domingo, 29 de novembro de 2015

O Livro de Atos como um Livro Transicional entre Dispensações

Vamos aqui fazer uma pausa e contemplar por um momento nosso apóstolo como prisioneiro na cidade imperial. O evangelho tinha agora sido pregado de Jerusalém a Roma. Grandes mudanças tinham ocorrido nos modos dispensacionais de Deus [N. do T.: os modos como Deus trata com o ser humano]. O livro de Atos é transicional neste caráter. Os judeus, como vemos, são agora deixados de lado - ou melhor, eles mesmos se deixaram ficar de lado por rejeitarem aquilo que Deus estava fazendo. Os conselhos de Sua graça dirigidos a eles, sem dúvida, permanecem para sempre; mas, entretanto, eles são deixados de lado e outros vêm e tomam o lugar do bendito relacionamento com Deus. Paulo era uma testemunha da graça de Deus para com Israel. Ele mesmo era um israelita, mas também escolhido de Deus para introduzir algo inteiramente novo - a igreja, o corpo de Cristo, "do qual fui feito ministro... de anunciar entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo, e demonstrar a todos qual seja a comunhão do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo" (Efésios 3:7-9). Esta nova coisa pôs de lado qualquer distinção entre judeu e gentio, como pecadores e na unidade desse corpo. A hostilidade dos judeus contra essas verdades nunca diminuíram, como temos sempre visto, assim como vemos os resultados desta inimizade. Os judeus desaparecem da cena inteiramente, e a igreja se torna o vaso do testemunho de Deus na terra, e Sua habitação pelo Espírito (Efésios 2:22). Indivíduos judeus, é claro, que creem em Jesus, são abençoados em conexão com um Cristo celestial e com o "um só corpo". Mas Israel, por um tempo, é deixado sem Deus, e sem a presente comunicação com Ele. As Epístolas aos Romanos e aos Efésios estabelecem plenamente essa doutrina (especialmente Romanos, capítulos 9, 10 e 11). Agora retornamos à ocupação de Paulo durante sua prisão.

A Chegada de Paulo a Roma

Ao longo da Via Ápia, muito provavelmente, Paulo e seus companheiros viajaram até Roma. Ao chegarem, "o centurião entregou os presos ao capitão da guarda*; mas a Paulo se lhe permitiu morar por sua conta à parte, com o soldado que o guardava." (Atos 28:16). Embora ele não tenha sido libertado do constante aborrecimento de estar acorrentado a um soldado, todas as indulgências permitidas a um prisioneiro lhe foram concedidas.

{* O sábio e humano Burrus era prefeito da guarda pretoriana quando Júlio chegou com seus prisioneiros. Ele era um romano virtuoso e sempre tratou Paulo com grande consideração e gentileza. - Dicionário de Biografias do Dr. Smith }

Paulo tinha agora o privilégio "de anunciar o evangelho aos que estavam em Roma" (Romanos 1:15); e prosseguiu sem demora a agir de acordo com sua regra divina: "primeiro aos judeus". Ele chama os principais dos judeus e explica a eles sua verdadeira posição. Ele lhes assegura que não tinha cometido ofensa alguma contra sua nação, ou contra os costumes dos pais, mas que ele tinha sido trazido a Roma para responder a certas acusações feitas contra ele pelos judeus na Palestina: e tão infundadas eram acusações, que até mesmo o governador romano estava disposto a libertá-lo, mas os judeus se opunham à sua liberdade. De fato era, como ele disse, que "pela esperança de Israel estou com esta cadeia". (Atos 28:20). Seu único crime tinha sido sua firme fé nas promessas de Deus a Israel através do Messias.

Os judeus romanos, em resposta, asseguraram a Paulo que nenhum relato sobre os preconceitos sofridos tinha chegado a Roma, e que eles desejavam ouvir dele mesmo uma declaração de sua fé; e além disso, que em toda parte se falava mal dos cristãos. Um dia foi então marcado para um encontro em seu próprio aposento. Na hora marcada muitos vieram, "aos quais declarava com bom testemunho o reino de Deus, e procurava persuadi-los à fé em Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas, desde a manhã até à tarde." (Atos 28:23). Mas os judeus em Roma, assim como em Antioquia e Jerusalém, foram tardios de coração em crer. "E alguns criam no que se dizia; mas outros não criam." (Atos 28:24). Mas quão séria e incansavelmente ele trabalhava para ganhar seus corações para Cristo! De manhã até à tarde ele não apenas pregava a Cristo, mas procurava convencê-los a respeito dEle. Ele procurou, podemos estar certos, persuadi-los a respeito da Divindade e humanidade do Senhor - Seu perfeito sacrifício - Sua ressurreição, ascensão e glória. Que lição e que assunto para o pregador em todas as épocas. Persuadir homens a respeito de Jesus desde a manhã até à tarde.

