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domingo, 16 de outubro de 2022

O Primeiro Jubileu Papal

Capítulo 34: Lutero: A Reforma na Alemanha (1517-1521 d.C.)

A avareza do clero romano e a superstição do povo foram grandemente excitadas pelas Cruzadas. Por duzentos anos, elas foram a fonte de enorme riqueza e poder para a igreja, e de incalculável miséria, ruína e degradação para as nações da Europa. Nessas chamadas guerras santas, cerca de seis milhões de europeus morreram e cerca de duzentos milhões de dinheiro foram gastos; além disso, a propriedade de um cruzado era comumente colocada, durante a expedição, sob a proteção do bispo e, no caso de sua morte -- o que geralmente acontecia -- ficava em suas mãos. Mas felizmente aquilo que "está singularmente marcado no templo da história como um monumento do absurdo humano, de uma paixão unânime", chegou ao fim no final do século XIII. 

No ano de 1291, o Acre, o último posto militar ocupado pelos cristãos na Palestina, caiu nas mãos dos turcos. Os incrédulos ficaram então de posse do sepulcro de Cristo e de todos os lugares santos e objetos de peregrinação. Assim terminou o grande esquema papal e a alardeada glória das Cruzadas à Terra Santa. 

Duas questões graves surgiram então: Como o tesouro papal deveria ser nutrido e como o desejo do povo por indulgências deveria ser satisfeito? O papa quer dinheiro, o povo quer que seus pecados sejam perdoados e está disposto a pagar por isso. Para atender a esses dois importantes objetivos, o papa descobriu um novo e mais bem-sucedido caminho. “Chegamos ao último ano do século XIII”, disse o Papa Bonifácio, “que o primeiro ano do décimo quarto século seja ano de jubileu”. A Palestina estava irremediavelmente perdida; a cruz e o sepulcro do Salvador estavam nas mãos dos sarracenos; mas a cidade santa de Roma e os túmulos dos apóstolos estavam abertos aos peregrinos. Ao mudar habilmente o local de peregrinação de Jerusalém para Roma, o fim desejado foi alcançado. Nunca a superstição obteve tanto sucesso. 

Em 22 de fevereiro de 1299, foi emitida uma bula, prometendo indulgências de extraordinária plenitude a todos que, no ano seguinte, com a devida penitência e devoção, visitassem os túmulos de São Pedro e São Paulo -- os romanos uma vez por dia, por trinta dias sucessivos, e os estrangeiros por quinze. A bula foi imediatamente promulgada em toda a Cristandade. Afirmava que todos os que confessassem e lamentassem seus pecados, e fizessem devotamente uma peregrinação ao túmulo do "chefe dos apóstolos", receberiam uma indulgência plenária; ou, em outras palavras, uma remissão completa de todos os pecados, passados, presentes e futuros. Uma indulgência desse tipo até então estava limitada aos cruzados; a consequência foi que toda a Europa entrou em um frenesi de excitação religiosa. Multidões de todas as partes apressaram-se a Roma. O som de boas-vindas do Jubileu atraiu toda a Cristandade ocidental para esta vasta e pacífica cruzada. "Durante todo o ano, as estradas nas partes mais remotas da Alemanha, Hungria e Grã-Bretanha estavam cheias de peregrinos de todas as idades, de ambos os sexos, que procuravam expiar seus pecados, não por uma peregrinação armada e perigosa a Jerusalém, mas por uma menos dispendiosa, e menos perigosa, viagem a Roma."  

domingo, 9 de outubro de 2022

Lutero visita Roma

Tendo surgido algumas disputas entre o vigário-geral e vários dos mosteiros agostinianos, Lutero foi escolhido como uma pessoa apta para representar todo o assunto perante Sua Santidade em Roma. Era necessário, na sabedoria de Deus, que Lutero conhecesse Roma. Como monge no norte, ele só pensava no papa como o pai santíssimo e em Roma como a cidade dos santos; e esses preconceitos e ilusões só podiam ser dissipados pela observação pessoal: as informações não circulavam naquela época como agora. 

No ano de 1510, sem um tostão e descalço, Lutero cruzou os Alpes. Uma refeição e uma noite de descanso ele pedia nos mosteiros ou nas casas de fazenda enquanto caminhava. Mas mal havia descido os Alpes, quando encontrou mosteiros de mármore e os monges alimentando-se da comida mais suntuosa. Tudo isso era novo e surpreendente para o frugal monge de Wittemberg. Mas quando chegou a sexta-feira, qual foi seu espanto ao encontrar as mesas dos beneditinos repletas de carnes saborosas? Ele ficou tão indignado que se aventurou a dizer: "A Igreja e o papa proíbem essas coisas". Por este protesto, alguns dizem, ele quase pagou com sua vida. Tendo recebido um convite amigável para se retirar, ele deixou o mosteiro, viajou pelas quentes planícies da Lombardia e chegou a Bolonha, gravemente doente. Aqui o inimigo fez com que ele voltasse seus pensamentos para si mesmo, deixando-o muito perturbado com o senso de sua própria pecaminosidade, pois a perspectiva da morte o enchia de medo e terror. Mas as palavras do apóstolo, "o justo viverá pela fé", como um raio de luz do céu, afugentou as nuvens escuras, mudou a corrente de seus pensamentos e restaurou sua paz de espírito. Com o retorno de suas forças, retomou sua jornada, e depois de passar por Florença, e labutando sob um opressivo sol italiano pela longa extensão dos Apeninos, ele finalmente se aproximou da cidade das sete colinas*. 

{* N. do T.: Roma. } 

Devemos prefaciar a entrada de Lutero em Roma lembrando aos nossos leitores que, embora ele tivesse recebido a verdade do evangelho, ele ainda era um papista, e que sua devoção ao papado partilhava da veemência do fanatismo. Roma, para o rude alemão, era a cidade santa, santificada pelos túmulos dos apóstolos, pelos monumentos dos santos e pelo sangue dos mártires. Mas, infelizmente, a Roma da realidade era muito diferente da Roma de sua imaginação. Ao se aproximar dos portões, seu coração batia violentamente. Ele caiu de joelhos e, com as mãos levantadas para o céu, exclamou: "Santa Roma, eu te saúdo! Bem-aventurada Roma, três vezes santificada pelo sangue de teus mártires!" Com todo tipo de termos afetuosos e respeitosos ele saudou assim a metrópole da Cristandade. E sob a influência desse grande entusiasmo ele se apressou para os lugares sagrados, ouvindo todas as lendas pelas quais eles são consagrados; e tudo o que ele viu e ouviu, ele creu com muita devoção. Mas seu coração logo adoeceu com a profanação dos padres italianos. Um dia, quando ele estava repetindo a missa com grande seriedade, ele descobriu que os padres em um altar adjacente já haviam repetido sete missas antes que ele terminasse uma. "Rápido, rápido!" exclamou um deles, "devolva a Nossa Senhora o seu Filho", fazendo uma alusão ímpia à transubstanciação do pão no corpo e sangue de Jesus Cristo. A profanação dificilmente poderia alcançar um tom mais alto. O desencanto de Lutero foi completo, e o propósito de Deus em sua educação foi cumprido. 

Lutero esperava encontrar em Roma uma religião austera. "Sua fronte rodeada de dores, repousando sobre a terra nua, saciando sua sede com o orvalho do céu, vestida como os apóstolos, andando por caminhos pedregosos, e o evangelho debaixo do braço; mas em lugar disso ele viu a triunfal pompa do pontífice; os cardeais em liteiras, a cavalo ou em carruagens, brilhando com pedras preciosas e cobertos do sol por um dossel de penas de pavão. As igrejas esplêndidas, os rituais mais esplêndidos e o esplendor pagão das pinturas eram para Lutero, cujo coração estava pesado com os pensamentos das profanações dos padres, totalmente insuportáveis. O que era a Roma de Rafael, de Michelangelo, de Perugino e de Benvenuto, para o pobre monge alemão, que havia percorrido quatrocentas léguas a pé, esperando encontrar aquilo que aprofundaria sua devoção e fortaleceria sua fé? 

No entanto, tal era o poder da superstição que Lutero recebeu em sua educação, não obstante seu conhecimento das Escrituras e seu amargo desapontamento por Roma, que um dia, desejando obter uma indulgência prometida pelo papa a todos os que subissem de joelhos o que é chamado de escada de Pilatos, lá estava ele humildemente subindo aqueles degraus, que lhe disseram terem sido milagrosamente transportados de Jerusalém para Roma. Foi então que ele pensou ter ouvido uma voz, alta como um trovão, clamando: "O justo viverá pela fé". Espantado, ele se levanta dos degraus pelos quais arrastava o corpo; envergonhado de ver a que profundidade a superstição o havia mergulhado, ele foge com toda a pressa da cena de sua loucura. 

Tendo resolvido o negócio para o qual foi enviado, ele virou suas costas para a cidade pontifícia, para nunca mais lá voltar. "Adeus! Roma", disse ele; "que todos os que desejam levar uma vida santa afastem-se de Roma. Tudo é permitido em Roma, exceto ser um homem honesto." Ele não pensava ainda em deixar a igreja católica romana, mas, perplexo e perturbado, voltou para a Saxônia. 

