domingo, 6 de setembro de 2020

Os Beneditinos

Antes da morte de Bento, que ocorreu em 543, sua ordem havia sido estabelecida na França, na Espanha e na Sicília. Ela se espalhou rapidamente por toda parte. Para onde quer que os monges viajassem, eles convertiam o deserto em um país cultivado; eles derrubaram florestas, drenaram pântanos, criaram abadias majestosas com suas próprias mãos, civilizaram populações rudes, e buscaram a criação de gado e os trabalhos agrícolas de todas as formas. Eles também cultivavam o aprendizado e tinham escolas para os jovens. Mas embora os beneditinos logo se tornassem uma grande comunidade e se espalhassem por vários países, todos estavam sujeitos a uma mesma regra. A época em que essa ordem entrou na Inglaterra é bem conhecida. Santo Agostinho e seus monges eram beneditinos, além de Gregório, que os enviou. Mas embora geralmente seja atribuído a eles o crédito de reduzirem os resíduos utilizando-os na fertilização no cultivo, eles também têm o crédito de escolherem, quando tiveram a oportunidade, os melhores locais da terra para seus assentamentos. "Em cada vale rico", diz Milman, falando da Inglaterra, "ao lado de cada córrego claro e profundo, erguia-se uma abadia beneditina. O trabalho dos monges de plantar, cultivar, projetar jardins ensolarados ou encher as colinas de árvores podem ter adicionado muito à graça pitoresca desses cenários; mas, em geral, se for realizada uma pesquisa sobre algum distrito na Inglaterra, é bem provável que se descubra que o local mais conveniente, mais fértil e mais pacífico fora o local de um abadia beneditina."*

{*Latin Christianity, vol. 1, p. 426. English Monasticism, de Hill, p. 71. Faiths of the World, de Gardner, vol. 1, p. 318. Neander, vol. 3, p. 351.}

A primeira intenção de São Bento não era fundar uma ordem monástica, mas simplesmente prescrever regras para os monges italianos, de acordo com a prática dos anacoretas e reclusos da igreja primitiva. Mas os monges de Monte Cassino logo se tornaram famosos por sua inteligência superior, vida pacífica, hábitos corretos e zelo fervoroso. Em um país e em uma época em que a contenda, a rapina, a ignorância e os costumes dissolutos eram universais, o tranquilo e sagrado mosteiro representava um convidativo refúgio, onde, durante o breve período da vida, o homem poderia cumprir seus deveres religiosos e encerrar seus dias em paz com o céu e com a humanidade. O jovem espírito ardente que entrava no mundo tinha poucas opções de vida; praticamente se resumia a uma escolha entre uma vida de guerra, violência e maldade -- uma vida de alegrias e tristezas ferozes -- ou de reclusão, humildade, obediência e trabalho abnegado. As naturezas mais pensativas e tímidas deram as boas-vindas ao novo refúgio de descanso. Homens de todas as classes deixaram seu luxo ou pobreza e se juntaram à nova comunidade; e assim foi aumentando, até que sua riqueza e poder fossem incríveis. As estatísticas a seguir darão ao leitor uma idéia melhor da opulência dessas antigas abadias beneditinas do que meras descrições.

"A propriedade pertencente ao mosteiro pai de Monte Cassino, com o tempo, passou a incluir quatro bispados, dois ducados, trinta e seis cidades, duzentos castelos, trezentos territórios, trinta e três ilhas e mil seiscentos e sessenta e duas igrejas. O abade assumiu os seguintes títulos: Patriarca da Santa Fé; Abade do Santo Mosteiro de Cassino; Chefe e Príncipe de todos os Abades e Casas Religiosas; Vice-chanceler das Sicílias, de Jerusalém e da Hungria; Conde e Governador da Campânia e Savona e das Províncias Marítimas; Vice-Imperador; e Príncipe da Paz."*

