domingo, 29 de julho de 2018

O Purgatório

Conta-se que Agostinho, bispo de Hipona, foi o primeiro a sugerir a doutrina de um estado intermediário, mas suas opiniões são vagas e incertas. A ideia não foi formalmente recebida como um dogma da igreja de Roma até a época de Gregório, o Grande, no ano de 600. Ele tem a reputação de ter sido o descobridor do fogo do purgatório. Ao discutir a questão sobre o estado da alma após a morte, ele distintamente afirmou: "Devemos crer que, para algumas transgressões leves, existe um fogo purgatório antes do dia do juízo". Mas, como o crescimento dessa doutrina por centenas de anos é extremamente difícil de traçar, nos referiremos de uma vez ao Concílio de Trento, a grande e indiscutível autoridade sobre o assunto.

"Existe um purgatório", diz o concílio, "e as almas ali detidas são auxiliadas pelos sufrágios dos fiéis, mas especialmente pelo sacrifício aceitável da Missa. Este santo concílio ordena a todos os bispos que se esforcem diligentemente para que a sã doutrina no que diz respeito ao purgatório, entregue a nós pelos veneráveis pais e concílios sagrados, seja crida, mantida, ensinada, e pregada em todo o lugar pelos fiéis a Cristo... No fogo do purgatório, as almas dos homens justos são purificadas por uma punição temporária, para que sejam admitidos a sua morada eterna, na qual não entra nada que contamina... O sacrifício da Missa é oferecido por aqueles que estão mortos em Criso, mas não inteiramente expurgados."*

{* Council of Trent, de Paul, p. 750. Veja também, para detalhes, End of Controversy, de Milner, Carta 43.}

Os escritores católicos romanos tentam suportar esse terrível dogma a partir de várias passagens das Escrituras, mas principalmente dos apócrifos e da tradição. Com os dois últimos nada temos a tratar. Qualquer coisa que agrade aos homens pode ser provado com base em tais fontes incertas; mas nada pode ser mais ousado, e ao mesmo tempo mais fútil, do que a má aplicação das Escrituras sobre esse assunto. Veja dois textos que eles utilizam: 1. "Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil" (Mateus 5:26). Aqui, os católicos são inconsistentes com eles mesmos, pois se os pecados veniais* são perdoados no purgatório, a passagem fala do último centavo sendo pago. Certamente não podemos falar de um dívida sendo perdoada e, ao mesmo tempo, tendo que ser paga pelo indivíduo até o último centavo**. 2. "Vivificado pelo Espírito, no qual [claramente, 'em cujo Espírito'] também foi, e pregou aos espíritos em prisão" (1 Pedro 3:18,19). Esta passagem não pode fazer referência à suposta prisão do purgatório, pois de acordo com a própria doutrina católica, aqueles que são culpados de pecado mortal não vão para lá, o que é estranhamente inconsistente, visto que os antediluvianos (que são os espíritos em prisão mencionados; ver versículo 20) eram "incrédulos", culpados do pecado mortal. E, como vimos nos extratos citados anteriormente, o purgatório seria apenas para "aqueles que estão mortos em Cristo, mas não inteiramente expurgados". A passagem também ensina que Cristo não pregou em pessoa. Ele pregou pelo Espírito por meio de Noé aos antediluvianos que estão agora em prisão. Os alegados textos estão tão pouco em favor do purgatório, que católicos romanos mais pensativos se esforçam em suportar o dogma apenas pela autoridade da igreja.

{* N. do T.: Pecado venial, de acordo com o catolicismo romano, é um pecado menor que não resulta em uma separação completa de Deus e na condenação eterna no inferno (Fonte: Wikipedia). }

{** N. do T.: Além disso, devemos nos lembrar que todos os nossos pecados foram pagos na cruz, o que acaba com qualquer ideia de um salvo ter ainda que pagar por eles. Ver Romanos 8:1, João 5:24, 1 Pedro 2:24, Apocalipse 5:9, Isaías 53:6,11,12, etc.}

Há muita imprecisão nos escritores romanistas, e até mesmo no Concílio de Trento, quanto a onde está o purgatório e o que ele realmente é. A opinião geral parece ser de que ele estaria debaixo da terra e adjacente ao inferno -- que seria um lugar intermediário entre o céu e o inferno, no qual as almas passam através do fogo da purificação antes de entrarem no céu.