Logo após o retorno de Lutero a Wittemberg, a pedido urgente de Staupitz, ele obteve o grau de Doutor em Divindade. O Senado também lhe deu o púlpito da igreja paroquial, o que lhe abriu imediatamente uma esfera da maior utilidade. Mas Lutero, alarmado com a responsabilidade, mostrou alguma relutância em aceitar uma dignidade de tal importância espiritual. Como o seu amigo vigário procurou tirar-lhe a hesitação, forçando-o a esse serviço, submeteu-se, e no desempenho das suas funções de púlpito teve a rara oportunidade de pregar a Palavra de Deus e o Evangelho de Cristo nos claustros do seu convento, na capela do castelo, e na igreja colegiada. Sua voz, diz a história, era boa, sonora, eletrizante; suas gesticulações eram simples e nobres. Uma ousada originalidade sempre marcou a mente de Lutero, encantando muitos por suas novidades e dominando outros por sua força. Ele adquirira nos últimos quatro ou cinco anos um conhecimento respeitável tanto do grego quanto do hebraico; ele havia lido profundamente o Novo Testamento; ele estava plenamente seguro de que a justificação pela fé era a verdadeira doutrina do evangelho; que a Palavra de Deus era o meio primário e fundamental para o reavivamento e reforma da igreja. 

Do ano de 1512 ao memorável ano de 1517, Lutero foi um arauto intrépido da Palavra de vida. Em todas as coisas ele desejava apenas conhecer a verdade, livrar-se e expulsar de si as falsidades e superstições de Roma. E assim deixamos Lutero por um tempo, engajado em sua gloriosa obra, enquanto nos voltamos por alguns momentos ao estado de coisas na igreja que trouxe Johann Tetzel e suas indulgências para as redondezas de Wittemberg.* 

{*D'Aubigné, vol. 1. Short Studies, de Froude, vol. 1. Reformation, de Waddington, vol. 1. Universal History, vol. 6, de Bagster e Filhos.} 

(Fim do Capítulo 33)

domingo, 16 de agosto de 2020

São Bento

Uma vez que quase todas as instituições monásticas em toda a Europa, por mais de seiscentos anos, foram regulamentadas pela Regra de São Bento, basta apenas darmos algum relato sobre essa célebre ordem para conhecermos a constituição e o caráter de todas elas. E, como o nome delas é legião, pouparemos o leitor de demasiada repetição.

Esse homem notável era filho de um senador romano nascido em Núrsia, na Itália, tendo nascido em 480 d.C. Aos 12 anos, foi enviado para estudar em Roma. Ele provavelmente tinha ouvido e lido sobre a vida dos santos anacoretas e eremitas do Oriente. Com esses exemplos diante de sua mente e as irregularidades de seus colegas estudantes ao seu redor, ele ansiava pela solidão. Por volta dos quinze anos de idade, incapaz de suportar por mais tempo o estado corrupto da sociedade romana, ele se separou até mesmo de sua fiel babá, Cirila, que havia sido enviada com ele a Roma por seus pais, e a deixou lamentando sua perturbação mental. Os ferozes hunos e vândalos haviam transformado até o coração da Itália em um deserto, de modo que o jovem eremita encontrou um local isolado não muito longe de Roma. Por anos ele viveu em uma caverna solitária; a única pessoa que conhecia o segredo de seu retiro era um monge chamado Romano, que lhe fornecia pão da economia de uma parte de sua própria mesada diária. Mas, como uma rocha íngreme ficava entre o claustro de Romano e a gruta de Bento, o pão era descido por um barbante até a boca da caverna. Com o tempo, ele foi descoberto por alguns pastores, que ficaram encantados ao ouvir suas instruções e testemunhar seus milagres. À medida que a fama de sua piedade aumentava, ele foi persuadido a se tornar abade de um mosteiro das redondezas; mas a rigidez de sua disciplina desagradou seus internos, e eles concordaram em se livrar do severo recluso misturando veneno em seu vinho. Mas, ao fazer o sinal-da-cruz, o que geralmente fazia com sua comida e bebida, o copo se despedaçou; então ele repreendeu suavemente os monges e voltou para sua caverna na montanha.

Bento tornara-se então de maior interesse do que nunca. Sua fama se espalhou, grandes multidões se lhe aglomeravam, homens ricos e influentes se lhe juntaram, e grandes somas de dinheiro foram colocadas à sua disposição. Ele estava então em condições de construir doze mosteiros, cada um deles consistindo de doze monges, sob um superior. Tendo conseguido até então cumprir o objetivo de sua residência no distrito, e inquieto com a invejosa interferência de Florêncio, um padre vizinho, deixou o vilarejo de Subiaco com alguns seguidores no ano de 528. Após algumas andanças, chegou ao Monte Cassino, onde Apolo ainda era adorado pelos rústicos. Com grande habilidade e energia ele desenraizou os restos da idolatria pagã entre os camponeses. Ele cortou o bosque sagrado, destruiu o ídolo de Apolo que havia ali, e no local do altar foi erguido um oratório, que ele dedicou a São João Evangelista e a São Martinho. Essa foi a semente do grande e renomado mosteiro que se tornou a raiz mãe de inúmeros ramos que em pouco tempo cobriram a face da Europa. Aqui, Bento redigiu sua famosa Regra, por volta do ano 529. Ela consiste em setenta e três capítulos que contêm um código de leis que regulamenta os deveres dos monges entre si e entre o abade e seus monges. Ele provê regras para a administração de uma instituição, composta de toda variedade de caráter, engajada em toda variedade de ocupação, mas tudo estando perfeitamente sujeito a um governante absoluto. A abrangência de seu sistema é surpreendente por ser o resultado de uma única mente e sem exemplos ou precedentes. A Regra de São Bento é considerada pelos eruditos como o monumento mais célebre da antiguidade eclesiástica e foi, em suas operações, a própria força e palavra de ordem da dominação de Roma sobre o continente europeu.

domingo, 7 de abril de 2019

A Apostasia de Otão

A coroa imperial estava agora na cabeça de Otão. Não apenas ele foi coroado pelas mãos de Inocêncio na cadeira de São Pedro, em Roma, como também foi elevado a tal dignidade pela política astuta e cruel da Sé apostólica. Mas o enganador foi enganado; o traidor foi traído. Mal tinha acabado a cerimônia de coroação e a máscara de obediência sob a qual Otão tinha velado suas verdadeiras intenções foi jogada fora. O efeito da coroa de ferro foi irresistível. Ele sentiu-se um novo homem, em uma nova posição, e obrigado a manter as prerrogativas de sua coroa contra as usurpações do poder espiritual. A partir daquele momento, o imperador e o papa tornaram-se inimigos implacáveis. Tal foi o desapontamento, tendo sido subjugado pelo justo governo de Deus, do inescrupuloso pontífice. Satanás pode governar, mas um Deus todo-sábio tudo anula. "Não erreis", disse o apóstolo, "Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará" (Gálatas 6:7). Inocêncio tinha ensinado seu candidato a enganar, e agora ele come o amargo fruto de seu próprio ensino.

A força e os números incomuns do exército de Otão, que o acompanhava, e que então se acampavam sob as muralhas de Roma, eram vistos com grande inveja pelos habitantes. As brigas, que se tornaram costumeiras em tais ocasiões, foram renovadas com grande ferocidade. Muitos dos germânicos foram mortos, assim como muitos de seus cavalos -- assim disseram eles, pelo menos. Mas foi o suficiente. A ambição antes sufocada de Otão estava agora inflamada em uma chama de indignação. Ele retirou-se irado da cidade, exigindo compensação. Inocêncio recusou. As tropas foram distribuídas através do patrimônio de São Pedro, para grande dano ao povo e para aumentado alarme por parte do papa. Foi pedido ao imperador que retirasse seus soldados da vizinhança de Roma, mas ele declarou que eles continuariam até que as provisões do país se exaurissem. Ele se enriqueceu com a pilhagem dos peregrinos, a quem seus soldados interceptavam em seu caminho a Roma. Ele marchou até a Toscana, tomou posse de cidades na fronteira do território da condessa Matilde, sitiou cidades e fortalezas que o papa tinha antes ocupado; propriedades e dignidades reivindicadas pelo papa ele entregou ao mais formidável adversário do papa, o conde Diephold, a quem o imperador entregou o ducado de Espoleto. O sucesso infamou sua ambição, e assim ele contemplou a invasão da Sicília, prendendo o jovem Frederico, o último da casa de Hohenstaufen.

Aquele que tinha se proclamado infalível estava desesperado. Após todos os seus trabalhos, todos os seus sacrifícios, todas as suas traições, ele tinha levantado para si um antagonista mais formidável, um inimigo mais amargo do que qualquer um dos da família suábia tinham sido. Os mais fervorosos apelos à sua gratidão, as mais solenes admoestações, os mais altos trovões de excomunhão, foram igualmente desconsiderados pelo pupilo obstinado de Ricardo Coração de Leão.    

