpio", mas "fraco" demais para fazer qualquer coisa boa para Deus, ou para se mover um passo sequer em sua direção. Sob a lei, Deus mostrou ao homem o caminho, apontou meios, e deu-lhe uma longa prova; mas o homem não tinha poder algum para sair de sua triste condição de pecador. Quão humilhante, mas quão saudável, é a verdade de Deus! É bom conhecermos nossa condição de perdidos. Quão diferente é isso da falsa teologia e da orgulhosa filosofia dos homens! Mas da parte de Deus, bendito seja Seu nome, o estado do homem (assim demonstrado) foi apenas a oportunidade para a manifestação de Sua graça salvadora; e por isso Jesus morreu. "Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores". Agora o homem deve se deparar, ou com o juízo de Deus em incredulidade, ou com Sua salvação pela fé. Não há algo como estar "encima do muro". A prova mais completa de nossa condição perdida e do amor gracioso de Deus é "que Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores" (Romanos 5:6-10).

Em Efésios 2 não se trata meramente de uma questão de fraqueza moral do homem, mas de sua morte. "E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados". Em Romanos o homem é visto como impotente, ímpio, um pecador, e um inimigo; aqui, como moralmente morto: e este é o pior tipo de morte, pois é a própria fonte da mais ativa impiedade. "Em que noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência". Que golpe para o orgulhoso poder que o homem pensa ter de escolher entre o bem e o mal! Aqui, ao contrário, ele é visto como estando sob o governo de demônios -- como escravo de Satanás. O homem admite muito mais facilmente ser ímpio do que impotente. Ele se orgulhará de ter sua opinião própria -- de ser independente e muito capaz de julgar e escolher por si próprio nas coisas espirituais.

Um dos dogmas favoritos de Pelágio, se não o fundamento de seu sistema, era que "como o homem tem a capacidade de pecar, assim também ele não apenas tem a capacidade de discernir o que é bom, mas do mesmo modo tem poder para desejá-lo e realizá-lo. E esta é a liberdade do arbítrio, que é tão essencial para o homem que ele não pode perdê-la". Nos referimos a esta falsa noção simplesmente porque ela é muito aceita pela mente natural, e é tão difícil de se livrar dela mesmo após sermos convertidos, sendo sempre um grande obstáculo à obra da graça de Deus na alma. Uma vez que o homem está morto em seus pecados, Deus e Sua própria obra devem ser tudo. É claro que há uma grande variedade entre os homens naturalmente, quando estão "fazendo a vontade da carne e dos pensamentos". Alguns são benevolentes e morais, alguns vivem em grosseira e aberta impiedade, e alguns podem ter um gratificante tipo de coração sensível: mas por que motivo? Para fazer a vontade de Deus? Certamente não! Deus não está em todos os seus pensamentos. Eles são energizados pelo espírito de Satanás, e guiados por ele de acordo com o curso deste mundo. "Nenhum servo pode servir dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom." (Lucas 16:13)

Agostinho e a Graça Divina

Agostinho, o famoso bispo de Hipona, a grande luz evangélica* do Ocidente, e o mais influente de todos os escritores cristãos latinos, começou por volta dessa época a refutar, com sua pena, as doutrinas de Pelágio e Celéstio. E principalmente a ele é dado, como sendo um instrumento de Deus, o crédito de impedir o crescimento dessa seita naquele tempo. Por uma marcante conversão, e por profundo exercício de alma, ele tinha sido treinado sob a disciplina do Senhor para realizar essa grande obra. Foi assim que o todo-sábio Deus secretamente levantou um testemunho em oposição a Pelágio, e, por meio de sua heresia, pôs em evidência mais visões do evangelho da graça do que tinha sido ensinado desde os tempos dos apóstolos, e também visões mais plenas da verdade, santidade e humildade cristã. As igrejas ocidentais, conduzidas por Agostinho, continuaram perseverantemente resistindo às falsas doutrinas com concílios, livros e cartas. Os gauleses, os bretões, e até mesmo os palestinos, por seus concílios, e os imperadores por suas leis e penalidades, até então tinham esmagado a controvérsia logo em seu início. Mas os princípios fundamentais do pelagianismo em suas muitas formas e níveis permanecem até o tempo presente. No entanto, em vez de rastrear a história dessa heresia, vamos brevemente nos referir ao que as Escrituras ensinam sobre os dois principais pontos do assunto.

