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domingo, 20 de setembro de 2020

Bonifácio VIII e Filipe, o Belo (1295 a 1303 d.C.)

Em menos de quarenta anos desde a promulgação desse famoso decreto, conhecido na história como a "Pragmática Sanção", o orgulhoso e imperioso pontífice Bonifácio VIII foi abertamente desafiado pelo rei da França. Ele foi o primeiro a ensinar às nações da Europa que os bispos romanos podiam ser derrotados e pisoteados pelo soberano, como haviam pisoteado durante séculos os soberanos da Europa. Filipe, o Belo -- assim chamado por sua aparência pessoal, certamente não por suas ações -- era tanto altivo como teimoso, tão arrogante, tão ciumento, tão violento, tão implacável quanto Bonifácio, e até o superava em astúcia e sutileza. O orgulho de Bonifácio foi sua ruína; não reconhecia limites e desdenhava-se a se curvar às circunstâncias, e nenhuma consideração de religião, política ou humanidade poderia reprimir sua violência e crueldade. Mas a aparência elevada e o orgulho altivo do prelado logo seriam abatidos. Ele estava profundamente envolvido em muitas brigas com muitas nações, soberanos e famílias nobres; mas o astuto e poderoso rei da França provou ser mais do que seu adversário. Quando Bonifácio enviou uma exigência extravagante a Filipe, ele respondeu com desprezo. E quando touro após touro, em ira ardente, saiu do Vaticano contra o rei, ele fez com que fossem queimados publicamente em Paris e mandou de volta uma mensagem a sua santidade de que era a função de um papa exortar, não ordenar, e que ele não toleraria nenhum ditador em seus negócios.

Mas as coisas não podiam parar por aí; Filipe decidiu humilhar seu adversário. Para fortalecer sua posição contra os procedimentos de Roma, ele recorreu aos meios mais constitucionais. Enquanto Bonifácio ofendia a população da França com seus ataques destemperados ao rei, o rei político estava atraindo a admiração de seu povo ao defender a dignidade de sua coroa e o bem-estar da nação contra as usurpações do papa. Ele reuniu os nobres e prelados da França, e com eles convocou os representantes do terceiro estado, os burgueses da França -- dita ser a primeira convocação dos Estados Gerais. Este plano foi logo seguido por outros reis, o que afetou profundamente a futura história do papado. O rei teve a satisfação de obter um forte protesto contra as exigências papais e a afirmação da independência da coroa.

Bonifácio, não percebendo essa crise em sua própria história e na do papado, seguiu cegamente, com uma arrogância inoportuna, sua conduta anterior. Dirigindo-se a Filipe em uma carta, ele diz: "Deus me colocou sobre as nações e os reinos, para arrancar e derrubar, para destruir, para construir, para plantar em Seu nome e por Sua doutrina. Que ninguém te persuadas, meu filho, que não tens superior, ou que não estás sujeito ao chefe da hierarquia eclesiástica. Aquele que tem essa opinião é insensato, e quem a defende obstinadamente é um infiel, separado do rebanho do bom pastor. Portanto, declaramos, definimos e pronunciamos que é absolutamente essencial para a salvação de todo ser humano que ele esteja sujeito ao pontífice romano." A resposta do rei foi moderada, mas firme e desafiadora. As perplexidades aumentaram. Não satisfeito com essas afirmações, o papa declarou um interdito na França, excomungou o rei e ofereceu sua coroa a outro. Mas Filipe, de forma alguma incomodado com tais censuras, que agora eram impotentes, publicou um decreto que proibia a exportação de todo ouro, prata, joias, armas, cavalos ou outras munições de guerra do reino. Por esse decreto, o próprio papa foi privado de suas receitas da França.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Inocêncio e a Perseguição Albigense