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Inocêncio e os Reis da Terra

As diferentes características da Babilônia que o Espírito de Deus nos mostrou tão distintamente nesses capítulos (Apocalipse 17 e 18), e que são tão odiadas por Ele, encontraremos muito plenamente demonstradas na história desse pontífice. Mas é necessário que nós,  tanto o leitor quanto o escritor deste livro, vigiemos contra o espírito da Babilônia que se insinua para nossos próprios corações. Não devemos supôr que ela esteja confinada somente ao papado, embora lá ela esteja publicamente entronizada e será publicamente tratada em juízo. A menos que estejamos reunidos em torno do Jesus rejeitado, e andando com Ele na comunhão de Seus sofrimentos e na esperança de Suas glórias, corremos o risco de sermos pegos na armadilha. Homens, homens cristãos, frequentemente conectam o prazer presente de prosperidade e o prazer no mundo ao nome e à sanção de Cristo. Esse é a própria essência da Babilônia -- a mistura profana de Cristo e do mundo, do celestial e do terreno. Aquele que professa fé em um Cristo rejeitado, e que ao mesmo tempo tem seu coração no mundo que O rejeitou, está profundamente imbuído do espírito de Babilônia. É como alguém que verdadeiramente se apega ao Príncipe do céu, e continua dando ouvidos às lisonjas e aceitando os favores do príncipe deste mundo. E não vemos, infelizmente, em todo o lugar, a indulgência de desejos mundanos na profissão do nome do Senhor? Esta é a inconsistência, a confusão, que é tão ofensiva a Deus, e que Ele julgará de maneira tão terrível. Que o Senhor possa nos guardar de buscar misturar a cruz e a glória celestial de Cristo com este presente mundo mau.

O espírito do papado é todo voltado a este mundo, com as mais elevadas pretensões de ser todo para Cristo. "Eu me sento como uma rainha", diz ela, "e não sou viúva, e não verei tristeza". O domínio sempre foi seu único desejo -- domínio sobre a Igreja e o Estado, sobre o mar e a terra, sobre as almas e corpos dos homens, com poder para abrir e fechar os portões do céu e do inferno ao seu bel-prazer. Assim pensava Inocêncio, e assim agiu ele como veremos a seguir.

Lotário de Conti era o nome original de Inocêncio. Ele era da casa dos Condes de Segni, uma das grandes famílias romanas. Sob a instrução de seus dois tios, os cardeais de São Sérgio e São Paulo, as grandes habilidades naturais de Lotário lhe tornaram promissor quanto ao tipo de distinção que seus amigos e parentes tanto desejavam. Mais tarde, ele adquiriu grande fama por sua erudição nas escolas de Roma, de Bolonha e de Paris, mas a lei canônica era seu tema de estudo favorito. Na morte de Celestino III, ele foi devidamente eleito para a cadeira de São Pedro, e consagrado em 22 de fevereiro de 1198, com a tenra idade de trinta e sete anos. Os cardeais o saudaram pelo nome de Inocêncio em testemunho a sua vida "irrepreensível".

A Babilônia de Apocalipse 17

Tem sido nosso desejo, desde o início desta obra, estudar a história de um ponto de vista bíblico, mas mais especialmente à luz das epístolas às sete igrejas do Apocalipse. Os males que estavam apenas brotando estão agora totalmente desenvolvidos. Em Pérgamo, temos Balaão ensinando que "comessem dos sacrifícios da idolatria, e fornicassem"; e em Tiatira, temos Jezabel introduzida, que impunha a idolatria pela força. Mas esses e muitos outros males encontraremos agora concentrados no cálice da falsa mulher de Apocalipse 17.

Penso que não podemos duvidar do significado do símbolo aqui utilizado. Não apenas uma mulher, mas uma mulher indecente e entronizada em meio às corrupções da cidade dos sete montes. "Aqui está a mente que tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes, sobre os quais a mulher está assentada" (Apocalipse 17:9, Almeida Atualizada). Aqui temos um ponto material -- aquilo que sempre caracterizou Roma, tanto na prosa quanto na poesia; como disse alguém, falando de Arnaldo de Bréscia: "No serviço da liberdade, sua eloquência trovejava sobre as sete colinas". Todo leitor sabe de que cidade o historiador está falando por sua descrição. Mas a Palavra de Deus é perfeitamente clara para "a mente que tem sabedoria". Roma é claramente indicada, e suas corrupções religiosas são simbolizadas pela "mãe das prostituições" (Apocalipse 17:5). Mas por que, pode-se perguntar, ela é chamada de Babilônia? O termo é aplicado figurativamente, cremos, assim como Sodoma e o Egito são aplicados a Jerusalém em Apocalipse 11:8: "E jazerão os seus corpos na praça da grande cidade, que espiritualmente se chama Sodoma e Egito, onde também o seu Senhor foi crucificado". Além disso, a Babilônia literal, a capital caldeia, foi construída sobre uma planície -- a planície de Sinar -- e não sobre montes.

Tendo esclarecido esses pontos, e sendo Roma plenamente identificada, aceitamos Apocalipse 17 e 18 como descritivos do papado. O caráter, a conduta, os relacionamentos, e o juízo final de sua Babilônia espiritual, estão aqui colocados diante de nós, não pela pena parcial e imperfeita da história, mas pelo Espírito de Verdade que vê tudo do início ao fim. O sistema papal como um todo é visto moralmente do ponto de vista de Deus. Isto é uma imensa vantagem para o homem de fé. Examinaremos agora, brevemente, algumas de suas mais proeminentes características.

1. Ela é vista em visão como "assentada sobre muitas águas" (v. 1). Isto é explicado pelo anjo no versículo 15 como significando "povos, multidões, nações e línguas". A figura implica que esta falsa mulher, ou o sistema religioso corrupto de Roma, exercita uma influência que arruína a alma sobre essas multidões, nações e línguas. Mas Deus vê tudo e marca tudo: sua história maligna está escrita no céu.

2. Ela é representada como tendo relações sexuais da maneira mais sedutora e indecente com todas as classes. "Com a qual se prostituíram os reis da terra; e os que habitam sobre a terra se embriagaram com o vinho da sua prostituição [fornicação]" (v. 2). Que estado de coisas para aquela que professadamente leva o justo nome de Cristo! O termo "prostituição" ou "fornicação" aqui usado significa, sem dúvida, o poder sedutor do sistema romano em afastar as afeições de Cristo, que é o único verdadeiro objeto da fé para o coração. O padre se coloca entre o coração e o bendito Senhor; a Bíblia é escondida; a mente de Deus é desconhecida; o povo é intoxicado com suas falsidades excitantes; e a verdadeira adoração, não sabem o que é. Toda a terra está corrompida pelo vinho de sua prostituição. Mas seu fim, seu terrível fim, rapidamente se aproxima, "porque os seus pecados se acumularam até o céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela. Tornai a dar-lhe como também ela vos tem dado, e retribuí-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber dai-lhe a ela em dobro" (Apocalipse 18:5,6).

3. Ela é, em seguida, vista como governando e dirigindo o poder civil. "E vi uma mulher montada numa besta cor de escarlata, que estava cheia de nomes de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres" (v. 3). Seja o império romano ressuscitado (Apocalipse 13), ou os diferentes reinos que se ergueram a partir das ruínas de sua unidade imperial, ou todos os governos e principados da terra, a mulher balança seu cetro, ou melhor, sua espada manchada de sangue, sobre todos, como se fosse um domínio seu que foi dado divinamente. O púrpura dos Césares foi reivindicado pelos papas, e "Vossa Santidade" foi proclamado um monarca universal. E essa nova amante do mundo não era assim apenas pelo nome. Ela se vestia de seu antigo nome com um novo poder. A Roma imperial nunca inspirou tanto terror com seus exércitos quanto a Roma papal com suas anátemas. "A Cristandade", disse alguém, "através de todos os seus domínios estendidos de trevas mental e moral, tremia enquanto o pontífice fulminava excomunhões. Monarcas tremiam em seus tronos pelo terror do despotismo papal, e agachavam-se perante seu poder espiritual como os mais insignificantes escravos. O clero considerava o papa como a fonte de sua autoridade subordinada, e o caminho para uma futura promoção. O povo, imerso em profunda ignorância e superstição, via sua supremacia como uma divindade terrena, que decidia pelos destinos temporais e eternos dos homens. A riqueza das nações fluíam para o tesouro sacro, e permitia ao [suposto] sucessor do pescador galileu e chefe da comunidade cristã rivalizar contra o esplendor da pompa e grandeza orientais"*. A extensão de seus domínios excedia de longe as mais vastas conquistas do império. Muitas nações que tinham escapado das garras de ferro da Roma imperial eram mantidas sob o jugo papal. Isto vimos em nossa história das guerras religiosas de Carlos Magno. Dentre essas nações temos a Irlanda, o norte da Escócia, a Suécia, a Dinamarca, a Noruega, a Prússia, a Polônia, a Boêmia, a Morávia, a Áustria, a Hungria, e uma parte considerável da Alemanha. Essas, sabemos, foram reunidas como ovelhas no rebanho do pastor de Roma por missionários tais como Bonifácio; mas, aos olhos de Deus, elas foram escravizadas pela tirania e usurpação da grande corruptora.

