domingo, 10 de novembro de 2019

A Inglaterra Rendida a Roma

Como se não fosse do interesse ou da intenção de "Sua Santidade" permitir que os assuntos fossem levados a extremos, o vigilante papa viu que tinha chegado sua hora de interferir. Dois legados, Pandolfo e Durando, foram enviados com as exigências finais de Inocêncio a João. Eles o asseguraram de que o rei da França estava pronto para invadir a Inglaterra com um grande exército e uma frota poderosa, e que ele viria acompanhado de arcebispos, bispos e clérigos a quem João havia banido; que eles transfeririam sua lealdade a seu rival Filipe, e que colocariam a coroa em sua cabeça. Com muitas declarações como essas, eles aterrorizaram o rei, que perdeu todas as suas posses pessoais, e lançou-se a si mesmo e ao seu reino nas mãos dos legados, sem reservas. Com uma mesquinhez de espírito e uma submissão abjeta que não conhecia limites, ele colocou sua coroa aos pés dos arrogantes legados, renunciou a Inglaterra e a Irlanda às mãos do papa, jurou homenagem a ele como seu suserano, e fez um juramento de lealdade aos seus sucessores. Os termos desse notável juramento são longos e prolixos demais, mas a substância, a essência deles, é apresentado pela Enciclopédia Britânica como segue:

"Eu, João, pela graça de Deus Rei da Inglaterra e Senhor da Irlanda, de modo a expiar meus pecados, de minha própria livre vontade e pelo conselho de meus barões, concedo à Igreja de Roma, ao Papa Inocêncio e a seus sucessores, o reino da Inglaterra e todas as demais prerrogativas de minha coroa. Irei doravante considerar-me como vassalo do papa. Serei fiel a Deus, à Igreja de Roma, ao papa, meu mestre, e aos seus sucessores legitimamente eleitos. Prometo pagar-lhe um tributo de 1000 merks*, a saber, 700 pelo reino da Inglaterra e 300 pelo reino da Irlanda." Essa memorável submissão ocorreu no dia 15 de maio de 1213, no décimo quarto ano de seu reinado, na casa dos Templários, não muito longe de Dover.

{*Merk é uma antiga moeda de prata escocesa, que valeria, nos dias de hoje, cerca de uma libra esterlina. Esse montante deveria ser pago anualmente, além do dinheiro devido à cadeira de Pedro.}

Esse juramento foi feito pelo rei ajoelhado diante de todo o povo e com suas mãos levantadas entre aqueles legados. As testemunhas que atestaram o juramento foram: um arcebispo, um bispo, nove condes e quatro barões. Tendo então concordado com a posse de Langton como primaz da Inglaterra, ele recebeu de volta a coroa que deveria ter perdido. O cauteloso e político Pandolfo, tendo recebido a lealdade do rei da Inglaterra e oitenta mil libras esterlinas como compensação pelos bispos exilados, rapidamente juntou as escrituras e os sacos de dinheiro e apressou-se a reunir os clérigos banidos na Normandia para dividir o dinheiro. Em seguida, apressou-se ao acampamento do rei Filipe Augusto e, encontrando o exército no ponto de embarque para a Inglaterra, friamente informou o rei "que não havia então mais necessidade de seus serviços; e que, na verdade, qualquer tentativa de invadir o reino, ou de perturbar o rei da Inglaterra, seria altamente ofensivo para a santa Sé, em virtude de que esse reino era agora parte e parcela do patrimônio da igreja: era, portanto, seu dever dispensar seu exército, e ele próprio retornar para casa em paz". Quando Filipe descobriu que havia sido tão estupidamente enganado, rompeu em uma tempestade de injúrias indignadas contra o papa. "Ele tinha sido arrastado para uma enorme despesa; tinha chamado para a guerra toda a força de seus domínios, sob a promessa ilusória de um reino e da remissão de seus pecados; tudo isso ele tinha feito em súplica ardente para com o papa. E então toda a cavalaria da França, em armas ao redor de seu soberano, deveria ser dispensada como servos contratados quando não havia mais uso para seu serviço?" Porém, a fúria do rei foi respondida com uma fria repetição da ordem: "Desista das hostilidades contra o vassalo da Santa Sé."*