Tal era o estado das coisas naquela região ensolarada, pacífica e próspera, quando uma nuvem escura de trovões apareceu no horizonte. Inocêncio ouviu com consternação sobre o progresso das novas opiniões, e resolveu esmagá-las. Com esse objetivo em vista, ele primeiramente dirigiu uma carta aos clérigos e príncipes do sul da França, exortando-os a tomarem medidas vigorosas para a supressão da heresia: todos os hereges deveriam ser anatemizados e banidos. Mas para Raimundo e outros, tal requisição tão impiedosa parecia tão arbitrária que recebeu pouca atenção. "Fomos criados com essas pessoas", respondeu Raimundo, "temos relações entre eles, sabemos que a vida deles é honesta; como perseguiremos aqueles a quem respeitamos como os mais pacíficos e leais de nosso povo?" Era óbvio que em tal sacrifício da população estavam envolvidos os interesses e as receitas dos príncipes, o que equivaleria a um processo de extermínio; mas a esse terrível processo o alegado supremo pastor do rebanho de Cristo não hesitou em recorrer, por mais que os soberanos seculares se opusessem. Os albigenses foram excomungados e colocados sob anátema, o que se estendia também a todos aqueles que os abrigassem, negociassem com eles ou se unissem a eles em relações sociais. Mas o desobediente Raimundo ainda mostrava favor para com seus súditos hereges, e o papa, enraivecido, consequentemente, enviou, em seguida, dois legados -- Reinerius e Guido -- para investigarem as causas da falha, armados com a total autoridade de extirpar os hereges. Muitas dessas pessoas inofensivas foram presas, condenadas e queimadas na fogueira; mesmo assim, Raimundo permaneceu inativo, e a heresia crescia e ganhava força.

O que deveria ser feito? Novos poderes foram exigidos; agentes mais severos e mais ativos foram requeridos. Raimundo, um soberano independente, conhecendo o caráter irrepreensível de seus súditos perseguidos, recusou-se a executar as demandas de Roma. São Bernardo, antigo defensor do papado, estava morto, mas o papa voltou-se para seus descendentes espirituais. Pedro de Castelnau, um monge cisterciense, foi enviado a Raimundo como um legado apostólico no ano de 1207 para exigir que exterminasse seus súditos hereges com fogo e espada. Mas o tolerante príncipe, que parece ter sido um homem muito mundano e apaixonado pelo prazer, sem força de caráter para ser herege ou fanático, não pôde ser despertado a obedecer ao mandato papal. Duas vezes ele recusou, e duas vezes ele foi excomungado, e seus domínios submetidos a um solene interdito. Inocêncio sancionou o que seu legado tinha feito e escreveu uma carta a Raimundo com uma linguagem de arrogância e insolência sem igual. "Homem pestilente! Tirano imperioso, cruel e desagradável; que orgulho tomou o teu coração, e que loucura a tua recusar a paz com seus vizinhos e enfrentar as leis divinas ao proteger os inimigos da fé? Se você não teme as chamas eternas, não deveria pelo menos temer os castigos temporais que mereces por tantos crimes? Pois verdadeiramente a igreja não pode ter paz com o capitão dos piratas e ladrões -- o patrono dos hereges -- o desprezador das coisas sagradas -- o amigo dos judeus e dos agiotas -- o inimigo dos clérigos, e um perseguidor de Jesus Cristo e de Sua igreja. O braço do Senhor ainda estará estendido contra ti, até que sejas esmagado até o pó. Verdadeiramente, Ele te fará sentir quão difícil te será retirar-te da ira que invocaste sobre tua própria cabeça."