{*Variations of Popery, de Edgar, p. 157.}

4. Mas há ainda mais do que apenas se assentar sobre muitas águas e sobre a besta. Ele é cheia de idolatrias e da imundícia de sua prostituição. "A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas; e tinha na mão um cálice de ouro, cheio das abominações, e da imundícia da prostituição" (v. 4). Apesar de toda a sua glória exterior -- aquela que o mundo considera preciosa e bonita -- ela é, aos olhos de Deus, uma mulher indecente com uma bela taça cheia de todas as abominações. Já vimos seu amor tenaz por imagens (de ídolos), as quais são aqui referidas pelo termo "abominações".

5. Suas grandes, ostensivas e exclusivas pretensões de possuir a verdade de Deus. "E na sua fronte estava escrito um nome simbólico: A grande Babilônia, a mãe das prostituições e das abominações da terra" (v. 5). Este é o mais grave e pesado dos pecados de Roma; a horrível falsificação de Satanás e a mais baixa de todas as suas hipocrisias. Sobre a verdade, o mistério celestial, lemos: "Grande é este mistério", diz Paulo, "mas eu falo em referência a Cristo e à igreja" (Efésios 5:32). Mas no lugar de sujeição a Cristo e fidelidade a Ele, ela -- como uma mulher abandonada e desavergonhada -- corrompe, com seu abominável abraço, os grandes da terra. E isso não é tudo. Ela é a mãe -- a mãe das prostituições, que tem muitas filhas. Todo sistema religioso da Cristandade que tende, em qualquer medida, a guiar as almas para longe de Cristo, a engajar suas afeições a coisas que se põem entre o coração e o Homem na glória, está relacionado a essa grande mãe da iniquidade espiritual.

6. Sua sede insaciável pelo sangue dos santos de Deus. "E vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus. Quando a vi, maravilhei-me com grande admiração" (v. 6). Esta estranha visão -- uma mulher -- uma comunidade religiosa, professando ser a verdadeira esposa de Cristo, embriagada com o sangue dos mártires, os santos de Deus, enche a mente do apóstolo com grande admiração. Nem precisamos nos perguntar o porquê. Mas logo também teremos que ver essa estranha vista, não apenas em visão, mas em realidade sem precedentes. Inocêncio III foi o homem que declarou guerra aos camponeses do sul da França e virou a espada do notório Simão de Monforte contra os bem conhecidos Albigenses e Valdenses, e isto sob o pretexto de fazer a vontade de Cristo e de agir sob Sua autoridade.

A partir do versículo 7, temos a explicação que o anjo dá sobre a visão, e a terrível condenação da Babilônia vinda da mão tanto do homem quanto de Deus, até perto do fim do capítulo 18. Mas como não estamos interpretando todos esses detalhes, não precisamos prosseguir adiante com o solene tema desses capítulos. Acompanhemos agora os passos tenebrosos e manchados de sangue do historiador sob a luz das Escrituras Sagradas.*

{*Para maiores detalhes veja Estudos sobre o Apocalipse, de William Kelly.}

Inocêncio III e Sua Época (1198-1216 d.C.)

Capítulo 24: O Papa Inocêncio III (1190-1216 d.C.)

Durante o reinado desse grande papa, a Sé romana chegou ao seu auge. O século XIII é comumente distinguido como o grande dia da glória pontifícia. Vimos a aurora do pressuposto papal, ou melhor, os primeiros raios da aurora, nas ousadas concepções de Inocêncio I e Leão, o Grande, no século V. Gregório, o Grande, no século VII, e Nicolau e João no século IX, fizeram grande esforço em lançar as bases do grande esquema papal; mas foi Gregório VII que ergueu a superestrutura. O grande objetivo desse padre ousado, ambicioso e inescrupuloso era restaurar à Roma papal tudo o que a Roma imperial tinha perdido; e assim estabelecer a cadeira de São Pedro acima de todos os outros tronos. Mas o ousado papa pereceu em sua luta desesperada. Roma foi tomada, como vimos; Hildebrando (Gregório VII) foi obrigado a fugir, e morreu em exílio em Salerno. Por mais de cem anos após sua morte, nenhum papa que se sentou na cadeira pôde completar a obra que ele tinha iniciado. Mas no início do século XIII, o gênio superior de Gregório foi ultrapassado por Inocêncio. Os ousados esquemas que o primeiro tinha planejado foram plenamente executados pelo último. Sem dúvida, a conjunção de muitas circunstâncias foi favorável, e os poderes de sua mente foram adaptados para o cumprimento de seu grande objetivo, de modo que obteve plenamente o que enchia a imaginação dos papas por eras -- "supremacia sacerdotal, monarquia régia e domínio sobre os reis da terra". O padre coroado de Roma agora movia, com mão magistral, e com incansável dedicação, a máquina do papado, de modo que obtivesse e consolidasse a absoluta soberania da Sé romana. Mas aqui, neste ponto, devemos fazer uma pausa para uma breve reflexão. Esforcemo-nos por compreender a mente do Senhor sobre esse grande sistema religioso, e não meramente o testemunho da história.

domingo, 10 de junho de 2018

O Martírio de Arnaldo (1155 d.C.)

O novo papa era um inglês de grande habilidade, e o único inglês que já se sentou no trono papal. Ele era originalmente um monge de Santo Albans, mas foi obrigado a deixar seu lar por causa da severidade de seu pai. Após viajar por algum tempo no continente, estudar teologia e lei canônica com grande ardor e sucesso, e subir de classe em classe na ordem eclesiástica, ele foi, com o tempo, elevado à mais alta ordem da grandeza eclesiástica pelo nome de Adriano IV. Seu nome inglês era Nicolas Breakspeare.

Uma oportunidade então surgiu para que se livrassem do ousado reformador. O imperador Frederico Barbarossa estava a caminho para receber das mãos de Adriano a coroa imperial. Ele enviou uma embaixada de três cardeais para se encontrarem com o imperador, e para solicitar, como preço de sua coroação, a rendição de Arnaldo de Bréscia em suas mãos. Para um homem que pensava tão pouco sobre a vida humana como Frederico, pareceu de fato algo leve de se executar, obrigando então os amigos de Arnaldo a entregá-lo nas mãos dos emissários papais. Não havia tempo a perder, para que seus amigos não ouvissem sobre isso e tentassem resgatá-lo. A igreja tomou por si mesma a responsabilidade pela sumária condenação e execução do rebelde, sem empregar, como de costume, a espada secular. Antes do dia amanhecer, o oficial do papa já tinha sujado suas mãos no sangue de sua vítima; seu corpo foi queimado até as cinzas, que foram jogadas no rio Tibre, para que o povo não coletasse a adorasse as relíquias de seu amigo martirizado. O clero triunfou em sua morte, mas sua memória viveu nas mentes dos romanos. "E nas cinzas da pilha fúnebre de Arnaldo", diz Milman, "o fogo ardeu durante séculos, o que levou, com o tempo, a uma explosão irresistível de violência".

Bernardo, o grande Antagonista de Abelardo e de Arnaldo, tinha falecido em paz em Claraval, no ano de 1153. O santo, o filósofo e o reformador passaram para outro mundo, para serem julgados, não pelos decretos papais, mas pelo trono de eterna justiça e imaculada santidade. A fé no Senhor Jesus Cristo é o único fundamento do perdão e aceitação aos olhos de Deus. Não há purgatório, mas sim o precioso sangue de Sua cruz. Mas, que misericórdia! Esse sangue pode tornar limpo o mais vil! "Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e ficarei mais branco do que a neve" (Salmos 51:7). Nada além do sangue de Jesus pode tornar a alma mais branca do que a neve e apta para o céu. Todos os outros meios nada mais são do que uma zombaria, uma ilusão de Satanás que apenas aprofunda e perpetua a culpa da alma. "O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado" (1 João 1:7). A salvação é pela fé somente, sem as obras da lei. Cristo é a única videira; os crentes são os ramos. "Aquele que diz que está nele, também deve andar como ele andou" (1 João 2:6). Aparte de uma verdadeira e viva fé em Cristo, não há perdão, nem salvação, nem felicidade, e nem o céu; "bem-aventurados todos aqueles que nele confiam" (Salmos 2:12).

Retornemos agora a nossa história, e primeiro tomaremos nota sobre o encontro entre Adriano e Frederico.