{*Dictionary of Christian Churches and Sects, de Marsden, p. 635.}

A Regra de São Bento

A sabedoria deste grande monge como legislador, e a superioridade de sua disciplina sobre tudo o que existia anteriormente, encontram-se principalmente no lugar que ele dá ao trabalho manual. Essa era a característica distintiva da nova ordem -- trabalho físico árduo e saudável. O monasticismo tinha sido até então quase que inteiramente uma vida de mera reclusão e contemplação, apoiada pela caridade do público ou pelos impressionáveis camponeses das vizinhanças do mosteiro. Bento viu os efeitos perversos desse estado de existência ocioso e sonhador, e tomou amplas providências para a ocupação dos monges. Ele rotulou a ociosidade como inimiga da alma e do corpo. Deviam não somente trabalhar na oração, adoração, leitura e educação dos mais jovens, como também trabalhar com as mãos, como com o machado na floresta, a pá nos campos e a espátula nas paredes. As vantagens desse novo sistema eram grandes. As abadias beneditinas tornaram-se assentamentos agrícolas industriosos. A agricultura e as artes da vida civilizada foram introduzidas nas regiões mais bárbaras, e o deserto, sob as mãos dos monges, floresceu com fertilidade.

Embora a ordem de São Bento fosse em todos os sentidos contrária à letra e ao espírito da Palavra de Deus, ela tinha mais razão e bom senso do que os sistemas ociosos e lânguidos do Oriente. "Ele era um daqueles que sustentavam", diz Travers Hill, "que para viver neste mundo um homem deve fazer algo -- que aquela vida que consome, mas não produz, é uma vida mórbida, e na verdade uma vida impossível -- uma vida que tenderá à decadência -- e, portanto, imbuído da importância desse fato, ele fez do trabalho, trabalho contínuo e diário, o grande fundamento de sua regra." Sua penetração na sociedade também é vista em sua consideração pelo clima hostil do Ocidente e pelas constituições europeias. Suas leis eram mais brandas e praticáveis ​​do que as que haviam sido tentadas nos países orientais; a dieta era bem mais generosa, e ele não propunha nenhuma mortificação extrema, mas permitia que seus seguidores vivessem de acordo com os hábitos comuns de seus respectivos países. Nessas considerações sábias e razoáveis ​​está todo o segredo do maravilhoso sucesso da ordem beneditina.

Mas, com nossas noções modernas de qualidade de vida e de estarmos acostumados com relativamente poucos serviços religiosos no decorrer da semana, o leitor pode estar disposto a questionar o que dissemos sobre a brandura das regras monásticas e a natureza generosa da dieta. Falamos nesse sentido em comparação com o Oriente, de onde se originou o monasticismo.

Às duas horas da manhã, os monges eram despertados para as vigílias, ocasião em que doze salmos eram cantados e certas lições das escrituras lidas ou recitadas. Eles se reuniam novamente ao amanhecer para as matinas; este serviço era quase igual ao primeiro, de modo que em suas vigílias e matinas vinte e quatro salmos deviam ser cantados todos os dias, para que o saltério pudesse ser completado a cada semana. O tempo para suas devoções internas e seu trabalho externo era planejado, no verão e no inverno, conforme o superior achasse conveniente. Mas eles eram obrigados a comparecer a pelo menos sete serviços religiosos distintos a cada vinte e quatro horas, além de sete horas por dia de trabalho. Eles tomavam o café da manhã por volta do meio-dia e jantavam à noite. Sua alimentação habitual consistia em vegetais, grãos e frutas; meio quilo de pão por dia para cada monge e uma pequena quantidade de vinho. Na mesa pública nenhuma carne era permitida; somente aos enfermos era dada comida de origem animal, que, às vezes, comiam ovos ou peixe à noite. Mas todos os dias na Quaresma jejuavam até as seis da tarde e tinham menos tempo para dormir.