{*Cathedra Petri, livro 13, p. 588.}

O desapontamento e mortificação de Filipe foram grandes; mas, não se atrevendo a ofender o papa e não estando disposto a se desfazer de seu exército sem ao menos tentar alguma empreitada, ele desceu a Flandres (região flamenga). Fernando, o conde, embora fosse um aliado da França, tinha entrado em uma liga secreta anti-francesa com João, o que deu  a Filipe um justo pretexto para voltar suas armas contra esse vassalo revoltado. Porém, as frotas da Inglaterra se uniram aos flamengos, e assim a tentativa de conquistar Flandres terminou em uma derrota vergonhosa. Os ingleses capturaram trezentos navios e destruíram cerca de cem outros: enquanto Filipe, vendo ser impossível impedir que o resto caísse nas mãos do inimigo, incendiou-os ele mesmo, e então abandonou a empreitada. Tal foi a pesada perda e desconforto de Filipe no decorrer da profunda trama arquitetada por Inocêncio.

A Coroa da Inglaterra Oferecida à França

Tendo sido a sentença papal de deposição contra o rei da Inglaterra pública e solenemente promulgada, Filipe da França foi delegado para executar o decreto. Os legados colocaram em suas mãos uma comissão formal o direcionando, pela autoridade apostólica, a invadir a Inglaterra, depôr o rei e tomar sua coroa. O historiador observa que os legados e prelados (clérigos) fingiram estar agindo sob o maior dos zelos e seriedade ao tratarem de todo o assunto, ao passo que não era nada além de mero artifício. Nada estava mais longe da mente de Inocêncio do que a união das duas coroas em uma só cabeça. Isso teria fortalecido a França, não a Sé Romana. Filipe não havia se esquecido da insolência do papa ao interditar seu reino e excomungá-lo; mas seu ódio por João, seu amor por empreendimentos e a traição do papa o cegaram completamente. Ele confiou no papa, mas cometeu um erro ruinoso. Nem um momento, no entanto, foi perdido por Filipe ao reunir uma frota e um exército numeroso para a invasão da Inglaterra. 

O papa, ao mesmo tempo, anunciou uma cruzada sobre toda a Cristandade contra o ímpio rei João, prometendo a todos que participassem nessa guerra santa a remissão dos pecados e os privilégios dos cruzados. Mas o rei caído não queria ceder nem com vigor nem com sutileza. Ele reuniu uma grande frota em Portomua e um exército em Barham Downs, próximo à Cantuária, assumindo uma posição agressiva: mas logo descobriu que em seu grande exército não havia muitos em quem se podia confiar. Enlouquecido, ele ameaçou se tornar muçulmano e buscou uma aliança com o califa; mas nesse momento, o espírito do rei impaciente sofreu uma repentina revolução. Da altura de sua raiva desafiadora, ele caiu até as mais baixas profundezas da prostração e do medo.

A Inglaterra sob o Banimento Papal

Em um momento, todos os ofícios divinos por todo o reino cessaram, exceto o rito do batismo e a extrema unção. "Desde Berwick até o Canal Britânico", diz um relato sobre essa terrível maldição, "desde Land's End até Dover, as igrejas foram fechadas, os sinos silenciados; os único clérigos que se viam por aí, silenciosamente, eram aqueles que deviam batizar recém-nascidos, ou que ouviam a confissão dos moribundos. Os mortos eram lançados fora das cidades, enterrados como cães em qualquer lugar não consagrado, sem orações, sem o tocar dos sinos, sem o rito funeral. Apenas podem julgar o efeito do interdito papal aqueles que consideram quão completamente toda a vida de todas as classes de pessoas era afetada pelos rituais e ordenanças diárias da igreja. Cada ato importante era feito sob o conselho dos padres e monges. Os festivais da igreja eram os únicos feriados, as procissões da igreja os únicos espetáculos, as cerimônias da igreja o único entretenimento. Não ouvir qualquer oração ou canto, supôr que o mundo estava rendido ao poder irrestrito do diabo e de seus espíritos malignos, sem santo algum para interceder, sem nenhum sacrifício para aplacar a ira de Deus; quando nenhuma imagem sequer era exposta à vista, nenhuma cruz havia que não estivesse velada: a relação entre o homem e Deus totalmente quebrada; almas deixadas a perecer, ou no máximo relutantemente permitidas à absolvição no momento da morte." E, de outras partes, aprendemos que, de modo a inspirar a mais profunda melancolia e fanatismo, não se permitia que se cortassem os cabelos ou as barbas; o consumo da carne era proibido, e até mesmo a saudação comum era proibida.