A Pregação de Arnaldo

A essas novas e perigosas doutrinas o povo de Bréscia ouvia com o maior ardor. Ele desdobrou para eles as páginas escuras da história eclesiástica, sobre a qual estivemos também viajando. A cidade inteira ficou em um estado de grande excitação. Não é de admirar o entusiasmo da população, quando ouviram que as riquezas do clero deveriam retornar aos leigos, e que, no futuro, seus pastores deveriam ser mantidos pelas contribuições voluntárias do rebanho. Ele seria um pregador ousado que se atreveria a despertar o povo ao fanatismo com tais apelos e propostas no século XIX, mas o que seria dele no século XII, em meio às trevas, ignorância e superstição? Tal homem foi o reformador prematuro de Bréscia, e, sendo um severo monge de vida irrepreensível, inquestionável quanto a sua ortodoxia, e possuindo a total simpatia da religião popular, seu poder era irresistível. O grande objetivo de seus esforços era a completa derrubada do poder sacerdotal -- a supremacia secular do papa. Ele, assim, se atreveu a colocar a mão no grande esquema papal de domínio universal, e por um momento abalou sua base. O papa foi expulso de seu trono, a república foi proclamada, o estandarte da liberdade levantado, e o governo dos padres abolido. Mas o entusiasmo dos cidadãos era evanescente, sem unidade, e de curta duração. O solo ainda não estava preparado para o crescimento da liberdade. A iniquidade do sistema anticristão ainda não estava completa. A sede de Jezabel ainda não estava saciada com o sangue dos santos de Deus. Milhões ainda pereceriam antes que ela recebesse sua ferida mortal. Isso veremos em breve.

Arnaldo não estava mais seguro na Itália. O ressentimento do clero era mais forte e profundo do que o favor da população. Ele escapou para além dos Alpes, e finalmente encontrou um abrigo seguro e hospitaleiro em Zurique. Ali, foi permitido ao precursor do famoso Zuínglio que tivesse um tempo para lecionar, e o povo simples manteve por muito tempo o espírito de suas doutrinas. Mas não poderia ser permitido que tal homem vivesse em lugar algum. Bernardo observava cada um de seus movimentos. Ele implorou ao papa por medidas extremas, e escreveu raivosamente àqueles que lhe deram abrigo, alertando-os para que tomassem cuidado com a infecção fatal da heresia. Ele repreendeu severamente o bispo diocesano de Zurique por protegê-lo. "Por que", disse ele, "você ainda não afastou Arnaldo há muito tempo? Aquele que consente com o suspeito torna-se suscetível a suspeitas; aquele que favorece alguém sob a excomunhão papal contraria o papa e até mesmo o próprio Senhor Deus. Agora, portanto, que você sabe quem é esse homem, expulse-o do meio de vós; ou, melhor ainda, acorrente-o, para que não faça mais mal".

Após várias circunstâncias, como é comum no caso desse tipo de homem, e que não precisamos traçar com detalhes aqui, Arnaldo retornou a Roma. Ali foi-lhe permitido permanecer por algum tempo por causa da fraqueza do pontífice e do estado conturbado da cidade; mas quando o papa Adriano IV subiu a trono de São Pedro, os dias de Arnaldo estavam contados.

domingo, 3 de junho de 2018

O Grande Concílio de Latrão (1139 d.C.)

Inocêncio, agora o indiscutível mestre de Roma, reuniu em Latrão um concílio geral. Nunca Roma ou qualquer outra cidade tinha presenciado um concílio com tantos participantes. Mil bispos e incontáveis dignatários eclesiásticos estavam presentes. Os discursos e os decretos ilustram  como era o cristianismo da época. A autoridade feudal do papa foi o grande assunto. Ele declarou que "na medida em que Roma é a metrópole do mundo, da qual todo poder terreno flui, assim também o trono pontifício é a fonte de toda a autoridade e dignidade eclesiástica; e que todo o cargo ou dignidade deve ser recebida das mãos do pontífice romano como um feudo da Sé Romana, e considerado como grande senhor feudal espiritual".

Como de costume em tais ocasiões, Inocêncio anulou todos os decretos de seu adversário Anacleto. Ele foi entregue aos reinos de Satanás, e os clérigos que dele tinham recebido a consagração cismática foram depostos. Eles foram convocados para aparecerem perante o papa vingativo, que atacou-os com censuras indignadas, tirou-lhes o bastão episcopal de suas mãos, arrancou-lhes a manta de seus ombros, e tirou deles os anéis episcopais. Depois disso, como se para consumar a mais vil hipocrisia, foi restabelecida em sua máxima extensão a "paz de Deus" -- uma cessação das brigas e conflitos privados. Mas o cânon que mais nos interessa nesse celebrado concílio foi dirigido contra uma classe de homens, que em pouco tempo se forçarão a tomar nossa atenção. "Expulsamos da igreja como hereges aqueles que, sob a aparência de religião, condenam o sacramento do corpo e do sangue de Cristo, o batismo de crianças, o sacerdócio", etc. Essa anátema, e aqueles contra a qual foi lançada, são como os tênues vestígios da aurora da grande luta pela liberdade religiosa que resultou na gloriosa Reforma.

O restante da vida desse miserável homem foi gasto quase que inteiramente em guerras, não obstante seu restabelecimento da "paz de Deus". Ele, de fato, liderou uma força armada contra Rogério da Sicília, o amigo de Anacleto, mas caiu como um prisioneiro de guerra nas mãos dos normandos. Intimidados pelo seu cativo sagrado, eles se curvaram diante dele, obtiveram sua bênção e o enviaram de volta para casa. Tal era a superstição dos reis, tal era a terrível iniquidade do papa. Mas sua vida se esgotava rapidamente, e logo ele estará diante do tribunal do Juiz de toda a terra. "Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal" (2 Coríntios 5:10).

No dia 24 de setembro de 1143, o pontífice deu seu último suspiro, em meio ao tumulto da revolução e conflitos populares, e Celestino II reinou em seu lugar.

domingo, 3 de setembro de 2017

A Morte de Gregório (1085 d.C.)

Coberto de vergonha e marcado com infâmia eterna, e temendo ouvir as reprovações que seriam lançadas contra ele como o autor das recentes calamidades, ele se retirou da cidade de São Pedro na companhia de seus aliados, enquanto suas ruínas ainda fumegavam e suas ruas se encontravam desoladas, e seus antes numerosos habitantes queimavam, jaziam mortos, ou eram levados ao cativeiro. Fraco e de coração abatido, sem dúvida -- do orgulho terrivelmente mortificado -- ele primeiramente tomou repouso no monastério de Monte Cassino, e então prosseguiu ao forte castelo Salerno, dos normandos. Ele nunca viu Roma novamente.

Um numeroso corpo de eclesiásticos, devotados à promoção das elevadas pretensões do papa degradado, o seguiram até Salerno. Ali ele convocou um sínodo, e como se não estivesse afetado pelos horrores que causou e testemunhou, trovejou novamente anátemas e excomunhões contra Henrique, o antipapa Clemente e todos os seus adeptos. Mas estes foram seus últimos trovões. A morte se aproximava rapidamente. O grande e inflexível defensor da supremacia da ordem sacerdotal deveria morrer como qualquer outro homem. Ele chamou seus companheiros de exílio, fez uma confissão de sua fé -- especialmente no que se referia à eucaristia, tendo sido suspeito de simpatizar com os pontos de vista de Berengário de Tours -- e perdoou e absolveu a todos aqueles que ele tinha anatemizado, com exceção do imperador e do antipapa. Em relação a esses ele ordenou que seus seguidores não fizessem as pazes, a menos que se submetessem completamente à igreja.

Conta-se que uma tempestade assustadora se enfureceu enquanto seus amigos presenciavam a morte do papa. Suas últimas palavras memoráveis foram: "Eu amei a justiça e odiei a iniquidade; portanto morro no exílio". "No exílio, meu senhor?", disse um bispo com o mesmo sentimento, cujo orgulho sacerdotal não foi repreendido por esse espetáculo de mortalidade, "tu não podes morrer no exílio! Vigário de Cristo e de Seus apóstolos, tu recebeste de Deus os pagãos por tua herança, e as partes mais longínquas da terra por tua possessão!" O atrevido sopro de blasfêmia assim fechou, assim como tinha permeado, a vida do grande clérigo. Mas seu espírito estava agora longe da adulação de seus amigos, para ser manifesto perante um outro tribunal. Lá tudo será julgado, não de acordo com os princípios do papado, mas de acordo com a eterna verdade de Deus como foi revelada a nós na Pessoa e na obra do Senhor Jesus Cristo.

"Bem-aventurados todos aqueles que nele confiam" (Salmos 2:12), são palavras da mais doce certeza para o coração; pois o quanto essa palavra "bem-aventurados" (ou "abençoados") significa quando usada pelo Próprio Deus! Mas ai daqueles que vivem e morrem sem Cristo, que um dia terão de dizer: "Passou a sega, findou o verão, e nós não estamos salvos" (Jeremias 8:20). Ah! Quem pode compreender as profundezas da miséria -- a eternidade de sofrimento -- nestas duas palavras: "não salvos!" "não salvos!" Que tremendo texto para um pregador! Que palavra de aviso para um pecador! Que o meu leitor guarde isso no coração, antes de guardar este livro, e possa cuidadosamente contrastar a morte do grande clérigo com a morte do grande apóstolo. "Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda" (2 Timóteo 4:7,8). Até mesmo um falso profeta foi obrigado a dizer: "Que a minha alma morra da morte dos justos, e seja o meu fim como o seu" (Números 23:10).