A roupa dos monges devia ser rústica e simples, mas variável, de acordo com as circunstâncias. Foi-lhes permitido ter o luxo das botas. A vestimenta externa deles era um vestido preto solto, com mangas largas, e um capuz na cabeça com uma parte pontuda atrás. Cada monge tinha dois casacos, dois capuzes, um livro de mesa, uma faca, uma agulha e um lenço. A mobília de suas celas era uma esteira, um cobertor, um tapete e um travesseiro. Cada um tinha um leito separado e dormiam vestidos. Um reitor deveria presidir cada dormitório e uma luz deveria ser mantida acesa em cada um. Nenhuma conversa era permitida após se retirarem aos seus aposentos. Por pequenas faltas eram excluídos das refeições da irmandade, e por maiores eram excluídos da capela; infratores incorrigíveis eram excluídos do mosteiro.

Assim se passava o longo e tedioso dia do monge que condenava a si mesmo a essa vida; desde as vigílias da meia-noite até as vésperas da noite, todas as suas observâncias eram meramente mecânicas. Ao entrar no mosteiro, ele renunciava totalmente a todas as espécies de liberdade pessoal. Seu voto de obediência implícita a seus superiores em tudo era irrevogável. Ninguém podia receber um presente de qualquer espécie, nem mesmo de seus pais, nem manter correspondência com pessoas de fora do mosteiro, a não ser que passasse pela inspeção do abade. Um porteiro sempre se sentava ao portão, que era mantido trancado dia e noite, e nenhum estranho era admitido sem a permissão do abade, e nenhum monge podia sair a menos que tivesse a permissão de seu superior.

O jardim, o moinho, o poço, o forno de pão, ficavam todos dentro dos muros, de modo que não houvesse necessidade de sair do mosteiro. A ocupação de cada monge seria determinada pelo abade. Um monge que antes era rico e de nascimento nobre estaria então sem um tostão e podia ser nomeado cozinheiro ou servente, alfaiate, carpinteiro ou poceiro, de acordo com o desejo do superior absoluto; a qualidade e a quantidade de sua comida eram prescritas e limitadas como se fosse a menor criança. Ele não tinha permissão para falar, salvo em determinados momentos. Todas as conversas eram estritamente proibidas durante as refeições; alguém lia em voz alta o tempo todo.

Assim estava o homem -- o homem social -- isolado da sociedade. A mulher, que Deus deu ao homem, devia ser considerada não apenas uma estranha aos seus pensamentos, mas a inimiga natural de sua perfeição solitária. Pela sutileza de Satanás, o ego era o objetivo supremo de todos os monges -- e de todos os sistemas de monastério. Com que força as palavras do apóstolo vêm à mente quando meditava sobre a liberdade de Cristo e a escravidão de Satanás: "Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo". Observe estas palavras verdadeiramente cristãs, "o que para mim era ganho -- ganho para mim!" Se é apenas ganho para mim, qual é o bem dessas coisas? Eu quero Cristo. Eu vi Cristo em glória. Eu quero ser como ele. Tudo de que aquela carne religiosa podia se gabar, o que era ganho para ele, ele jogou para trás como a mais simples escória. "E, na verdade", continua ele, "tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor". Que cegueira, que perversidade, para quem prefere a ordem de São Bento a Filipenses 3 -- ao amor e à liberdade de Cristo! Mas tamanho era o poder enganador de Satanás que fazia o homem pensar que o caminho certo, senão o único, para o céu, era se tornando um monge.

domingo, 16 de agosto de 2020

São Bento

Uma vez que quase todas as instituições monásticas em toda a Europa, por mais de seiscentos anos, foram regulamentadas pela Regra de São Bento, basta apenas darmos algum relato sobre essa célebre ordem para conhecermos a constituição e o caráter de todas elas. E, como o nome delas é legião, pouparemos o leitor de demasiada repetição.