A condição dos judeus é agora posta diante de nós pela última vez. O juízo pronunciado por Isaías estava para cair sobre eles em todo o seu poder fulminante - um juízo sob o qual permanecem até hoje - um juízo que deve continuar até que Deus se interponha para dar-lhes arrependimento, e para livrá-los por Sua graça à glória de Seu próprio nome. Mas, em meio a tudo isso, "a salvação de Deus é enviada aos gentios, e eles a ouvirão." (Atos 28:28), e, como sabemos - bendito seja Seu nome - eles ouviram, e nós mesmos somos testemunhas disso. *

{* Veja Estudos Introdutórios ao Livro de Atos, por W. Kelly}
"E Paulo ficou dois anos inteiros na sua própria habitação que alugara, e recebia todos quantos vinham vê-lo; pregando o reino de Deus, e ensinando com toda a liberdade as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo, sem impedimento algum." (Atos 28:30,31)

Estas são as últimas palavras de Atos. A cena na qual as cortinas se fecham é bastante sugestiva - a oposição da incredulidade judaica quanto às coisas relacionadas à salvação de suas almas sugerem, infelizmente, o que em breve se abateria sobre eles. E aqui, também, acaba a história desse precioso servo de Deus, até onde nos foi diretamente revelada. A voz do Espírito da verdade sobre este assunto torna-se silenciosa. O conhecimento que temos sobre a subsequente história de Paulo deve agora ser coletado quase que exclusivamente de suas próximas epístolas. E delas aprendemos mais que mera história: elas nos dão um bendito vislumbre dos sentimentos, conflitos, afetos e simpatias do grande apóstolo, e da condição da igreja de Deus em geral, até o momento de seu martírio.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Paulo em Malta

Atos 28. Os habitantes da ilha receberam os náufragos estrangeiros com muita gentileza, e imediatamente acenderam um fogo para aquecê-los. O historiador sagrado nos pinta um quadro vivo de toda a cena. Vemos as pessoas descritas se movendo nela: o apóstolo recolhendo lenha para o fogo - a víbora mordendo sua mão - os nativos pensando, a princípio, que ele fosse um assassino, e depois que fosse um deus, pelo fato de ter escapado ileso da mordida. Públios, o principal líder da ilha, os recebeu com cortesia por três dias, e seu pai, que estava de cama com febre, foi curado por Paulo ao impor suas mãos sobre ele e orar. Permitiram que o apóstolo obrasse muitos milagres durante sua estadia na ilha, e toda companhia, por causa dele, foram tidos com muita honra. Vemos que Deus está com Seu amado servo, e que ele exercita, como de costume, seu poder entre os habitantes. Como a parte final da viagem de Paulo a Roma é bastante próspera, havendo poucos incidentes registrados, vamos tomar nota brevemente:

Após uma estadia de três meses em Malta, os soldados e seus prisioneiros partiram em um navio de Alexandria para a Itália. Eles passaram por Siracusa, onde ficaram por três dias: e em Régio, a partir de onde tiveram um vento bom até Potéoli. Aqui eles "acharam alguns irmãos", e enquanto passavam alguns dias com eles, desfrutando do ministério do amor fraternal, as novidades sobre a chegada de Paulo chegaram aos ouvidos dos cristãos de Roma. Eles logo enviaram alguns dos seus, que se encontraram com Paulo e seus amigos na Praça de Ápio e nas Três Vendas. Um belo exemplo e ilustração da comunhão dos santos. Quais deveriam ter sido os sentimentos de nosso apóstolo nessa primeiro encontro com os cristãos da igreja em Roma! Seu desejo há muito acalentado estava finalmente cumprido. Seu coração estava cheio de louvor. "Ele deu graças a Deus", como diz Lucas, "e tomou ânimo." (Atos 28:15)

sábado, 21 de novembro de 2015

O Naufrágio

O naufrágio não estava muito distante. "E, quando chegou a décima quarta noite, sendo impelidos de um e outro lado no mar Adriático, lá pela meia-noite suspeitaram os marinheiros que estavam próximos de alguma terra. E, lançando o prumo, acharam vinte braças; e, passando um pouco mais adiante, tornando a lançar o prumo, acharam quinze braças." (Atos 27:27,28). Por quatorze dias e noites o pesado vendaval continuou sem parar, tempo durante o qual o sofrimento deles deve ter sido além de qualquer descrição.