Esse é um exemplo da espécie de veemência do injurioso papa nos tempos medievais. E por que motivo? pode o leitor perguntar. Não por causa de imoralidade, por pior que fosse; mas porque o conde se recusava a ser o carrasco do papa e derramar o sangue de seus próprios súditos pacíficos, trabalhadores e fiéis. Mas tal era o poder desses demônios encarnados do papa que Raimundo acabou se submetendo, temeroso. Ele assinou um tratado, muito relutantemente, pelo extermínio de todos os hereges em seus domínios. Ele foi vagaroso, no entanto, em prosseguir com a ordem de perseguição. O legado, percebendo isso, não pôde esconder sua raiva, rompendo na mais reprovadora linguagem contra o príncipe -- chamou-o de covarde, acusou-o de perjúrio, e renovou a excomunhão em toda a sua plenitude. Será que precisamos nos perguntar se um príncipe feudal como Raimundo ficaria irritado em indignação colérica pela ousada impudência do monge? Dizem que ele exclamou, em um momento infeliz, que faria Castelnau responder por sua insolência com sua vida. Supõe-se que a ameaça tenha sido ouvida por um de seus súditos que, no dia seguinte, após um debate enfurecido,  covardemente bateu no legado, matando-o. A disputa, como pode ser observado, assumiu um aspecto semelhante ao que se desenrolou pouco tempo antes entre Henrique II da Inglaterra e Thomas Backet.

domingo, 10 de novembro de 2019

A Inglaterra sob o Banimento Papal

Em um momento, todos os ofícios divinos por todo o reino cessaram, exceto o rito do batismo e a extrema unção. "Desde Berwick até o Canal Britânico", diz um relato sobre essa terrível maldição, "desde Land's End até Dover, as igrejas foram fechadas, os sinos silenciados; os único clérigos que se viam por aí, silenciosamente, eram aqueles que deviam batizar recém-nascidos, ou que ouviam a confissão dos moribundos. Os mortos eram lançados fora das cidades, enterrados como cães em qualquer lugar não consagrado, sem orações, sem o tocar dos sinos, sem o rito funeral. Apenas podem julgar o efeito do interdito papal aqueles que consideram quão completamente toda a vida de todas as classes de pessoas era afetada pelos rituais e ordenanças diárias da igreja. Cada ato importante era feito sob o conselho dos padres e monges. Os festivais da igreja eram os únicos feriados, as procissões da igreja os únicos espetáculos, as cerimônias da igreja o único entretenimento. Não ouvir qualquer oração ou canto, supôr que o mundo estava rendido ao poder irrestrito do diabo e de seus espíritos malignos, sem santo algum para interceder, sem nenhum sacrifício para aplacar a ira de Deus; quando nenhuma imagem sequer era exposta à vista, nenhuma cruz havia que não estivesse velada: a relação entre o homem e Deus totalmente quebrada; almas deixadas a perecer, ou no máximo relutantemente permitidas à absolvição no momento da morte." E, de outras partes, aprendemos que, de modo a inspirar a mais profunda melancolia e fanatismo, não se permitia que se cortassem os cabelos ou as barbas; o consumo da carne era proibido, e até mesmo a saudação comum era proibida.

Tal foi o estado da Inglaterra por pelo menos quatro anos. A miséria pública foi grande e universal; mas nem a miséria dos indivíduos nem as privações religiosas dos cristãos moveram o coração obturado do rei nem do pontífice. O triunfo do pastor de Roma sobre um grande reino era muito mais desejado do que o bem-estar do rebanho. Os clérigos que publicaram o edito, juntamente com outros bispos ricos, fugiram do reino. "Lá viviam eles", diz o historiador, "em abundância e luxúria, em vez de permanecerem em defesa pela casa do Senhor, abandonando seus rebanhos para o lobo voraz". O tirano vingativo João parecia desafiar e tratar com insolente desdém os terríveis efeitos do edito sobre os seus sofredores súditos. Ele se regozijava em sua vingança contra os bispos e padres que obedeciam ao papa. Ele confiscou a propriedade do clero superior e dos monastérios por toda a Inglaterra e obrigou os judeus a cederem suas riquezas por meio de prisão e tortura. Esse estado de coisas durou quase dois anos quando uma nova bula pontifícia* foi emitida.