Esse homem notável era filho de um senador romano nascido em Núrsia, na Itália, tendo nascido em 480 d.C. Aos 12 anos, foi enviado para estudar em Roma. Ele provavelmente tinha ouvido e lido sobre a vida dos santos anacoretas e eremitas do Oriente. Com esses exemplos diante de sua mente e as irregularidades de seus colegas estudantes ao seu redor, ele ansiava pela solidão. Por volta dos quinze anos de idade, incapaz de suportar por mais tempo o estado corrupto da sociedade romana, ele se separou até mesmo de sua fiel babá, Cirila, que havia sido enviada com ele a Roma por seus pais, e a deixou lamentando sua perturbação mental. Os ferozes hunos e vândalos haviam transformado até o coração da Itália em um deserto, de modo que o jovem eremita encontrou um local isolado não muito longe de Roma. Por anos ele viveu em uma caverna solitária; a única pessoa que conhecia o segredo de seu retiro era um monge chamado Romano, que lhe fornecia pão da economia de uma parte de sua própria mesada diária. Mas, como uma rocha íngreme ficava entre o claustro de Romano e a gruta de Bento, o pão era descido por um barbante até a boca da caverna. Com o tempo, ele foi descoberto por alguns pastores, que ficaram encantados ao ouvir suas instruções e testemunhar seus milagres. À medida que a fama de sua piedade aumentava, ele foi persuadido a se tornar abade de um mosteiro das redondezas; mas a rigidez de sua disciplina desagradou seus internos, e eles concordaram em se livrar do severo recluso misturando veneno em seu vinho. Mas, ao fazer o sinal-da-cruz, o que geralmente fazia com sua comida e bebida, o copo se despedaçou; então ele repreendeu suavemente os monges e voltou para sua caverna na montanha.

Bento tornara-se então de maior interesse do que nunca. Sua fama se espalhou, grandes multidões se lhe aglomeravam, homens ricos e influentes se lhe juntaram, e grandes somas de dinheiro foram colocadas à sua disposição. Ele estava então em condições de construir doze mosteiros, cada um deles consistindo de doze monges, sob um superior. Tendo conseguido até então cumprir o objetivo de sua residência no distrito, e inquieto com a invejosa interferência de Florêncio, um padre vizinho, deixou o vilarejo de Subiaco com alguns seguidores no ano de 528. Após algumas andanças, chegou ao Monte Cassino, onde Apolo ainda era adorado pelos rústicos. Com grande habilidade e energia ele desenraizou os restos da idolatria pagã entre os camponeses. Ele cortou o bosque sagrado, destruiu o ídolo de Apolo que havia ali, e no local do altar foi erguido um oratório, que ele dedicou a São João Evangelista e a São Martinho. Essa foi a semente do grande e renomado mosteiro que se tornou a raiz mãe de inúmeros ramos que em pouco tempo cobriram a face da Europa. Aqui, Bento redigiu sua famosa Regra, por volta do ano 529. Ela consiste em setenta e três capítulos que contêm um código de leis que regulamenta os deveres dos monges entre si e entre o abade e seus monges. Ele provê regras para a administração de uma instituição, composta de toda variedade de caráter, engajada em toda variedade de ocupação, mas tudo estando perfeitamente sujeito a um governante absoluto. A abrangência de seu sistema é surpreendente por ser o resultado de uma única mente e sem exemplos ou precedentes. A Regra de São Bento é considerada pelos eruditos como o monumento mais célebre da antiguidade eclesiástica e foi, em suas operações, a própria força e palavra de ordem da dominação de Roma sobre o continente europeu.

sábado, 18 de julho de 2020

Monges Antigos e Modernos

A origem e a história inicial do monasticismo foram cuidadosamente traçadas no Capítulo 12 deste livro; mas, como seu caráter muda completamente no século XIII, será fácil esboçar seu progresso desde os primeiros tempos, e assim, ver mais claramente o contraste. Esse plano também nos dará a oportunidade de olhar a condição interna da igreja de Roma antes que a luz da Reforma penetre e revele suas terríveis trevas.

