domingo, 25 de agosto de 2024

A Epístola à Igreja em Sardes - Parte 4

No antigo sistema católico, a salvação era uma questão, não apenas de fé em Cristo Jesus, mas de privilégio eclesiástico. Toda bênção dependia de se haver uma conexão com a igreja de Roma. Não havia perdão de pecados, nem paz com Deus, nem vida eterna em Cristo, nem salvação para a alma, fora de sua comunhão. Foi este dogma blasfemo e ousado que lhe deu tal poder enorme durante a Idade das Trevas, e que fez de suas excomunhões as punições mais insuportáveis que poderiam ser impostas a pessoas ou nações. Quando a igreja proferia sua voz de censura, a vítima de seus trovões não conhecia poder de resistência. Não havia um homem, do monarca mais altivo ao súdito mais humilde, que não tremesse onde o raio caísse. Guerra, fome, pestilência, eram toleráveis, sendo calamidades temporais; mas a maldição do papa arruinava a alma para sempre, e a condenava a um inferno sem fim. Não importava quão genuína fosse a fé e a piedade de um homem, se ele não pertencia à santa igreja católica e não desfrutava do benefício de seus sacramentos, a salvação era impossível. Essa doutrina temerosa, que então era crida, fez da igreja tudo — mestre, legisladora, salvadora — e a comunhão com ela o único caminho para o céu, qualquer que fosse o caráter individual. Ela também reivindicava o privilégio de dizer quem deveria ser chamado santo e quem não deveria; quem iria diretamente para o céu após a morte, e quem iria para o purgatório, e por quanto tempo deveriam ser retidos lá. O lugar e a importância de cada homem, tanto no tempo quanto na eternidade, só podiam ser decididos por aquela que se autodenominava a Igreja, a esposa de Cristo.

Mas esse mal monstruoso, que ficou oculto por séculos nas trevas mais congeniais, foi trazido à luz na Reforma. A massa amadurecida de corrupção não podia mais escapar da execração da humanidade. Muitos se levantaram em rebelião contra ela, declararam que todo o sistema do papado era a mentira de Satanás, e que o protesto de Lutero era a verdade de Deus. Mas os reformadores, em vez de confiarem em Cristo, que se apresenta à fé como superior a todas as circunstâncias, e fazendo d'Ele seu refúgio e força, caíram no laço de olhar para o magistrado civil como um braço protetor contra as perseguições de Roma, e como aquele que deveria regular os movimentos das sete estrelas. A autoridade eclesiástica — a nomeação de ministros — passou para as mãos dos poderes deste mundo. Este foi o fracasso do Protestantismo desde o início. Vejamos o testemunho de outro autor:

"Assim, o Protestantismo sempre este errado, eclesiasticamente, porque olhava para o governante civil como aquele em cujas mãos estava investida a autoridade eclesiástica; de modo que, se a igreja tinha sido, sob o papado, a governante do mundo, o mundo agora se tornou, no Protestantismo, o governante da igreja... Sardes descreve o que se seguiu à Reforma, quando o brilho e o fervor da verdade e o primeiro influxo de bênçãos haviam passado, e um formalismo frio havia se instalado... Em terras protestantes, sempre houve uma medida de liberdade de consciência. Mas o objetivo de Deus não é apenas libertar da maldade grosseira ou de meros detalhes, mas que a alma esteja correta para com Deus, e que permita ao Senhor ter Seu caminho e glória — liberdade para o Senhor trabalhar pelo Espírito Santo de acordo com Sua vontade. Quando Ele é colocado em Seu devido lugar, há o fruto abençoado disso em amor e liberdade santa. Não é a liberdade humana derivada do poder do mundo que queremos — embora Deus nos proíba de falar contra os poderes constituídos na própria esfera de atuação deles — mas a liberdade do Espírito Santo. É o pecado dos cristãos ter colocado os poderes constituídos em uma posição falsa. O Senhor Jesus toca a raiz de toda a questão na forma como Se apresenta à igreja de Sardes. Quer seja poder espiritual ou a autoridade externa que dele flui, o Senhor reivindica tudo como pertencente a Si... Quando há fé para olhar para Ele em Seu lugar como Cabeça da igreja, Ele certamente suprirá toda necessidade. Se Ele ouve o mais simples clamor de Seus cordeiros, não entraria Ele na necessidade mais profunda de Sua igreja, que sempre é Seu objeto mais amado? Ele assumiu Sua posição de Cabeça da igreja apenas na glória celestial, e Ele foi para lá não apenas para ser, mas para agir, como o Cabeça."*

{* Comentários sobre o Apocalipse - Sardes, por W. Kelly.}

A Epístola à Igreja em Sardes - Parte 3

Achamos quase desnecessário acrescentar, depois do que foi dito, que os títulos "estrela" e "anjo" não dão sanção à ideia de clericalismo ou ministros nomeados por homens. O sistema que prevaleceu desde a Reforma deixa uma porta larga para homens até mesmo não convertidos, desde que intelectuais. Mas como o sistema divino é diferente, como visto aqui! As "estrelas" têm um caráter de autoridade sob Cristo, e agem em Seu nome, que é o Cabeça do governo, e como "anjos" são representantes das igrejas, e as caracterizam aos olhos de Cristo. Que sublime imagem, podemos exclamar, de identificação moral com Cristo e com a igreja de Deus, esses títulos dão! E um mesmo homem era caracterizado por ambos. "As sete estrelas são os anjos das sete igrejas." Ele era a expressão de Cristo para a igreja em poder subordinado, e da igreja para Cristo em sua condição moral. Para ministros tão divinamente designados e divinamente qualificados, não poderia haver objeção em qualquer época ou em qualquer país. Por tais devemos nunca cessar de orar.

Agora que vimos, como cremos, a mente de Cristo quanto ao que Ele é em Si mesmo para Sua igreja em todas as eras e condições, estaremos mais aptos a compreender a posição das igrejas reformadas conforme prefiguradas pelo estado de coisas em Sardes.