Tal foi o estado da Inglaterra por pelo menos quatro anos. A miséria pública foi grande e universal; mas nem a miséria dos indivíduos nem as privações religiosas dos cristãos moveram o coração obturado do rei nem do pontífice. O triunfo do pastor de Roma sobre um grande reino era muito mais desejado do que o bem-estar do rebanho. Os clérigos que publicaram o edito, juntamente com outros bispos ricos, fugiram do reino. "Lá viviam eles", diz o historiador, "em abundância e luxúria, em vez de permanecerem em defesa pela casa do Senhor, abandonando seus rebanhos para o lobo voraz". O tirano vingativo João parecia desafiar e tratar com insolente desdém os terríveis efeitos do edito sobre os seus sofredores súditos. Ele se regozijava em sua vingança contra os bispos e padres que obedeciam ao papa. Ele confiscou a propriedade do clero superior e dos monastérios por toda a Inglaterra e obrigou os judeus a cederem suas riquezas por meio de prisão e tortura. Esse estado de coisas durou quase dois anos quando uma nova bula pontifícia* foi emitida.

{* A bula pontifícia é um alvará passado pelo Papa ou Pontífice católico, com força de lei eclesiástica, pelo qual se concedem graças e indulgências aos que praticam algum acto meritório. O termo bula refere-se não ao conteúdo e à solenidade de um documento pontifício, como tal, mas à apresentação, à forma externa do documento, a saber, lacrado com pequena bola (em latim, "bulla") de cera ou metal, em geral, chumbo (sub plumbo). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bula_pontif%C3%ADcia}

O astuto papa tinha assistido de perto o efeito do primeiro edito e, vendo que João estava perdendo seus amigos e se tornando mais impopular, publicou a sentença de excomunhão contra o nome e a pessoa do soberano. Ainda assim, os hábitos desprezíveis de João eram tais que, embora desafiasse o papa e a hierarquia, ao mesmo tempo alienava as afeições de todas as classes de pessoas no país. Mais uma vez, o papa viu sua oportunidade, emitindo outra bula ainda mais assustadora. Os súditos de João foram absolvidos de sua lealdade ao rei e ordenou-se que evitassem sua presença. Mas, com aquela indiferença estoica para com o sofrimento humano que ele uniformemente manifestava, determinou que tanto ele próprio quanto a nação deveriam enfrentar completamente a vingança de Roma. Os trovões papais pareciam não causar qualquer efeito sobre o rei insensível e irreligioso, e tivesse ele tratado mais sabiamente seus nobres e seu povo, nem o maior dos papas nem os seus ataques mais pesados surtiriam qualquer efeito sobre o povo da Inglaterra. Mas agressiva avidez, as barbaridades e a conduta ultrajante do rei afastaram de si todas as classes de pessoas. O desafeto para com ele crescia de murmurações a quase revoltas. Inocêncio, observando esse fermento de descontentamento trabalhando tão eficazmente na Inglaterra, preparou-se para lançar sua última e mais perigosa rajada contra o contumaz soberano. "O interdito tinha ferido a terra, a excomunhão tinha profanado a pessoa do rei, restando apenas o ato de deposição do trono de seus pais, que foi então pronunciada: 'Que João, rei da Inglaterra, seja deposto da coroa e dignidade real; que seus súditos sejam absolvidos de seu juramento de lealdade, e estejam livres para transferi-lo a uma pessoa mais digna de preencher o trono vago.'"*

{*Cathedra Petri, de Greenwood, livro 13, p. 582; Latin Christianity, de Milman, vol. 4, p. 90; History of the Church, de  Waddington, vol. 2, p. 167.}

O trono da Inglaterra estava então pública e solenemente declarado vago pelo decreto do papa, e os domínios do rei eram os despojos, por direito, de qualquer que pudesse arrancá-los de suas mãos imorais. Tal era o poder dos papas naqueles dias, e tal o terror de seus trovões. Ele golpeava grandes nações com seus anátemas, e elas caíam diante dele mirradas e feridas; ele arrancava grandes reis de seus tronos, e os obrigava a se curvarem diante da tempestade de sua ira e a obedecerem humildemente ao mandato de sua vontade. Todos, sem exceção, na Igreja e no Estado, deviam aceitar seus próprios termos de reconciliação, ou morreriam sem salvação e seriam atormentados nas chamas do inferno para sempre. O altivo e esperto Filipe Augusto da França foi domado em poucos meses, enquanto o fraco e desprezível João desconsiderou suas fulminações por anos, apenas para receber, no final, um golpe ainda mais pesado, e acabasse se submetendo a uma profunda humilhação. Veremos agora como isso foi cumprido; e, na trama, o leitor também perceberá a profunda astúcia e sedução do papa. Não teremos dificuldade, ao tratarmos desse assunto, em enxergar nisso as profundezas de Satanás.

