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domingo, 5 de maio de 2019

Inocêncio e a Inglaterra

Ricardo Coração de Leão foi o grande apoiador de Otão, o candidato papal do império. A Inglaterra, naquele tempo, estava em íntima aliança com a Sé de Roma. Após a morte de Ricardo, seu irmão João, o filho mais novo de Henrique II, foi elevado ao trono. De acordo com as leis atuais de sucessão da Inglaterra, Artur, duque da Bretanha, o filho único e herdeiro de seu irmão mais velho, Godofredo Plantageneta, teria direito ao trono. Mas as coroas naquela época eram tão eletivas quanto hereditárias.

Todo o reinado de João -- 1199-1216 -- é uma história de fraqueza e violência, de impiedade e degradação, de um dos monarcas mais cruéis, sensuais e infiéis que já existiu. Mas a mão do Senhor é muito evidente nos assuntos da Inglaterra naquela época. Nunca um príncipe tão vil usou uma coroa; mesmo assim, Deus, em Sua misericórdia, e em Seu cuidado pela Inglaterra, sobrepujou suas muitas faltas para o benefício da igreja e do povo da Inglaterra. Falamos, é claro, em termos gerais. Mas desde esse reinado pode ser datado o pavor do papado em relação à Inglaterra, e o entusiasmo desse país pela liberdade civil e religiosa. Desastroso até o último grau como foi o reinado de João; humilhante para o rei; ainda assim a voz unida da história afirma que foi então que os fundamentos foram postos do "caráter inglês, das liberdades inglesas, e da grandeza inglesa; e a partir desse reinado, da tentativa de degradar o reino ao nível de um feudo da Sé Romana, podem ser traçados os primeiros sinais dessa independência, dessa aversão às usurpações papais, que levaram eventualmente à Reforma". A mão dominadora de Deus, em Seu cuidado especial pela Inglaterra, foi manifesta em todas as suas revoluções desde então. Mal houve qualquer benefício, nem para a igreja, nem para o Estado da França, da interferência do papa no caso de Filipe, exceto pelo fato de que eles puderam sentir o horror do poder papal. Mas, ali, nenhuma Carta Magna foi assinada, e nenhuma Câmara dos Comuns foi erigida, diferentemente do que ocorreu mais tarde na Inglaterra.

Um dos primeiros e grandes escândalos de João revelam, à mais clara luz, o caráter sem princípios da política de Inocêncio. João tinha sido casado por doze anos com uma das filhas do conde de Gloucester antes de subir ao trono. Depois disso, aspirando uma conexão com a realeza, ele buscou uma dissolução, e assim o obsequioso arcebispo de Bordeaux dissolveu o vínculo matrimonial. De repente, ele ficou encantado com uma senhora que era a noiva prometida do conde de Mark, levou-a e casou-se com ela, enquanto sua própria esposa ainda era viva. Mas o que iria dizer agora o papa sobre o santo sacramento do matrimônio -- ele, cujo horror a tais conexões tinha tão inexoravelmente demonstrado no caso de Filipe e Inês? Poderíamos esperar que rápidos e carregados seus trovões voariam até o rei adúltero; mas não! Nenhuma censura foi pronunciada de Roma, nem contra o rei, nem contra o arcebispo. Ele confirma a dissolução do casamento perante a face de Deus, da igreja, e do mundo. Tal era a flagrante iniquidade da "sua santidade, sua infalibilidade". Mas por que essa demonstração de tal parcialidade para com João? Porque ele foi o apoiador de Otão, e o inimigo da casa da Suábia.

Mas enquanto o papa permanecia quieto, o mundo estava escandalizado. Tal ultraje de um grande vassalo era uma violação da primeira lei do feudalismo. Os barões de Anjou, Touraine, Poitou e Maine estavam ansiosos para vingar a indignidade oferecida a Hugo de la Mark, e desde aquele dia eles se consideraram absolvidos de sua fidelidade a João. Eles apelaram a Filipe, rei da França, por uma reparação. Filipe Augusto sentiu sua força, e convocou o rei inglês para responder, em suas cortes de Paris, pelos erros cometidos contra o conde de Mark. João não apareceu; isso levou a uma guerra ruinosa, e à perda de imensos territórios na França e na Inglaterra. Em poucos meses, Filipe arrancou de João a grande herança de Rollo -- o grande ducado anglo-normando, que nos dias de seu pai Henrique II, equivalia em extensão dos seus territórios, receitas, forças e riquezas a todos os territórios sob os quais o rei da França dominava.*

{*Para detalhes, veja as histórias civis e gerais da igreja, as quais frequentemente citamos no decorrer do texto.}

domingo, 14 de abril de 2019

A Ira do Rei

Filipe Augusto (Filipe II) foi um príncipe orgulhoso, arrogante e cheio de si, não acostumado a suportar silenciosamente uma tão grande interferência. Ele irrompeu em ataques de fúria, e jurou pela espada de Carlos Magno que preferia perder metade de seus domínios do que se separar de Inês de Merânia. Ele ameaçou o clero com medidas extremas se eles ousassem obedecer o papa. Ingeborg foi capturada, arrastada de seu claustro e aprisionada no reforçado castelo de Etampes. Mas a ira do rei não prevaleceria sobre o severo decreto do papa. Os barões, cujo poder ele tinha reduzido, não se preocuparam em apoiá-lo; o povo estava em um estado de piedosa revolta. Eles tinham se reunido ao redor das igrejas, forçavam as portas; eles estavam determinados a não ficarem privados de seus serviços religiosos. O rei ficou alarmado com os motins entre o povo, e prometeu obedecer o papa.

Uma delegação foi enviada a Roma. O rei reclamou dos duros procedimentos do legado, mas declarou-se pronto a cumprir a sentença do papa. "Que sentença?", exclamou severamente sua santidade; "ele conhece nosso decreto; faça-o repudiar sua concubina, receber sua esposa de direito, reinstaurar os bispos a quem expeliu, e que dê-lhes satisfação por suas perdas. Então retiraremos o interdito, receberemos suas garantias, examinaremos o alegado relacionamento, e pronunciaremos nosso decreto". A resposta veio ao coração de Inês, e levou o rei à loucura. "Vou me tornar muçulmano", exclamou ele. "Feliz é Saladino, que não tem um papa sobre ele". Mas o arrogante Filipe tinha que se curvar. As afeições e os sentimentos religiosos de todas as classes estavam do lado do clero. Ele convocou um parlamento em Paris, que foi assistido por todos os grandes vassalos da coroa. "O que faremos?", exigiu o rei, com sua bela Inês ao seu lado. "Obedeça o papa, dispense Inês, e receba de volta a Ingeborg", foi a esmagadora resposta. Assim, aquele que tinha dobrado a França em extensão pelo gume afiado de sua espada e pela prudência de sua política; aquele que tinha erguido a coroa a uma certa independência acima dos grandes senhores feudais; agora esse mesmo tinha que beber o chorume da humilhação na presença dos nobres da França a pedido do papa.