A Epístola à Igreja em Sardes - Parte 2

As duas coisas — o espiritual e o eclesiástico — que vemos aqui unidas em Cristo, foram separadas pelos reformadores. Este foi o grande erro da Reforma. Eles nunca viram ou entenderam essa verdade. Em sua ansiedade para obter a completa libertação do poder ameaçador do papa, apoiado pelos príncipes católicos, os reformadores colocaram-se sob a proteção dos príncipes protestantes. Este foi seu fracasso; e desde a primeira Dieta de Espira em 1526, eles quase desapareceram do noticiário da história. Eles negligenciaram a grande verdade de que todo poder necessário para a igreja, tanto interior quanto exterior, espiritual e governamental, reside no Cabeça, e que nem a tirania de Roma, nem a fraqueza de alguns reformadores, enfraquecem o mínimo que seja essa bendita realidade. "Qualquer que seja o fracasso da igreja," diz alguém, "por mais que ela tenha se aliado ao mundo, isso permanece sempre verdadeiro, que a plena competência divina do Espírito Santo em seus vários atributos é sua porção, sob Aquele que é o Cabeça da igreja, que cuida, ama e vigia sobre ela."* Ele também tem as sete estrelas. Não é dito aqui como na mensagem a Éfeso, "Aquele que segura as sete estrelas em sua mão direita" (Ap 2:1, KJV), mas sim: "O que tem... as sete estrelas." Em Sardes, embora as estrelas não sejam vistas "em sua mão direita," o bendito Senhor não as entregou; isso Ele nunca poderia fazer, Ele ainda as tem debaixo de sua mão, podemos dizer, embora não nela. "Isto diz o que tem... as sete estrelas."

{* Comentários sobre as cartas às Sete Igrejas - J. N. Darby}

Mas pode ser necessário, para explicar as estrelas, antes de prosseguirmos, dizer algumas palavras.

"As sete estrelas são os anjos das sete igrejas." (Ap 1:20) Em toda a Escritura, "estrelas" simbolizam poder subordinado, assim como o sol simboliza poder supremo; e os "anjos" dão a ideia de representação. "E diziam: É o seu anjo", ou o representante de Pedro, que acreditavam estar na prisão; e certamente o anjo com quem Jacó lutou era o anjo de Jeová, pois Jacó chamou o lugar de "a face de Deus". (Atos 12; Gênesis 32) A instrução, então, que colhemos do significado dessas duas palavras, é perfeitamente clara e de suma importância; ou seja, que o anjo da igreja deveria ser a demonstração de poder espiritual, representando Cristo na terra. A responsabilidade da igreja professa é assim colocada sob o ponto de vista mais solene. Qualquer que seja a condição das coisas na igreja professa, o Senhor Jesus é aquele que tem os sete Espíritos de Deus, e que tem as sete estrelas; ou, em outras palavras, todo o poder do Espírito e toda a autoridade eclesiástica. Isso é o que Cristo é em sua própria plenitude de bênçãos para a igreja e também para o cristão individual; e certamente deveríamos ser uma justa expressão d'Ele, que é nossa vida, nossa sabedoria e nosso poder neste mundo. Que possamos ser mantidos mais no espírito de obediência e dependência — mais perto d'Ele, em sua mão direita.

A Epístola à Igreja em Sardes - Parte 1

(Veja antes a introdução ao estudo da epístola à igreja em Sardes aqui)

Como de costume nessas epístolas, o caráter que o Senhor assume é divinamente adequado à condição daqueles a quem Ele está se dirigindo. "Isto diz o que tem os sete espíritos de Deus, e as sete estrelas." Aqui o Senhor se apresenta como possuindo, para a fé, toda a plenitude do Espírito Santo, e toda autoridade no governo, sendo sete o símbolo de perfeição. E essa plenitude de bênção espiritual que está em Cristo e à sua disposição permanece para sempre inalterada pelo fracasso ou ruína externa da igreja, de modo que tanto o corpo corporativo quanto os cristãos individuais estão sem desculpa se buscarem ajuda em recursos meramente humanos.

Mas, infelizmente, esse foi o laço no qual os reformadores caíram. Foi isso o que aconteceu, e como ainda vemos ao nosso redor os efeitos desse erro, faremos bem em examiná-lo cuidadosamente.

A Epístola à Igreja em Sardes - Introdução

"E ao anjo da igreja que está em Sardes escreve: Isto diz o que tem os sete espíritos de Deus, e as sete estrelas: Conheço as tuas obras, que tens nome de que vives, e estás morto. Sê vigilante, e confirma os restantes, que estavam para morrer; porque não achei as tuas obras perfeitas diante de Deus. Lembra-te, pois, do que tens recebido e ouvido, e guarda-o, e arrepende-te. E, se não vigiares, virei sobre ti como um ladrão, e não saberás a que hora sobre ti virei. Mas também tens em Sardes algumas poucas pessoas que não contaminaram suas vestes, e comigo andarão de branco; porquanto são dignas disso. O que vencer será vestido de vestes brancas, e de maneira nenhuma riscarei o seu nome do livro da vida; e confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas." (Apocalipse 3:1-6)

Já vimos o estado geral e as atitudes do papado durante a Idade Média: agora devemos contemplar um período inteiramente novo na história da igreja e uma nova ordem de coisas como resultado da grande Reforma. Muitas das características morais dos períodos anteriores, sem dúvida, existem em Sardes, mas seu caráter é suficientemente distinto para marcá-lo como uma nova época na história eclesiástica e civil.

As quatro primeiras igrejas do Apocalipse, que já examinamos, descrevem o estado das coisas antes da Reforma; as últimas três representam o aspecto geral do corpo professante após os dias de Lutero. Mas devemos ter cuidado para distinguir entre aquela obra positiva do Espírito de Deus através dos reformadores e o formalismo sem vida que tão logo apareceu nas igrejas luteranas e reformadas, e que claramente corresponde à triste condição de Sardes. Mal haviam provado as bênçãos da libertação da opressão de Roma, quando caíram em um estado de servidão aos governos do mundo e, consequentemente, em um estado de morte espiritual. O Senhor Jesus faz uma referência tocante a esse estado de coisas em sua mensagem: "Conheço as tuas obras, que tens nome de que vives, e estás morto." Esta é a condição do que é conhecido como Protestantismo após os dias dos primeiros reformadores. Os verdadeiros cristãos, é claro, não estão mortos, sua "vida está escondida com Cristo em Deus" (Cl 3:3), mas os sistemas nos quais se encontram, o Senhor declara aqui como sendo sem vitalidade. Um credo ortodoxo, aparência exterior de corretude, um nome de algo novo e cheio de vida, o espírito imundo do papado expulso, a casa varrida e adornada, caracterizam o Protestantismo; mas aquela terrível palavra dos lábios de Jesus — tu estás morto — carimba seu verdadeiro caráter como visto por Ele. Os diversos sistemas denominacionais do meio protestante e evangélico são descritos por aquela palavra fatal, "mortos" — a realidade viva se foi.