No fim do décimo quarto dia, "lá pela meia-noite", os marinheiros ouviram um som que indicava que eles estavam se aproximando da terra. O som, sem dúvidas, vinha das ondas de arrebentação, que se quebram nos rochedos. O tempo não podia ser desperdiçado, então eles imediatamente lançaram quatro âncoras da popa, e ansiosamente esperaram pelo amanhecer. Aqui houve uma tentativa natural, porém mesquinha, dos marinheiros para salvarem suas próprias vidas. Eles baixaram o bote com o professo propósito de lançar as âncoras da proa, porém com a intenção de abandonar o navio a afundar. Paulo, vendo isso, e conhecendo seus verdadeiros desígnios, imediatamente "disse ao centurião e aos soldados: Se estes não ficarem no navio, não podereis salvar-vos. Então os soldados cortaram os cabos do batel (bote), e o deixaram cair." (Atos 27:31,32). Assim, o conselho divino do apóstolo foi o meio de salvar todos a bordo. "Se estes não ficarem no navio, não podereis salvar-vos." (Atos 27:31). Já não mais o capitão do navio ou sua tripulação eram procurados para buscar sabedoria e segurança. Todo olho se voltava para Paulo, o prisioneiro - o homem da fé - o homem que acredita e age de acordo com a revelação de Deus. Circunstâncias frequentemente enganam quando olhamos para sua direção; a palavra de Deus é nosso único guia seguro, seja em clima calmo ou desagradável.

Durante o ansioso intervalo que se manteve até o amanhecer do dia, Paulo teve uma oportunidade de levantar sua voz a Deus, e para o encorajamento de toda a companhia. Que cena de intenso interesse deve ter sido! A noite escura e tempestuosa - o navio em perigo de afundar ou de se despedaçar nos rochedos. Mas havia alguém a bordo que estava perfeitamente feliz em meio a tudo isto. O estado do navio, as águas rasas e o alarmante som das ondas não surtiam terror nele. Ele estava feliz no Senhor, e em plena comunhão com Seus próprios pensamentos e propósitos. Tal é o lugar do cristão em meio a toda tempestade, embora comparativamente poucos tomam esse lugar: somente a fé pode alcançá-lo. Esta foi a última exortação de Paulo à companhia do navio.

"E, entretanto que o dia vinha, Paulo exortava a todos a que comessem alguma coisa, dizendo: É já hoje o décimo quarto dia que esperais, e permaneceis sem comer, não havendo provado nada. Portanto, exorto-vos a que comais alguma coisa, pois é para a vossa saúde; porque nem um cabelo cairá da cabeça de qualquer de vós. E, havendo dito isto, tomando o pão, deu graças a Deus na presença de todos; e, partindo-o, começou a comer. E, tendo já todos bom ânimo, puseram-se também a comer." (Atos 27:33-36)

O único desejo deles agora era chegar com o navio em terra e escapar. Embora não tivessem ainda conhecido a terra, "enxergaram uma enseada que tinha praia" e se determinaram a encalhar o navio ali. Então eles lançaram âncoras, largaram as amarras do leme, içaram a vela maior e dirigiram-se para a praia. O navio, assim, conduzido, com a proa encravada na praia, permaneceu imóvel, mas a popa se quebrou em pedaços pela violência das ondas.

O navio de Paulo tinha agora alcançado a costa, e mais uma vez o homem da fé foi necessário para a salvação das vidas de todos os prisioneiros. O centurião, grandemente influenciado pelas palavras de Paulo, e temendo por sua segurança, previne que os soldados matem os prisioneiros, e ordena que aqueles que sabiam nadar deveriam se lançar primeiro ao mar e chegar à terra, e que o resto deveria seguir em tábuas ou pedaços do navio disponíveis. "E assim aconteceu que todos chegaram à terra a salvo." (Atos 27:44). O salvamento deles foi completo, como Paulo tinha predito que seria.