A cena era esmagadora. Inês declarara que nada lhe importava a coroa, que era seu marido que ela amava; uma estranha, filha de um príncipe cristão, jovem e ignorante do mundo, tinha se casado com o rei, e com ele tivera dois filhos. "Não me separem do meu marido", era seu tocante apelo. Mas o inexorável decreto foi emitido: "Obedeça o papa, dispense Inês, receba de volta a Ingeborg". O rei por fim concordou com uma reconciliação com Ingeborg. Ela foi trazida diante dele, mas a vista dela despertou tanto a aversão do rei que as negociações foram quase quebradas. Enfim, ele dominou seus instintos pelo momento e curvou-se à sentença papal. Ele jurou recebê-la e honrá-la como rainha da França. Naqueles momento, o soar dos sinos proclamaram que o interdito que pesava tanto sobre o povo por mais de sete meses tinha sido retirado. "As cortinas foram retiradas de sobre as imagens e crucifixos, as portas das igrejas se abriram, e as multidões se aglomeravam para saciar seus desejos piedosos que haviam sido suprimidos durante o período do interdito".

Roma alcançou seu objetivo; ela triunfou sobre o maior rei da cristandade, e assim cumpria-se a Palavra de Deus: "A mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra" (Ap 17:18)*. O domínio universal sobre os corpos, almas e assuntos dos homens era seu desejo insaciável, seu incessante objetivo. E além dessa demonstração de poder, não podemos supôr que Roma tivesse qualquer outro maior objetivo em vista, pois tinha sancionado, no grande predecessor de Filipe (Luís VII), uma conduta muito mais ultrajante.

{* N. do T.: Isso não significa que isso já foi cumprido e que não se cumprirá mais no futuro. Aqui temos apenas uma demonstração do espírito da Babilônia, que será levada a ainda maiores extremos no período da grande tribulação, do qual narra essa passagem de Apocalipse.}

O aflito rei então se separou de sua Inês, ambos com o coração partido. Pouco tempo depois ela morreu de dor, tendo dado à luz um filho, a quem ela deu o significativo nome de João-Tristão -- o filho de minha tristeza. Ingeborg foi recebida com honra exterior, mas viveu na realidade como uma prisioneira do Estado; nada podia jamais induzir Filipe a viver com ela como sua esposa, embora tenha consentido que vivesse no palácio. Novas disputas entre a França e Inglaterra desviaram a mente de Inocêncio da rainha negligenciada e abriram um campo mais convidativo para sua mente ativa e ambiciosa.  

O Legado Papal na França

Pedro, cardeal de Santa Maria na Via Lata, foi enviado à França como legado, com autoridade, no caso da obstinação do rei, para estabelecer seus domínios sob o banimento papal. Mas o rei tratou com desprezo e desafio a ordem de afastar sua amada Inês, e receber novamente a odiada Ingeborg. O papa foi inflexível. "Se, dentro de um mês", escreveu ele ao legado, "após sua comunicação, o rei da França não receber sua rainha com afeição conjugal, todo o seu reino deve ser interditado -- um interdito com todas as suas terríveis consequências". Um concílio ocorreu em Dijon, mensageiros do rei apareceram, protestando em seu nome contra todos os outros procedimentos, e apelando a Roma. Mas as ordens ao legado eram peremptórias. O interdito foi proclamado com todo as suas terríveis circunstâncias, sendo assim descrito: -- "À meia-noite, cada padre, levando uma tocha, cantou um salmo para o miserável, e orações para os mortos, as últimas orações que deveriam ser proferidas pelo clero da França durante o interdito. Os crucifixos foram cobertos com um tecido preto; as relíquias escondidas dentro das tumbas; a hóstia foi toda consumida. O cardeal, vestindo sua estola violeta, pronunciou os territórios do rei da França como estando sob o banimento. Todos os serviços religiosos daquela época cessaram; não havia mais acesso ao céu pela oração ou oferta. Apenas os soluços das mulheres mais velhas e crianças quebravam o silêncio. O interdito foi pronunciado em Dijon. Apenas o batismo das crianças e a extrema unção dos moribundos foram permitidos pela igreja durante o período em que o reino esteve sob a maldição do banimento papal".

Pela culpa do soberano a nação inteira deve sofrer -- assim deve ter pensado o papa -- para que seu coração possa ser amolecido, seja por piedade pela miséria de seu povo ou pelo medo de seu descontentamento; pois a morte nessa época era tida como a perdição eterna. "Ó, quão terrível", exclamou uma testemunha ocular, "quão lamentável espetáculo aquilo foi em todas as nossas cidades! Ver as portas das igrejas vigiadas, e cristãos tirados delas como cães; todos os ofícios divinos cessaram; o sacramento do corpo e do sangue para a alma não mais se oferecia; o povo não se reunia mais como de costume nos festejos aos santos; os corpos dos mortos não eram admitidos ao enterro cristão, e o fedor deles infectava o ar, e a visão repugnante deles chocava os vivos: apenas a extrema unção e o batismo eram permitidas. Houve um profundo silêncio por todo o reino, enquanto os órgãos e as vozes daqueles que cantavam os louvores de Deus foram silenciadas em todos os lugares"*.

{*Ver Latin Christianity, vol. 4, p. 67.} 

domingo, 7 de abril de 2019

Inocêncio e Filipe Augusto

Vimos a interferência de Inocêncio na elevação de três imperadores ao trono do Império Romano-Germânico, e a política que ele perseguiu de modo a obter um maior poder secular para a Sé romana, e um domínio extensivo sobre as mentes e o modo de vida de toda a humanidade. Agora o seguimos ao reino da França, para ali testemunhar uma expressão do mesmo poder pontifício, mas sobre outras bases, e por outros objetivos. Agora ele aparece como o protetor da inocência contra o erro, o pregador da moral cristã, e o mantenedor da santidade do vínculo matrimonial. Poderíamos estar dispostos a supôr que, em sua disputa com Filipe II da França, ele possa ter atuado por um motivo correto; mas sua conduta exterior é marcada pelo mesmo espírito ditatorial que até então caracterizava seu reinado. Ele assume para si a alta função da suprema direção de todos os assuntos humanos; como árbitro em última instância, seja o assunto um trono contestado ou o santo sacramento do matrimônio. Mas nosso principal objetivo, sob esse título, é dar ao leitor um exemplo de como um reino inteiro foi colocado sob o banimento papal. É difícil, em nossos dias, acreditar nas terríveis consequências disso.

Uma circunstância notável, relacionado ao segundo casamento de Filipe, forneceu a Inocêncio a oportunidade desejada de castigar e humilhar o aliado e apoiador da casa da Suábia. Em seu retorno da cruzada em 1193, ele foi atraído pela fama da beleza e virtudes de Ingeborg, ou Isemburge, irmã do rei da Dinamarca. A mão do rei da França foi prontamente aceita, e o dote fixado. Ela chegou à França sob o comando de uma nobreza dinamarquesa, e o rei apressou-se a encontrá-la em Amiens. No dia seguinte ao casamento deles, o casal real foi coroado; mas, durante a cerimônia de coroação, percebia-se que Filipe estremecia e estava pálido. Logo descobriu-se que ele tinha concebido uma inconquistável aversão por sua nova rainha. Como não se podia achar uma causa verdadeira para tal mudança no rei, o fato foi popularmente atribuído à feitiçaria, ou alguma influência diabólica. Ela é descrita como tendo modos gentis, muito bonita, e uma cristã sincera. Filipe propôs enviá-la de volta para a Dinamarca, mas seus súditos recusaram realizar tal vergonhoso ofício; e ela própria tinha se determinado a permanecer na França.