Mas um olhar para as diferentes partes da Epístola a Sardes nos permitirá compreender mais plenamente a avaliação do Senhor sobre os diversos sistemas protestantes que nos cercam.

sábado, 24 de agosto de 2024

O Protestantismo

Capítulo 36: Protestantismo: Alemanha (1526 d.C. - 1529 d.C.)

O Protesto dos Reformadores na Segunda Dieta de Espira, em 1529, marca uma época distinta na história da Reforma e da Igreja. Ao mesmo tempo, devemos lembrar que o Protestantismo não é uma novidade. A antiguidade da religião Católica Romana é uma das vãs ostentações de seus defensores. Dizem que o Papado é fruto da antiguidade, mas que o Protestantismo é filho de ontem — de Lutero e Calvino. O termo, podemos admitir, em sua acepção no século XVI, era uma novidade, mas não aquilo que ele representava. A verdade de Deus e sua autoridade sobre a consciência eram o que os Protestantes defendiam. Nesse sentido, o Protestantismo é tão antigo quanto o Cristianismo; e sempre existiu, embora sufocado, desde o tempo de Constantino até o século XVI, em meio a uma massa de erros e superstições sempre crescentes.

Durante esse período sombrio e desolador, encontramos muitos Protestantes. O despotismo e o erro reinando, a fidelidade e a verdade de Deus existindo, necessariamente trouxeram à tona os princípios do Protestantismo. Além dos Paulicianos, Nestorianos e Armênios no Oriente, temos nossos conhecidos amigos no Ocidente — os Valdenses, os Albigenses, os Wyclifitas e os Boêmios. Havia outros distinguidos por várias designações, como os Cátaros, Leonistas, etc.; mas aqueles eram os quatro grandes ramos do nobre tronco de testemunhas de Cristo e Seu evangelho; e, embora chamados por diferentes nomes, tinham uma origem comum e uma fé comum.

O Protestantismo com o qual agora tratamos, historicamente, data da Segunda Dieta de Espira, em 1529. Então ele deu seu primeiro suspiro. Mas em pouco tempo ele foi incorporado à constituição nacional da Alemanha, e estava armado em defesa, se necessário, da religião e da liberdade. Esse foi o Protestantismo em sua forma política, que, infelizmente, não refletia o Cristianismo, ou a Igreja de Deus, o corpo de Cristo.

Mas aqui devemos pausar por um momento e meditar sobre o discurso do Senhor à igreja em Sardes. O início da parte protestante da Cristandade é o momento certo para introduzi-lo. Lá temos a avaliação, não da caneta parcial ou preconceituosa do historiador, mas do próprio Senhor. Isso é profundamente solene, mas inefavelmente precioso. Que Ele nos conceda ver Sua própria mente sobre esse grande assunto!


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O Protesto

As discussões que surgiram sobre este assunto foram longas e muitas vezes fervorosas. Os católicos contavam com os mais hábeis e astutos debatedores, como o célebre Eck. Ao frequentemente repetido clamor, "A execução do edito de Worms", foi agora acrescentado, "A abrogação do édito de Spira". Mas os reformadores se mantiveram firmes e unidos, e raciocinaram com grande justiça. Finalmente, Fernando, que presidia a dieta, exigiu com um tom imperioso a submissão incondicional dos príncipes alemães à decisão da assembleia. Os reformadores protestaram. Isso ocorreu no dia 19 de abril de 1529. Como esse ato simples foi desconsiderado pelos papistas, os reformadores apresentaram no dia seguinte, por escrito, um segundo e mais elaborado protesto, apelando ao Imperador e a um futuro concílio. Foi assim que os reformadores receberam a designação de Protestantes. Esta é a origem do termo que hoje é utilizado para denotar todas aquelas numerosas igrejas e seitas que protestam, por princípio, contra as doutrinas, ritos e cerimônias da Igreja de Roma.

Este nobre manifesto, que sem dúvida perplexou o partido papal por sua firmeza e justiça, foi assinado por João, Eleitor da Saxônia, Filipe, Landgrave de Hesse, Jorge de Brandenburgo, Ernesto e Francisco de Lunenberg, Wolffgang de Anhalt e pelos deputados de quatorze cidades imperiais. Mas não aparecem as assinaturas de teólogos, doutores em divindade, nem de professores universitários. A grande Reforma, ou revolução religiosa, passou para as mãos dos poderes deste mundo. Não havia Lutero em Espira como havia em Worms. Ainda assim, ele e seus amigos estavam trabalhando em seus estudos, púlpitos e universidades para o progresso pacífico da palavra de Deus e os triunfos do evangelho de Sua graça. E o Senhor sabe como estimar e recompensar os trabalhos de Seus servos. "Portanto, nada julgueis antes de tempo, até que o Senhor venha, o qual também trará à luz as coisas ocultas das trevas, e manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o louvor." (1 Coríntios 4:5)

Aqui o cristianismo papal recebe sua ferida mortal. O reinado de Jezabel, em sua autoridade absoluta, é agora julgado como uma tirania intolerável. A mente teutônica, que nunca se desfez completamente de sua independência nativa, agora se despede do jugo opressor de Roma. Historicamente, o período de Tiatira encerra-se aqui. O período protestante começa, como prefigurado nas epístolas a Sardes, Filadélfia e Laodiceia, embora todos os quatro se estendam até o fim. Então, cada verdadeiro cristão em todos os diferentes sistemas na Cristandade será arrebatado para encontrar o Senhor nos ares, e no devido tempo virá com Ele em plena glória manifesta, quando o julgamento divino será executado sobre uma amadurecida apostasia.

A Segunda Dieta de Espira

No início da primavera de 1529, o Imperador convocou a famosa Segunda Dieta de Espira. Os estados do império se reuniram com grande prontidão. "O partido papal, em particular, reuniu todas as suas forças e assumiu uma atitude beligerante e insultuosa. Nunca em ocasião semelhante houve uma assembleia tão numerosa de nobres católicos; e estes, mais do que qualquer outro, traíram por seus olhares e maneiras a malícia de seus desígnios. Um ou dois príncipes, que até então eram considerados neutros ou até mesmo favoráveis à Reforma, agora se declararam contra ela. Outros vieram acompanhados por consideráveis escoltas de cavalaria, exalando ódio e desafio. Nada menos do que a imediata extinção da heresia pela espada estava sendo planejado."

A mensagem imperial assumiu um tom elevado e despótico. O Imperador queixou-se das mudanças na religião e do desrespeito que havia sido demonstrado à sua própria autoridade, pois ele se considerava o chefe do mundo cristão e exigia obediência irrestrita aos seus decretos. Ele observou que as inovações religiosas que havia banido estavam aumentando diariamente em número, e isso sob o pretexto do édito de Espira de 1526, o qual, por sua autoridade absoluta, ele abrogava por ser diretamente oposto às suas ordens.