domingo, 5 de maio de 2019

João e o Papado

Deixemos agora a história civil, e voltemo-nos mais diretamente à história eclesiástica dos assuntos na Inglaterra nesse interessante momento.

Vimos o papa ignorando as graves imoralidades de João, por conta, supomos, dele ter sido um partidário de Otão e o aliado da Santa Sé, mas João era agora culpado de crimes que sua Santidade não podia ignorar. Suas irregularidades matrimoniais, ainda que criminosas, poderiam ser permitidos passar sem censura; mas a deposição de sés (arcebispos), a imposição de impostos sobre os mosteiros e a interferência na nomeação de um primaz o levaram a uma colisão direta com o papado, e o envolveram numa contenda feroz com seu até então aliado, o papa Inocêncio.

Imediatamente após a morte de Hubert Walter, arcebispo de Cantuária, os monges mais jovens apressadamente elegeram seu vice-prior, Reginaldo, à cadeira vazia. Mas logo percebendo que tinham agido imprudentemente, pediram ao rei para que pudessem realizar uma nova eleição. A escolha de um bispo estava realmente nas mãos do soberano, embora nominalmente estivesse nas mãos do clero. Tal era o sistema anglo-normando. O rei recomendou um de seus principais conselheiros, João de Grey, bispo de Norwich, que foi escolhido, investido com as temporalidades da Sé, e enviado a Roma para confirmação. O papa agora via sua oportunidade, e ansioso por ampliar seu poder na Inglaterra, anulou ambas as eleições, tanto de Reginaldo quanto de João de Grey, e ordenou a eleição de Stephen Langton, um inglês de nascimento, homem erudito e prudente, e de excelente caráter. Não havia pessoa mais adequada que o papa pudesse nomear; mas sua ação desafiava o privilégio reivindicado pelos monges, o direito de sufrágio dos bispos, e o próprio rei. Em vão os representantes de Cantuária e os comissários do rei insistiram na necessidade do consentimento do rei. Inocêncio decidiu em contrário. Ele os constituiu para uma comissão baseada na "autoridade de Deus e da Sé Apostólica". Os monges se encontravam então entre dois tiranos -- o espiritual e o temporal. Doze deles estavam sob juramento ao rei para não elegerem qualquer outro além do bispo de Norwich, mas o papa ordenou que eles elegessem Langton, sob pena de excomunhão e anátema. Intimidados por essa terrível ameaça, a comissão finalmente cedeu ao tirano espiritual e prosseguiu à eleição de Stephen, e em 17 de junho de 1207, o papa o consagrou Arcebispo de Cantuária.

Tal interferência com os direitos da igreja estabelecida e com a prerrogativa da coroa era algo totalmente novo na Inglaterra. Se João tivesse sido um príncipe popular cercado pela força e pela aprovação de seu povo insultado, ele poderia ter rido de desprezo da ousada presunção e ameaças de um padre estrangeiro, mas a insensatez e falta de popularidade do rei deu ao papa a oportunidade que ele desejava. Os monges de Cantuária, em seu retorno de Roma, foram acusados de alta traição, e foram consequentemente expulsos de suas residências, e suas propriedades foram confiscadas. Mas a fúria do rei não conhecia limites; ele despachou uma tropa de cavalos para expulsar os monges para fora do país e, em caso de resistência, matá-los. As ordens foram executadas da forma como foram dadas. Os soldados invadiram o mosteiro com espadas desembainhadas; o prior e os monges foram ordenados a deixar o reino, e ameaçados, se resistissem ou se demorassem, a ver seu mosteiro em chamas, e eles próprios lançados nessas chamas. Muitos deles fugiram e encontraram asilo em Flandres. O rei também se entregou à mais insultante e pungente linguagem para com o pontífice, protestando que nunca aceitaria Stephen Langton como primaz, que ele manteria o direito do bispo de Norwich, e, em caso de recusa do papa, que cortaria todas as comunicações entre seus domínios e Roma. Mas o papa prosseguiu com não menos energia que João, mas com uma dignidade mais calma.