O rei se encontrava então em grande dificuldade. Ele pediu o divórcio, mas sabia que, a menos que uma dissolução do casamento pudesse ser obtida da forma devida, ele não teria paz. As genealogias das casas reais foram traçadas, e, tendo os bispos devotos ao rei descoberto que o casal real se encontrava dentro dos degraus de parentesco que impossibilitavam o casamento, o clero da França, encabeçado pelo arcebispo de Reims, pronunciou o casamento como nulo e vazio. Quando a sentença foi explicada a Ingeborg, que mal conseguia falar uma palavra sequer em Francês, seus sentimentos de indignação foram expressos ao exclamar: "Maldita França! Roma! Roma!" Seu irmão assumiu sua causa e apelou ao velho papa da época, Celestino; mas este se sentia muito fraco para disputar com o poderoso rei da França, e nenhum passo decidido foi tomado durante o restante de seu pontificado. Enquanto isso, Ingeborg foi encerrada em um convento, e Filipe casou-se com Inês, a bela filha do duque de Merânia. Sua afeição por Inês era tão intensa quanto seu ódio por Ingeborg. A primeira foi introduzida, em todas as ocasiões, para agraciar o círculo real; a último foi arrastada de convento em convento, ou melhor, de prisão em prisão.

Tal era o estado das coisas na França quando Inocêncio defendeu a causa da repudiada princesa da Dinamarca. Ele primeiramente escreveu ao bispo de Paris, e depois ao próprio rei. Depois de defender a santidade do casamento, ele advertiu o rei para que deixasse Inês e restaurasse Ingeborg. O rei orgulhosamente declarou que os assuntos de seu casamento não eram da conta do papa. Mas Filipe logo sentiria o poder e o terror dos trovões papais, e como nunca antes tinham sido sentidos na França.

A Apostasia de Otão

A coroa imperial estava agora na cabeça de Otão. Não apenas ele foi coroado pelas mãos de Inocêncio na cadeira de São Pedro, em Roma, como também foi elevado a tal dignidade pela política astuta e cruel da Sé apostólica. Mas o enganador foi enganado; o traidor foi traído. Mal tinha acabado a cerimônia de coroação e a máscara de obediência sob a qual Otão tinha velado suas verdadeiras intenções foi jogada fora. O efeito da coroa de ferro foi irresistível. Ele sentiu-se um novo homem, em uma nova posição, e obrigado a manter as prerrogativas de sua coroa contra as usurpações do poder espiritual. A partir daquele momento, o imperador e o papa tornaram-se inimigos implacáveis. Tal foi o desapontamento, tendo sido subjugado pelo justo governo de Deus, do inescrupuloso pontífice. Satanás pode governar, mas um Deus todo-sábio tudo anula. "Não erreis", disse o apóstolo, "Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará" (Gálatas 6:7). Inocêncio tinha ensinado seu candidato a enganar, e agora ele come o amargo fruto de seu próprio ensino.

A força e os números incomuns do exército de Otão, que o acompanhava, e que então se acampavam sob as muralhas de Roma, eram vistos com grande inveja pelos habitantes. As brigas, que se tornaram costumeiras em tais ocasiões, foram renovadas com grande ferocidade. Muitos dos germânicos foram mortos, assim como muitos de seus cavalos -- assim disseram eles, pelo menos. Mas foi o suficiente. A ambição antes sufocada de Otão estava agora inflamada em uma chama de indignação. Ele retirou-se irado da cidade, exigindo compensação. Inocêncio recusou. As tropas foram distribuídas através do patrimônio de São Pedro, para grande dano ao povo e para aumentado alarme por parte do papa. Foi pedido ao imperador que retirasse seus soldados da vizinhança de Roma, mas ele declarou que eles continuariam até que as provisões do país se exaurissem. Ele se enriqueceu com a pilhagem dos peregrinos, a quem seus soldados interceptavam em seu caminho a Roma. Ele marchou até a Toscana, tomou posse de cidades na fronteira do território da condessa Matilde, sitiou cidades e fortalezas que o papa tinha antes ocupado; propriedades e dignidades reivindicadas pelo papa ele entregou ao mais formidável adversário do papa, o conde Diephold, a quem o imperador entregou o ducado de Espoleto. O sucesso infamou sua ambição, e assim ele contemplou a invasão da Sicília, prendendo o jovem Frederico, o último da casa de Hohenstaufen.

Aquele que tinha se proclamado infalível estava desesperado. Após todos os seus trabalhos, todos os seus sacrifícios, todas as suas traições, ele tinha levantado para si um antagonista mais formidável, um inimigo mais amargo do que qualquer um dos da família suábia tinham sido. Os mais fervorosos apelos à sua gratidão, as mais solenes admoestações, os mais altos trovões de excomunhão, foram igualmente desconsiderados pelo pupilo obstinado de Ricardo Coração de Leão.    

domingo, 31 de março de 2019

A Morte de Filipe

A paz então parecia ter sido assegurada de ambos os lados. Filipe tinha alcançado seu maior objetivo. Uma proposta de casamento entre Otão e Beatriz, a filha de Filipe, tinha sido sancionada pelo papa, sob a pretensão de curar a longa disputa entre as casas da Suábia e da Saxônia. Mas incerto é o mandato de toda a grandeza e glória humana. Em 21 de junho de 1208, o imperador Filipe, um dos mais hábeis e gentis de sua raça, foi assassinado pelo conde palatino de Baviera por alguma ofensa particular. O país ficou paralisado pelas notícias sobre o terrível crime. A execração da humanidade perseguiu o assassino; seu castelo foi derrubado até o chão e o assassino foi morto com muitas feridas.

Inocêncio então retraçou seus passos. O crime do bávaro o aliviou da humilhação de sua apostasia. Ele apressou-se a escrever aos príncipes germânicos, os exortando a estarem de acordo com a manifesta declaração de divina providência em favor de Otão. Ele usou todos os meios em seu poder para prevenir uma nova eleição, e para unir todos os partidos em seu apoio, e calorosamente exortou Otão à moderação e conciliação. Em ambos os lados havia um ardente desejo por paz, e Otão foi então eleito o indiscutível imperador.

No ano seguinte, 1209, ele foi para a Itália para receber a coroa imperial. Ele foi recebido por príncipes, prelados e nobres do império, com um numeroso exército de dependentes militares. A marcha deles foi uma sucessão de recepções festivas. As cidades abriram seus portões para dar as boas vindas ao defensor da igreja e imperador escolhido pelo papa. Inocêncio e Otão se encontraram em Viterbo. "Eles se abraçaram, enxugaram lágrimas de alegria, em lembrança de suas provações em comum, enquanto eram transportados ao seu triunfo em comum". Mas o papa não esqueceu a prerrogativa de seu trono pontifício. Ele exigiu, por segurança, que Otão entregasse, imediatamente após sua coroação, as terras da igreja, e entregasse toda pretensão à herança longamente disputada da condessa Matilde. Mas tão bom, tão humilde e tão submisso foi Otão, enquanto se ajoelhava para receber o diadema, que seu coração se entristeceu ante a aparente suspeita de sua lealdade por seu santo padre. "Tudo o que eu fui", exclamou ele, "tudo o que sou,  tudo o que eu serei, depois de Deus, eu devo a ti e à igreja." 