O decreto do Imperador foi extremamente ofensivo e oneroso para os nobres alemães. Ele atacava a própria raiz de seus privilégios e sua independência. Os príncipes evangélicos e os deputados das cidades livres adotaram uma posição firme, porém justa. Afirmaram que o édito de Espira havia sido elaborado de acordo com as formas habituais; que os comissários do Imperador haviam consentido com ele em seu nome; que era o ato legal de todo o corpo da República; e que estava além do poder imperial anulá-lo.

A Primeira Dieta de Espira

A Dieta de Espira, que se iniciou em junho de 1526, estava destinada a desferir o golpe decisivo. Fernando, irmão do Imperador, presidiu. A mensagem imperial, repetida várias vezes, foi lida na dieta. Ela exigia que todas as contendas sobre assuntos religiosos cessassem; que os costumes da Igreja fossem mantidos na íntegra; que o édito de Worms fosse rapidamente executado e que os luteranos fossem destruídos à força. Os príncipes da Alemanha, unidos não apenas por um objetivo comum, mas também por um perigo comum, aproximaram-se ainda mais. Os principais entre eles eram: João, Eleitor da Saxônia; Filipe, Landgrave de Hesse; o Arquiduque da Prússia; Jorge e Casimiro, Margraves de Brandemburgo; o Eleitor Palatino; os Duques de Luneburgo, Pomerânia e Mecklemburgo; e os Príncipes de Anhalt e Henneberg. Eles se reuniram em conferência e aprovaram a seguinte resolução:

"Que usariam de seus maiores esforços para promover a glória de Deus e para manter uma doutrina em conformidade com Sua palavra, rendendo graças a Ele por ter revivido em seu tempo a verdadeira doutrina da justificação pela fé, que estivera por tanto tempo enterrada sob uma massa de superstição; e que não permitiriam a extinção da verdade que Deus tão recentemente lhes havia revelado."

Esta foi a resolução dos príncipes, e a mais simples e pura que já promulgaram. Não há nada de político, social ou financeiro aqui. A firmeza do partido evangélico, ao se recusar a obedecer ao édito do Imperador, surpreendeu os papistas. Mas uma voz d’Aquele que está acima de todos e sobre todos trouxe as discussões da dieta a um rápido término. Chegaram embaixadores do Rei da Hungria, representando as calamidades que assolavam aquele país e o perigo que ameaçava toda a Europa com o progresso triunfante dos turcos. Isso desviou a atenção de Fernando e o apressou a ir para seus próprios domínios, que ficavam naquela região.

O que as armas vitoriosas de Solimão realizaram no caso de Fernando, a traição de Clemente fez no caso de Carlos. Mal Francisco I escapara de seu cativeiro, quando o papa, temendo o poder de Carlos na Itália, entrou em uma aliança com o Duque de Milão e os venezianos contra Carlos. Ao mesmo tempo, absolveu Francisco de seu juramento e autorizou a violação do Tratado de Madrid. Isso inflamou tanto o ressentimento do Imperador que ele aboliu a autoridade pontifical em toda a Espanha, declarou guerra ao papa na Itália e capturou a cidade por meio de seu general, Carlos de Bourbon, que foi entregue a todos os horrores de um saque. A vida e a propriedade de Roma estavam nas mãos dos furiosos soldados alemães e espanhóis. O próprio papa foi tratado com muito abuso e indignidade. Há poucos trechos na história em que a mão superior de uma Providência retributiva tenha se manifestado de forma tão clara.

Em meio a essas perplexidades, uma resolução foi devidamente aprovada, que se mostrou muito favorável aos Reformadores. Era a seguinte: "Que uma petição fosse apresentada ao Imperador, instando-o a convocar um concílio livre sem demora; e que, enquanto isso, cada um tivesse a liberdade de administrar os assuntos religiosos de seu próprio território da maneira que julgasse adequada, mas com um devido senso de responsabilidade perante Deus e o Imperador."

Os Reformadores, ao retornarem para casa, aproveitaram diligentemente essa oportunidade para fortalecer e expandir a causa da Reforma. Grandes mudanças foram realizadas em suas formas de culto e na regulamentação de seus assuntos religiosos; e muitas superstições inveteradas foram expulsas. Os príncipes e o povo tornaram-se cada vez mais declarados; e a fundação da futura divisão entre Estados Católicos e Protestantes foi lançada na história da Reforma de 1526 a 1529.

Os Chefes Políticos da Reforma

O estado conturbado das nações europeias, as frequentes guerras entre Carlos V e Francisco I, e a atitude ameaçadora dos turcos, ocuparam e perplexaram tanto o Imperador que, durante vários anos, ele não pôde dedicar muita atenção aos assuntos da Alemanha e, especialmente, ao difícil tema da nova heresia. Em tudo isso, a mão do Senhor é mais que evidente. Enquanto Carlos mantinha uma vigilância constante sobre seus assuntos franceses, espanhóis e italianos, Lutero e seus associados, por meio de seus escritos, palestras e advertências, disseminavam a verdade e aprofundavam seu alcance nos corações do povo comum; e os chefes políticos, ou príncipes evangélicos, estavam se aproximando cada vez mais para a defesa de sua fé e sua liberdade política.

O pérfido papa, Clemente VI, e seu habilidoso núncio, Campeggio, estavam determinados a fazer valer o édito de Worms e a completa extirpação da heresia luterana. Mas isso não poderia ser feito sem a cooperação de soberanos poderosos. Carlos tinha sido lento em obedecer às ordens papais. Mas uma variedade de circunstâncias parecia se combinar nesse momento para favorecer a política do Vaticano e ameaçar extinguir a nascente Reforma. Mas Deus está acima de tudo. "Os reis da terra se levantam e os governos consultam juntamente contra o Senhor e contra o seu ungido, dizendo: Rompamos as suas ataduras, e sacudamos de nós as suas cordas. Aquele que habita nos céus se rirá; o Senhor zombará deles" (Salmo 2:2-4). A espada do Imperador, que estava afiada para o massacre dos reformadores, foi desviada, pela traição do papa, contra a própria Roma. Assim aconteceu:

Na batalha de Pavia, em 1526, Francisco I foi vencido por Carlos V e feito prisioneiro. Como o rei capturado da França não podia mais ser útil ao papa, ele imediatamente transferiu sua amizade para seu conquistador. Foi formada uma aliança com o Imperador, o Rei da Inglaterra e o Arquiduque Fernando. O principal artigo deste tratado foi: "Que todas as partes deveriam unir suas forças e marchar armadas contra os perturbadores da religião católica e os insultadores do papa, e vingar toda afronta cometida contra a Sé de Roma." Pelo artifício de Satanás, o mesmo espírito prevaleceu em outras negociações das grandes potências naquele mesmo momento. O tratado de Madrid, que restaurou a liberdade de Francisco, previa que ele se juntasse à aliança. Os três príncipes mais poderosos da Europa estavam agora em associação com o papa com o propósito expresso de executar os decretos de Worms e para a exterminação, por fogo e espada, da confederação luterana.