{*N. do T.: aqui não se refere ao que conhecemos hoje como "denominações evangélicas", mas simplesmente no sentido puro da palavra, isto é, daquilo que defende o evangelho.}

sábado, 8 de outubro de 2016

A Heresia Pelagiana

A condição da igreja no início do século V deu ao adversário uma oportunidade de trazer uma nova heresia, que introduziu uma nova controvérsia que continuou com mais ou menos violência desde aqueles dias até hoje. Trata-se do pelagianismo. A grande heresia, o arianismo, que tinha até então agitado a igreja, originou-se no Oriente e era relacionada à Divindade de Cristo, e agora esta nova se erguia no Ocidente, e tinha por assunto a natureza do homem após a queda e suas relações com Deus. Esta deturpava a questão do pecador perdido, e aquela, o divino Salvador.

Diz-se que Pelágio foi um monge do grande monastério de Bangor, no País de Gales, e provavelmente o primeiro bretão que se distinguiu como um teólogo. Seu verdadeiro nome era Morgan. Supõe-se que seu seguidor, Celéstio, era nativo da Irlanda. Agostinho fala dele como sendo mais jovem que Pelágio -- e mais ousado e menos astuto. Estes dois companheiros no erro visitaram Roma, onde se tornaram íntimos de muitas pessoas de reputação ascética e santa, e disseminaram suas opiniões com cautela e privacidade. Mas, após o cerco do ano 410, eles passaram para a África, onde avançaram mais abertamente com suas opiniões.

Aparentemente a motivação de Pelágio não estava em qualquer desejo de formar um novo sistema doutrinal, mas sim de se opôr ao que considerava ser indolência moral e um espírito mundano entre os irmãos. Por isso, ele sustentava que o homem possuía um poder inerente para fazer a vontade de Deus e para alcançar o mais alto grau de santidade. Deste modo suas visões teológicas foram, em grande medida, bem formadas e determinadas, porém totalmente falsas, sendo consistentes somente com seu asceticismo rígido e com os frutos nativos que este produzia. Como as Escrituras inegavelmente atribuem todo o bem no homem à graça de Deus, assim Pelágio também, num sentido criado por ele próprio, reconhecia isso; mas suas ideias sobre graça divina eram, de fato, nada mais do que os meios externos para ressaltar os esforços humanos: ele não via a necessidade de uma obra de graça celestial no coração e nem da operação do Espírito Santo. Isto o levou a ensinar que o pecado de nossos primeiros antepassados não tinham prejudicado ninguém além deles mesmos, e que o homem é agora nascido tão inocente como Adão, como Deus o havia criado, e que era possuidor do mesmo poder e pureza moral. Estas doutrinas, e outras ligadas a elas, especialmente a ideia do livre arbítrio do homem -- "um poder imparcial de escolha entre o bem e o mal" -- foram secretamente disseminadas por Pelágio e seu colega Celéstio em Roma, Sicília, África e Palestina. No entanto, as novas opiniões foram geralmente condenadas, exceto no Oriente. Lá, por exemplo, João, bispo de Jerusalém, que considerava que as doutrinas de Pelágio concordavam com as opiniões de Orígenes, às quais ele tinha aderido, promoveu Pelágio, permitindo que ele professasse livremente seus sentimentos e angariasse discípulos.*

{*"O erro fundamental do monge Pelágio era a negação de nossa total corrupção pelo pecado derivado de Adão, e expiado unicamente pela morte e ressurreição do segundo Homem, o último Adão. Por isso ele pregava que a liberdade era verdadeiramente possuída por todos os homens, não apenas no sentido de isenção de alguma restrição exterior, mas da liberdade da natureza de escolher entre o bem e o mal, negando, assim, a escravidão do pecado no interior do homem. Assim, mesmo em sua aplicação cristã, ele parece ter compreendido a graça como pouco mais do que o perdão por esta ou aquela ofensa, e não como a concessão de uma nova natureza ao crente, devido a qual ele não pratica o pecado, pois nasceu de Deus. Assim não havia lugar no esquema pelagiano para o homem estar perdido de um lado, e para o crente estar salvo no outro. De fato, ele pregava que a raça humana era concebida em uma inocência como a do estado primordial de Adão até que pecasse e então caísse sob a culpa e suas consequências. Os pelagianos negavam a imputação do pecado de Adão, vendo nele nada mais do que a influência de um mal exemplo. Assim, enquanto a ruína moral do homem o fazia perder a força, bem como o relacionamento com o Cabeça da igreja, por um lado, pelo outro lado, sob a graça, estavam contadas todas as naturais e as sobrenaturais dotações da família humana. Por isso, a lei da consciência e o evangelho eram considerados como diferentes métodos e diferentes estágios de justiça, sendo os recursos e operações da graça válidos apenas de acordo com as tendências da vontade. Novamente, a redenção em Cristo se tomou, se não um mero aperfeiçoamento, com certeza uma exaltação e transfiguração da humanidade. O próprio Cristo não era nada além do padrão supremo de justiça, alguém que estimulava uns a guardarem perfeitamente a lei moral, e, por Sua obra, estimulava outros ao amor e ao exemplo pelos conselhos evangélicos da perfeição moral superior à lei." W. Kelly }