{* A bula pontifícia é um alvará passado pelo Papa ou Pontífice católico, com força de lei eclesiástica, pelo qual se concedem graças e indulgências aos que praticam algum acto meritório. O termo bula refere-se não ao conteúdo e à solenidade de um documento pontifício, como tal, mas à apresentação, à forma externa do documento, a saber, lacrado com pequena bola (em latim, "bulla") de cera ou metal, em geral, chumbo (sub plumbo). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bula_pontif%C3%ADcia}

O astuto papa tinha assistido de perto o efeito do primeiro edito e, vendo que João estava perdendo seus amigos e se tornando mais impopular, publicou a sentença de excomunhão contra o nome e a pessoa do soberano. Ainda assim, os hábitos desprezíveis de João eram tais que, embora desafiasse o papa e a hierarquia, ao mesmo tempo alienava as afeições de todas as classes de pessoas no país. Mais uma vez, o papa viu sua oportunidade, emitindo outra bula ainda mais assustadora. Os súditos de João foram absolvidos de sua lealdade ao rei e ordenou-se que evitassem sua presença. Mas, com aquela indiferença estoica para com o sofrimento humano que ele uniformemente manifestava, determinou que tanto ele próprio quanto a nação deveriam enfrentar completamente a vingança de Roma. Os trovões papais pareciam não causar qualquer efeito sobre o rei insensível e irreligioso, e tivesse ele tratado mais sabiamente seus nobres e seu povo, nem o maior dos papas nem os seus ataques mais pesados surtiriam qualquer efeito sobre o povo da Inglaterra. Mas agressiva avidez, as barbaridades e a conduta ultrajante do rei afastaram de si todas as classes de pessoas. O desafeto para com ele crescia de murmurações a quase revoltas. Inocêncio, observando esse fermento de descontentamento trabalhando tão eficazmente na Inglaterra, preparou-se para lançar sua última e mais perigosa rajada contra o contumaz soberano. "O interdito tinha ferido a terra, a excomunhão tinha profanado a pessoa do rei, restando apenas o ato de deposição do trono de seus pais, que foi então pronunciada: 'Que João, rei da Inglaterra, seja deposto da coroa e dignidade real; que seus súditos sejam absolvidos de seu juramento de lealdade, e estejam livres para transferi-lo a uma pessoa mais digna de preencher o trono vago.'"*

{*Cathedra Petri, de Greenwood, livro 13, p. 582; Latin Christianity, de Milman, vol. 4, p. 90; History of the Church, de  Waddington, vol. 2, p. 167.}

O trono da Inglaterra estava então pública e solenemente declarado vago pelo decreto do papa, e os domínios do rei eram os despojos, por direito, de qualquer que pudesse arrancá-los de suas mãos imorais. Tal era o poder dos papas naqueles dias, e tal o terror de seus trovões. Ele golpeava grandes nações com seus anátemas, e elas caíam diante dele mirradas e feridas; ele arrancava grandes reis de seus tronos, e os obrigava a se curvarem diante da tempestade de sua ira e a obedecerem humildemente ao mandato de sua vontade. Todos, sem exceção, na Igreja e no Estado, deviam aceitar seus próprios termos de reconciliação, ou morreriam sem salvação e seriam atormentados nas chamas do inferno para sempre. O altivo e esperto Filipe Augusto da França foi domado em poucos meses, enquanto o fraco e desprezível João desconsiderou suas fulminações por anos, apenas para receber, no final, um golpe ainda mais pesado, e acabasse se submetendo a uma profunda humilhação. Veremos agora como isso foi cumprido; e, na trama, o leitor também perceberá a profunda astúcia e sedução do papa. Não teremos dificuldade, ao tratarmos desse assunto, em enxergar nisso as profundezas de Satanás.

domingo, 5 de maio de 2019

João e o Papado

Deixemos agora a história civil, e voltemo-nos mais diretamente à história eclesiástica dos assuntos na Inglaterra nesse interessante momento.

Vimos o papa ignorando as graves imoralidades de João, por conta, supomos, dele ter sido um partidário de Otão e o aliado da Santa Sé, mas João era agora culpado de crimes que sua Santidade não podia ignorar. Suas irregularidades matrimoniais, ainda que criminosas, poderiam ser permitidos passar sem censura; mas a deposição de sés (arcebispos), a imposição de impostos sobre os mosteiros e a interferência na nomeação de um primaz o levaram a uma colisão direta com o papado, e o envolveram numa contenda feroz com seu até então aliado, o papa Inocêncio.