No curso de mais algumas trocas de cartas, o papa discorreu mais ainda sobre a erudição e piedade de Langton, e exortou o rei a se abster de tomar armas contra Deus e Sua igreja; mas, como João não fez nenhuma concessão, Inocêncio ordenou que os bispos de Londres, Worcester e Eli colocassem todo o reino sob um interdito. Quando os bispos entregaram a mensagem, a ira do rei irrompeu em juramentos e blasfêmias selvagens. Ele jurou que, se o papa ou o clero colocassem o reino sob um interdito, ele expulsaria os bispos e os prelados do reino "sem olhos, orelhas ou narizes, para serem os espantalhos de todas as nações". Os prelados se retiraram, e, quando estavam a uma distância conveniente de João, publicaram o interdito. 

Inocêncio e a Inglaterra

Ricardo Coração de Leão foi o grande apoiador de Otão, o candidato papal do império. A Inglaterra, naquele tempo, estava em íntima aliança com a Sé de Roma. Após a morte de Ricardo, seu irmão João, o filho mais novo de Henrique II, foi elevado ao trono. De acordo com as leis atuais de sucessão da Inglaterra, Artur, duque da Bretanha, o filho único e herdeiro de seu irmão mais velho, Godofredo Plantageneta, teria direito ao trono. Mas as coroas naquela época eram tão eletivas quanto hereditárias.

Todo o reinado de João -- 1199-1216 -- é uma história de fraqueza e violência, de impiedade e degradação, de um dos monarcas mais cruéis, sensuais e infiéis que já existiu. Mas a mão do Senhor é muito evidente nos assuntos da Inglaterra naquela época. Nunca um príncipe tão vil usou uma coroa; mesmo assim, Deus, em Sua misericórdia, e em Seu cuidado pela Inglaterra, sobrepujou suas muitas faltas para o benefício da igreja e do povo da Inglaterra. Falamos, é claro, em termos gerais. Mas desde esse reinado pode ser datado o pavor do papado em relação à Inglaterra, e o entusiasmo desse país pela liberdade civil e religiosa. Desastroso até o último grau como foi o reinado de João; humilhante para o rei; ainda assim a voz unida da história afirma que foi então que os fundamentos foram postos do "caráter inglês, das liberdades inglesas, e da grandeza inglesa; e a partir desse reinado, da tentativa de degradar o reino ao nível de um feudo da Sé Romana, podem ser traçados os primeiros sinais dessa independência, dessa aversão às usurpações papais, que levaram eventualmente à Reforma". A mão dominadora de Deus, em Seu cuidado especial pela Inglaterra, foi manifesta em todas as suas revoluções desde então. Mal houve qualquer benefício, nem para a igreja, nem para o Estado da França, da interferência do papa no caso de Filipe, exceto pelo fato de que eles puderam sentir o horror do poder papal. Mas, ali, nenhuma Carta Magna foi assinada, e nenhuma Câmara dos Comuns foi erigida, diferentemente do que ocorreu mais tarde na Inglaterra.

Um dos primeiros e grandes escândalos de João revelam, à mais clara luz, o caráter sem princípios da política de Inocêncio. João tinha sido casado por doze anos com uma das filhas do conde de Gloucester antes de subir ao trono. Depois disso, aspirando uma conexão com a realeza, ele buscou uma dissolução, e assim o obsequioso arcebispo de Bordeaux dissolveu o vínculo matrimonial. De repente, ele ficou encantado com uma senhora que era a noiva prometida do conde de Mark, levou-a e casou-se com ela, enquanto sua própria esposa ainda era viva. Mas o que iria dizer agora o papa sobre o santo sacramento do matrimônio -- ele, cujo horror a tais conexões tinha tão inexoravelmente demonstrado no caso de Filipe e Inês? Poderíamos esperar que rápidos e carregados seus trovões voariam até o rei adúltero; mas não! Nenhuma censura foi pronunciada de Roma, nem contra o rei, nem contra o arcebispo. Ele confirma a dissolução do casamento perante a face de Deus, da igreja, e do mundo. Tal era a flagrante iniquidade da "sua santidade, sua infalibilidade". Mas por que essa demonstração de tal parcialidade para com João? Porque ele foi o apoiador de Otão, e o inimigo da casa da Suábia.