A Guerra Civil na Alemanha

Ricardo, rei da Inglaterra, e Filipe Augusto (Filipe II), rei da França -- que abraçou calorosamente a causa de Filipe -- não pouparam elogios e confissões para conquistar o papa para o partido de seus respectivos candidatos. Mas ele postergou a decisão de tomar partido, tendo em vista outros objetivos para ser tão direto. Enquanto isso, a guerra estourava ao longo do rio Reno. Filipe, no início, ganhou grandes vantagens, avançando quase até os portões de Colônia, mas um poderoso exército dos prelados do Reno e de nobres de Flandres obrigou Filipe a se retirar. A maior e mais poderosa parte do império reconhecia e apoiava a causa de Filipe; o clero e o Conde de Flandres estavam quase sozinhos ao lado de Otão.

Foi uma guerra civil feroz e bárbara. Ao final do primeiro ano, a sorte favoreceu a causa de Filipe. A morte de Ricardo, em 1199, tinha privado Otão de seu mais poderoso aliado. João, que o sucedeu, não estava disposto a investir parte de seu dinheiro em um jogo tão distante e incerto. A guerra podia então ter terminado com uma boa demonstração de honra, até mesmo para Otão; mas a vingança papal contra a odiada casa de Hohenstaufen ainda não estava completa. O papa apoiou abertamente a causa do usurpador, Otão; e por nove anos longos e sombrios, com curtos intervalos de trégua, a Alemanha foi lançada, pelo "tenro pastor" do rio Tibre, a todos os horrores de uma guerra civil. Mas a política fraudulenta de Inocêncio logo tornou-se visível a todos. Seu rebanho sofredor acusou-o e reprovou-o como o culpado por todas as suas misérias, por ter provocado, inflamado e atiçado o desastroso conflito, apenas pela gratificação de seu próprio propósito maligno de arruinar a casa real de Henrique, o Severo. Era necessária toda a sua inteligência, com a ajuda de Satanás, para que pudesse ser absolvido da acusação.

Mas a guerra tinha feito seu trabalho -- seu trabalho de dragão. "Foi uma guerra, não de batalhas decisivas, mas de saqueadores, desolação, devastação de colheitas, pilhagem, destruição de países abertos e sem defesa -- uma guerra, travada por clérigos contra clérigos, por príncipe contra príncipe; boêmios selvagens e soldados bandidos de todas as raças percorriam cada província. Por toda a terra não havia lei; as estradas eram intransitáveis por causa dos salteadores; nada era poupado, nada era tido como sagrado, nem igreja nem claustro". Tal, e daí para pior, foi a guerra civil na Alemanha. No entanto, a mente implacável daquele homem desgraçado continuava a trovejar suas anátemas contra Filipe; declarou todos os juramentos que tinham sido feitos a ele nulos e vazios, e regalou de privilégios e imunidades de todos os tipos aos bispos e sociedades monásticas que abraçavam o partido de Otão. Mas os trovões do Vaticano tornaram-se inúteis, e a força de Filipe aumentava ano após ano.*

{* J.C. Robertson, vol. 3, p. 297. Milman, vol. 4, p. 51. Neander, vol. 7, p. 236.}

Nem mesmo a mente inflexível de Inocêncio podia escapar do poder dos acontecimentos. Ele se sentia ameaçado com a humilhação de uma derrota total. Ao final de dez anos, não havia mais esperança para a causa de Otão. Mas como pode o papa esquecer seus votos de implacável inimizade contra a casa da Suábia, ou lutar por seus votos de aliança perpétua com a casa da Saxônia? Ele tinha que encontrar algum motivo santo e piedoso para abandonar a causa de Otão, e abraçar a causa de Filipe. Seu orgulho encontrou grande dificuldade em cobrir a vergonha de sua depreciada posição, mas Filipe fez tantas declarações e promessas ao papa, por meio seus embaixadores, que ele viu como dever receber de volta seu filho penitente, e absolvê-lo das censuras da igreja. O legado papal foi até Metz, e ali o proclamou como imperador vitorioso.

Filipe e Otão

Filipe tinha vinte e dois anos de idade, e Otão vinte e três. "No caráter pessoal", dizem os cronistas, "em riqueza, e em número de aderentes, Filipe tinha a vantagem. Ele foi louvado por sua moderação e seu amor pela justiça. Sua mente tinha sido cultivada pela literatura a um grau muito incomum entre príncipes, e seus modos populares contrastavam favoravelmente com o orgulho e aspereza de Otão. Mas Otão era o favorito do grande corpo de clérigos, a quem Filipe era detestável, sendo representante de uma família que era considerada opositora aos interesses da hierarquia clerical."*

{*J.C. Robertson, vol. 3, p. 292.}

Mas -- pode o leitor perguntar -- e quanto ao jovem Frederico, que tinha sido coroado e ungido, e a quem ambos os príncipes e prelados tinham jurado lealdade, e sobre cujos direitos o papa foi generosamente pago para vigiar e cuidar? A única resposta a essa pergunta é encontrada na política secreta, porém pérfida, de Inocêncio. Seu único grande objetivo em permitir, se não em criar, essa grande disputa nacional pela coroa imperial, era a humilhação da arrogante casa da Suábia, de modo que toda consideração dos subordinados deviam ser sacrificados objetivando a limitação desse poder. Mas à consciência elástica do papado nunca faltava um motivo aparentemente piedoso para a perpetração das maiores iniquidades, ou da mais infiel e traiçoeira conduta. Inocêncio não podia negar as reivindicações de Frederico, e portanto faz uma demonstração de alta equidade ao admiti-la. Essa era a voz do dragão. Ele admite a legalidade de sua eleição, e o juramento de lealdade tomado pelos nobres do império. Mas, por outro lado, ele desenterra o fato de que o juramento foi exigido pelo pai antes do filho ter se tornado um cristão pelo batismo. Ele decretou que uma criança de dois anos de idade, não batizado, era uma nulidade: portanto seus juramentos eram nulos e vazios e todas as obrigações para com o jovem herdeiro foram inteiramente deixadas de lado.

Que caráter, podemos exclamar, para a posteridade contemplar! Ele que assumia ser "o representante da justiça eterna e imutável de Deus sobre a terra, absolutamente acima de toda paixão ou interesse", agora absolve todo o eleitorado da Germânia do mais solene juramento de fidelidade ao herdeiro legítimo do reino. Em vez de manter os direitos de sua ala -- a quem ele escreveu quando aceitou o cargo de cuidador de Frederico, "que apesar de Deus o ter visitado pela morte de seu pai e mãe, ele tinha lhe dado um pai mais digno -- Seu próprio vigário na terra; e uma melhor mãe -- a igreja" -- repreendendo os partidos rivais e os persuadindo à paz, o vemos fomentando a animosidade de ambos; vemos a justiça, a verdade, a paz, e toda reivindicação de humanidade, sacrificada na esperança do aumento e consolidação do poder papal. O astuto papa manteve-se por trás da cena, mas era ele que atiçava e alimentava a chama da contenda, sabendo que ambos os partidos seriam obrigados, pela perda de sangue e tesouros, a colocar a causa aos seus pés, e então ele poderia vir como o soberano diretor dos reis, podendo então ditar seus próprios termos. Essas convicções se confirmaram totalmente pelo seguinte juízo dado pelo historiador e decano Milman: "Dez anos de lutas e guerra civil na Alemanha devem ser traçadas como provenientes da obstinação inflexível do Papa Inocêncio III"*.