O Incêndio da Roma Antiga

"O cavalo normando", diz Milman, "entrou pelas ruas, mas os romanos lutaram em vantagem na posse de suas casas e de seu conhecimento do terreno. Eles começaram a ganhar superioridade, e os normandos se viram em perigo. O impiedoso Guiscardo deu a ordem de incendiar as casas. De todos os lados as chamas queimavam furiosamente: casas, palácios, conventos, igrejas, à medida que a noite escurecia, foram vistas em terrível conflagração. Os distraídos habitantes precipitaram-se descontroladamente pelas ruas, não mais tentando defender a si mesmo, mas tentando salvar suas famílias. Centenas morreram. Os sarracenos aliados do papa, que haviam sido os primeiros na pilhagem, eram agora também os primeiros na conflagração e no massacre."*

{* History of Latin Christianity, vol. 3, p. 197}


Conta-se que Gregório esforçou-se nesse terrível momento, infelizmente não para salvar seu assim chamado rebanho da crueldade dos normandos, mas sim para salvar algumas das principais igrejas da conflagração geral. Guiscardo já tinha se tornado mestre da cidade -- ou melhor, das ruínas da Antiga Roma -- mas sua vingança ainda não tinha se apaziguado. Milhares de romanos foram vendidos publicamente como escravos, e milhares levados como prisioneiros. Supõe-se que nem os godos, nem os vândalos, nem os gregos nem alemães, jamais trouxeram tamanha desolação sobre a cidade como foi nesse episódio com os normandos. E que o leitor observe cuidadosamente que isso demonstra o verdadeiro espírito do papado, quando o fervoroso Guiscardo foi subornado por Gregório a se tornar seu aliado, seu libertador, seu protetor e seu vingador. As misérias, os massacres e a ruína de Roma foram justamente atribuídas à obstinação do papa nessa época, e tem sido desde então essa a opinião de todos os escritores imparciais. E ninguém jamais foi tão plenamente persuadido desse fato como o próprio Gregório. Ele não confiou nem sua pessoa nem suas fortunas à proteção fortificada dos muros de Santo Ângelo após a partida de seus aliados normandos.

domingo, 27 de agosto de 2017

Roberto Guiscardo Entra em Roma (1084 d.C.)

Para cumprir os desejos do papa, receber sua bênção e derrubar seus inimigos, Roberto juntou um exército de 30.000 soldados de infantaria irregular e 6000 cavaleiros normandos e colocou-os em marcha para Roma. Era uma hoste selvagem e mista, na qual se misturaram aventureiros de várias nações: alguns tinham se juntado ao seu estandarte para resgatar o papa, e outros por amor à guerra. Até mesmos os incrédulos sarracenos tinham se alistado em grandes números. As notícias de que uma força esmagadora estava avançando para vir ao auxílio do papa e de seus seguidores logo chegaram a Roma.

Henrique, sem perceber o perigo, tinha enviado para longe uma grande parte de suas tropas; e, como o restante era desigual demais para ir de encontro ao formidável exército inimigo, ele prudentemente retirou suas forças, assegurando a seus amigos romanos que em breve retornaria. Ele se retirou para Civita Castellana, onde podia observar os movimentos de todas as partes.

Três dias após Henrique ter deixado a cidade, o exército normando apareceu às muralhas. Quão desafortunados os habitantes daquela cidade culpada! Um dia mais tenebroso e pesado do que qualquer outro que ela já tenha passado estava por chegar, e todas as suas calamidades eram devido ao espírito vingativo e implacável de seu sumo sacerdote. Mas por se recusar a ceder ao poder secular, até mesmo o sangue de Roma -- sua própria cidade e capital -- teve de ser derramado. O domínio do papado sobre os reinos do mundo foi sua própria grande ideia, e nenhuma adversidade conseguia induzi-lo a ceder, nem um pouco, de suas sublimes pretensões. Ele foi tão inflexível em uma prisão quanto em um palácio. "Que o rei deite sua coroa e dê satisfações à igreja", eram as orgulhosas e desdenhosas palavras de Hildebrando, mesmo sendo um prisioneiro, e mesmo que o clero e os leigos implorassem para que entrasse em acordo com Henrique. Mas ele desprezou do mesmo modo os murmúrios, as ameaças e as súplicas de todos. Ele deve ter tido conhecimento sobre o caráter daquelas hordas assassinas que estavam nos portões, e quais seriam as consequências no momento em que entrassem. Mas sua mente estava formada, e a qualquer custo de derramamento de sangue humano e miséria ele inexoravelmente perseguiu seus desígnios imperiosos.

Os romanos não estavam preparados para se defenderem, e mal fizeram qualquer demonstração de resistência. O portão de São Lourenço foi rapidamente forçado, e a cidade estava imediatamente dominada. O primeiro ato de Roberto, o filho obediente da igreja, foi libertar o papa de seu longo aprisionamento no Castelo de Santo Ângelo. O normando recebeu formalmente a bênção pontifícia. Erguendo-se dos pés do papa, foi assim abençoado e edificado -- uma horrível zombaria e blasfêmia! Roberto soltou seus bandos de rufiões no meio do rebanho desprotegido do assim proclamado sumo pastor. Por três dias Roma esteve sujeita aos horrores de um saque. Os normando e os infiéis sarracenos se espalharam por cada canto da cidade. Assassinatos, pilhagem, luxúria e violência, estava tudo fora de controle. No terceiro dia, enquanto os normandos faziam festa e se divertiam em descuidada segurança, os habitantes, levados ao desespero, irromperam em uma rebeldia generalizada e correram armados pelas ruas, começando uma terrível carnificina com seus conquistadores. Assim surpreendidos, os normandos logo pegaram nas armas, e imediatamente toda a cidade tornou-se um cenário de conflito selvagem e desesperado.

Os Efeitos da Política Papal

Gregório logo percebeu que tinha ido longe demais -- que a humilhação em Canossa não poderia jamais ser esquecida e nunca poderia sossegar até que fosse vingada. A compaixão, assim como o interesse, moveu muitos príncipes e prelados a se reunirem em torno do rei caído, agora que estava liberto do banimento da excomunhão. Hildebrando (Gregório VII) era odiado pela maioria por causa de sua tirania política, e temido por causa de suas censuras eclesiásticas. Os revoltados príncipes da Alemanha ficaram secretamente encorajados pelo papa a disputar a posse do trono com Henrique, o que aumentou sua perplexidade e o preveniu de voltar seus exércitos contra Roma. Ele rezou para que Henrique nunca pudesse prosperar na guerra e, no nome e com as bênçãos dos apóstolos, concedeu o reino da Alemanha ao rebelde Rodolfo, duque da Suábia. O papa até mesmo se aventurou a profetizar que dentro de um ano Henrique estaria morto ou deposto; e, como se soubesse o fim desde o início, enviou uma coroa ao futuro rei, com uma inscrição significando que aquilo era o presente de Cristo a São Pedro, e de São Pedro a Rodolfo. Mas logo ele provou-se um profeta mentiroso, assim como um padre mentiroso, e o fomentador sem remorsos de uma guerra civil.*

{*Robertson, vol. 2, p. 594.}


A força do rei aumentou gradualmente apesar de todas as tramas iníquas e cruéis de Gregório. Após anos da mais terrível guerra civil e derramamento de sangue, os exércitos de Henrique e de seu rival, Rodolfo, se encontraram uma vez mais nas margens do rio Elster, em outubro de 1080. A batalha foi longa e obstinada, mas a queda de Rodolfo deu a Henrique a vitória. Ele recebeu sua ferida de morte, conta-se, da lança de Godofredo, mais tarde o primeiro rei de Jerusalém, e um golpe de sabre de um outro decepou sua mão direita. Relata-se que o príncipe moribundo, olhando para sua mão decepada, reconheceu com tristeza: "Com essa mão eu ratifiquei meu juramento de fidelidade ao meu soberano, Henrique: a punição é justa, e agora perdi a vida e o reino". Após os adversários do rei ficarem, então, desencorajados e paralisados, ele decidiu tornar suas forças contra seu mais formidável e irreconciliável inimigo. Ele cruzou os Alpes, entrou na Itália e sitiou os muros de Roma.

Estando a cidade bem provisionada, com as muralhas fortalecidas e com a lealdade dos romanos assegurada pela riqueza de Matilde, Henrique empenhou-se por mais ou menos três anos em bloquear e sitiar Roma, mas no verão de 1083 ele ganhou posse da cidade culpada. Gregório tomou refúgio no forte castelo de Santo Ângelo, e alguns de seus partidários em suas casas fortificadas. Henrique estava disposto a fazer acordos com Hildebrando, e a aceitar a coroa imperial de suas mãos. Mas o papa não queria saber de nada que não fosse a submissão incondicional de Henrique. "Que o rei renuncie a sua dignidade e se submeta à penitência", foram os únicos termos de Gregório. O clero -- bispos, abades e monges -- e os leigos suplicaram-lhe que tivesse misericórdia da cidade afligida, e que entrasse em acordo com o rei.