Mas como o fogo material pode purificar um espírito, os escritores católicos têm sido cuidadosos em não definir. Aqueles no estado intermediário -- diz o Concílio de Florença de 1439 -- estão em um lugar de tormento, "mas se é fogo, ou tempestade, ou qualquer outra coisa, sobre isso não contendemos". Ainda assim, parece que a voz geral é de que o purgatório é uma prisão, na qual a alma é detida e torturada assim como purificada, e que, não por angústia ou remorso mental, mas por um fogo real, ou pelo que o fogo produz. E ainda assim tão variadas são as opiniões de seus melhores teólogos, que alguns já representaram os tormentos como uma repentina transição do calor extremo ao frio extremo. Mas as especulações vagas de Agostinho, e os aventurosos dogmas de Gregório, foram logo "autenticados" por sonhos e visões. Na idade das trevas, houve muitos viajantes para aquelas regiões subterrâneas, que inspecionaram e relataram os segredos do purgatório. Tomemos um dos relatos como exemplo, o mais suave e menos ofensivo que podemos escolher.

O Culto às Relíquias

Pelo fato da história do culto às relíquias ser muito similar em seu caráter àquela do culto aos santos, uma breve observação será suficiente. Sua origem é a mesma. A paixão e a fraqueza, talvez, da nossa natureza, por guardar memoriais de pessoas amadas, foi usada pelo inimigo para trair os cristãos ao mais degradante tipo de adoração. Se, argumentava-se, o nosso gosto pelos memoriais da afeição humana é tão desculpável e tão amável, "quanto mais deveriam ser objetos de sagrado amor os santos, a bendita Virgem, e o Próprio Salvador!" Mas, por mais capcioso que possa ser tal raciocínio, não é nem justo nem verdadeiro. A profunda ilusão, o poder satânico, e a terrível iniquidade da adoração a relíquias residem principalmente no fato de que a igreja de Roma mantém a ideia de que há um poder de operar milagres inerente e irrevogável nas relíquias; e, como tal, são usadas e devotamente adoradas, tanto pelo papa quanto pelo mais baixo em sua comunhão.

Já nos dias de Constantino, a reverência pelas relíquias dos santos e mártires tinham assumido uma forma mais definida de adoração. A imperatriz Helena, mãe de Constantino, eu seu zelo supersticioso de honrar os lugares na Palestina que tinham sido "santificados" pela vida e morte do Salvador, erigiu esplêndidas igrejas sobre os supostos lugares de Seu nascimento, Sua morte e ascensão. Durante as escavações, afirmou-se que o Santo Sepulcro veio à luz, e que no sepulcro foram encontradas as três cruzes e a tábua com as inscrições originalmente escritas por Pilatos em três línguas. As notícias dessa maravilhosa descoberta rapidamente se espalharam por toda a Cristandade, gerando grande excitação. Como havia dúvidas sobre a qual das cruzes a tábua pertencia, um milagre decidira as reivindicações da verdadeira cruz. Singularmente, os cravos da paixão do Salvador também foram encontrados no santo sepulcro. Esses preciosos tesouros, como nem precisaríamos dizer, provaram ser um capital inesgotável para o comércio de relíquias. Partes da verdadeira cruz foram transformadas em crucifixos para os ricos, e partes foram consagradas às principais igrejas, tanto no Oriente (Ortodoxa) quanto no Ocidente (Católica). Tão rapidamente "se multiplicou" os pedaços de madeira da cruz que logo podia-se fazer uma floresta a partir deles.

A paixão pelas relíquias, que aumentara a cada século, foi grandemente nutrida pelas cruzadas. Muitos santos antes desconhecidos, e inumeráveis relíquias, foram então introduzidos aos cristãos do Ocidente. Passando pela vasta quantidade de ossos velhos de santos de reputação e outras relíquias menores, que eram trazidas do Oriente, e que se tornaram uma importante ramificação do comércio de relíquias, notamos dois ou três dos mais famosos. O principal entre eles era o "Sacro Catino" ("bacia sagrada") -- um recipiente de vidro verde, que dizem ser de esmeralda -- trazido da Cesareia, e venerado como tendo sido usado na última ceia. Outra relíquia de grande fama é a túnica sagrada de nosso Senhor encontrada em Argenteuil em 1156; há também uma outra túnica sagrada que dizem ter sido presenteado pela imperatriz Helena ao Arcebispo de Treves.