A Tempestade no Mar Adriático

O termo "euro-aquilão" dado a este tempestuoso vento indica, como nos é dito, uma tempestade de extrema violência. Veio acompanhada pela agitação e rodopio das nuvens, e por um grande abalo marítimo, com enormes ondas. O historiador sagrado agora procede dando um relato preciso sobre o que foi feito do navio nessas perigosas circunstâncias. Tendo corrido para o sotavento de Clauda, eles parecem ter escapado por um momento da violência da tempestade. Isso lhes deu então uma oportunidade de fazer preparações para a tempestade.

O dia após terem deixado Clauda - e a violência da tempestade continuando - eles começaram a aliviar o navio, lançando ao mar tudo o que poderia ser poupado. Todas as mãos pareciam estar trabalhando. "E, andando nós agitados por uma veemente tempestade, no dia seguinte aliviaram o navio. E ao terceiro dia nós mesmos, com as nossas próprias mãos, lançamos ao mar a armação do navio. E, não aparecendo, havia já muitos dias, nem sol nem estrelas, e caindo sobre nós uma não pequena tempestade, fugiu-nos toda a esperança de nos salvarmos." (Atos 27:18-20)

Nada poderia ser mais terrível para os marinheiros antigos do que um céu continuamente cheio de nuvens, já que estavam acostumados a serem guiados pela observação dos corpos celestiais. Foi nesse momento de perplexidade e desespero que o apóstolo "pôs-se em pé" e ergueu sua voz em meio à tempestade. E de suas palavras de simpatia aprendemos que todo o sofrimento deles foi agravado pela dificuldade de se preparar comida. "E, havendo já muito que não se comia, então Paulo, pondo-se em pé no meio deles, disse: Fora, na verdade, razoável, ó senhores, ter-me ouvido a mim e não partir de Creta, e assim evitariam este incômodo e esta perda. Mas agora vos admoesto a que tenhais bom ânimo, porque não se perderá a vida de nenhum de vós, mas somente o navio. Porque esta mesma noite o anjo de Deus, de quem eu sou, e a quem sirvo, esteve comigo, dizendo: Paulo, não temas; importa que sejas apresentado a César, e eis que Deus te deu todos quantos navegam contigo. Portanto, ó senhores, tende bom ânimo; porque creio em Deus, que há de acontecer assim como a mim me foi dito. É contudo necessário irmos dar numa ilha." (Atos 27:21-26)

domingo, 15 de novembro de 2015

A Viagem de Paulo a Roma (60 d.C.)

Atos 27. Chegou a hora em que Paulo viajaria a Roma. Nenhum julgamento formal do apóstolo tinha acontecido. E, sem dúvidas, cansado da oposição dos judeus - com dois anos de prisão em Cesareia - e com repetidos exames diante dos governantes e de Agripa, ele tinha solicitado um julgamento perante a corte imperial. Lucas, o historiador de Atos, e Aristarco de Tessalônica, tiveram o privilégio de acompanhá-lo. Paulo foi entregue aos cuidados de um centurião chamado Júlio, da guarda imperial: um oficial que, em todas as ocasiões, tratou o apóstolo com grande gentileza e consideração.

Foi então determinado que Paulo deveria ser enviado juntamente com "alguns outros presos" pelo mar até a Itália. "E, embarcando nós", diz Lucas, "em um navio adramitino, partimos navegando pelos lugares da costa da Ásia, estando conosco Aristarco, macedônio, de Tessalônica. E chegamos no dia seguinte a Sidom, e Júlio, tratando Paulo humanamente, lhe permitiu ir ver os amigos, para que cuidassem dele." (Atos 27:2,3). Partindo de Sidom eles foram forçados a navegar por baixo do Chipre, pois os ventos eram contrários, e chegaram a Mirra, uma cidade na Lícia. Aqui o centurião teve seus prisioneiros transferidos para um navio de Alexandria em rota para a Itália. Neste navio, após deixarem Mirra, "por muitos dias navegaram vagarosamente", pois o clima era desfavorável. Mas navegando por baixo de Creta, eles chegaram em segurança em Bons Portos.

O inverno estava próximo, e se tornou uma séria questão qual curso deveria ser tomado - se eles deviam permanecer em Bons Portos durante o inverno, ou se deveriam procurar algum porto melhor.