No final do século III, mas especialmente durante o quarto, os desertos da Síria e do Egito tornaram-se morada de monges e eremitas. Os lugares mais privados e pouco frequentados no vasto deserto foram selecionados pelos primeiros reclusos. Os relatos da santidade deles, de seus milagres e devoção se tornaram a principal literatura da igreja. A infecção se espalhou. Homens ansiosos por se destacar na santidade ou obter a reputação de uma piedade peculiar abraçaram a ordem monástica. A prática prevaleceu tão rapidamente que, antes do início do século VI, estendia-se em igual proporção à própria Cristandade. Havia três classes desses monges antigos. 1. Solitários -- aqueles que moravam sozinhos em lugares distantes de todas as cidades e habitações dos eremitas dos homens. 2. Coenobitas -- aqueles que viviam em comum com os outros na mesma casa para fins religiosos e sob os mesmos superiores. 3. Sarabaítas -- descritos como monges irregulares que peregrinavam, que não tinham regra ou residência fixos. Estes podem ser considerados dissidentes dos Coenobitas, que viviam dentro de seus próprios portões. O muro que os confinava, em alguns casos, também encerrava seus poços e jardins, e tudo o que era necessário para o sustento deles, de modo a não deixar nenhum pretexto nem mesmo para uma relação ocasional com o mundo que eles haviam abandonado para sempre.

Aqueles a quem chamamos de monges hoje em dia são os coenobitas, que vivem juntos em um convento ou mosteiro, fazem votos de viver de acordo com uma certa regra estabelecida pelo fundador e vestem um hábito que marca a distinção de sua ordem.

As revoluções do Ocidente, no século V, mostraram-se favoráveis ​​ao monasticismo. Os bárbaros ficaram impressionados com os números, peculiaridades e professada santidade dos monges. Suas residências, portanto, não foram perturbadas e tornaram-se um refúgio tranquilo dos problemas da época. A superstição lhes dava honra; a riqueza começava a fluir, mas com ela degeneração e corrupção. Já havia espaço para um reformador, e a pessoa que apareceria nesse caráter era o famoso São Bento.

O Auto da Fé

A morte cruel pela qual a Inquisição encerrava a carreira de suas vítimas foi denominada na Espanha e em Portugal como AUTO DA FÉ, ou "Ato de Fé", sendo considerada uma cerimônia religiosa de solenidade peculiar; e para investir o ato com maior santidade, o ato cruel era sempre realizado no dia do Senhor. As vítimas inocentes dessa barbárie papal eram levadas em procissão ao local da execução. Eles eram vestidos da maneira mais pitoresca. Nas capas e túnicas de alguns eram pintadas as chamas do inferno, com dragões e demônios os abanando para mantê-los vivos para os hereges; e os jesuítas trovejavam em seus ouvidos que os fogos por meio dos quais morreriam não eram nada comparados aos fogos do inferno que eles teriam que suportar para sempre. Se algum corajoso coração tentasse dizer uma palavra para o Senhor, ou em defesa da verdade pela qual estava prestes a sofrer, sua boca era imediatamente amordaçada. Os condenados eram então acorrentados. Qualquer pessoa que confessasse ser um verdadeiro católico e desejasse morrer na fé católica tinha o privilégio de ser estrangulado antes de ser queimado; mas aqueles que se recusavam a reivindicar tal privilégio eram queimados vivos e reduzidos a cinzas.

Uma quantidade de mato, às vezes verde, e pedaços de madeira eram colocados ao redor das estacas e incendiados. Seus sofrimentos eram indescritíveis. Às vezes, as extremidades mais baixas do corpo eram realmente assadas antes que as chamas chegassem às partes vitais. E esse espetáculo terrível era contemplado por multidões de pessoas de ambos os sexos e de todas as idades, com festejos de alegria, tal era a imoralidade na qual caíam as pessoas por causa do romanismo/catolicismo. Por mais de quatro séculos, o Auto da Fé foi um feriado nacional na Espanha, quando seus reis e rainhas, príncipes e princesas testemunhavam na pompa da realeza.