Precisamos apenas acrescentar, como uma ilustração prática de adoração a relíquias, que na semana santa, todos os anos*, o papa e os cardeais partem em procissão a São Pedro em Roma, com o propósito de adorar as três grandes relíquias. Ao realizarem a cerimônia, eles se ajoelham na nave da igreja, e as relíquias, que são exibidas da sacada acima da estátua de Santa Verônica, consistem em uma parte da madeira da verdadeira cruz, a metade da lança que perfurou o lado do Salvador, e o santo sudário. Esta última relíquia é um pedaço de tecido no qual conta-se que nosso Senhor miraculosamente imprimiu Seu semblante, e que tinha sido levado à Itália para curar o imperador Tiberíades quando afligido pela lepra. A cerimônia acontece em silêncio solene. Externamente, nenhum ato de adoração é mais profundo na Igreja Católica Romana. Poderia a loucura -- podemos perguntar -- ou o absurdo, ou as fraquezas humanas, ou o poder satânico, serem elevados a uma altura maior? Pois para que homens de educação e, em muitos casos, homens de cultivo e piedade, possam se curvar na mais profunda adoração diante de um pedaço de madeira quebrada, de uma lança quebrada, e de um trapo pintado, só pode ser possível sobre o princípio da mais solene cegueira judicial. As densas trevas há muito tinham se estabelecido tanto sobre os padres quanto sobre o povo através de sua deliberada negligência para com a Palavra de Deus e extinção da luz do Espírito Santo. E assim sempre será, em maior ou menor grau, quer para o católico ou para o protestante, quando Deus e Sua Palavra são desconsiderados, como disse o profeta: "Dai glória ao Senhor vosso Deus, antes que venha a escuridão e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a mude em sombra de morte, e a reduza à escuridão" (Jeremias 13:16).

{* N. do T.: o tradutor não pôde confirmar se tal prática ainda continua a ser realizada dessa maneira até os dias de hoje. }

O Culto aos Santos

A origem da adoração aos santos pode ser considerada como coincidente com a adoração a Maria, e como o fruto do mesmo solo. De fato, é a mesma coisa; o que difere é que Maria é elevada acima de toda a hoste de santos e mártires por causa de sua santidade peculiar e sua grande influência no céu.

A veneração que era dada nos primeiros séculos do cristianismo àqueles que tinham fielmente testemunhado e sofrido por Cristo sem dúvida levou à prática da invocação aos santos, e de implorar os benefícios da intercessão deles. Um afeto perdoável tornou-se uma veneração supersticiosa, e acabou como uma completa adoração. O passo tomado entre a veneração e a adoração é fácil e natural, embora nem sempre fácil de detectar. Daí a importância do aviso do apóstolo: "Filhinhos, guardai-vos dos ídolos". De acordo com essa palavra, se não temos diante de nós a Pessoa de Cristo como o único objeto dominante de nossos corações, teremos um ídolo. No mesmo contexto, o apóstolo fala de nosso maravilhoso lugar e bênção nEle: "E no que é verdadeiro estamos, isto é, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna" (1 João 5:20,21). Tendo a vida eterna nEle, e estando identificados com Ele quanto a nossa posição perante Deus, certamente Ele deve ser nosso único objeto de adoração. Qualquer outro é um ídolo. E até mesmo o melhor cristão corre o risco de pagar homenagem em exagero a algum mestre ou líder favorito. Como tudo isso se comparará com a epístola de João naquele último grande dia? O Senhor nos guarde da veneração pela criatura, seja viva ou morta!