{* Latin Christianity, vol. 4, p. 33.}

domingo, 17 de março de 2019

Inocêncio e o Império

Antes do final do ano agitado em que estivemos viajando, Constança, a princesa siciliana e imperatriz germânica, morreu. Em 27 de novembro de 1198, ela deu seu último suspiro. Alguns supõem que sua morte foi acelerada pela preocupação maternal que ela tinha por seu filho pequeno, Frederico. Ele tinha, então, cerca de quatro anos de idade, tinha sido coroado rei da Sicília, e era herdeiro do império. Em seu testamento ela o legou à tutela do papa como seu suserano, e solicitou que trinta mil peças de ouro fossem pagas anualmente ao papa por sua piedosa proteção ao seu filho, e que todas as suas outras despesas fossem pagas por meio dos impostos arrecadados do país.

Mas a tranquilidade de Roma não estava assegurada por seus grandes sucessos. A guerra civil, com todos os seus horrores, foi renovada. O pontífice não perdeu tempo em dar a conhecer, em mais alta expressão aos nobres da Sicília, sua ascensão ao governo como regente, e encarregou um legado de administrar o juramento de lealdade. Marcovaldo, enquanto isso, ouvindo sobre a morte da imperatriz, apelou para seu título de senescal* do Império, e, por meio de um documento que professava ser a vontade do último imperador, reivindicou a regência da Sicília durante a minoridade do jovem rei. Para apoiar essas reivindicações, ele tinha reunido uma grande força de aventureiros, sitiou e obteve posse de uma das cidades papais, Germano, e quase se tornou o mestre do grande mosteiro de Monte Cassino, que foi defendido por oito anos por uma guarnição do papa; mas um novo suprimento de tropas e provisões de Roma fortaleceram a posição dos monges guerreiros, obrigando o grande duque a levantar o cerco. De acordo com as melhores autoridades, Inocêncio então assumiu a mais bélica atitude. Ele emitiu uma proclamação, convocando todo o reino de Nápoles e Sicília à guerra. Ele reuniu tropas da Lombardia, Toscana, Romanha e Campânia, pagando-as do tesouro papal. Marcovaldo e todos os seus cúmplices foram excomungados da forma mais solene todos os domingos, com o apagar de velas** e o soar das campainhas. Todo o reino foi devastado pelos exércitos do papa e pelos soldados do império. Mas a morte do chefe dos rebeldes, Marcovaldo, no ano de 1202, aliviou o papa de seu mais poderoso e bem-sucedido antagonista.

{*N. do T.: Um senescal era um oficial nas casas de nobres importantes durante a Idade Média. No sistema administrativo francês medieval, o senescal era também um oficial real, encarregado da aplicação da justiça e do controle da administração nas províncias do sul, equivalente ao '"bailio" do norte da França. Fonte: Wikipedia}

{**N. do T.: O apagar de velas representava a extinção das vidas representadas com a comunhão da igreja.}

Voltemos agora um pouco para observar o funcionamento dessa mesma mente poderosa nos complicados assuntos do império.

Um imperador infantil, agora um órfão; um trono vago, ferozmente contestado por príncipes rivais; isso tudo abriu um campo ainda mais amplo para a ambição papal.

O objetivo imediato da política de Inocêncio era separar o reino da Sicília do império. Enquanto ambos permanecessem debaixo das mesmas mãos, um soberano mais poderoso do que ele próprio poderia ser colocado no trono siciliano. A possibilidade de um vizinho tão poderoso deveria ser removida. A disputa então pela posse da coroa deu-lhe a oportunidade desejada. As tropas, sendo solicitadas em seus respectivos territórios, foram retiradas da Sicília, Apúlia e Cápua. As guarnições sendo assim reduzidas, o domínio germânico foi derrubado, os países separados do império, e a autoridade papal estabelecida pela força.

Imediatamente após a morte de Henrique, seu irmão, Filipe, duque da Suábia, tomou posse dos tesouros imperiais, declarou-se regente do reino e protetor dos interesses de seu jovem sobrinho. E até então ele parecia agir por um motivo correto. Mas um imperador infantil era algo contrário ao costume germânico, e inadequado para aqueles tempos difíceis. Um partido adverso rapidamente se ergueu, e se opôs fortemente à eleição do filho como rei. Os partidários da casa de Hohenstaufen pediram a Filipe que se tornasse representante de sua família, em oposição aos outros candidatos à coroa. Ele consentiu, tendo sido escolhido defensor do reino por um grande corpo de príncipes e prelados reunidos em Mulhausen.

O partido que se opunha à família suábia era encabeçada por Adolfo de Altena, arcebispo de Colônia. Essa facção era principalmente composta de grandes clérigos do Reno. Tal era a principal ocupação dos prelados e clérigos naqueles dias. Eles estavam determinados a levantar um antagonista à casa de Hohenstaufen. Após vários príncipes terem recusado tornarem-se candidatos à dignidade imperial, os clérigos voltaram seus pensamentos à casa da Saxônia, a irreconciliável adversária da casa da Suábia. A escolha deles caiu sobre Otão IV, o segundo filho de Henrique, o Leão, duque da Saxônia.

Em consequência da família de seu pai ter caído sob o banimento do império, ele foi levado à corte da Inglaterra. Sua mãe Matilda era irmã do rei Ricardo Coração de Leão. O jovem cavaleiro tinha mostrado sinais de bravura que Ricardo admirava, e criou Otão como o primeiro conde de York e Poitou. Bem guarnecido com ouro inglês e com alguns poucos seguidores, ele partiu, chegou à Colônia, onde foi proclamado imperador do Império Romano-Germânico e defensor da igreja.

terça-feira, 5 de março de 2019

Inocêncio e as Propriedades da Igreja

A morte de Henrique, os ciúmes e rivalidades dos chefes germânicos, e o estado exasperado dos italianos, preparou o caminho para o pleno exercício dos grandes poderes da administração de Inocêncio. As crueldades do imperador Henrique para com seus súditos italianos haviam atiçado todo o país em busca de revolta. Eles estavam apenas aguardando um libertador do jugo germânico. Esse libertador era Inocêncio. Ele convocou Marcovaldo, o mais formidável dos tenentes imperiais no comando, para que entregasse a São Pedro todas as propriedades da igreja. Marcovaldo fez uma pausa: embora ele fosse um homem ousado e ambicioso, e possuidor de grande riqueza e poder, ele desejava evitar uma disputa aberta com o papa. Ele estava consciente do perigo que corria pelo ódio que o povo nutria contra o jugo estrangeiro; e assim esforçou-se em conseguir uma aliança com muitas promessas de serviço à igreja. Mas o papa permaneceu firme e resistiu a todas as suas ofertas, fossem de dinheiro ou de serviço. Ele exigiu a entrega incondicional e imediata de todos os territórios da igreja. Marcovaldo recusou. O povo se levantou para apoiar as reivindicações do papa. A guerra começou. As bandeiras germânicas foram rasgadas, cidade após cidade se ergueu em rebelião e lançou ao chão tudo o que fosse germânico. Marcovaldo, insultado e ardendo em ira, "vingou-se ao sair dos portões de Ravena, devastando toda a região, queimando, saqueando, destruindo propriedades e colheitas, castelos e igrejas. Inocêncio abriu os tesouros papais, pegou emprestado grandes somas de dinheiro, ergueu um exército, e lançou uma excomunhão contra o vassalo rebelde da igreja, na qual ele absolvia de seus juramentos todos os que tinham jurado lealdade a Marcovaldo"*.