domingo, 2 de outubro de 2016

A Influência Degenerativa do Ritualismo

A tendência de todo o ritualismo eclesiástico é produzir um espírito de superstição que subverte a fé: do mero formalismo que substitui a direção do Espírito Santo, e de descansar em nossas próprias boas obras em rejeição à obra consumada de Cristo. A Palavra de Deus é assim praticamente deixada de lado, o Espírito Santo é entristecido, e o coração é aberto para as incursões de Satanás. Quando a fé se encontra em vivo exercício, a Palavra de Deus é estritamente seguida, e a prometida direção do Consolador é confiada, a alma é forte e vigorosa na vida divina, e as sugestões do inimigo passam despercebidas. Satanás é um atento observador dos diferentes estados da alma do crente e da igreja professa. Ele sabe quanto será bem-sucedido em suas tentativas contra o crente individual ou contra a igreja; ele espera o tempo certo -- ele aguarda uma oportunidade. Quando ele vê a mente tomando uma direção errada, ele sussurra, bajula, estimula. Que pensamento solene para todos nós!

Ritos e Cerimônias

A adoção mais generalizada do cristianismo, como pode-se imaginar, foi seguida por um aumento do esplendor em tudo o que dizia respeito à -- assim chamada -- adoração a Deus. "Igrejas" foram construídas e adornadas com maiores custos; o clero oficiante passou a vestir-se em roupas mais ricas, a música se tornou mais elaborada, e muitas novas cerimônias foram introduzidas. E esses usos eram então justificados sobre o mesmo terreno que a alta cúpula da igreja usa para justificar os extraordinários ritos e cerimônias nos dias de hoje*. A intenção era recomendar o evangelho aos pagãos por cerimônias que pudessem superar aquelas da velha religião. Multidões eram, então, atraídas à igreja, como são hoje, sem qualquer entendimento suficiente sobre sua nova posição, e com mentes ainda possuídas de noções pagãs e corrompidas pela moralidade pagã. Mesmo nos primeiros dias do cristianismo encontramos irregularidades na igreja em Corinto no que diz repeito às práticas não esquecidas dos pagãos. O acendimento de velas à luz do dia, incenso, images, procissões, purificações, e inumeráveis outras coisas, foram introduzidas nos séculos IV e V. Como observa Mosheim: "Enquanto a boa vontade dos imperadores colaborasse com o avanço da religião cristã, a piedade indiscreta dos bispos obscurecia sua verdadeira natureza e oprimia suas energias pela multiplicação dos ritos e cerimônias."**

{* Veja A Igreja e o Mundo, 1866.}
{** História Eclesiástica, vol. 1, p. 366, Murdock e Soames. Robertson, vol. 1, p. 316.}

A Conversão de Clóvis

Como a conversão de Clóvis é conhecida como sendo a mais importante do século V, devemos fornecer alguns detalhes em particular sobre o evento -- importante, em relação às suas consequências, tanto imediatas quanto remotas, na história da Europa, e também da igreja.