Um grande e influente sistema surgiu desses pequenos inícios, através da sutileza do sacerdócio, o que acabou por trazer enormes riquezas para a igreja. Peregrinações com suas ofertas de expiação e de vontade própria fazem parte do sistema. Em um período inicial, era costume realizar serviços religiosos com peculiar santidade no túmulo dos santos e mártires. Mas, à medida que as trevas aumentavam, assim como o espírito de superstição, isto não era o suficiente. No século IV, esplêndidas igrejas foram construídas sobre seus anteriormente humildes túmulos; e até mesmo supostas relíquias do santo eram consagradas no edifício erguido em sua honra. Costumava-se afirmar que o corpo do santo miraculoso estava enterrado sob o altar-mor, e de que havia uma eficácia especial na intercessão de tais santos. Isso levou miríades a esses santuários; alguns para ver milagres acontecerem, outros para terem milagres realizados em seu favor, ou para receberem bem em suas almas. Peregrinações logo se tornaram o tipo mais popular de adoração, e à medida que os adoradores abundavam em suas oblações -- com seus corações quentes e ternos -- eram grandemente encorajados por um sórdido sacerdócio. Durante o século VI, um incrível número de templos foram erguidos em honra aos santos, e numerosos festivais foram instituídos para guardar a lembrança desses homens santos.

De acordo com Milman e outros, o culto aos santos tornou-se tão popular que corriam o risco de serem negligenciados por causa da grande quantidade deles. "O calendário lotado não tinha mais mais dias para serem atribuídos a um novo santo sem colidir, ou desapropriar, um antigo. O Oriente e o Ocidente competiam entre si em sua fertilidade. Mas dos incontáveis santos do Oriente, poucos comparativamente foram recebidos no Ocidente, e o Oriente também desdenhosamente rejeitou muitos dos mais famosos a quem o Ocidente adorava com a mais sincera devoção. De qualquer modo, a multiplicidade dos santos testemunha a universalidade da idolatria". A rivalidade de igreja conta igreja, de cidade contra cidade, de reino contra reino, de ordem contra ordem, manteve um estado de competição por séculos, de modo que cada um buscava atrair adoradores ao santuário de seu santo padroeiro. A fama de alguns novos santos celebrados, tal como São Tomás da Cantuária, diminuía, por algum tempo, o tráfego e lucro de outros lugares. Daí a necessidade de criar novidades frescas e excitantes por meio de novas descobertas de algo que viraria a maré em favor do novo santuário. Mesmo enquanto escrevo -- setembro de 1873 -- é triste dizer, mas quase mil peregrinos da Inglaterra estão a caminho, não com os pés descalços como antigamente, para Paray-le-monial, na França, a fim de se curvarem diante do santuário do "Sagrado Coração", em honra da freira e santa Margarida Maria de Alacoque. Isto é muito surpreendente, e desperta profundos pensamentos em muitas mentes quanto ao verdadeiro objetivo na mente do papado. Professadamente, é claro, é para o bem das almas dos peregrinos, para a honra da santa, e para o triunfo da igreja. Se voltarmos até os dias de Orígenes, que foi o primeiro a inculcar a adoração aos santos ou ao santuário de Martinho de Tours, que foi o mais popular nos séculos IV e V, até os dias de hoje, temos cerca de 1400 anos de adoração aos santos e peregrinações, tanto na igreja grega (Ortodoxa) quanto na latina (Católica). Não é de admirar que os muçulmanos concluíram que todos os cristãos eram idólatras.

A maioria de nós conhece bem os nomes dos que podem ser chamados de santos universais, tais como os primeiros pais e os santos padroeiros dos reinos; mas descobrir, por meio de uma busca mais profunda sobre essa idolatria, é algo verdadeiramente aterrador. Através de toda a extensão da Cristandade romana existe, para cada comunidade em cada país e para cada indivíduo, um intercessor com Cristo, que é o Único Grande Intercessor entre Deus e o homem. Muitos católicos escolhem seus santos padroeiros com base em seus aniversários -- o dia do santo e em que nasceram. O santo é considerado o protetor peculiar do indivíduo, da comunidade ou do país, de modo que pouco menos do que o poder e a vontade divina são atribuídos aos santos padroeiros. O argumento é que, tendo sido humanos, e ainda possuindo simpatias humanas, eles são menos terríveis e mais acessíveis do que Cristo, e podem exercer sua influência com Ele para o benefício dos lugares  e companheiros de sua jornada terrena. Eles são representados, no entanto, como sendo mutáveis e facilmente ofendidos. Colheitas frutíferas, vitória na guerra, libertação das aflições, segurança na viagem, e misericórdias parecidas, são atribuídas as suas orações; mas, quando ocorrem calamidades, a explicação é de que o santo foi ofendido e deve ser apaziguado. Maior honra deveria, então, ser paga ao seu santuário, e ofertas mais caras deveriam ser colocadas sobre seu altar.