De acordo com os cálculos de Llorente, compilados a partir dos registros da Inquisição, parece que entre 1481 e 1808 esse tribunal condenou, somente na Espanha, mais de trezentos e quarenta mil pessoas. E, se a esse número fossem somados todos os que sofreram em outros países que então estavam sob o domínio da Espanha, qual seria o número total? Torquemada, ao ser nomeado inquisidor-geral de Aragão em 1483, queimou vivos, para sinalizar sua promoção ao Santo Ofício, nada menos que dois mil dos prisioneiros da Inquisição. Soberanos, príncipes, damas da realeza, magistrados eruditos, prelados e ministros de Estado foram ousadamente e sem medo acusados ​​e julgados pelo Santo Ofício. Mas o Senhor conhece todos eles -- conhece os que sofrem, conhece os perseguidores, sabe como recompensar um e como julgar o outro. Os atos sombrios dessas masmorras secretas, o triste lamento dos sofredores desamparados, as zombarias cruéis dos ​​dominicanos sem escrúpulos, deverão ser todos revelados diante daquele trono de justiça inflexível e de esmagadora pureza. O papa e seu colégio de cardeais, o abade e sua fraternidade de monges, o inquisidor-geral e seus carcereiros, torturadores e carrascos, todos deverão aparecer diante do "grande trono branco" -- o trono de juízo de Cristo. Ali deixamos esses homens perversos, agradecidos por não termos de julgá-los e perfeitamente satisfeitos com as decisões do Senhor. Não fará o Juiz de toda a terra o que é certo?

Aquele que repreendeu Seus discípulos por alimentar o pensamento de incendiar os samaritanos os julgará por Seu próprio padrão. Ele então deixou registrado o que deveria ter sido um guia para o Seu povo em todas as épocas. Ele repreendeu os discípulos e disse: "Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las" (Lucas 9:55-56).

Pode ser necessário apenas afirmar aqui que não consideramos que todos os que sofreram pela Inquisição eram mártires, ou mesmo cristãos. Os crimes de que os inquisidores tomavam conhecimento eram heresias em todas as suas diferentes formas, tais como o judaísmo, o islamismo, a feitiçaria, a poligamia e a apostasia, e não temos o privilégio de conhecer o testemunho final desses sofredores. Era algo bem diferente dos mártires sob os imperadores pagãos. Ao mesmo tempo, é impossível não ser fortemente movido pelo horror e pela compaixão ao lermos as histórias desse período sombrio e diabólico.

O leitor tem agora diante de si o começo e o caráter geral da Inquisição; veremos casos individuais de sua crueldade no decorrer do relato histórico que temos diante de nós. A seguir, para tomarmos nota, ainda que brevemente, trataremos das novas ordens de monges que surgiram da mesma memorável guerra albigense.

A Aplicação da Tortura

Não fosse a verdade e o relato de uma história imparcial exigirem que a verdadeira natureza do papado fosse exposta, preferiríamos não descrever, mesmo que de maneira breve, aquelas cenas de tortura; mas poucos de nossos jovens leitores, nestes tempos pacíficos em que vivemos, têm alguma ideia do caráter cruel do papado e de sua sede pelo sangue dos santos de Deus. E essa natureza -- que isso seja lembrado -- não mudou em nada. No final da década de 1820, a pouco tempo atrás*, quando a Inquisição foi derrubada em Madri pelas ordens das Cortes, foram encontrados vinte e um prisioneiros: nenhum deles sabia o nome da cidade em que estavam; alguns já estavam confinados por três anos, outros por um período mais longo, e ninguém sabia exatamente a natureza do crime pelo qual foram acusados. Uma dessas pessoas seria executada no dia seguinte pelo pêndulo. Esse método de tortura é descrito da seguinte maneira: "O condenado era preso deitado de costas encima de uma mesa, e acima dele, ficava suspenso um pêndulo cujo gume afiado se aproximava mais e mais a cada momento; com o tempo, ele cortava a pele de seu rosto, e gradualmente cortava toda a cabeça, até que a vida se extinguisse." Essa era a punição do Tribunal Secreto em 1820, e pode ser que ainda aconteça hoje em alguns lugares na Espanha e na Itália*.