Os francos, um povo da Germânia, tinham se estabelecido no norte da França, perto da aldeia Cambrai, uma parte mais religiosa do país, que ficou famosa pelo santuário de São Martinho de Tours e pelas lendárias virtudes de outros santos. Clóvis era um pagão, mas Clotilda, sua esposa, tinha abraçado a fé católica. Ela vinha a muito tempo incitando-o a tornar-se cristão, mas ele se demorava a crer. Por fim, no entanto, quando em uma batalha contra os alamanos, e se encontrando em perigo, ele pensou no Deus de Clotilda, e orou a Ele, declarando que seus antigos deuses tinham falhado para com ele, e prometendo se tornar um cristão se ele ganhasse a vitória. A maré da batalha virou; seus inimigos foram derrotados, e, fiel ao seu voto, no Natal de 496, Clóvis foi batizado em Reims pelo bispo Remígio. Três mil guerreiros seguiram seu exemplo, declarando estarem dispostos a adotarem a mesma religião de seu rei.

Aqui temos outro Constantino. Clóvis encontrou na profissão do cristianismo algo mais favorável aos seus interesses políticos, mas isto não produziu mudança para melhor em sua vida. Seu objetivo era conquistar, sua ambição não tinha limite, suas obras eram ousadas e cruéis. De um mero líder franco com um território pequeno ele se tornou o fundador da grande monarquia francesa. E de sua confissão da fé católica, e de sua aliança com o Pontífice Romano, ele foi reconhecido como o campeão do catolicismo, e declarou-se o único soberano ortodoxo do Ocidente: todos os outros eram arianos. Alarico, que conquistou Roma; Genserico, que conquistou a África; Teodorico, o Grande, que se tornou o rei da Itália; e muitos dos reis lombardos, eram todos arianos. Por esse motivo os reis da França derivam de Clóvis o título de "Filho mais velho da Igreja". 

Ao estudante da profecia é interessante observar que, por essa época, pelo menos cinco ou seis reis bárbaros estavam em posse das províncias romanas, e governavam o que havia sido o império latino. Mas isto havia morrido. Morreu como um império, e deve permanecer no lugar de morte até ser ressuscitado, de acordo com a Palavra do Senhor, nos últimos dias (Apocalipse 13, 17).

Antes de concluirmos o período de Pérgamo, achamos que será necessário observar, mesmo que brevemente, três coisas: o estado interno da igreja, a controvérsia pelagiana e a controvérsia nestoriana.

A Conversão dos Bárbaros

É sempre interessante e edificante identificar a mão do Senhor ao tornar a ira do homem em instrumento para Seu próprio louvor, e ao trazer o maior bem ao Seu próprio povo em meio ao que parecia ser sua mais pesada calamidade. No reinado de Galieno, por volta de 268, um grande número de provinciais Romanos tinham sido levados em cativeiro pelos bandos góticos; muitos desses cativos eram cristãos, e vários pertenciam à ordem eclesiástica. Eles foram dispersos por seus mestres como escravos nos vilarejos: mas também como missionários pelo Senhor. Eles pregaram o evangelho ao povo bárbaro, e muitos foram convertidos. Seu aumento e ordem podem ser inferidos do fato de que eles foram representados no concílio de Niceia por um bispo chamado Teófilo.

Ulfilas, que é comumente chamado "o Apóstolo dos Godos", mereceu a grata lembrança da posteridade, mas especialmente dos cristãos. Por volta da metade do século IV, ele inventou um alfabeto e traduziu as Escrituras para a linguagem gótica, com a exceção do livro de Samuel e de Reis, por receio de que seu conteúdo belicoso (cheio de guerras) pudesse parecer favorável à ferocidade dos bárbaros. A princípio eles parecem ter sido simples e ortodoxos em sua fé, mas mais tarde se tornaram profundamente manchados com o arianismo, especialmente após os ministros arianos, que foram expulsos de suas "igrejas" por Teodósio, terem trabalhado diligentemente entre eles.

Alarico e seus godos eram cristãos professos. Eles dirigiam sua ira contra os templos pagãos, mas reverenciavam muito as "igrejas". Esta foi a grande misericórdia de Deus para Seu povo. Muitos fugiam para as "igrejas", onde encontravam um santuário. A fé fervorosa e o zelo infatigável de Ulfilas, juntamente com sua vida irrepreensível, tinha ganhado o amor e confiança do povo. Eles receberam na fé as doutrinas do evangelho, que ele pregava e praticava: de modo que os primeiros invasores do império tinham previamente aprendido, em sua própria terra, a professar, ou ao menos respeitar, a religião dos conquistados. E aqui vemos a verdade, ou melhor, o cumprimento das palavras do Apóstolo em sua Epístola aos Romanos: "O evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego"; e depois: "Eu sou devedor, tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes." Os cidadãos cultos do Império Romano e os rudes habitantes da Cítia e da Germânia foram, do mesmo modo, colocados sob o poder salvador do evangelho. 