O Culto a Maria

A adoração à Virgem Maria originalmente nasceu do espírito ascético que tornou-se prevalente no século IV. Antes desse período, não há registros de adoração a Maria. Por volta da mesma época -- o final do século IV -- foi descoberto e circulava a ideia de que havia, no templo em Jerusalém, virgens consagradas a Deus, dentre as quais Maria cresceu e fez votos de virgindade perpétua. Essa nova doutrina levou à veneração de Maria como o próprio ideal do estado celibatário, e sancionou a profissão da castidade religiosa. Pouco tempo depois, tornou-se costume aplicar à virgem a designação de "Mãe de Deus", o que deu origem à controvérsia nestoriana. Mas, apesar da toda a oposição, a adoração a Maria prevaleceu; e, no século V, imagens e belas pinturas da virgem segurando o menino Jesus em seus braços foram colocadas em todas as igrejas. Assim introduzidas, elas rapidamente tornaram-se um objeto de adoração direta, e a mariolatria tornou-se a paixão governante da igreja romana. O serviço diário de devoção a Maria, e os dias e festivais que foram dedicados a sua honra, foram confirmados por Urbano II no Concílio de Clermont, em 1095.

A reverência pela bendita virgem tornou-se, então, uma doutrina e prática estabelecida na igreja de Roma, e assim continua até os dias atuais. Os romanistas podem negar que honram Maria com a adoração devida somente a Deus, mas em seus livros de devoção, orações à virgem ocupam um lugar de proeminência. Nenhuma oração, cremos, é de uso tão constante quanto o "Ave Maria", na qual, após a citação de uma passagem da saudação do anjo Gabriel à virgem, acrescentam-se as palavras: "Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós os pecadores, agora e na hora de nossa morte, Amém". Novamente, em outra oração, a virgem é assim invocada: "À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita". Outra diz assim: "Salve-Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, Salve! A vós bradamos, os degredados filhos de Eva; a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Ela, pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei", e assim por diante. Ela também é chamada de "Arca da Aliança", "Porta do Céu", "Estrela da Manhã", "Refúgio dos Pecadores", e muitos outros termos semelhantes, que mostram claramente o lugar de idolatria que Maria ocupa nas devoções da igreja católica.*

{* Para detalhes, veja "Mariolatry" em Faiths of the World, de Gardner, vol. 2, p. 372. E Vidas dos Santos, de Butler -- o grande livro católico romano sobre esse assunto. }

O Rosário, isto é, uma série de orações acompanhadas de um colar de contas (pequenas esferas) pelas quais as orações são contadas, consiste em quinze dezenas. Cada dezena contém dez Ave Marias, marcadas pelas contas pequenas, precedidas por um Pai Nosso, marcado por uma conta maior, e concluída por um Glória ao Pai. Também no Breviário Romano, o grande livro universal de devoção, o qual todo padre deve ler em privado uma porção a cada dia, sob pena de pecado mortal se não o fizer, usa a seguinte forte linguagem no que diz respeito à virgem: "Se o vento das tentações se levanta, se o escolho das tribulações se interpõe em teu caminho, olha a estrela, invoca Maria. Se és balouçado pelas vagas do orgulho, da ambição, da maledicência, da inveja, olha a estrela, invoca Maria. Se a cólera, a avareza, os desejos impuros sacodem a frágil embarcação de tua alma, levanta os olhos para Maria. Se, perturbado pela lembrança da enormidade de teus crimes, confuso à vista das torpezas de tua consciência, aterrorizado pelo medo do juízo, começas a te deixar arrastar pelo turbilhão da tristeza, a despencar no abismo do desespero, pensa em Maria. Nos perigos, nas angústias, nas dúvidas, pensa em Maria, invoca Maria". Assim a adoração a Maria tornou-se, completamente, a adoração da Cristandade, e toda catedral, e quase todas as igrejas espaçosas, tinha sua "Capela de Nossa Senhora".