Mas enquanto o papa permanecia quieto, o mundo estava escandalizado. Tal ultraje de um grande vassalo era uma violação da primeira lei do feudalismo. Os barões de Anjou, Touraine, Poitou e Maine estavam ansiosos para vingar a indignidade oferecida a Hugo de la Mark, e desde aquele dia eles se consideraram absolvidos de sua fidelidade a João. Eles apelaram a Filipe, rei da França, por uma reparação. Filipe Augusto sentiu sua força, e convocou o rei inglês para responder, em suas cortes de Paris, pelos erros cometidos contra o conde de Mark. João não apareceu; isso levou a uma guerra ruinosa, e à perda de imensos territórios na França e na Inglaterra. Em poucos meses, Filipe arrancou de João a grande herança de Rollo -- o grande ducado anglo-normando, que nos dias de seu pai Henrique II, equivalia em extensão dos seus territórios, receitas, forças e riquezas a todos os territórios sob os quais o rei da França dominava.*

{*Para detalhes, veja as histórias civis e gerais da igreja, as quais frequentemente citamos no decorrer do texto.}

domingo, 14 de abril de 2019

A Ira do Rei

Filipe Augusto (Filipe II) foi um príncipe orgulhoso, arrogante e cheio de si, não acostumado a suportar silenciosamente uma tão grande interferência. Ele irrompeu em ataques de fúria, e jurou pela espada de Carlos Magno que preferia perder metade de seus domínios do que se separar de Inês de Merânia. Ele ameaçou o clero com medidas extremas se eles ousassem obedecer o papa. Ingeborg foi capturada, arrastada de seu claustro e aprisionada no reforçado castelo de Etampes. Mas a ira do rei não prevaleceria sobre o severo decreto do papa. Os barões, cujo poder ele tinha reduzido, não se preocuparam em apoiá-lo; o povo estava em um estado de piedosa revolta. Eles tinham se reunido ao redor das igrejas, forçavam as portas; eles estavam determinados a não ficarem privados de seus serviços religiosos. O rei ficou alarmado com os motins entre o povo, e prometeu obedecer o papa.

Uma delegação foi enviada a Roma. O rei reclamou dos duros procedimentos do legado, mas declarou-se pronto a cumprir a sentença do papa. "Que sentença?", exclamou severamente sua santidade; "ele conhece nosso decreto; faça-o repudiar sua concubina, receber sua esposa de direito, reinstaurar os bispos a quem expeliu, e que dê-lhes satisfação por suas perdas. Então retiraremos o interdito, receberemos suas garantias, examinaremos o alegado relacionamento, e pronunciaremos nosso decreto". A resposta veio ao coração de Inês, e levou o rei à loucura. "Vou me tornar muçulmano", exclamou ele. "Feliz é Saladino, que não tem um papa sobre ele". Mas o arrogante Filipe tinha que se curvar. As afeições e os sentimentos religiosos de todas as classes estavam do lado do clero. Ele convocou um parlamento em Paris, que foi assistido por todos os grandes vassalos da coroa. "O que faremos?", exigiu o rei, com sua bela Inês ao seu lado. "Obedeça o papa, dispense Inês, e receba de volta a Ingeborg", foi a esmagadora resposta. Assim, aquele que tinha dobrado a França em extensão pelo gume afiado de sua espada e pela prudência de sua política; aquele que tinha erguido a coroa a uma certa independência acima dos grandes senhores feudais; agora esse mesmo tinha que beber o chorume da humilhação na presença dos nobres da França a pedido do papa.

A cena era esmagadora. Inês declarara que nada lhe importava a coroa, que era seu marido que ela amava; uma estranha, filha de um príncipe cristão, jovem e ignorante do mundo, tinha se casado com o rei, e com ele tivera dois filhos. "Não me separem do meu marido", era seu tocante apelo. Mas o inexorável decreto foi emitido: "Obedeça o papa, dispense Inês, receba de volta a Ingeborg". O rei por fim concordou com uma reconciliação com Ingeborg. Ela foi trazida diante dele, mas a vista dela despertou tanto a aversão do rei que as negociações foram quase quebradas. Enfim, ele dominou seus instintos pelo momento e curvou-se à sentença papal. Ele jurou recebê-la e honrá-la como rainha da França. Naqueles momento, o soar dos sinos proclamaram que o interdito que pesava tanto sobre o povo por mais de sete meses tinha sido retirado. "As cortinas foram retiradas de sobre as imagens e crucifixos, as portas das igrejas se abriram, e as multidões se aglomeravam para saciar seus desejos piedosos que haviam sido suprimidos durante o período do interdito".