Aqui devemos fazer uma breve pausa e contemplar a maravilhosa posição de nosso apóstolo nessa séria consulta. Como anteriormente com Festo e Agripa, ele se põe diante do capitão, do proprietário do navio, do centurião e de toda tripulação, tendo a mente de Deus. Ele aconselha, dirige e age como se ele fosse realmente o mestre do navio, no lugar de ser um prisioneiro sob custódia de soldados. Ele aconselha para que fiquem onde estão. Ele adverte-lhes de que iriam se encontrar com um clima violento se se aventurassem ao alto mar, e que muito prejuízo seria feito ao navio e sua carga, e que colocaria em risco a vida dos que estavam a bordo. Mas o mestre e o proprietário do navio, que tinham o máximo interesse no próprio navio, se deixaram guiar pelas circunstâncias e não pela fé; eles desejavam correr o risco de buscar por um porto mais cômodo para invernar, e o centurião naturalmente cedeu ao julgamento deles. Todos estavam contra o julgamento do homem de fé - o homem de Deus - o homem que estava falando e agindo por Deus. Até mesmo as circunstâncias no cenário ao redor deles parecia favorável à opinião dos marinheiros, e não do apóstolo. Mas nada pode falsificar o julgamento da fé. Este deve ser verdade a despeito de qualquer circunstância.

Foi, portanto, resolvido pela maioria de que eles deveriam deixar Bons Portos, e navegar para Fenice como um porto mais seguro para o inverno. O vento mudou nesse exato momento. Tudo parecia favorecer os marinheiros. "E, soprando o sul brandamente...".  Eles estavam tão otimistas que Lucas nos diz que eles supunham que o propósito deles já estava realizado (v. 13). Estando em acordo, eles levantaram âncora e, com uma brisa suave vinda do sul, o navio, com suas "duzentas e setenta e seis almas" a bordo, partiu do porto de Bons Portos. Mas mal eles contornaram o Cabo Matala, uma distância de apenas quatro ou cinco milhas, e um vento forte vindo da costa pegou o navio, e o lançou de tal maneira que já não era possível para o timoneiro mantê-lo em seu curso. E, como observa Lucas, "nos deixamos ir à toa" (Atos 27:15), ou seja, eles foram obrigados a deixar o navio ser levado pelo vento.

Mas nossa principal preocupação aqui é com Paulo como o homem da fé. Quais devem ter sido os pensamentos e sentimentos de seus companheiros passageiros nesse momento? Eles tinham confiado no vento, e agora eles tinham que enfrentar a tempestade. Os solenes conselhos e avisos da fé tinham sido rejeitados. Muitos, infelizmente, sem se importarem com os avisos aqui registrados, e sob o lisonjeiro vento de circunstâncias favoráveis, se lançaram na grande viagem da vida, totalmente desatentos e independentes da voz da fé. Mas como o lisonjeiro vento que traiu o navio depois que saiu do porto, tudo logo se torna uma furiosa tempestade no agitado mar da vida.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Paulo Comparece Diante de Agripa e Berenice

Aconteceu nessa época que Agripa, rei dos judeus, e sua irmã Berenice, foram fazer uma visita de cortesia a Festo. E como Festo não sabia como levar o caso de Paulo ao Imperador, ele aproveitou a oportunidade de consultar Agripa, que estava mais bem informado que ele sobre os pontos em questão. O príncipe judeu, que devia saber algo sobre o cristianismo, e que sem dúvidas havia ouvido falar de Paulo, expressou o desejo de ouvi-lo falar. Festo prontamente acedeu ao pedido. "Amanhã", disse ele, "o ouvirás" (Atos 25:22).

O apóstolo teria agora o privilégio de levar o nome de Jesus diante da mais digníssima assembleia que ele já tinha abordado. Reis judeus, governadores romanos, oficiais militares e comandantes da Cesareia se reuniram "com grande pompa" para ouvir o prisioneiro dar conta de si mesmo a Agripa. Não era uma audiência qualquer, e está perfeitamente claro que eles não consideravam o prisioneiro como uma pessoa qualquer. Festo, tendo reconhecido a dificuldade na qual se encontrava, remeteu a questão ao melhor conhecimento do rei judeu. Agripa cortesmente deu sinal a Paulo, permitindo que falasse. Chegamos agora a um dos momentos mais interessantes em toda a história de nosso apóstolo.