É certamente mais que evidente, a partir dessas citações, que Maria é invocada não apenas como uma intercessora com seu Filho, mas como o primeiro e mais elevado objeto de adoração. E essas citações são exemplos calmos e sóbrios comparados à linguagem bravia de uma adoração ardente, que pode ser encontrada em hinos, saltérios e breviários. Os atributos de Deus são atribuídos a ela, que é representada como a Rainha do Céu, sentada entre querubins e serafins. O dogma da Imaculada Conceição (ou "Imaculada Concepção") foi o resultado natural dessa crescente adoração a Maria, e tem sido reafirmado como um artigo de fé na igreja católica pelos papas atuais, e aceito pelos fiéis em geral.

A Transubstanciação

Tentar enumerar todas as adições feitas às observâncias externas da religião seria de pouco proveito. Muitos novos ritos, cerimônias, usos, feriados e festivais foram acrescentados de tempos em tempos, tanto publicamente pelos pontífices quanto privativamente pelos padres. Mas nenhuma invenção sacerdotal jamais abriu tal caminho, ou produziu tamanho efeito sobre a mente popular, como a transubstanciação. O dogma não aparece em lugar algum dos escritos dos Pais da igreja, nem dos gregos ortodoxos nem dos latinos católicos. O primeiro traço disso é encontrado no século VIII. No século IX, um período de grandes trevas, o monge Pascásio parece ter dado forma e definição à monstruosa superstição. No século XI, foi fortemente contestada por Berengário de Tours, a habilmente defendida por Anselmo da Cantuária. Continuou sendo um assunto de contenda entre os doutores da igreja até o quarto Concílio de Latrão, que aconteceu no ano de 1215. Foi então colocada entre as doutrinas estabelecidas da igreja de Roma. Por meio de um cânon daquele concílio, foi afirmado que, quando o padre profere as palavras da consagração, os elementos sacramentais do pão e do vinho são convertidos na substância do corpo e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. "O corpo e o sangue de Cristo", dizem, "estão realmente contidos no sacramento do altar sob os elementos do pão e do vinho; o pão sendo transubstanciado no corpo de Jesus Cristo, e o vinho em Seu sangue, pelo poder de Deus, através do padre. A mudança assim efetuada é declarada como tão perfeita e completa que os elementos contêm a totalidade de Cristo -- a divindade, a humanidade, a alma, o corpo e o sangue, com todas as suas partes componentes"*.

{* Faiths of the World, de Gardner, vol. 2, p. 905. Veja também um interessante ensaio sobre o assunto em Variations of Popery, de Edgar, pp. 347-388.}

Desde esse período, o pão consagrado da Eucaristia passou a receber honras divinas. Importantes mudanças também foram introduzidas, por volta da mesma época, no modo de se administrar o sacramento. O vinho consagrado, dizia-se, corria o risco de ser profanado pela barba de quem tomava do cálice, pelos doentes que não fossem capazes de engoli-lo, e pelas crianças sendo propensas a derramá-lo. Assim, a taça foi retirada dos leigos e dos doentes, e a comunhão infantil foi completamente interrompida, pelo menos pelos latinos (católicos): os gregos (ortodoxos) a retiveram e até hoje a praticam.

As mais terríveis superstições naturalmente seguiram-se ao estabelecimento da doutrina da transubstanciação. Em determinado momento da missa, o padre eleva a hóstia consagrada -- um pequeno biscoito feito de farinha e água -- e no mesmo instante o povo cai prostrado diante dela. Em algumas ocasiões, a hóstia é colocada em um belo recipiente e carregada em solene procissão através das ruas, e cada indivíduo, enquanto o recipiente passa por ele(a), curva o joelho em sinal de adoração. Na Espanha, quando o padre leva a hóstia consagrada até uma pessoa que supõe-se estar morrendo, ele é acompanhado por um homem que toca um pequeno sino; e, ao som do sino, todos os que o ouvirem são obrigados a cair de joelhos e permanecerem nessa postura enquanto ouvirem seu barulho. Os padres fazem o povo crer que o Deus vivo, na forma do pão, reside naquele recipiente, e que assim Deus pode ser levado de um lado para o outro. Certamente, esta é a consumação de toda a iniquidade, idolatria e blasfêmia, e a exposição de tudo o que é sagrado ao ridículo do profano. Tais coisas foram concebidas e embaladas em um tempo de grande ignorância, depravação e superstição.