{*N. do T.: este livro foi escrito no século XIX.}

As penitências e punições a que o acusado era submetido, a fim de que os inquisidores obtivessem a confissão que desejavam, eram muitas e variadas; o cavalete (ou potro)* era geralmente o primeiro a ser aplicado. Os braços nus eram presos por um pequeno cordão rígido e torcidos para trás das costas, pesos pesados eram ​​amarrados aos pés, e então o torturado era puxado para cima através de uma corda que passava por uma polia. Tendo sido mantido suspenso por algum tempo, a vítima era solta abruptamente até alcançar uma distância próxima ao chão; isso era feito várias vezes, de modo que as articulações dos braços se deslocavam enquanto o cordão, pelo qual a pessoa estava suspensa, cortava a pele e a carne e penetrava até os ossos; e, por meio dos pesos anexados aos pés, toda a sua estrutura óssea era esticada violentamente. Essa espécie de tortura continuava por uma hora e algumas vezes até mais tempo, dependendo do prazer com que os inquisidores presentes o faziam e da força com a qual o sofredor parecia capaz de suportar. A tortura pelo fogo era igualmente dolorosa. Estendido o prisioneiro no chão, as solas dos pés eram esfregadas com banha de porco e colocadas perto do fogo, até que, contorcendo-se em agonia, fosse compelido a confessar o que seus torturadores exigiam. Em um segundo momento, os juízes condenavam suas vítimas à mesma tortura, para fazê-las confessar os motivos e as intenções do coração que os levaram ao crime já confessado; e em uma terceira vez, para que revelassem os nomes de seus cúmplices ou parceiros.


Quando as crueldades não conseguiam forçar uma confissão, eram utilizados artifícios e armadilhas. Pessoas eram enviadas para as masmorras, fingindo ser prisioneiros como eles, que começavam a falar contra a Inquisição, mas apenas com o objetivo de enganar os demais para que testemunhassem contra eles. Quando o acusado era condenado, por testemunhas ou por sua própria confissão forçada, era condenado de acordo com a hediondez de sua ofensa. Poderia ser a morte, a prisão perpétua, as galés* ou o açoitamento. Aqueles que eram condenados à morte pelo fogo eram mantidos presos até que se acumulassem, de modo que o sacrifício de um grande número ao mesmo tempo pudesse produzir um efeito mais impressionante e terrível.

{* Sobre a pena das galés: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gal%C3%A9s_(pena) }

terça-feira, 24 de março de 2020

Os Procedimentos Internos da Inquisição

Sob a chefia do papado, como todos sabemos agora, os atos mais sombrios, as mais irresponsáveis tiranias e crueldades desumanas que já enegreceram os anais da humanidade puderam ser escritas. Mas longos detalhes, por mais dolorosamente interessantes, ficariam fora do escopo deste livro. Portanto, nos contentaremos com algumas breves declarações e extratos. Nenhum tribunal -- podemos seguramente afirmar -- tão alheio à justiça, humanidade e a qualquer relacionamento sagrado da vida jamais existiu nem mesmo nos domínios do paganismo ou islamismo.