A dignidade de seus modos perante seus juízes, embora preso por correntes a um soldado, deve ter impressionado profundamente sua audiência. A profundidade de sua humilhação apenas manifestava mais acentuadamente a elevação moral de sua alma. Ele não pensava nem em suas correntes nem em sua pessoa. Perfeitamente feliz em Cristo, e ardente de amor por aqueles ao seu redor, o bem-estar e as circunstâncias foram completamente esquecidas. Com uma digna consideração para com a posição daqueles ao seu redor, levantou-se, na honesta declaração de uma boa consciência, infinitamente acima de todos. Ele se dirigiu à consciência de sua audiência, com a ousadia e retidão de um homem acostumado a andar com Deus, e de agir por Ele. O caráter e conduta dos governadores são lançadas em doloroso contraste com o caráter e conduta do apóstolo, e nos mostra o que o mundo é quando desmascarado pelo Espírito Santo.

Certo autor escreveu: "Não mencionarei a vaidade mundana que se revela em Lísias e Festo por meio da conjectura de toda classe de boas qualidades e boa conduta - mistura de uma consciência tocada e falta de princípios nos líderes - e do desejo de agradar os judeus pela sua própria importância, ou de facilitar seu governo sobre um povo rebelde. A posição de Agripa e todos os detalhes da história têm o extraordinário cunho da verdade, cujos vários personagens são apresentados de maneira tão vívida que parece que estamos presenciando a cena aqui descrita, e vendo as pessoas se movendo nela. Além do mais, essa é uma característica marcante dos escritos de Lucas”.

Capítulo 26. Paulo se dirige ao rei Agripa como alguém bem versado nos costumes e questões que prevalecem entre os judeus. E assim ele relata sua miraculosa conversão e sua subsequente carreira de modo a agir na consciência do rei. Pela clara e direta narrativa do apóstolo, ele não estava longe de ser convencido. Sua consciência foi despertada. Mas o mundo e suas próprias paixões estavam no caminho. Festo ridicularizou. Para ele não passava de um entusiasmo extravagante - um delírio. Ele interrompeu o apóstolo abruptamente e "disse em alta voz: Estás louco, Paulo; as muitas letras te fazem delirar." (Atos 26:24). A resposta do apóstolo foi digna e segura de si, mas intensamente séria e, com grande sabedoria e discernimento, ele apela por fim a Agripa: "Não deliro, ó potentíssimo Festo; antes digo palavras de verdade e de um são juízo. Porque o rei, diante de quem também falo com ousadia, sabe estas coisas, pois não creio que nada disto lhe é oculto; porque isto não se fez em qualquer canto." (Atos 26:25,26)

Então, voltando-se ao rei judeu, que se sentava ao lado de Festo, ele fez este direto e solene apelo:

"Crês tu nos profetas, ó rei Agripa? Bem sei que crês." (Atos 26:27)

"E disse Agripa a Paulo: Por pouco me queres persuadir a que me faça cristão!" (Atos 26:28)

No momento, o rei foi levado pelo poder do discurso de Paulo, e pela afiada picada de seus apelos. Então Paulo deu sua resposta - uma resposta que se sobressai. É caracterizada pelo zelo piedoso, pela cortesia cristã, pelo ardente amor pelas almas, e por grande alegria pessoal no Senhor:

"E disse Paulo: Prouvera a Deus que, ou por pouco ou por muito, não somente tu, mas também todos quantos hoje me estão ouvindo, se tornassem tais qual eu sou, exceto estas cadeias." (Atos 26:29)

Com a expressão deste nobre desejo, a conferência foi encerrada. A reunião foi dissolvida. Agripa não queria ouvir mais. Os apelos tinham sido tão penetrantes e tão pessoais, ainda que misturados com dignidade, afeição e solicitude, que ele não aguentou mais. Então "levantou-se o rei, o presidente, e Berenice, e os que com eles estavam assentados." (Atos 26:30). Após uma breve consulta, Festo, Agripa e sua companhia chegaram à conclusão de que Paulo não era culpado de nada digno de morte ou mesmo prisão. "Bem podia soltar-se este homem", disse Agripa, "se não houvera apelado para César." (Atos 26:32)

Este era o cuidado do Senhor para com Seu amado servo. Ele teria sua inocência provada e reconhecida por seus juízes, e plenamente estabelecida perante o mundo. Sendo isto cumprido, o rei e sua companhia retomam seus lugares no mundo e seus divertimentos, e Paulo retorna à sua prisão. Mas nunca seu coração esteve mais feliz ou mais cheio do Espírito de Seu Mestre do que naquele momento.