A Questão dos Sacramentos

No mesmo ano em que os anabatistas surgiram (1524), uma longa e perniciosa controvérsia se levantou entre aqueles que se afastaram da comunhão romana, a respeito da maneira como o corpo e o sangue de Cristo estão presentes na santa ceia. Lutero e seus seguidores, ao mesmo tempo em que repudiavam o erro papal da transubstanciação — a ideia de que o pão e o vinho, após a consagração, deixavam de existir como tais, sendo transformados no corpo e no sangue de Cristo — ainda sustentavam que os participantes da santa ceia realmente comungavam do corpo e do sangue de Cristo, junto com o pão e o vinho. Essa doutrina deu origem ao termo consubstanciação. Ulrico Zuínglio, o reformador suíço, e seus seguidores eram muito mais simples, estando mais plenamente libertos das tradições de Roma. Eles afirmavam que o corpo e o sangue do Senhor não estão presentes na santa ceia, mas que o pão e o vinho são meramente símbolos ou emblemas que devem levar as pessoas a lembrar da morte de Cristo e das bênçãos dela decorrentes.

Como quase todos os teólogos suíços, e não poucos na Alta Alemanha, seguiram o ensinamento de Zuínglio, e Lutero e seus amigos defendiam vigorosamente sua própria doutrina, uma grande desunião foi criada entre os verdadeiros amigos da Reforma, algo que foi astutamente fomentado pelos papistas. Mas falaremos mais sobre isso depois, se for da vontade do Senhor. Agora voltamos nossa atenção para os líderes políticos da Reforma.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Os Anabatistas

Após a morte de Müntzer e a destruição ou dispersão dos camponeses, surgiu outra seita, comumente chamada de Anabatistas, porque imergiam todos os seus convertidos, mesmo após já terem sido batizados. Esta seita causou grande inquietação e perplexidade aos Reformadores. O que os gnósticos foram para os Pais da Igreja, o que os maniqueístas foram para os católicos, os Anabatistas foram para os Reformadores. Eram puramente fanáticos. "Os líderes reivindicavam o dom da inspiração imediata, o privilégio de uma comunicação direta e frequente com a Divindade; e seus seguidores iludidos acreditavam neles. Tinham visões e revelações do passado e do futuro; seus números aumentavam rapidamente, e seguiam por toda parte na decorrer do progresso da Reforma." Por toda parte, o grito desses entusiastas era: "Sem tributo, sem dízimos, todas as coisas em comum, sem magistrados, o reino de Cristo está próximo, o batismo de crianças é uma invenção do diabo." Eles testavam severamente o espírito de Lutero, pois se apresentavam como os verdadeiros e completos Reformadores. Ele observa sobre eles: "Satanás está enfurecido; os novos sectários chamados de Anabatistas aumentam em número e exibem grandes aparências externas de rigor de vida, além de grande coragem na morte, seja por fogo ou por água."

No decorrer de dois anos, esses fanáticos se espalharam em número considerável pela Silésia, Baviera, Suábia e Suíça. Mas, como alguns de seus princípios tendiam a subverter a ordem social, foram emitidos decretos políticos contra eles. A perseguição começou; e como tanto os Reformadores saxões quanto os suíços se opunham a eles, foram por toda parte castigados pelo poder civil com as maiores severidades. No entanto, suportaram seus sofrimentos com uma fortaleza inabalável. Nem espada, nem fogo, nem forca os moviam à retratação ou a demonstrar medo. Com a captura e execução de seus líderes em Münster, em 1536, a seita parece ter sido suprimida.

Eventos Adversos à Reforma

Enquanto a Reforma, por meio de Lutero, ganhava força e se espalhava rapidamente por toda a Europa, surgiram diversos males que retardaram seu progresso e mancharam seu caráter.

No outono de 1524, os camponeses alemães, há muito oprimidos pelo sistema exaustivo e devorador do papado, se rebelaram contra seus tiranos eclesiásticos. Além da pompa e do luxo do alto clero, era necessário sustentar todo o enxame de clérigos inferiores. Mas isso não era tudo; novas ordens surgiam continuamente, e os antigos mendicantes se espalhavam como gafanhotos por toda a superfície do país, devorando impunemente os recursos do povo. Havia, há muito tempo, murmúrios profundos e surtos de revolta parcial, mas a excitação universal do momento parecia dar o sinal para uma insurreição geral. Quase todas as províncias da Alta Alemanha estavam em estado de insurreição. Como um tornado repentino, eles atacaram as casas religiosas, saquearam mosteiros, demoliram imagens e cometeram outros excessos semelhantes. Como era costume na época, os nobres "espirituais" e os frades vorazes foram os que mais provocaram a revolta, e, por isso, foram os primeiros contra quem se voltou o torrente da indignação popular.

A maior parte dessa turba furiosa consistia em camponeses, e, portanto, a calamidade foi chamada de guerra dos camponeses. A sedição, em seu início, era totalmente de natureza civil, pois esses pobres camponeses desejavam apenas ser aliviados de parte de seus fardos e desfrutar de maior liberdade. Mas alguns fanáticos perniciosos se uniram a eles e transformaram a revolta em uma guerra religiosa e santa. A tempestade rugiu violentamente por algum tempo, mas, como de costume, terminou na derrota e no massacre dos insurgentes. Na infeliz batalha dos camponeses com o exército dos príncipes alemães, em Mulhausen, 1525, Thomas Müntzer, seu principal líder, foi capturado e executado publicamente.

Os papistas e os inimigos da Reforma tentaram associar esses tumultos selvagens aos princípios de Lutero, mas sem qualquer fundamento. Eles não tinham ligação com seus seguidores e não foram diretamente ocasionados por seus escritos.