Reflexões sobre as Calamidades de Roma

O leitor cristão pode aqui achar proveitoso fazer uma pausa por um momento e contemplar a derrubada do império ocidental e a divisão de seu território entre as várias hordas de bárbaros. É nosso privilégio e para nossa edificação vermos, em tudo isso, o cumprimento e harmonia das Escrituras, a soberana providência de Deus, e o cumprimento de Seus propósitos. Podemos também nos permitir derramarmos lágrimas de compaixão pelas misérias de nossos iludidos semelhantes. Isso não seria nada mais do que a terna compaixão daquEle que chorou sobre a devota cidade de Jerusalém. É nosso dever estudarmos a história pela certeza da luz das Escrituras; se não for pelas Escrituras -- como tentam alguns -- será pela incerta luz da história. Assim podemos nos alegrar na presença de Deus com a página da história aberta diante de nós, e nossa fé fortalecida pelo poderoso contraste entre o reino de Deus e toda a glória terrena. "Por isso", diz o apóstolo, "tendo recebido um reino que não pode ser abalado, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus agradavelmente, com reverência e piedade" (Hebreus 12:28). A superioridade do cristianismo sobre as mais poderosas instituições pagãs foi então manifesta a todos. Quando os esmagadores juízos de Deus caíram sobre a Itália, quebrando em pedaços o cetro de ferro do império, a igreja não sofreu nenhum dano. Em vez de ser exposta ao perigo, ela foi bastante protegida, e usada como o meio para proteger outros. Como a arca que se ergueu sobre as tenebrosas águas do dilúvio, a igreja foi preservada da fúria do invasor. Não houve sinal de bárbaros abraçando a velha religião da Grécia e de Roma: ou eles aderiam às superstições de seus ancestrais, ou adotavam alguma forma de cristianismo. Não há um solo firme para o pecador em meio às convulsões da terra, as ascensões e quedas de impérios, além da Rocha Eterna, o Cristo de Deus ressuscitado e exaltado. "Bem-aventurados todos aqueles que nele confiam" (Salmos 2:12). O Senhor providenciou a segurança de Seu povo pela conversão prévia daqueles que subverteram o império.

Arcádio e Honório (395 d.C.)

Teodósio, o Grande, deixou dois filhos, Arcádio, com idade de dezoito anos, e Honório, que tinha apenas onze. O mais velho ficou com a soberania do Oriente, e o mais novo a do Ocidente. Nada pode ser mais impressionante do que a condição do mundo romano nesse momento, ou mais adequado para despertar nossa compaixão: dois imperadores de tal fraqueza a ponto de serem incapazes de conduzir a administração dos assuntos públicos, e todo o império em um estado de perigo e alarme por causa dos invasores góticos. A mão do Senhor é manifesta aqui. Onde está agora o gênio, a glória e o poder de Roma? Expiraram junto com Teodósio. Em um momento em que o império precisava de prudência, de habilidade marcial e dos talentos de um Constantino, ele foi declaradamente governado por dois príncipes imbecis. Mas seus dias estavam contados na providência de Deus, e deveriam passar muito rápido.

A mais feroz tempestade que já tinha assolado o império estava então pronta a irromper em sua hora de fraqueza. O competente general Flávio Stilicho (ou Stilico), a última esperança de Roma, foi assassinado logo após a morte de Teodósio, e toda a Itália caiu nas mãos dos bárbaros. Os godos tinham se rendido aos exércitos e especialmente à política de Teodósio, mas bastou as notícias de sua morte para que eles se erguessem em revolta e vingança. O famoso Alarico, o astuto e competente líder dos godos, apenas esperou para uma oportunidade favorável para levar adiante um esquema de maior magnitude e ousadia do que qualquer outro que tenha passado na mente de qualquer dos inimigos de Roma desde os tempos de Aníbal. Ele foi, sem dúvida, um ministro dos justos juízos de Deus sobre um povo tão manchado com o sangue de Seus santos, além de terem crucificado o Senhor da glória e matado Seus apóstolos. Deixaremos os detalhes com os historiadores do declínio e queda de Roma: mas podemos dizer brevemente que Alarico era então seguido não apenas pelos godos, mas também pelas tribos de quase todo nome e raça. A fúria do deserto seria então derramada sobre a amante e corrupta do mundo. Ele conduziu suas forças para a Grécia sem oposição; ele devastou sua terra frutífera e saqueou Atenas, Corinto, Argos e Esparta; e aquela que era impiamente chamada de "a cidade eterna" foi sitiada e saqueada. Por seis dias ela foi entregue ao abate sem remorsos e a todo tipo de pilhagem. Assim caiu a culpada e devota cidade pelo juízo de Deus: nenhuma mão se estendeu para ajudá-la: ninguém para lamentar seu destino. Também as províncias mais ricas da Europa, como a Itália, a Gália e a Espanha, foram devastadas pelos sucessores imediatos de Alarico, especialmente Átila, e novos reinos foram instituídos pelos bárbaros. Assim a história do quarto grande império mundial termina por volta do ano 478 d.C., 1229 anos ano após a fundação de Roma.