Imediatamente após a morte de Hubert Walter, arcebispo de Cantuária, os monges mais jovens apressadamente elegeram seu vice-prior, Reginaldo, à cadeira vazia. Mas logo percebendo que tinham agido imprudentemente, pediram ao rei para que pudessem realizar uma nova eleição. A escolha de um bispo estava realmente nas mãos do soberano, embora nominalmente estivesse nas mãos do clero. Tal era o sistema anglo-normando. O rei recomendou um de seus principais conselheiros, João de Grey, bispo de Norwich, que foi escolhido, investido com as temporalidades da Sé, e enviado a Roma para confirmação. O papa agora via sua oportunidade, e ansioso por ampliar seu poder na Inglaterra, anulou ambas as eleições, tanto de Reginaldo quanto de João de Grey, e ordenou a eleição de Stephen Langton, um inglês de nascimento, homem erudito e prudente, e de excelente caráter. Não havia pessoa mais adequada que o papa pudesse nomear; mas sua ação desafiava o privilégio reivindicado pelos monges, o direito de sufrágio dos bispos, e o próprio rei. Em vão os representantes de Cantuária e os comissários do rei insistiram na necessidade do consentimento do rei. Inocêncio decidiu em contrário. Ele os constituiu para uma comissão baseada na "autoridade de Deus e da Sé Apostólica". Os monges se encontravam então entre dois tiranos -- o espiritual e o temporal. Doze deles estavam sob juramento ao rei para não elegerem qualquer outro além do bispo de Norwich, mas o papa ordenou que eles elegessem Langton, sob pena de excomunhão e anátema. Intimidados por essa terrível ameaça, a comissão finalmente cedeu ao tirano espiritual e prosseguiu à eleição de Stephen, e em 17 de junho de 1207, o papa o consagrou Arcebispo de Cantuária.

Tal interferência com os direitos da igreja estabelecida e com a prerrogativa da coroa era algo totalmente novo na Inglaterra. Se João tivesse sido um príncipe popular cercado pela força e pela aprovação de seu povo insultado, ele poderia ter rido de desprezo da ousada presunção e ameaças de um padre estrangeiro, mas a insensatez e falta de popularidade do rei deu ao papa a oportunidade que ele desejava. Os monges de Cantuária, em seu retorno de Roma, foram acusados de alta traição, e foram consequentemente expulsos de suas residências, e suas propriedades foram confiscadas. Mas a fúria do rei não conhecia limites; ele despachou uma tropa de cavalos para expulsar os monges para fora do país e, em caso de resistência, matá-los. As ordens foram executadas da forma como foram dadas. Os soldados invadiram o mosteiro com espadas desembainhadas; o prior e os monges foram ordenados a deixar o reino, e ameaçados, se resistissem ou se demorassem, a ver seu mosteiro em chamas, e eles próprios lançados nessas chamas. Muitos deles fugiram e encontraram asilo em Flandres. O rei também se entregou à mais insultante e pungente linguagem para com o pontífice, protestando que nunca aceitaria Stephen Langton como primaz, que ele manteria o direito do bispo de Norwich, e, em caso de recusa do papa, que cortaria todas as comunicações entre seus domínios e Roma. Mas o papa prosseguiu com não menos energia que João, mas com uma dignidade mais calma.