As "Cem Queixas"

O partido papal se levantou em uníssono, clamando por vingança contra Lutero; mas a maioria dos príncipes seculares julgou que havia chegado o momento de se libertarem do fardo e da servidão de Roma, sob a qual haviam gemido por tanto tempo, e contra a qual tantas vezes se queixaram, mas sem sucesso. Assim foi que, enquanto defendiam as doutrinas da Reforma, prepararam o memorial das "Cem Queixas", tão célebre nos anais da Alemanha.

O contraste entre os elementos seculares e espirituais tornou-se então evidente no grande movimento da Reforma, embora ambos agissem juntos para a humilhação e queda do opressor universal. Já não se tratava do monge solitário e desamparado enfrentando, no poder de Deus e de Sua verdade, o Golias do papado, ou das pacíficas vitórias de Worms, mas sim de contendas políticas iradas e empreendimentos militares. A luz e a verdade de Deus, em conexão com a Reforma, parecem ter sido interrompidas neste período de sua história. Falhamos em perceber qualquer avanço na compreensão da verdade pelos Reformadores a partir do momento em que os príncipes começaram a expandi-la pela espada. Embora Lutero fosse um homem de fé genuína, não conseguiu perceber os efeitos da cooperação dos príncipes em prol de seus próprios interesses egoístas. Isso, porém, causou uma devastação espiritual nos resultados e triunfos da fé.

Não é necessário enumerar as "Queixas" aqui; elas eram principalmente de caráter eclesiástico, e tais que todas as outras nações da cristandade também sofriam. Tributação opressiva, cobranças perpétuas de dízimos sob falsos pretextos, a intrusão de cardeais nos melhores benefícios, a ignorância e total incapacidade dos pastores residentes, a perniciosa abundância de festivais, a profusão de absolvições e indulgências, as extorsões do clero para a administração dos sacramentos; de fato, a venalidade universal das coisas sagradas e a imoralidade generalizada da ordem espiritual. "Mas, embora o objetivo dos príncipes" diz Waddington, "fosse apenas reformar os aspectos externos da igreja, enquanto o de Lutero era regenerar a religião a qualquer custo para a igreja, ainda assim, a diversidade de suas visões pode não ter sido perceptível a ambos naquele momento, devido ao ardor de um ódio comum e, até certo ponto, uma causa comum."* No entanto, podemos acrescentar, os resultados foram desastrosos para o progresso da luz e da verdade.

{*Dean Waddington, vol. 2, pp. 43-45.}

As Igrejas Luteranas

Pouco depois do retorno de Lutero de Wartburg, os Estados do império se reuniram na Dieta de Nuremberg. Os bispos, que constituíam uma parte numerosa da assembleia, clamaram veementemente pela execução da sentença que havia sido proferida contra o grande herege. No entanto, após algumas discussões e sem chegarem a um acordo, a dieta foi adiada para o outono seguinte.

Enquanto isso, o Reformador, em aberta desobediência à excomunhão papal e ao édito imperial, continuava firme em seu próprio trabalho, pregando e escrevendo, enquanto Melâncton se dedicava à teologia. Pode-se dizer com justiça que, neste período, "a palavra do Senhor crescia poderosamente e prevalecia". Monges deixavam seus mosteiros e se tornavam instrumentos ativos na propagação do evangelho; e Lutero menciona, em uma carta a Spalatin, a fuga de nove freiras de seus conventos, entre as quais cita Catarina von Bora, que mais tarde se tornaria sua esposa. Novos serviços de culto estavam sendo gradualmente introduzidos nas que agora eram chamadas de igrejas luteranas, mas com grande delicadeza e cuidado. Como homem sábio, Lutero exerceu muita paciência com aqueles que estavam apenas começando a se libertar do velho sistema para abraçar o novo. Após sua nobre posição em Worms, ele aparece muito pouco no que podemos chamar de a dianteira da Reforma. Lá, ele testemunhou por Deus e por Sua verdade como poucos homens já fizeram. Há uma grandeza e uma sublimidade moral em sua posição naquela ocasião que se destacam em sua história. A verdadeira glória moral da Reforma começa a declinar a partir daquele momento. O elemento político entra em cena, e logo predomina. A ação agressiva externa e a proteção das igrejas reformadas caem nas mãos dos príncipes seculares. Esse foi o fracasso, o triste fracasso, o pecado original dos Reformadores. Mas veremos isso mais plenamente quando examinarmos a epístola a Sardes.

A atenção do novo papa, Adriano VI, voltou-se para a questão de Lutero e para a restauração da paz na igreja. Ele professava lamentar os grandes abusos da Sé papal sob seu predecessor e decidiu adotar uma linha de política diferente. Em 25 de novembro de 1522, ele dirigiu um "Resumo" à dieta re-reunida em Nuremberg. Ele deplorava os estragos na igreja causados pela perversidade de um herege, que nem a admoestação paternal de Leão nem sua condenação, confirmada pelo édito de Worms, haviam sido capazes de silenciar. Ele implorava aos soberanos que recorressem à espada, lembrava-lhes como Deus havia punido Datã e Abirão por sua resistência ao sumo sacerdote, e lhes apontava o nobre exemplo de seus piedosos antecessores, que, com um ato de perfeita justiça, haviam livrado o mundo dos hereges Hus e Jerônimo, que naquele momento ressurgiam em Lutero.

A Reforma e Henrique VIII

A rápida disseminação do Novo Testamento de Lutero e o imenso impacto que ele causou nos lares das pessoas despertaram as mais profundas apreensões entre o partido papal. Os poderes seculares, influenciados pelos eclesiásticos, proibiram, sob as penas mais severas, a circulação do livro condenado. Um dos maiores reis da cristandade então se levanta contra o audacioso monge de Wittemberg. O valente Henrique VIII da Inglaterra, que havia sido destinado por seu pai para a igreja, achou que o momento era oportuno para mostrar seu talento, e escreveu um livro sobre os sete sacramentos, em resposta ao tratado de Lutero sobre a "Cativeiro Babilônico". Nenhuma das obras do Reformador causou tanta indignação entre os papistas quanto o seu "Cativeiro Babilônico". Devemos nos surpreender, então, que tal defensor tenha sido lisonjeado e acariciado pelo papa, e agraciado com o título de "Defensor da Fé", que ainda hoje é um dos títulos da coroa inglesa? Em resposta ao seu rival da realeza, Lutero não foi notável por sua moderação, mas, traído por seu temperamento irritável, utilizou uma linguagem abusiva que teria sido melhor suprimida.