Quando uma pessoa era levemente suspeita de heresia, os espiões, chamados Familiares da Inquisição, eram empregados para vigiá-la com o objetivo de descobrir a menor acusação possível que permitisse entregá-la ao tribunal do Santo Ofício. O homem podia até ser um bom católico, pois Llorente nos garante que nove décimos dos prisioneiros eram fiéis à fé católica, mas que, talvez, fossem suspeitos de manter opiniões liberais, ou por talvez terem demonstrado em suas conversas que conheciam mais de teologia do que os monges iletrados, ou porque discordavam deles em algum ponto da doutrina. Qualquer uma dessas coisas seria suficiente para criar suspeitas, pois nada era mais temido do que uma nova luz ou verdade; tal pessoa era então marcada e denunciada pelos Familiares.

À meia-noite, ouve-se uma batida, e o suspeito é ordenado a acompanhar os mensageiros do Santo Ofício. Sua esposa e família sabem o que isso significa; a angústia deles é grande; eles devem agora se despedir do amado marido e do amado pai. Nem uma palavra de súplica ou remorso se atreve a respirar. Assim, repentina e inesperadamente, essa instituição assustadora atacava suas vítimas. As esposas deixavam seus maridos; os maridos, as mulheres; os pais, os filhos; e os mestres, seus servos, sem uma pergunta ou murmúrio sequer. O terror constituía o grande elemento de seu poder. Ninguém, do monarca ao escravo, sabia quando a batida poderia chegar à sua porta. Um sigilo impenetrável caracterizava todos os procedimentos dessa instituição. Esse sentimento de insegurança e as maquinações da imaginação ajudaram a exagerar a terrível realidade. Nem a classe, nem a idade, nem o sexo ofereceriam qualquer defesa contra sua vigilância incessante e sua severidade impiedosa.

O prisioneiro, a vítima indefesa, está agora dentro dos portões da Inquisição; e poucos que já entraram de lá saíram absolvido e quites; diz-se que não mais do que um em mil. Certas formalidades eram tomadas com o objetivo de questionar a suposta culpa do acusado, mas todas não passavam de uma grosseira zombaria à justiça. "O tribunal se sentava em profundo segredo, nenhum advogado podia comparecer perante o tribunal, nenhuma testemunha era confrontada com o acusado; ninguém sabia quem eram os informantes, quais eram as acusações, a não ser a vaga acusação de heresia. O suspeito herege era convocado, pela primeira vez, para declarar sob juramento que falaria a verdade, toda a verdade, sobre todas as pessoas vivas ou mortas e sobre ele próprio, sob suspeita de heresia ou valdensianismo. Se recusasse, seria lançado em uma masmorra, a mais sombria, a mais suja, a mais barulhenta, naqueles tempos sombrios. Nenhuma falsidade era tão falsa, nenhuma artimanha tão astuta, nenhum truque tão baixo, do que essa tortura moral deliberada e sistemática que era torcer da pessoa mais confissões contra ela própria e denúncias contra os outros. Era o objetivo deliberado dos inquisidores esmagar o espírito das pessoas; a comida dada ao prisioneiro era diminuída lenta e gradualmente até que o corpo e a alma se prostrassem. Ele era então deixado na escuridão, na solidão e no silêncio." A próxima parte do procedimento do Santo Ofício nessas prisões secretas era a aplicação de tortura corporal. A vítima indefesa era acusada de ocultar e negar a verdade. Em vão a pessoa afirmava que havia respondido a todas as perguntas de maneira plena e honesta, na extensão máxima de seu conhecimento; ela era instada a confessar se alguma vez tinha tido algum pensamento maligno em seu coração contra a Igreja, ou contra o Santo Ofício, ou contra qualquer outra coisa que escolhessem nomear. Não importava a resposta que desse, a pessoa era denunciada como um herege obstinado. Após algumas expressões hipócritas quanto ao amor pela alma da pessoa e quanto ao sincero desejo deles de libertá-la do erro, para que a pessoa pudesse obter a salvação, um vasto aparato de instrumentos de tortura lhe era mostrado; a tortura agora deveria ser aplicada para fazer a pessoa confessar seu pecado.

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