Tal era, e ainda é, a ousada iniquidade do sacerdócio papista; tal é a miserável cegueira da igreja romana! Ainda assim, Deus já suportou isso por mais de mil anos; mas um dia de julgamento virá em que Ele há de julgar os segredos dos corações dos homens, não pelo padrão de um ritual romano, mas pelo evangelho de Jesus Cristo, nosso Senhor. "Porque está escrito: Como eu vivo, diz o Senhor, que todo o joelho se dobrará a mim, e toda a língua confessará a Deus. De maneira que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus." (Romanos 14:11,12)

domingo, 15 de julho de 2018

Os Sete Sacramentos

No Novo Testamento, onde tudo é claro e simples, lemos apenas de dois sacramentos, ou instituições divinas conectadas a um povo já salvo -- o batismo e a ceia do Senhor. Mas tanto na igreja grega (Ortodoxa Grega) quanto latina (Católica Romana) o número de sacramentos tinha sido grandemente aumentado e colocado de formas variadas por diferentes teólogos. Não era mais uma questão de revelação divina, mas da imaginação humana. Alguns falam de doze sacramentos; mas na igreja ocidental, no final, o místico número de sete foi estabelecido, como se correspondesse à ideia dos sete dons do Espírito Santo. E esses eram: o batismo, a confirmação, a eucaristia, a penitência, a extrema unção, a ordenação e o matrimônio.*

{* Veja J.C. Robertson, vol. 3, pp. 259-272.}

Assim foi a armadilha posta diante dos pés dos verdadeiros seguidores de Cristo. Não importava quão sinceramente um homem cria e obedecia à Palavra de Deus: se desconsiderasse os sacramentos da igreja e suas numerosas cerimônias, expunha-se à acusação e às consequências da heresia. Por outro lado, de nada importava também se a Palavra de Deus fosse totalmente desprezada, desde que a obediência à igreja fosse professada. Mas para todos que seguiam o Senhor de acordo com Sua palavra, era impossível escapar: a rede se estendia por todos os cantos.

A Teologia da Igreja de Roma

Capítulo 23: A Teologia de Roma


Estamos agora cruzando o limiar do século XIII. As grandes personagens e os tempos agitados do século XII ficaram para trás. A reflexão disso tudo é solene. Além da linha que separa as dois períodos, não há como ultrapassá-la de volta. E se a agitação do século XII não estivesse verdadeiramente, embora remotamente, conectada à grande Reforma do século XVI, seria de pouco interesse para nós no século XIX*. Mas nesses homens e em suas épocas vemos as grandes correntes do pensamento e do sentimento humano que tiveram sua ascensão nos mosteiros, e seus resultados na liberdade civil e religiosa que agora desfrutamos sob a boa providência de Deus.

{*N. do T.: O autor viveu no século XIX}

Uma nova geração, uma outra classe de homens, agora ocupa o terreno. Os papas, os primazes, os imperadores, os monges, os filósofos e os demagogos com quem nos familiarizamos abriram espaço para outros. Mas para onde eles foram? Onde estão agora? Apenas fazemos a pergunta para que possamos ser levados a melhorarmos nossos próprios dias e nossas próprias preciosas oportunidades -- para que não precisemos lamentar como o profeta da antiguidade: "Passou a sega, findou o verão, e nós não estamos salvos" (Jeremias 8:20).

Chegou o momento, creio, para que as testemunhas de Deus e de Sua verdade tenham um lugar especial em nossa história. Elas têm aparecido proeminentemente, pouco a pouco, diante de nós desde o fim do século XII. Mas, primeiramente, pode ser interessante colocar diante de nossos leitores certas definições e usos teológicos e usos da igreja romana (Igreja Católica Apostólica Romana) nessa época, pois descobriremos que por elas as testemunhas foram julgadas e o papado ganhou seu poder sobre as vidas e liberdades dos santos de Deus. 

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