Mas todas as tentativas de negociação foram infrutíferas; o papa inflexível desprezava igualmente súplicas e ameaças. A submissão absoluta de Henrique e a satisfação à igreja eram as altas exigências do papa aprisionado em seu castelo. Mas Henrique não era mais o abandonado, o de espírito quebrantado e suplicante aos seus pés, como tinha sido em Canossa.

domingo, 12 de março de 2017

A Soberania dos Pontífices Romanos (775 d.C.)

O papa tornou-se então um príncipe secular. O dia a tanto tempo esperado tinha chegado; o sonho afeiçoado de séculos tinha se realizado. Os sucessores de São Pedro são proclamados soberanos pontífices e os senhores da cidade e dos territórios de Roma. O último elo da sombria vassalidade e subserviência ao Império Grego [ou Império Oriental] está quebrado para sempre, e Roma tornou-se novamente a reconhecida capital do Ocidente.

O grande papa Adriano assumiu imediatamente os privilégios do poder e a linguagem de um soberano secular a quem é devida fidelidade. Murmúrios vindos de Ravena e do Oriente foram rapidamente silenciados, e Roma reinou suprema. A linguagem do papa, até mesmo para com Carlos Magno, era a de um igual: "Como os vossos homens", diz ele, "não estão autorizados a vir a Roma sem vossa permissão e carta especial, do mesmo modo meus homens não estão autorizados a aparecer perante a corte da França sem as mesmas credencias vindas de mim". Ele reivindicou a mesma fidelidade dos italianos que os súditos de Carlos Magno deviam a ele. "A administração da justiça estava no nome do papa; não apenas os assuntos eclesiásticos e nas rendas das propriedades que formavam parte do patrimônio de São Pedro, como também as receitas civis entraram em seu tesouro... Adriano, com o poder, assumiu a magnificência de um grande potentado... Roma, com o aumento das receitas papais, começou a retomar mais de seu antigo esplendor."

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O Período de Transição do Papado

Retornemos agora a Roma. Sua importância e influência como um centro reivindica nossa maior atenção por mais um pouco. Os domínios espirituais do papa então se estendiam por toda a parte. De todas as partes do império bispos, príncipes e povos olhavam para Roma como o pai de sua fé e a mais elevada autoridade na Cristandade. Mas, embora assim exaltada à mais alta soberania espiritual, o supremo pontífice e sua relação com o império oriental ainda era um assunto delicado. Isto era insuportável para o orgulho e ambição de Roma. A poderosa batalha pela vida e poder político agora começava, e durou por todo século VII e VIII. Este foi o período de transição de um estado de subordinação ao poder civil ao estado de auto-existência política. Como isto poderia ser alcançado era então o grande problema que o Vaticano tinha que resolver. Mas o domínio espiritual não podia ser mantido sem o poder secular.

Os lombardos -- os vizinhos mais próximos e temidos dos papas -- e o império grego eram os dois grandes obstáculos no caminho da soberania secular do papa. A queda do império ocidental e a ausência de qualquer governo nacional fez com que o povo romano olhasse para o bispo como seu chefe natural. Ele foi assim investido com uma influência política especial, distinta de seu caráter eclesiástico. As invasões dos lombardos, como já vimos, e a fraqueza dos gregos, contribuíram para o aumento do poder político nas mãos dos pontífices. Mas isto foi apenas acidental, ou uma necessidade diante das emergências imprevistas. Os Estados romanos ainda eram governados por um oficial do império oriental, e o próprio papa, se ofendesse o imperador, era suscetível de ser preso e lançado na prisão, como foi, de fato, o caso do papa São Martinho no ano 653, que morreu no exílio no ano seguinte.

domingo, 13 de novembro de 2016

Gregório I, Apelidado de "o Grande" (590 d.C.)

Chegamos agora ao final do sexto século do cristianismo. Neste ponto encerra-se a história do período inicial da igreja, e começa a do período medieval. O pontificado de Gregório pode ser considerado como a linha que separa os dois períodos. Uma grande mudança acontece. As igrejas orientais declinam e recebem pouca atenção, enquanto as igrejas do Ocidente, especialmente a de Roma, atraem amplamente a atenção do historiador. E como Gregório pode ser considerado o homem representativo desse período transicional, nos esforçaremos para colocá-lo de forma justa perante o leitor.

Gregório nasceu em Roma por volta do ano 540, sua família sendo de classe senatorial, e ele próprio sendo o bisneto de um papa chamado Félix, de modo que, em sua descendência, ele herdou tanto a dignidade civil quanto a eclesiástica. Pela morte de seu pai ele se tornou possuidor de grande riqueza, que ele imediatamente dedicou a usos religiosos. Ele fundou e manteve sete monastérios: seis na Sicília, e a outra, que era dedicada a Santo André, na mansão de sua família em Roma. Ele liquidou em dinheiro suas roupas e joias caras e seus móveis e distribuiu aos pobres. Quando tinha cerca de 35 anos ele deixou de lado seus compromissos civis, assumiu sua residência no monastério romano e começou uma vida estritamente ascética. Embora fosse seu próprio convento, ele começou com os mais baixos deveres monásticos. Todo seu tempo era gasto em oração, lendo, escrevendo, e fazendo os mais abnegados exercícios. A fama de sua abstinência e caridade se espalhou por toda a parte. Com o decorrer do tempo ele se tornou abade de seu monastério; e, com a morte do papa Pelágio, ele foi escolhido pelo senado, clero e povo para preencher a cadeira vazia. Ele se recusou, e esforçou-se por vários meios a escapar das honras e dificuldades do papado. Mas ele foi forçadamente ordenado, pelo amor do povo, como bispo supremo.

Tirado da quietude de um claustro e de suas pacíficas meditações ali, Gregório via-se então envolvido no gerenciamento dos mais variados e desconcertantes assuntos tanto da igreja como do Estado. Mas ele estava evidentemente preparado para o grande e árduo trabalho que tinha diante de si. Vamos tomar nota, primeiramente, da fervente caridade de Gregório. 

domingo, 6 de novembro de 2016

O Começo do Período Papal

É geralmente admitido que esse período começa com o pontificado de Gregório, o Grande, em 590, e termina com a Reforma na primeira metade do século XVI. Mas, antes de entrarmos na história geral, tentaremos responder a uma questão que tem sido perguntada e que, sem dúvida, está na mente de muitos: Quando, e por que meios, o poder caiu nas mãos do pontífice romano, o que levou a sua supremacia e despotismo durante a Idade Média? É uma pergunta interessante, mas respondê-la plenamente nos levaria além de nossos limites. Podemos apenas apontar alguns poucos fatos na cadeia de eventos que levou à fundação do grande poder e soberania da Sé de Roma.

Desde o tempo do famoso decreto de Milão em 313, a história da igreja mudou de caráter. Ela passou então de uma condição de angústia e perseguição para o auge de uma prosperidade e honra mundana: outras questões além daquelas do cristianismo foram doravante envolvidas em sua história. Tendo entrado em uma aliança com o Estado, seu futuro caminho foi necessariamente formado por suas novas relações. Ela não podia mais agir simplesmente no nome do Senhor Jesus, e de acordo com Sua santa Palavra. Mas nunca poderia haver uma completa amalgamação (mistura entre os dois lados). Um era do céu, e o outro era deste mundo. Eles são, por natureza, opostos um ao outro. Ou a igreja aspirava ser senhora do Estado, ou o Estado invadia o terreno da igreja e desconsiderava seus direitos inerentes. Foi exatamente isto o que aconteceu. Logo após a morte de Constantino, a luta entres esses dois grandes poderes, a igreja e o Estado, pelo governo do mundo, começou; e, de modo a assegurar o êxito nesta guerra, o pontífice romano recorreu a caminhos e meios que não caracterizaremos aqui, uma vez que nos depararemos com eles em breve. 

Antes de Constantino transferir a sede do império a Bizâncio e construir Constantinopla, Roma era a metrópole reconhecida, e seu bispo o primaz. Mas quando Constantinopla tornou-se a cidade imperial, seu bispo foi promovido à categoria de patriarca, e logo começou a reivindicar a dignidade de pontífice romano. Este foi o início da igreja grega como uma comunhão separada, e da longa disputa entre o Oriente e o Ocidente. Havia então quatro patriarcas, de acordo com o plano do imperador: em Roma, Constantinopla, Antioquia e Alexandria. A categoria do bispo dependia da superioridade da cidade em que presidia, e como Constantinopla era então a capital do mundo, seus bispos não ficavam atrás de ninguém em honra e magnificência. Os outros ficaram invejosos, Roma queixou-se, a contenda começou, a brecha se alargou. Mas Roma nunca descansou até que tivesse ganhado a ascendência sobre seus rivais mais fracos e menos ambiciosos.

sábado, 8 de outubro de 2016

A Heresia Pelagiana

A condição da igreja no início do século V deu ao adversário uma oportunidade de trazer uma nova heresia, que introduziu uma nova controvérsia que continuou com mais ou menos violência desde aqueles dias até hoje. Trata-se do pelagianismo. A grande heresia, o arianismo, que tinha até então agitado a igreja, originou-se no Oriente e era relacionada à Divindade de Cristo, e agora esta nova se erguia no Ocidente, e tinha por assunto a natureza do homem após a queda e suas relações com Deus. Esta deturpava a questão do pecador perdido, e aquela, o divino Salvador.