Roma alcançou seu objetivo; ela triunfou sobre o maior rei da cristandade, e assim cumpria-se a Palavra de Deus: "A mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra" (Ap 17:18)*. O domínio universal sobre os corpos, almas e assuntos dos homens era seu desejo insaciável, seu incessante objetivo. E além dessa demonstração de poder, não podemos supôr que Roma tivesse qualquer outro maior objetivo em vista, pois tinha sancionado, no grande predecessor de Filipe (Luís VII), uma conduta muito mais ultrajante.

{* N. do T.: Isso não significa que isso já foi cumprido e que não se cumprirá mais no futuro. Aqui temos apenas uma demonstração do espírito da Babilônia, que será levada a ainda maiores extremos no período da grande tribulação, do qual narra essa passagem de Apocalipse.}

O aflito rei então se separou de sua Inês, ambos com o coração partido. Pouco tempo depois ela morreu de dor, tendo dado à luz um filho, a quem ela deu o significativo nome de João-Tristão -- o filho de minha tristeza. Ingeborg foi recebida com honra exterior, mas viveu na realidade como uma prisioneira do Estado; nada podia jamais induzir Filipe a viver com ela como sua esposa, embora tenha consentido que vivesse no palácio. Novas disputas entre a França e Inglaterra desviaram a mente de Inocêncio da rainha negligenciada e abriram um campo mais convidativo para sua mente ativa e ambiciosa.  

O Legado Papal na França

Pedro, cardeal de Santa Maria na Via Lata, foi enviado à França como legado, com autoridade, no caso da obstinação do rei, para estabelecer seus domínios sob o banimento papal. Mas o rei tratou com desprezo e desafio a ordem de afastar sua amada Inês, e receber novamente a odiada Ingeborg. O papa foi inflexível. "Se, dentro de um mês", escreveu ele ao legado, "após sua comunicação, o rei da França não receber sua rainha com afeição conjugal, todo o seu reino deve ser interditado -- um interdito com todas as suas terríveis consequências". Um concílio ocorreu em Dijon, mensageiros do rei apareceram, protestando em seu nome contra todos os outros procedimentos, e apelando a Roma. Mas as ordens ao legado eram peremptórias. O interdito foi proclamado com todo as suas terríveis circunstâncias, sendo assim descrito: -- "À meia-noite, cada padre, levando uma tocha, cantou um salmo para o miserável, e orações para os mortos, as últimas orações que deveriam ser proferidas pelo clero da França durante o interdito. Os crucifixos foram cobertos com um tecido preto; as relíquias escondidas dentro das tumbas; a hóstia foi toda consumida. O cardeal, vestindo sua estola violeta, pronunciou os territórios do rei da França como estando sob o banimento. Todos os serviços religiosos daquela época cessaram; não havia mais acesso ao céu pela oração ou oferta. Apenas os soluços das mulheres mais velhas e crianças quebravam o silêncio. O interdito foi pronunciado em Dijon. Apenas o batismo das crianças e a extrema unção dos moribundos foram permitidos pela igreja durante o período em que o reino esteve sob a maldição do banimento papal".

Pela culpa do soberano a nação inteira deve sofrer -- assim deve ter pensado o papa -- para que seu coração possa ser amolecido, seja por piedade pela miséria de seu povo ou pelo medo de seu descontentamento; pois a morte nessa época era tida como a perdição eterna. "Ó, quão terrível", exclamou uma testemunha ocular, "quão lamentável espetáculo aquilo foi em todas as nossas cidades! Ver as portas das igrejas vigiadas, e cristãos tirados delas como cães; todos os ofícios divinos cessaram; o sacramento do corpo e do sangue para a alma não mais se oferecia; o povo não se reunia mais como de costume nos festejos aos santos; os corpos dos mortos não eram admitidos ao enterro cristão, e o fedor deles infectava o ar, e a visão repugnante deles chocava os vivos: apenas a extrema unção e o batismo eram permitidas. Houve um profundo silêncio por todo o reino, enquanto os órgãos e as vozes daqueles que cantavam os louvores de Deus foram silenciadas em todos os lugares"*.

{*Ver Latin Christianity, vol. 4, p. 67.} 

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