No final do ano de 1521, uma mudança importante ocorreu na política do Vaticano. O Papa Leão X morreu. Sim, o brilhante mas notoriamente imoral Leão morreu — morreu, não mais para julgar, mas para ser julgado; não mais para lançar seus trovões contra os hereges, mas para ele mesmo ser medido pelo padrão da verdade eterna, e pesado nas balanças do santuário. Ele morreu denunciando a doutrina da justificação pela fé como destrutiva de todas as obrigações morais, enquanto ele e seus cardeais dissolutos dissipavam seu tempo e saúde em prazeres pródigos e luxuriosos, e em promover espetáculos caros e licenciosos no teatro. Ele foi sucedido por Adriano VI, um homem mais rígido em seus costumes do que Leão, mas não menos oposto à verdade do evangelho.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O Progresso Geral da Reforma

O poderoso movimento que agora vivenciamos não conhecia limites nem fim. O despertar no império alemão, o reavivamento do evangelho e o crescente interesse pela reforma haviam afetado profundamente o estado geral da Europa. Suécia, Dinamarca, Holanda, Suíça, Bélgica, Itália, Espanha, França e as Ilhas Britânicas foram atraídas pelo fluxo da grande revolução religiosa. Logo, deixou de ser uma questão meramente local ou até mesmo nacional: tornou-se o grande e esmagador tema da época. Cada governo descobriu que a reforma fazia parte de seu esquema e política, quer quisesse, quer não, e que as constituições dos mais antigos reinos estavam sendo abaladas por essa nova disputa sobre religião.

Homens iam e vinham, levando sempre novas notícias das coisas maravilhosas que estavam acontecendo. Embarcações chegavam a todos os portos, descarregando secretamente pacotes de novas traduções, panfletos e sermões dos reformadores. O interesse tornou-se universal. Mas não era de se esperar que a velha igreja, respaldada pelo poder civil, permitisse que as novas opiniões crescessem em seu próprio seio sem uma luta a fim de esmagá-las. No entanto, homens de mente fervorosa, vendo que a reforma era necessária e incapazes de sufocar suas convicções, pregavam a Cristo corajosamente. Alguns corações verdadeiros e honestos foram encontrados, sob a capa monástica; homens que ousaram pregar a Cristo como o fim da lei para a justiça de todo aquele que crê — que Deus somente podia perdoar pecados através da fé no precioso sangue de Cristo. O clero, percebendo que tais doutrinas eram destrutivas de seu poder, de seus privilégios, de sua própria existência, levantou o grito de "Heresia! Heresia!" As excomunhões eclesiásticas foram seguidas por éditos reais; a perseguição foi travada contra os pregadores, as apreensões tornaram-se frequentes, a tortura foi aplicada, as chamas foram acesas, e a partir deste momento começam as emocionantes histórias dos mártires e do martírio protestante. Por um tempo, o fanatismo triunfa e os piedosos sofrem, mas o poder do Senhor e Sua verdade prevalecem poderosamente.

Mas, por ora, não nos aventuremos nessas águas turbulentas. Retornemos por um breve período à Alemanha e testemunhemos a ascensão do protestantismo, que deu uma nova direção à história espiritual da humanidade.

Lutero e a Bíblia Alemã

Quando a paz foi estabelecida, ele voltou-se para seu objeto favorito — a tradução do Novo Testamento, e, após uma revisão mais crítica feita por Melâncton, ele a publicou em setembro de 1522. A aparição de tal obra em um momento em que as mentes de todos estavam em um estado de grande excitação, produziu, como era de se esperar, os efeitos mais extraordinários. Como se carregada pelas asas do vento, ela se espalhou de um extremo ao outro da Alemanha e para muitos outros países. "Foi escrita," segundo D'Aubigné, "no próprio tom das Escrituras Sagradas, em uma língua ainda em seu vigor juvenil, e que pela primeira vez revelou suas grandes belezas, interessando, encantando e comovendo tanto as classes mais baixas quanto as mais altas." Mesmo o historiador papal, Maimbourg, confessa que "a tradução de Lutero era notavelmente elegante, e em geral tão bem aprovada que foi lida por quase todos em toda a Alemanha. Mulheres da mais alta distinção a estudaram com a mais industriosa e perseverante atenção, e defenderam obstinadamente as doutrinas do Reformador contra bispos, monges e doutores católicos." Era um livro nacional. Era o livro do povo — o livro de Deus. Esta obra serviu mais do que todos os escritos de Lutero para a disseminação e consolidação das doutrinas reformadas. A Reforma estava, então, assentada em seu próprio e adequado fundamento — a Palavra de Deus que vive e permanece para sempre.

As seguintes estatísticas mostram o extraordinário sucesso da obra: "Uma segunda edição apareceu no mês de dezembro; e até 1533, dezessete edições foram impressas em Wittemberg, treze em Augsburgo, doze em Basileia, uma em Erfurt, uma em Grimma, uma em Leipzig e treze em Estrasburgo."

Enquanto isso, Lutero prosseguia na realização de sua grande obra — a tradução do Antigo Testamento. Com a assistência de Melâncton e outros amigos, a obra foi publicada em partes à medida que eram concluídas, sendo totalmente finalizada no ano de 1530. A grande obra de Lutero estava então concluída. Até então ele havia falado, mas agora o próprio Deus falaria aos corações e consciências dos homens. Um pensamento vasto, maravilhoso, poderoso! Os testemunhos divinos da verdade apresentados a uma grande nação, que até então "perecia por falta de conhecimento." A palavra divina não mais seria ocultada sob uma língua desconhecida; o caminho da paz não mais seria obscurecido pelas tradições dos homens; e o testemunho do próprio Deus acerca de Cristo e da salvação seria resgatado das superstições do sistema romano.

O Retorno de Lutero a Wittemberg

Durante sua ausência no Wartburg, não houve ninguém entre seus seguidores que estivesse devidamente qualificado para sustentar as doutrinas reformadas ou dirigir a comunidade reformada. O gentil e pacífico estudioso Filipe Melâncton tinha uma mente delicada e frutífera, bem adequada para enriquecer os outros, mas inadequada para o tumulto e a tempestade das ideias republicanas combinadas com o fanatismo religioso. Andreas Karlstadt, um doutor de Wittemberg, amigo antigo de Lutero e de modo algum ignorante da verdade, foi levado a liderar um grupo de pessoas fanáticas que imaginavam estar em comunicação direta com a divindade e arrogavam para si os títulos de profetas e apóstolos. Seus números aumentaram; jovens da universidade se juntaram a eles. Eles denunciavam a tentativa de Reforma de Lutero como insuficientemente ampla e profunda. Em seu entusiasmo extravagante, proclamavam "Ai! Ai! Ai!" à falsa igreja e aos bispos corruptos. Entraram nas igrejas, quebraram e queimaram imagens, e partiram para tantos outros excessos que puseram em perigo o alvorecer da liberdade e a paz da sociedade. As autoridades civis intervieram, e vários dos zelotes foram lançados na prisão.