Teodorico, rei dos ostrogodos, um príncipe de igual excelência nas artes da guerra e no governo, restaurou uma era de paz e prosperidade, varreu todos os vestígios do governo imperial, e fez da Itália um reino.*

{* Enciclopédia Britânica, vol. 19, p. 420. Dezoito Séculos Cristãos, de White, p. 94.}

sábado, 1 de outubro de 2016

Reflexões sobre os Princípios do Asceticismo

É realmente triste refletir sobre os muitos e sérios erros dos grandes doutores, ou dos primeiros "pais", como são usualmente chamados. Não sabemos de nada mais grave e solene do que o fato de que eles enganaram muito as pessoas de então, e que por meio de seus escritos eles têm enganado a igreja professa desde então. Quem é capaz de estimar as terríveis consequências de tais ensinos pelos últimos 1400 anos, pelo menos? A má interpretação e má aplicação da Palavra de Deus é evidentemente a regra para esses líderes, e ensinar a sã doutrina é a exceção. E ainda assim eles são o orgulho e a alegada autoridade para uma grande porção da Cristandade até hoje.

Sobre o assunto do asceticismo, qualquer um com conhecimento comum das Escrituras pode enxergar a ignorância que tinham da mente de Deus, e o quanto pervertiam Sua Palavra. Somos exortados, por exemplo, a "mortificar as obras do corpo", mas nunca a mortificar o próprio corpo. O corpo é do Senhor, e deve ser cuidado. "Não sabeis vós", diz o apóstolo, "que os vossos corpos são membros de Cristo?". Verdadeiramente, devem ser reduzidos à servidão, mas este é o modo mais sábio de cuidar do corpo (Romanos 8:13, 1 Cor 6:15, 9:27). Novamente, o apóstolo diz: "Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra", e então ele explica o que são esses membros: "a fornicação, a impureza, o afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria" (Colossenses 3:5). Estas são as obras do corpo que devemos mortificar -- que devemos entregar à morte de maneira prática; e isto sobre o fundamento de que a carne foi condenada à morte na cruz. "E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências" (Gálatas 5:24). Observe que o versículo não diz que estão crucificando, ou que deveriam crucificar a carne, mas que já a crucificaram. Deus a colocou fora de Sua vista pela cruz, e devemos mantê-la fora de nossa vista pelo auto-julgamento. O corpo, pelo contrário, tem no Novo Testamento um lugar muito importante como o templo do Espírito Santo, mas a tendência do asceticismo é de maltratar o corpo e alimentar a carne. "As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne" (Colossenses 2:23).

Os "pais" parecem ter se esquecido que o asceticismo era fruto da filosofia pagã, e de modo nenhum do cristianismo divino, mas eles parecem nunca terem olhado com cuidado para as Escrituras para conhecerem a mente de Deus sobre esses assuntos. Não tendo entendido a total ruína do homem na carne, eles em vão pensavam que ela podia ser melhorada, e foram assim desviados de inumeráveis maneiras, especialmente quanto à obra de Cristo, o julgamento da carne por Deus, o verdadeiro princípio da adoração, e todo o caminho do serviço cristão.

Tendo visto o estabelecimento do grande sistema monástico que exerceria uma influência tão poderosa em conexão com o cristianismo, a literatura e a civilização através da idade das trevas, deixemos o assunto por enquanto e retornemos à nossa história geral.

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