No curso de mais algumas trocas de cartas, o papa discorreu mais ainda sobre a erudição e piedade de Langton, e exortou o rei a se abster de tomar armas contra Deus e Sua igreja; mas, como João não fez nenhuma concessão, Inocêncio ordenou que os bispos de Londres, Worcester e Eli colocassem todo o reino sob um interdito. Quando os bispos entregaram a mensagem, a ira do rei irrompeu em juramentos e blasfêmias selvagens. Ele jurou que, se o papa ou o clero colocassem o reino sob um interdito, ele expulsaria os bispos e os prelados do reino "sem olhos, orelhas ou narizes, para serem os espantalhos de todas as nações". Os prelados se retiraram, e, quando estavam a uma distância conveniente de João, publicaram o interdito. 

domingo, 14 de abril de 2019

A Ira do Rei

Filipe Augusto (Filipe II) foi um príncipe orgulhoso, arrogante e cheio de si, não acostumado a suportar silenciosamente uma tão grande interferência. Ele irrompeu em ataques de fúria, e jurou pela espada de Carlos Magno que preferia perder metade de seus domínios do que se separar de Inês de Merânia. Ele ameaçou o clero com medidas extremas se eles ousassem obedecer o papa. Ingeborg foi capturada, arrastada de seu claustro e aprisionada no reforçado castelo de Etampes. Mas a ira do rei não prevaleceria sobre o severo decreto do papa. Os barões, cujo poder ele tinha reduzido, não se preocuparam em apoiá-lo; o povo estava em um estado de piedosa revolta. Eles tinham se reunido ao redor das igrejas, forçavam as portas; eles estavam determinados a não ficarem privados de seus serviços religiosos. O rei ficou alarmado com os motins entre o povo, e prometeu obedecer o papa.

Uma delegação foi enviada a Roma. O rei reclamou dos duros procedimentos do legado, mas declarou-se pronto a cumprir a sentença do papa. "Que sentença?", exclamou severamente sua santidade; "ele conhece nosso decreto; faça-o repudiar sua concubina, receber sua esposa de direito, reinstaurar os bispos a quem expeliu, e que dê-lhes satisfação por suas perdas. Então retiraremos o interdito, receberemos suas garantias, examinaremos o alegado relacionamento, e pronunciaremos nosso decreto". A resposta veio ao coração de Inês, e levou o rei à loucura. "Vou me tornar muçulmano", exclamou ele. "Feliz é Saladino, que não tem um papa sobre ele". Mas o arrogante Filipe tinha que se curvar. As afeições e os sentimentos religiosos de todas as classes estavam do lado do clero. Ele convocou um parlamento em Paris, que foi assistido por todos os grandes vassalos da coroa. "O que faremos?", exigiu o rei, com sua bela Inês ao seu lado. "Obedeça o papa, dispense Inês, e receba de volta a Ingeborg", foi a esmagadora resposta. Assim, aquele que tinha dobrado a França em extensão pelo gume afiado de sua espada e pela prudência de sua política; aquele que tinha erguido a coroa a uma certa independência acima dos grandes senhores feudais; agora esse mesmo tinha que beber o chorume da humilhação na presença dos nobres da França a pedido do papa.

A cena era esmagadora. Inês declarara que nada lhe importava a coroa, que era seu marido que ela amava; uma estranha, filha de um príncipe cristão, jovem e ignorante do mundo, tinha se casado com o rei, e com ele tivera dois filhos. "Não me separem do meu marido", era seu tocante apelo. Mas o inexorável decreto foi emitido: "Obedeça o papa, dispense Inês, receba de volta a Ingeborg". O rei por fim concordou com uma reconciliação com Ingeborg. Ela foi trazida diante dele, mas a vista dela despertou tanto a aversão do rei que as negociações foram quase quebradas. Enfim, ele dominou seus instintos pelo momento e curvou-se à sentença papal. Ele jurou recebê-la e honrá-la como rainha da França. Naqueles momento, o soar dos sinos proclamaram que o interdito que pesava tanto sobre o povo por mais de sete meses tinha sido retirado. "As cortinas foram retiradas de sobre as imagens e crucifixos, as portas das igrejas se abriram, e as multidões se aglomeravam para saciar seus desejos piedosos que haviam sido suprimidos durante o período do interdito".