O clamor por Lutero era universal. Ele o ouviu em Wartburg. Sem o consentimento do Eleitor, e com grande risco para sua vida, ele apressou-se ao cenário de confusão. Entre os nomes que ficaram registrados na história por esta loucura, os mais conhecidos são Nicholas Stork, Mark Stübner, Martin Cellary, e Thomas Müntzer. Este último — Müntzer — aparece novamente em 1525 à frente de uma rebelião de camponeses, conhecida como a guerra dos camponeses.

Lutero retornou de seu "Patmos" para Wittemberg no mês de março de 1522. Foi recebido por doutores, estudantes e cidadãos com sinceras demonstrações de alegria e afeição. Seu triunfo foi fácil, mas todo baseado em poder moral. "Pregarei," ele disse, "falarei, escreverei; mas não forçarei ninguém, pois a fé é um ato voluntário. Levantei-me contra o papa, as indulgências e os papistas, mas sem violência ou tumulto. Propus a palavra de Deus, preguei e escrevi — isso foi tudo que fiz." Ele subiu ao púlpito, e sua poderosa voz ressoou mais uma vez entre as multidões agitadas. Nos sete dias seguintes, ele proferiu sete sermões. "Eles foram seguidos pelo mais completo sucesso", diz o historiador. "Todo sintoma de desordem desapareceu imediatamente; a cidade foi restaurada à sua tranquilidade anterior, a universidade aos seus estudos legítimos e princípios racionais; e Carlstadt, o infeliz autor da confusão, esmagado pela predominância de um gênio superior, retirou-se pouco tempo depois do campo de sua desgraça." Lutero era fortemente contrário à violência. Seu princípio fundamental era: antes de podermos remover vantajosamente os objetos de idolatria, como as imagens, você deve primeiro remover os erros das mentes dos adoradores. E ele sinceramente acreditava que isso só poderia ser feito pela Palavra de Deus, que ele ansiava apresentar à sua nação em sua própria língua.

Reflexões sobre o Cativeiro de Lutero

Aqui podemos fazer uma pausa e aprender uma lição útil. Como uma águia acorrentada, Lutero passa o dia todo no meio das sombrias florestas da Turíngia, meditando sombriamente sobre o estado degradado da igreja e do clero, e agitado violentamente quanto aos resultados da dieta de Worms, ao bem-estar de seus amigos e ao progresso da verdade. A corrente o fere; ele não a aceitou do Senhor; sua saúde sofre; ele passa noites inteiras sem dormir; as tendências melancólicas de sua mente aumentam, e ele imagina que é incessantemente atacado por Satanás. "Acredite em mim," escreve ele, "fui entregue a mil demônios de Satanás nesta solidão; e é muito mais fácil lutar contra demônios encarnados—ou seja, homens—do que contra espíritos malignos nos lugares elevados." Ele anseia por liberdade, e por estar na linha de frente da batalha; e, temendo ser acusado de abandonar o campo, exclamou: "Eu preferiria ser esticado sobre brasas do que ficar aqui meio morto." E toda a humanidade poderia dizer: "Uma crise chegou; os esforços ativos, os apelos irresistíveis de Lutero são mais necessários agora do que nunca; pois se o líder deste grande movimento for forçado a se retirar em um momento como este, a causa da verdade acabará por sofrer, e seus inimigos triunfarão." Mas, apesar de todo o raciocínio humano, o Mestre diz: "Não. Meus caminhos não são os seus caminhos, nem meus pensamentos os seus pensamentos. O cativeiro do Meu servo será a liberdade de milhões." E assim foi. Nenhum evento em sua história contribuiu tanto para enriquecer sua mente ou amadurecer suas opiniões sobre a natureza e extensão da reforma que a situação ao seu redor exigia quanto os livros que ele escreveu e as Escrituras que ele traduziu. Que possamos aprender a nos inclinar, bem satisfeitos, quando as ordens do Mestre são para ficarmos quietos, assim como quando Ele diz: Vá e sirva no campo para o qual Eu te chamei, e para o qual Eu te preparei. Moisés em Midiã, Paulo na Arábia e João em Patmos são lições divinas para todos os servos do Senhor.

Lutero em Wartburg

Capítulo 35 - Lutero: A Reforma na Alemanha (1521-1529 d.C.)

A súbita e misteriosa desaparição de Lutero causou grande ansiedade entre seus amigos e triunfo entre seus inimigos. Os rumores mais extraordinários circulavam por todas as províncias, de modo que o nome, o caráter e as obras de Lutero eram agora discutidos com mais fervor do que nunca. No entanto, como o sigilo era essencial para sua segurança, tanto amigos quanto inimigos permaneceram por meses sem saber o local de seu esconderijo.

O castelo de Wartburg, o lugar de seu cativeiro, que ele chamava de seu "Patmos", havia sido a antiga e inexpugnável residência dos landgraves da Turíngia, e, de sua localização montanhosa, dominava a vizinhança de Eisenach, a terra natal de sua mãe e o cenário de sua própria educação. Para não levantar suspeitas quanto à sua verdadeira identidade, ele foi obrigado a abandonar o hábito monástico, deixar a barba e o cabelo crescerem, e adotar as vestes e o título de um nobre rural—o Escudeiro Jorge. Para o monge rigoroso, o reformador ativo, o audacioso antagonista de Roma, a mudança foi extrema. Frequentemente, ele sofria graves crises de enfermidade física e angústia mental. Em algumas de suas cartas, datadas como provenientes da Ilha de Patmos, ele se queixava amargamente dos hábitos indolentes que estava adquirindo e das consequências de sua vida confortável. Mas, embora estivesse afastado de suas atividades públicas na universidade e no púlpito, ele se manteve diligente na escrita. Seus inimigos o consideravam excessivamente ativo em seu retiro. Trabalhou com incansável dedicação e publicou muitos novos livros. Foi nesse retiro que ele iniciou a maior e mais útil de todas as suas obras— a tradução da Bíblia para a língua alemã. Durante sua solidão, nos meses de verão de 1521, ele acabou por concluir o Novo Testamento; além disso, dedicou-se intensamente a aprimorar seus conhecimentos das línguas grega e hebraica, com o propósito de tornar sua versão da Bíblia ainda mais completa.

Postagens populares