Diz-se que Pelágio foi um monge do grande monastério de Bangor, no País de Gales, e provavelmente o primeiro bretão que se distinguiu como um teólogo. Seu verdadeiro nome era Morgan. Supõe-se que seu seguidor, Celéstio, era nativo da Irlanda. Agostinho fala dele como sendo mais jovem que Pelágio -- e mais ousado e menos astuto. Estes dois companheiros no erro visitaram Roma, onde se tornaram íntimos de muitas pessoas de reputação ascética e santa, e disseminaram suas opiniões com cautela e privacidade. Mas, após o cerco do ano 410, eles passaram para a África, onde avançaram mais abertamente com suas opiniões.

Aparentemente a motivação de Pelágio não estava em qualquer desejo de formar um novo sistema doutrinal, mas sim de se opôr ao que considerava ser indolência moral e um espírito mundano entre os irmãos. Por isso, ele sustentava que o homem possuía um poder inerente para fazer a vontade de Deus e para alcançar o mais alto grau de santidade. Deste modo suas visões teológicas foram, em grande medida, bem formadas e determinadas, porém totalmente falsas, sendo consistentes somente com seu asceticismo rígido e com os frutos nativos que este produzia. Como as Escrituras inegavelmente atribuem todo o bem no homem à graça de Deus, assim Pelágio também, num sentido criado por ele próprio, reconhecia isso; mas suas ideias sobre graça divina eram, de fato, nada mais do que os meios externos para ressaltar os esforços humanos: ele não via a necessidade de uma obra de graça celestial no coração e nem da operação do Espírito Santo. Isto o levou a ensinar que o pecado de nossos primeiros antepassados não tinham prejudicado ninguém além deles mesmos, e que o homem é agora nascido tão inocente como Adão, como Deus o havia criado, e que era possuidor do mesmo poder e pureza moral. Estas doutrinas, e outras ligadas a elas, especialmente a ideia do livre arbítrio do homem -- "um poder imparcial de escolha entre o bem e o mal" -- foram secretamente disseminadas por Pelágio e seu colega Celéstio em Roma, Sicília, África e Palestina. No entanto, as novas opiniões foram geralmente condenadas, exceto no Oriente. Lá, por exemplo, João, bispo de Jerusalém, que considerava que as doutrinas de Pelágio concordavam com as opiniões de Orígenes, às quais ele tinha aderido, promoveu Pelágio, permitindo que ele professasse livremente seus sentimentos e angariasse discípulos.*

{*"O erro fundamental do monge Pelágio era a negação de nossa total corrupção pelo pecado derivado de Adão, e expiado unicamente pela morte e ressurreição do segundo Homem, o último Adão. Por isso ele pregava que a liberdade era verdadeiramente possuída por todos os homens, não apenas no sentido de isenção de alguma restrição exterior, mas da liberdade da natureza de escolher entre o bem e o mal, negando, assim, a escravidão do pecado no interior do homem. Assim, mesmo em sua aplicação cristã, ele parece ter compreendido a graça como pouco mais do que o perdão por esta ou aquela ofensa, e não como a concessão de uma nova natureza ao crente, devido a qual ele não pratica o pecado, pois nasceu de Deus. Assim não havia lugar no esquema pelagiano para o homem estar perdido de um lado, e para o crente estar salvo no outro. De fato, ele pregava que a raça humana era concebida em uma inocência como a do estado primordial de Adão até que pecasse e então caísse sob a culpa e suas consequências. Os pelagianos negavam a imputação do pecado de Adão, vendo nele nada mais do que a influência de um mal exemplo. Assim, enquanto a ruína moral do homem o fazia perder a força, bem como o relacionamento com o Cabeça da igreja, por um lado, pelo outro lado, sob a graça, estavam contadas todas as naturais e as sobrenaturais dotações da família humana. Por isso, a lei da consciência e o evangelho eram considerados como diferentes métodos e diferentes estágios de justiça, sendo os recursos e operações da graça válidos apenas de acordo com as tendências da vontade. Novamente, a redenção em Cristo se tomou, se não um mero aperfeiçoamento, com certeza uma exaltação e transfiguração da humanidade. O próprio Cristo não era nada além do padrão supremo de justiça, alguém que estimulava uns a guardarem perfeitamente a lei moral, e, por Sua obra, estimulava outros ao amor e ao exemplo pelos conselhos evangélicos da perfeição moral superior à lei." W. Kelly }

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O Martírio de Inácio

Não há nenhum fato do início da história da igreja mais sagradamente preservado {* N. do T.: com exceção das próprias Escrituras} que o martírio de Inácio, o bispo* da Antioquia. E não há narrativa mais celebrada que sua viagem, como prisioneiro em correntes, da Antioquia para Roma.

{* N. do T.: bispo significa "supervisor" ou "ancião" de uma assembleia (igreja) local. Na Palavra de Deus, o bispo ou ancião nunca aparece como um cargo eclesiástico assalariado (como inventaram os homens no decorrer dos séculos), mas sim como simplesmente um ofício (ou papel) exercido em uma assembleia. Para saber mais leia: Anciaos, Presbiteros [Bispos] e Guias, Existem anciaos hoje?
}

De acordo com a opinião geral dos historiadores, o imperador Trajano, em seu caminho para a guerra da Pártia no ano 107, visitou Antioquia. Por que causa é difícil dizer, mas aparentemente os cristãos foram ameaçados de perseguição por suas ordens. Inácio, portanto, preocupado pela igreja em Antioquia, desejou ser introduzido à presença de Trajano. Seu grande objetivo era prevenir, se possível, a perseguição ameaçada. Com este objetivo em vista, ele apresentou ao imperador o verdadeiro caráter e condição dos cristãos, e se ofereceu a si mesmo para sofrer no lugar deles.

Os detalhes da marcante entrevista são dados em muitas relatos sobre a história da igreja, mas existe um certo ar de suspeita sobre eles que nos absteremos de inserir aqui. De qualquer modo, a história acabou na condenação de Inácio. Ele foi sentenciado pelo imperador a ser levado a Roma, e lançado às feras selvagens para o entretenimento do povo. Ele recebeu a cruel sentença sem reclamar, e de bom grado submeteu-se às cadeias, crendo ser assim por sua fé em Cristo e como um sacrifício pelos santos.

Inácio estava agora sob custódia de dez soldados, que parecem ter ignorado sua idade, tratando-o com grande dureza. Ele tinha sido um bispo da Antioquia por quase quarenta anos, e portanto devia ser um homem idoso. Mas eles o levaram grosseiramente por uma longa viagem, tanto por mar quanto por terra, de modo a chegar a Roma antes dos jogos terminarem. Ele chegou no último dia do festival, e foi logo levado ao anfiteatro, onde sofreu, de acordo com sua sentença, à vista dos espectadores reunidos. E então, o cansado peregrino encontrou o descanso das fadigas de sua longa viagem no bendito repouso do paraíso de Deus.

Alguns têm perguntado o porquê de Inácio ter sido levado pelo longo caminho da Antioquia até Roma para sofrer o martírio. A resposta só pode ser conjectura. Pode ter sido com a intenção de infundir medo aos outros cristãos, pelo espetáculo de alguém tão eminente e tão conhecido ser levado em correntes a uma morte terrível e degradante. Mas se esta foi a expectativa do Imperador, ele deve ter ficado inteiramente desapontado. O martírio de Inácio teve justamente o efeito oposto. Notícias sobre sua sentença e sobre sua rota se disseminaram amplamente, e representantes das igrejas das proximidades foram enviados para encontrá-lo em pontos convenientes durante a viagem. Ele foi, então, saudado e encorajado com calorosas felicitações de seus irmãos; e eles, em troca, se alegraram em ver o venerável bispo e em receber sua bênção de despedida. Muitos dos santos se sentiriam encorajados a enfrentar, e até mesmo a desejar, uma morte de mártir e uma coroa de mártir. Dentre os que o encontraram pelo caminho estavam Policarpo, bispo de Esmirna que, assim como Inácio, tinha sido um discípulo do apóstolo João, e estava também destinado a ser um mártir pelo evangelho. Mas além desses encontros pessoais, dizem que ele escreveu sete cartas durante essa viagem, que foram preservadas pela providência divina e chegaram até nós. Sempre houve grande interesse, e ainda há, nessas cartas.

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