{*Milman, vol. 4, p. 19}

A queda de Marcovaldo encheu os outros de consternação. Eles propuseram termos de paz e ofereceram pagar tributo, mas Inocêncio não queria aceitar nada. Ele reivindicou a posse dos domínios patrimoniais sem reservas, declarou-se herdeiro da doação da condessa Matilde, e soberano do ducado da Toscana. Mas nenhum evento, vindo em consequência à doença do Imperador, foi mais importante para o papado do que a conduta infiel da imperatriz Constança. Imediatamente após a morte de seu marido, embora tivesse deixado a guarda natural do reino, separou-se da causa germânica e retornou à Sicília com seu filho pequeno Frederico. Ela abraçou os interesses de sua terra natal, lançou-se nos braços da Santa Sé, fez com que seu filho fosse coroado em Palermo, e solicitou a investidura pontifícia do reino para seu filho como um feudo da sé papal. Inocêncio viu sua própria força, sua fraqueza, e fez seus próprios termos. A imperatriz e seu filho foram obrigados a reconhecer a superioridade feudal absoluta do papa sobre todo o reino de Nápoles e Sicília, e que pagassem um alto tributo anual. Os guerreiros germânicos foram obrigados a se retirarem para os castelos no continente, mas apenas para que meditassem em sua presente derrota e futura vingança.

As conquistas de Inocêncio tinham sido rápidas e estavam aparentemente completas. Em menos de um ano após sua ascensão ao trono papal, ele era virtualmente o rei da Sicília, e mestre de seus próprios grandes territórios. Por meio de seus legados, ele fez sua presença ser sentida e forçou obediência em todos os seus recém adquiridos domínios. Mas, como sempre, a besta na qual monta a mulher tornou-se ainda mais obstinada. Os territórios, fortalezas, cidadelas e terras, que tinham sido recuperadas dos germânicos, foram reivindicadas pela sé papal como sendo sua possessão. Mas, como tais exigências fossem tanto injustas quanto ilegais, a resistência da parte dos cidadãos e dos governadores imperiais foi a consequência natural, e por anos a Sicília e suas províncias foram palco de anarquia, violência, derramamento de sangue e incessantes intrigas. E ainda assim, nessa mesma época, Inocêncio lembrou aquelas cidades que se opunham a entregar-lhe o total benefício de sua duramente adquirida libertação, da terrível natureza do poder a que eles ousaram se opôr. A falta de confiança deles para com o papa era considerado um crime contra o próprio Senhor Jesus, cujo sucessor era ele, "alguém em que não havia pecado algum, nem na sua boca se achou engano". Podia a blasfêmia ser mais ousada, ou mais descarada? Poderia haver uma tentativa mais perversa de unir o dragão e o cordeiro?

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Inocêncio e o Reino da Sicília

Mas a cidade imperial, nesse momento, estava cercada por muitos vizinhos perigosos. Livrar-se deles foi, então, a primeira e importante questão com a qual Inocêncio tinha de lidar. As mais belas províncias da centro e do sul da Itália, até os portões de Roma, assim como o reino da Sicília, estavam sob o jugo feroz de temíveis aventureiros alemães. Aconteceu da seguinte maneira:

Henrique VI, o Severo, o Imperador Romano-Germânico, no ano de 1186 casou-se com Constança, herdeira legítima da coroa da Sicília, tomando o senhorio de todas as províncias normandas do sul da Itália.

A evidente vantagem dessa união com o Imperador, e a ameaça igualmente evidente ao papado, alarmou o atual pontífice, Lúcio III, o que o levou a tomar medidas de prevenção contra tal casamento. No entanto, ele morreu de repente, não conseguindo cumprir seu propósito. Seu sucessor, Urbano III, também não conseguiu romper o noivado, e o casamento foi celebrado no dia 27 de janeiro de 1186. Mas, como de costume, um pretendente à coroa da Sicília foi encontrado e apoiado pelo papado, o que levou a uma guerra cruel e desoladora que durou muitos anos. Henrique invadiu os território italianos com o propósito declarado de se apossar da herança de sua esposa. A expedição foi completamente bem-sucedida. Província após província caiu em suas mãos, e em pouco tempo todo o sul da Itália e o reino da Sicília se submeteram ao impiedoso tirano, o marido impiedoso de Constança. Antes de deixar os territórios conquistados, diz Greenwood: "Todos os grandes comandos militares foram concedidos aos mais distintos oficiais de seu exército. Castelos, terras, rendimentos, grandes poderes e dos mais diferentes tipos, foram despejados sobre a multidão de aventureiros e mercenários, cujo único objetivo era saquear, e cuja ganância não tinha o mais remoto respeito pelos direitos ou pelo bem-estar daqueles a quem foram designados a governar.

"Filipe, o irmão de Henrique, duque da Suábia, foi encarregado do governo da Itália central, incluindo os estados da Condessa Matilda e o ducado da Toscana. Markwald, um cavalheiro de Alsácia, o favorito do Imperador, foi feito duque de Ravena e Romanha. Conrado de Lutzenberg, um cavaleiro suábio, como duque de Espoleto, tomou posse daquela cidade e de seu domínio. Assim foram os estados pontifícios rodeados por uma cadeia hostil de fortalezas por todos os lados. A comunicação com o mundo exterior foi rompida. Mas a mão-mestre que era necessária para dirigir e controlar as diferentes guarnições foram repentinamente retiradas.

"Henrique morreu em Messina, em 28 de setembro de 1197, cerca de três meses antes da ascensão de Inocêncio."*

{*Cathedra Petri, livro 13, capítulo 1, p. 339}

Nos referimos, assim, rapidamente à ocupação militar do país quando Inocêncio tomou em suas mãos as rédeas do governo. Para mais detalhes, os livros de história podem ser consultados. Mas, como nosso objetivo neste capítulo é mostrar como o poder eclesiástico triunfou completamente sobre o poder civil, sentimos ser necessário mostrar a forte posição deste. E agora Inocêncio tinha um problema a resolver. Como poderia um único homem, por uma única palavra, subverter a força física do império, e compelir tanto o príncipe quanto o povo a se submeterem a um despotismo espiritual? O poder invisível para isso, sem dúvida, vem das profundezas do inferno. A mistura do cordeiro e do dragão, ou do homem de pecado, em um único poder, ou sistema, prova sua origem. (Ap. 13:11-18)

Inocêncio e a Cidade de Roma

Como um homem sábio, Inocêncio começou sua grande obra de vida reformando sua própria casa. Uma simplicidade rígida foi estabelecida no lugar do luxo da corte. A multidão de nobres e bem nascidos que antes lotavam o palácio foram dispensados, mas com belos presentes que os retinham como amigos, e que asseguravam seus serviços em ocasiões de alta cerimônia. Dos cidadãos, que clamavam pelo donativo com o qual eles tinham sido muitas vezes gratificados no início de cada novo reino, ele não se esqueceu, e assim assegurou o favor da multidão. Ele se assimilava à ousadia de Gregório VII, e à cautela política e paciência de Alexandre III. Ele conhecia os romanos e como administrá-los, e eles possuíam o pior caráter dentre todos os povos na história. Leia a evidência de São Bernardo ao escrever ao papa: "Por que eu mencionaria o povo? O povo é romano. Não possuo nenhum termo mais curto ou claro para expressar minha opinião sobre seus paroquianos. Pois o que mais poderia ser tão notório a todos os homens e eras como a devassidão e arrogância dos romanos? Uma raça não acostumada à paz, habituada ao tumulto -- uma raça impiedosa e intratável, e que neste instante despreza qualquer tipo de submissão que possa existir... A quem encontrarás até mesmo na vasta extensão de sua cidade que o teria como papa, a menos que fosse por lucro ou pela esperança de lucro, de promessa de fidelidade, de possuir melhores meios de machucar àqueles que neles confiam? São homens orgulhosos demais para obedecerem, ignorantes demais para governarem, infiéis a superiores, insuportáveis a inferiores, desavergonhados para perguntar, insolentes para recusar; importunos para obter favores, e incansáveis até obtê-los; ingratos quando os obtêm; grandes, eloquentes e ineficientes; muito mesquinhos, os mais falsos aduladores, e os mais venenosos detratores. Entre tais como esses procedes como pastor deles, coberto de ouro e de toda variedade de esplendor. O que suas ovelhas estão procurando? Se eu ousasse usar a expressão, eu diria que é um pasto de demônios, e não de 'ovelhas'."*