Paulo Comparece Diante de Festo e Agripa

Imediatamente após a chegada de Festo à província, ele visitou Jerusalém. Lá, os líderes judeus aproveitaram a oportunidade para exigir o retorno de Paulo. Seus argumentos, sem dúvida, era de que ele deveria novamente ser julgado perante o Sinédrio, mas a verdadeira intenção deles era matá-lo no caminho. Festo recusou o pedido. No entanto, ele os convidou a ir com ele para a Cesareia e acusá-lo lá. O julgamento ocorreu e assemelhou-se ao que ocorreu diante de Félix. É bem evidente que Festo viu claramente que a verdadeira ofensa de Paulo estava ligada às opiniões religiosas dos judeus, e que ele não tinha cometido ofensa alguma contra a lei. Mas ao mesmo tempo, tendo desejo de agradar os judeus, pergunta a Paulo se ele não iria a Jerusalém para ser ali julgado. Isto era apenas um pouco melhor do que uma proposta de sacrificá-lo ao ódio judaico. Paulo, estando bem consciente disso, apelou de vez ao Imperador - "Eu apelo para César" (Atos 25:11).

Festo estava sem dúvidas surpreso com a dignidade e independência de seu prisioneiro. Mas era seu privilégio como cidadão romano ter sua causa transferida ao supremo tribunal do Imperador de Roma. "Então Festo, tendo falado com o conselho, respondeu: Apelaste para César? para César irás." (Atos 25:12).

Até onde os olhos do homem podem enxergar, este era o único recurso de Paulo sob tais circunstâncias. Mas a mão e propósito do Senhor estava nisto. Paulo deveria dar testemunho de Cristo e da verdade também em Roma. Jerusalém tinha rejeitado o testemunho aos gentios; Roma também deve ter tido sua porção na rejeição ao mesmo testemunho, se tornando também a prisão do testemunho. Mas em tudo isso Paulo é altamente favorecido pelo Senhor. Sua posição lembra a de seu bendito Senhor, quando Ele foi entregue aos gentios pelo ódio dos judeus. Apenas o Senhor foi perfeito em tudo isto, e Ele estava em Seu verdadeiro ligar diante de Deus. Ele veio para os judeus - esta era Sua missão. Paulo foi enviado dos judeus - tal era a diferença. Cristo se entregou a Si mesmo, como lemos: "Que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus" (Hebreus 9:14). Parte da comissão de Paulo é assim: "Livrando-te deste povo, e dos gentios, a quem agora te envio" (Atos 26:17). Mas Paulo retornou àquele "povo" (os judeu) na energia de suas afeições humanas, após ter sido colocado fora deles na energia do Espírito Santo. Jesus tinha tirado ele de ambos judeus e gentios para exercer um ministério que unia ambos em um só corpo em Cristo. Como o próprio Paulo diz: "Assim que daqui por diante a ninguém conhecemos segundo a carne" (2 Coríntios 5:16). Em Cristo Jesus não há judeu nem grego.

Vamos agora retomar a história do grande apóstolo.

Paulo Comparece Diante de Félix

Como alguns de nossos leitores podem ter observado, o caráter dos modos de Deus para com Seu servo de certa forma muda aqui. Pode ser interessante uma pausa por um momento para reverentemente investigar as aparentes causas dessa mudança. E, como muitos têm dado livremente suas opiniões quanto a esse difícil ponto, vamos aqui citar algumas linhas de alguém que parece ter captado a mente do Espírito.

"Eu creio que a mão de Deus estava nesta viagem de Paulo - que, em Sua soberana sabedoria, Ele desejou que Seu servo a empreendesse, tendo também a abençoado - mas que os meios empregados para conduzi-lo de acordo com essa sabedoria soberana foram as afeições humanas do apóstolo pelas pessoas que eram seus parentes segundo a carne; e que ele não foi conduzido a isso pela ação do Espírito Santo da parte de Cristo na igreja. Este apego a seu povo, esta afeição humana, resultou naquilo que acabou por colocá-lo em seu próprio lugar. Humanamente falando, foi um sentimento amável; mas não era o poder do Espírito Santo fundamentado na morte e ressurreição de Cristo. Aqui, não havia mais judeu ou gentio... a afeição de Paulo era boa em si mesma, mas como fonte de ação não chegava à altura da obra do Espírito que, da parte de Cristo, o tinha conduzido para longe de Jerusalém, para os gentios, de modo a revelar a igreja como Seu corpo unido a Ele no céu."