Roma alcançou seu objetivo; ela triunfou sobre o maior rei da cristandade, e assim cumpria-se a Palavra de Deus: "A mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra" (Ap 17:18)*. O domínio universal sobre os corpos, almas e assuntos dos homens era seu desejo insaciável, seu incessante objetivo. E além dessa demonstração de poder, não podemos supôr que Roma tivesse qualquer outro maior objetivo em vista, pois tinha sancionado, no grande predecessor de Filipe (Luís VII), uma conduta muito mais ultrajante.

{* N. do T.: Isso não significa que isso já foi cumprido e que não se cumprirá mais no futuro. Aqui temos apenas uma demonstração do espírito da Babilônia, que será levada a ainda maiores extremos no período da grande tribulação, do qual narra essa passagem de Apocalipse.}

O aflito rei então se separou de sua Inês, ambos com o coração partido. Pouco tempo depois ela morreu de dor, tendo dado à luz um filho, a quem ela deu o significativo nome de João-Tristão -- o filho de minha tristeza. Ingeborg foi recebida com honra exterior, mas viveu na realidade como uma prisioneira do Estado; nada podia jamais induzir Filipe a viver com ela como sua esposa, embora tenha consentido que vivesse no palácio. Novas disputas entre a França e Inglaterra desviaram a mente de Inocêncio da rainha negligenciada e abriram um campo mais convidativo para sua mente ativa e ambiciosa.  

O Legado Papal na França

Pedro, cardeal de Santa Maria na Via Lata, foi enviado à França como legado, com autoridade, no caso da obstinação do rei, para estabelecer seus domínios sob o banimento papal. Mas o rei tratou com desprezo e desafio a ordem de afastar sua amada Inês, e receber novamente a odiada Ingeborg. O papa foi inflexível. "Se, dentro de um mês", escreveu ele ao legado, "após sua comunicação, o rei da França não receber sua rainha com afeição conjugal, todo o seu reino deve ser interditado -- um interdito com todas as suas terríveis consequências". Um concílio ocorreu em Dijon, mensageiros do rei apareceram, protestando em seu nome contra todos os outros procedimentos, e apelando a Roma. Mas as ordens ao legado eram peremptórias. O interdito foi proclamado com todo as suas terríveis circunstâncias, sendo assim descrito: -- "À meia-noite, cada padre, levando uma tocha, cantou um salmo para o miserável, e orações para os mortos, as últimas orações que deveriam ser proferidas pelo clero da França durante o interdito. Os crucifixos foram cobertos com um tecido preto; as relíquias escondidas dentro das tumbas; a hóstia foi toda consumida. O cardeal, vestindo sua estola violeta, pronunciou os territórios do rei da França como estando sob o banimento. Todos os serviços religiosos daquela época cessaram; não havia mais acesso ao céu pela oração ou oferta. Apenas os soluços das mulheres mais velhas e crianças quebravam o silêncio. O interdito foi pronunciado em Dijon. Apenas o batismo das crianças e a extrema unção dos moribundos foram permitidos pela igreja durante o período em que o reino esteve sob a maldição do banimento papal".

Pela culpa do soberano a nação inteira deve sofrer -- assim deve ter pensado o papa -- para que seu coração possa ser amolecido, seja por piedade pela miséria de seu povo ou pelo medo de seu descontentamento; pois a morte nessa época era tida como a perdição eterna. "Ó, quão terrível", exclamou uma testemunha ocular, "quão lamentável espetáculo aquilo foi em todas as nossas cidades! Ver as portas das igrejas vigiadas, e cristãos tirados delas como cães; todos os ofícios divinos cessaram; o sacramento do corpo e do sangue para a alma não mais se oferecia; o povo não se reunia mais como de costume nos festejos aos santos; os corpos dos mortos não eram admitidos ao enterro cristão, e o fedor deles infectava o ar, e a visão repugnante deles chocava os vivos: apenas a extrema unção e o batismo eram permitidas. Houve um profundo silêncio por todo o reino, enquanto os órgãos e as vozes daqueles que cantavam os louvores de Deus foram silenciadas em todos os lugares"*.

{*Ver Latin Christianity, vol. 4, p. 67.} 

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