{*Waddington, vol. 2, p. 158}

Tal, como testemunhado por tal autoridade, era o caráter das pessoas que o novo pastor de Roma tinha em torno de sua pessoa, e a quem ele tinha que vigiar. Mas sua mente não ficaria desanimada, mesmo pelo estilo exaustivo de São Bernardo; com grande energia, prudência e habilidade, ele deu início ao seu reinado de sucesso.

Ao lado dos assuntos de sua própria casa, aqueles da cidade tinham sua atenção imediata. Seu primeiro objetivo era abolir o último vestígio da soberania imperial de Roma. Isto era um passo ousado, mas ele havia facilitado seu caminho ao distribuir, silenciosa e habilidosamente, dinheiro por todas as treze regiões da cidade. Até então, o prefeito de Roma mantinha seu ofício sob o Imperador, sendo representante da autoridade imperial. Mas Inocêncio o influenciou a rejeitar o poder imperial e submeter-se inteiramente ao poder papal. Ele tomou da mão dele a espada secular, o antigo emblema de seu poder, e o substituiu pelo cálice de prata, como símbolo da paz e amizade. O papa o absolveu de seu juramento de lealdade aos imperadores alemães, compeliu-o a fazer um forte juramento de fidelidade a si mesmo e a receber a investidura de suas mãos. Assim foi o último elo quebrado do poder imperial em Roma.

De modo semelhante, o novo papa persuadiu o senador, ou representante da legislatura, a renunciar, para que pudesse ser substituído por outro que se vincularia, por juramento, a si mesmo como soberano. Os juízes, oficiais, e todos os cidadãos eram obrigados a jurar obediência a sua majestade espiritual, e a reconhecer a exclusiva soberania da Santa Sé.

As Visões de Inocêncio sobre o Papado

Alguns extratos do sermão inaugural e de outros escritos de Inocêncio darão ao leitor uma ideia melhor sobre o papado ou sobre suas pretensões babilônicas. A insensata declaração de sua dignidade, juntamente com os mais altos protestos de humildade, traem o verdadeiro espírito do papa. Assim falou ele: "Vedes que tipo de servo é aquele a quem o Senhor pôs sobre o Seu povo; não outro senão o vice-gerente de Cristo, o sucessor de São Pedro. Ele é o ungido do Senhor; ele permanece entre Deus e o homem; abaixo de Deus, acima de todo homem; menor que Deus, maior que o homem. Ele julga a todos, e não é julgado por ninguém, pois está escrito: 'Eu julgarei'. Mas aquele a quem a preeminência da dignidade exalta, é rebaixado por seu ofício de um servo, para que tal humildade possa ser exaltada, e o orgulho rebaixado; pois Deus é contra os altivos; e aos humildes manifesta misericórdia: e aquele que exalta a si mesmo será rebaixado". Ele também "descobre" o papado no Livro de Gênesis: "O firmamento", diz ele, "significa a igreja. Assim como o Criador de todas as coisas colocou no céu duas grandes luzes, a maior para governar o dia, a menor para governar a noite, assim também colocou Ele no firmamento de Sua igreja dois grandes poderes: o maior para governar as almas, o menor para governar os corpos dos homens. Esses são o poder pontifício e o poder real: mas a lua, sendo o corpo menor, empresta toda a sua luz do sol; ela é inferior ao sol tanto em quantidade quanto em qualidade da luz que emite, como também em sua posição e função nos céus. Semelhantemente, o poder real empresta toda a sua dignidade e esplendor do poder pontifício, de modo que, quanto mais perto aquele se aproxima da luz maior, mais seus raios são absorvidos, e mais suas glórias emprestadas são eclipsadas. Foi, também, ordenado que ambas essas glórias tivessem sua morada fixa e definitiva nesta nossa terra da Itália, visto que nesta terra habita, por meio da primazia combinada do império e do sacerdócio, o completo fundamento e estrutura da fé cristã, e com ela um principado predominante sobre ambos!"*

{*Cathedra Petri, livro 13, p. 363.}

O leitor não terá dificuldade em reunir, a partir dessas declarações, embora revestidas de metáforas, as altas pretensões do plano papal, amadurecidas na mente de seu celebrado pontífice. Ele sem dúvidas afirma que todos os domínios terrenos são simplesmente derivados do papa; que todos os reis e príncipes deste mundo são seus súditos e servos; e que a ele pertence o domínio universal.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Inocêncio e os Reis da Terra

As diferentes características da Babilônia que o Espírito de Deus nos mostrou tão distintamente nesses capítulos (Apocalipse 17 e 18), e que são tão odiadas por Ele, encontraremos muito plenamente demonstradas na história desse pontífice. Mas é necessário que nós,  tanto o leitor quanto o escritor deste livro, vigiemos contra o espírito da Babilônia que se insinua para nossos próprios corações. Não devemos supôr que ela esteja confinada somente ao papado, embora lá ela esteja publicamente entronizada e será publicamente tratada em juízo. A menos que estejamos reunidos em torno do Jesus rejeitado, e andando com Ele na comunhão de Seus sofrimentos e na esperança de Suas glórias, corremos o risco de sermos pegos na armadilha. Homens, homens cristãos, frequentemente conectam o prazer presente de prosperidade e o prazer no mundo ao nome e à sanção de Cristo. Esse é a própria essência da Babilônia -- a mistura profana de Cristo e do mundo, do celestial e do terreno. Aquele que professa fé em um Cristo rejeitado, e que ao mesmo tempo tem seu coração no mundo que O rejeitou, está profundamente imbuído do espírito de Babilônia. É como alguém que verdadeiramente se apega ao Príncipe do céu, e continua dando ouvidos às lisonjas e aceitando os favores do príncipe deste mundo. E não vemos, infelizmente, em todo o lugar, a indulgência de desejos mundanos na profissão do nome do Senhor? Esta é a inconsistência, a confusão, que é tão ofensiva a Deus, e que Ele julgará de maneira tão terrível. Que o Senhor possa nos guardar de buscar misturar a cruz e a glória celestial de Cristo com este presente mundo mau.

O espírito do papado é todo voltado a este mundo, com as mais elevadas pretensões de ser todo para Cristo. "Eu me sento como uma rainha", diz ela, "e não sou viúva, e não verei tristeza". O domínio sempre foi seu único desejo -- domínio sobre a Igreja e o Estado, sobre o mar e a terra, sobre as almas e corpos dos homens, com poder para abrir e fechar os portões do céu e do inferno ao seu bel-prazer. Assim pensava Inocêncio, e assim agiu ele como veremos a seguir.