"Ele era o mensageiro da glória celestial, que trouxe à tona a doutrina da igreja composta por judeus e gentios, unidos sem distinção no um só corpo de Cristo, deixando de lado o judaísmo. Mas seu amor por sua nação o levou, repito, ao centro do judaísmo hostil - o judaísmo enfurecido contra a igualdade espiritual."

"Contudo, a mão de Deus estava, sem dúvida, nisso. Paulo, individualmente, estava realizado."

"Aquilo que Paulo disse levanta um tumulto, e o tribuno o tira do meio deles. Deus tem tudo à Sua disposição. Um sobrinho de Paulo, nunca antes mencionado, ouve falar de uma emboscada armada contra ele e o avisa. Paulo o envia ao tribuno, que agiliza a partida de Paulo sob guarda até Cesareia. Deus cuidava dele, mas tudo aqui está no nível dos modos humanos e providenciais. Não há um anjo como no caso de Pedro, nem um terremoto como em Filipos. Estamos sensivelmente em um terreno diferente"*

{* Trechos retirados de "Estudos sobre a Palavra de Deus", de J. N. Darby.}

Os acusadores de Paulo não tardaram em partir também para Cesareia. "E, cinco dias depois, o sumo sacerdote Ananias desceu com os anciãos, e um certo Tértulo, orador, os quais compareceram perante o presidente contra Paulo." (Atos 24:1). Em um breve discurso, cheio de bajulação e insinuação, Tértulo acusa Paulo de sedição [motim], heresia e profanação do templo.

Félix então fez um sinal permitindo que Paulo respondesse por si. E agora, podemos dizer, o apóstolo dos gentios está mais uma vez no lugar certo. Mesmo humilhado pelas circunstâncias, ele é ainda o mensageiro de Deus para os gentios, e Deus está com Seu amado servo. Os judeus ficaram em silêncio, e Paulo, com sua maneira direta como de costume, rebateu as acusações.

Félix, aparentemente, sabia muito sobre essas coisas, e é evidente que uma forte impressão foi deixada em sua mente. Muitos anos antes, o cristianismo tinha penetrado no exército romano em Cesareia (Atos 10), de modo que ele provavelmente sabia algo sobre isso, e estava convencido da verdade das afirmações de Paulo, mesmo não dando o devido valor às suas convicções e de seu prisioneiro. Ele "adia" maiores investigações, com a desculpa de que estaria esperando a chegada de Lísias. Enquanto isso, no entanto, ele dá ordens para que Paulo fosse tratado com gentileza e consideração, e que seus amigos deveriam ter livre acesso a ele.

Não muitos dias depois, Félix entrou na sala de audiências com sua esposa Drusila, e mandou chamar Paulo. Eles estavam evidentemente curiosos para ouvi-lo falar "acerca da fé em Cristo" (Atos 24:24). Mas não seria Paulo quem iria gratificar a curiosidade de um romano libertino e de uma devassa princesa judia. O fiel apóstolo, ao pregar Cristo, falou de modo claro e ousado à consciência de seus ouvintes. Ele tinha, agora, uma oportunidade ao seu alcance que ele dificilmente poderia ter obtido. "E, tratando ele da justiça, e da temperança, e do juízo vindouro, Félix, espavorido..." (Atos 24:25). Não é de se estranhar. Se devemos acreditar nos historiadores de seus dias, como Josefo e Tácito, nunca um casal tão sem princípios e dissoluto havia se sentado diante de um pregador. Mas, embora com a consciência atingida, Félix continuou impenitente. Que temível condição! "Por agora vai-te", disse ele, "e em tendo oportunidade te chamarei." (Atos 24:25). Mas tal oportunidade jamais chegou, embora tenha visto o apóstolo com frequência mais tarde, sem dúvidas, dando a entender que queria fazer um suborno para garantir sua liberdade. O governador romano nem imaginava que sua mercenária justiça seria recordada no livro de Deus, e levada adiante para todas as gerações que se sucederam. Seu caráter é representado como mesquinho, cruel e dissoluto; capaz de qualquer impiedade, ele exerceu o poder de um rei com o temperamento de um escravo. "Mas, passados dois anos, Félix teve por sucessor a Pórcio Festo; e, querendo Félix comprazer aos judeus, deixou a Paulo preso." (Atos 24:27)

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