Tais eram os doutores cristãos e tais os seus sentimentos, os quais o político landgrave buscava incansavelmente reconciliar. O pensamento é verdadeiramente humilhante e lança uma sombra sombria sobre o caráter de Lutero. Filipe, em seus esforços pacíficos, demonstrou muito mais espírito cristão nesta e em outras ocasiões do que o grande Reformador — ainda que não tenha sido, talvez, sob a ótica cristã. Mas não julgamos os motivos; há Um que julgará os segredos de todos os homens. (1 Cor. 4:5)
A conexão desta grande disputa com os movimentos políticos da Alemanha tornava-a de profundo interesse e ansiedade para os chefes protestantes. Era o maior obstáculo à sua união; e sem unidade, que poderiam fazer perante adversários tão poderosos como Roma e o Imperador? Os teólogos papistas observavam com maliciosa satisfação o crescimento e a amargura dessa vergonhosa dissensão, e empregavam toda a sua arte para dela tirar proveito. O landgrave evidentemente lamentava essa divisão mais do que os teólogos de Wittenberg e, então, decidiu, sem mais delongas, promover uma conferência e, se possível, uma reconciliação entre os líderes das diferentes partes. Sobre as grandes verdades fundamentais da revelação, os reformadores alemães e suíços estavam de acordo. Apenas num ponto divergiam — a maneira pela qual Cristo está presente no pão e no vinho da santa Eucaristia. Parece que Filipe considerava toda a questão como pouco mais que uma disputa de palavras, como ele mesmo diz: “Os luteranos não querem ouvir falar em aliança com os zuinglianos; pois bem, acabemos então com as contradições que os separam de Lutero.” Assim, ele convocou os principais teólogos da Saxônia, da Suíça e de Estrasburgo para reunirem-se em Marburgo no outono de 1529.
Zuínglio aceitou o convite com toda a alegria e se preparou para comparecer na data marcada. Mas Lutero — geralmente tão audaz e intrépido, como vimos reiteradas vezes — expressou a maior relutância em encontrar-se com Zuínglio. Os vários panfletos que haviam trocado sobre o tema em questão haviam deixado em sua mente uma impressão tão forte quanto ao poder de Zuínglio, que ele procurou, por meios indignos, evitar o encontro. Contudo, os insistentes rogos do landgrave por fim prevaleceram. Assim escreveu Lutero a Filipe:
“Recebi vossas ordens para ir a Marburgo, para uma disputa com Oekolampadius e seu partido, sobre a diferença sacramental, em vista da paz e unidade. Embora tenha muito pouca esperança de tal união, como também não posso senão louvar em alto grau vosso zelo e cuidado, tampouco me recusarei a assumir um encargo que, para nós, talvez seja sem esperança e perigoso; pois não quero dar ocasião a que nossos adversários digam que estavam mais inclinados à concórdia do que eu mesmo. Sei muito bem que não lhes farei concessões indignas... E, se não cederem a nós, todo o vosso esforço será em vão.” Suas cartas privadas neste período expressam o mesmo parecer e respiram o mesmo espírito. Toda a questão já estava discutida e encerrada na mente de Lutero antes mesmo de iniciar a viagem. Mas seu espírito estava longe de encontrar-se tranquilo. Ele tinha a íntima convicção de que a vitória seria dos suíços. Essa convicção se comprova plenamente pelas seguintes proposições:
1. Lutero escreveu, por si e por Melâncton, que só poderiam comparecer à conferência com a condição de que “alguns papistas honestos estivessem presentes como testemunhas contra aqueles futuros Thrasos* e santos vaidosos... Se não houvesse juízes imparciais, os zuinglianos teriam grandes chances de vangloriar-se da vitória.” Essa é uma passagem estranha na história dos teólogos saxões, e revela um retrocesso nos princípios da Reforma; especialmente tratando-se do autor de “Cativeiro Babilônico” e do denunciador do Anticristo. Teria Lutero esquecido que os papistas estavam comprometidos com a presença real mais do que qualquer outro partido da Cristandade? E, no entanto, propõe-nos como juízes imparciais. Que mudança, ainda que momentânea, naquele grande homem! Como explicar tal atitude? Lutero já não se firmava no sólido fundamento da Palavra de Deus, mas sim no terreno falso de uma superstição absurda. Não podia ter o senso da presença divina nem de sua aprovação. E não é de se admirar que manifestasse tamanha fraqueza e incoerência. Em vez de confiar no Deus vivo e desprezar papas e imperadores, volta-se de maneira lastimável a seus antigos inimigos para serem seus amigos e refúgio na discussão que se avizinhava. Que solene lição para todos os cristãos! Que a Palavra escrita e viva seja nosso recurso e refúgio em todo tempo. Acrescentamos apenas que Filipe era antipapista demais para dar ouvidos à proposta de Lutero; esta, portanto, caiu por terra, deixando a seus autores a vergonha que a história imparcial lhes atribuiu.
{* Thrasos refere-se a um conceito personificado da ousadia na mitologia grega. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Thrasos }
2. Numa carta geralmente atribuída a Melâncton, escrita ao Príncipe Eleitor já em 14 de maio, vai-se ainda mais longe: “Que o príncipe se recuse a permitir nossa viagem a Marburgo, de modo que possamos alegar tal desculpa.” “Mas o Eleitor,” diz D’Aubigné, “não quis prestar-se a tão vergonhosa manobra; e os reformadores de Wittenberg viram-se compelidos a atender ao pedido do landgrave.”
3. Outra proposta foi sugerida, que revela ainda mais o temor e as dúvidas dos teólogos saxões — “que entre os teólogos convidados da Suíça para a controvérsia, Zuínglio não estivesse entre eles.” Mas essa proposta tampouco pôde ser acolhida; os convites já haviam sido expedidos, e Filipe estava demasiado ofendido com a obstinação de Lutero para ouvir-lhe os apelos. Tais minúcias só merecem ser registradas por revelarem a diferença que há no mesmo homem quando defende a verdade de Deus e quando sustenta o insensato dogma da consubstanciação. No primeiro caso, permanece pela fé, e a graça lhe confere coragem moral, firmeza e nobreza de caráter; no segundo, vemo-lo exibir os mais lastimáveis traços de fraqueza, desconfiança e dissimulação. É a presença de Deus e a fé n’Ele que fazem tamanha diferença; como canta o poeta:
“Deus é por mim? Não temo, embora todos se levantem contra mim;
Quando invoco a Cristo, meu Salvador, a hoste do mal foge
Meu amigo, o Senhor Todo-Poderoso, e Aquele que me ama, Deus!
Que inimigo me fará mal, mesmo que venha como uma inundação?
Eu sei, eu creio, eu digo sem medo
Que Deus, o Altíssimo, o mais poderoso, me ama para sempre,
Em todos os momentos, em todos os lugares, Ele está ao meu lado
Ele governa a fúria da batalha, a tempestade e a maré”
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