Lotário de Conti era o nome original de Inocêncio. Ele era da casa dos Condes de Segni, uma das grandes famílias romanas. Sob a instrução de seus dois tios, os cardeais de São Sérgio e São Paulo, as grandes habilidades naturais de Lotário lhe tornaram promissor quanto ao tipo de distinção que seus amigos e parentes tanto desejavam. Mais tarde, ele adquiriu grande fama por sua erudição nas escolas de Roma, de Bolonha e de Paris, mas a lei canônica era seu tema de estudo favorito. Na morte de Celestino III, ele foi devidamente eleito para a cadeira de São Pedro, e consagrado em 22 de fevereiro de 1198, com a tenra idade de trinta e sete anos. Os cardeais o saudaram pelo nome de Inocêncio em testemunho a sua vida "irrepreensível".

A Babilônia de Apocalipse 17

Tem sido nosso desejo, desde o início desta obra, estudar a história de um ponto de vista bíblico, mas mais especialmente à luz das epístolas às sete igrejas do Apocalipse. Os males que estavam apenas brotando estão agora totalmente desenvolvidos. Em Pérgamo, temos Balaão ensinando que "comessem dos sacrifícios da idolatria, e fornicassem"; e em Tiatira, temos Jezabel introduzida, que impunha a idolatria pela força. Mas esses e muitos outros males encontraremos agora concentrados no cálice da falsa mulher de Apocalipse 17.

Penso que não podemos duvidar do significado do símbolo aqui utilizado. Não apenas uma mulher, mas uma mulher indecente e entronizada em meio às corrupções da cidade dos sete montes. "Aqui está a mente que tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes, sobre os quais a mulher está assentada" (Apocalipse 17:9, Almeida Atualizada). Aqui temos um ponto material -- aquilo que sempre caracterizou Roma, tanto na prosa quanto na poesia; como disse alguém, falando de Arnaldo de Bréscia: "No serviço da liberdade, sua eloquência trovejava sobre as sete colinas". Todo leitor sabe de que cidade o historiador está falando por sua descrição. Mas a Palavra de Deus é perfeitamente clara para "a mente que tem sabedoria". Roma é claramente indicada, e suas corrupções religiosas são simbolizadas pela "mãe das prostituições" (Apocalipse 17:5). Mas por que, pode-se perguntar, ela é chamada de Babilônia? O termo é aplicado figurativamente, cremos, assim como Sodoma e o Egito são aplicados a Jerusalém em Apocalipse 11:8: "E jazerão os seus corpos na praça da grande cidade, que espiritualmente se chama Sodoma e Egito, onde também o seu Senhor foi crucificado". Além disso, a Babilônia literal, a capital caldeia, foi construída sobre uma planície -- a planície de Sinar -- e não sobre montes.

Tendo esclarecido esses pontos, e sendo Roma plenamente identificada, aceitamos Apocalipse 17 e 18 como descritivos do papado. O caráter, a conduta, os relacionamentos, e o juízo final de sua Babilônia espiritual, estão aqui colocados diante de nós, não pela pena parcial e imperfeita da história, mas pelo Espírito de Verdade que vê tudo do início ao fim. O sistema papal como um todo é visto moralmente do ponto de vista de Deus. Isto é uma imensa vantagem para o homem de fé. Examinaremos agora, brevemente, algumas de suas mais proeminentes características.

1. Ela é vista em visão como "assentada sobre muitas águas" (v. 1). Isto é explicado pelo anjo no versículo 15 como significando "povos, multidões, nações e línguas". A figura implica que esta falsa mulher, ou o sistema religioso corrupto de Roma, exercita uma influência que arruína a alma sobre essas multidões, nações e línguas. Mas Deus vê tudo e marca tudo: sua história maligna está escrita no céu.

2. Ela é representada como tendo relações sexuais da maneira mais sedutora e indecente com todas as classes. "Com a qual se prostituíram os reis da terra; e os que habitam sobre a terra se embriagaram com o vinho da sua prostituição [fornicação]" (v. 2). Que estado de coisas para aquela que professadamente leva o justo nome de Cristo! O termo "prostituição" ou "fornicação" aqui usado significa, sem dúvida, o poder sedutor do sistema romano em afastar as afeições de Cristo, que é o único verdadeiro objeto da fé para o coração. O padre se coloca entre o coração e o bendito Senhor; a Bíblia é escondida; a mente de Deus é desconhecida; o povo é intoxicado com suas falsidades excitantes; e a verdadeira adoração, não sabem o que é. Toda a terra está corrompida pelo vinho de sua prostituição. Mas seu fim, seu terrível fim, rapidamente se aproxima, "porque os seus pecados se acumularam até o céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela. Tornai a dar-lhe como também ela vos tem dado, e retribuí-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber dai-lhe a ela em dobro" (Apocalipse 18:5,6).

3. Ela é, em seguida, vista como governando e dirigindo o poder civil. "E vi uma mulher montada numa besta cor de escarlata, que estava cheia de nomes de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres" (v. 3). Seja o império romano ressuscitado (Apocalipse 13), ou os diferentes reinos que se ergueram a partir das ruínas de sua unidade imperial, ou todos os governos e principados da terra, a mulher balança seu cetro, ou melhor, sua espada manchada de sangue, sobre todos, como se fosse um domínio seu que foi dado divinamente. O púrpura dos Césares foi reivindicado pelos papas, e "Vossa Santidade" foi proclamado um monarca universal. E essa nova amante do mundo não era assim apenas pelo nome. Ela se vestia de seu antigo nome com um novo poder. A Roma imperial nunca inspirou tanto terror com seus exércitos quanto a Roma papal com suas anátemas. "A Cristandade", disse alguém, "através de todos os seus domínios estendidos de trevas mental e moral, tremia enquanto o pontífice fulminava excomunhões. Monarcas tremiam em seus tronos pelo terror do despotismo papal, e agachavam-se perante seu poder espiritual como os mais insignificantes escravos. O clero considerava o papa como a fonte de sua autoridade subordinada, e o caminho para uma futura promoção. O povo, imerso em profunda ignorância e superstição, via sua supremacia como uma divindade terrena, que decidia pelos destinos temporais e eternos dos homens. A riqueza das nações fluíam para o tesouro sacro, e permitia ao [suposto] sucessor do pescador galileu e chefe da comunidade cristã rivalizar contra o esplendor da pompa e grandeza orientais"*. A extensão de seus domínios excedia de longe as mais vastas conquistas do império. Muitas nações que tinham escapado das garras de ferro da Roma imperial eram mantidas sob o jugo papal. Isto vimos em nossa história das guerras religiosas de Carlos Magno. Dentre essas nações temos a Irlanda, o norte da Escócia, a Suécia, a Dinamarca, a Noruega, a Prússia, a Polônia, a Boêmia, a Morávia, a Áustria, a Hungria, e uma parte considerável da Alemanha. Essas, sabemos, foram reunidas como ovelhas no rebanho do pastor de Roma por missionários tais como Bonifácio; mas, aos olhos de Deus, elas foram escravizadas pela tirania e usurpação da grande corruptora.

{*Variations of Popery, de Edgar, p. 157.}

4. Mas há ainda mais do que apenas se assentar sobre muitas águas e sobre a besta. Ele é cheia de idolatrias e da imundícia de sua prostituição. "A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas; e tinha na mão um cálice de ouro, cheio das abominações, e da imundícia da prostituição" (v. 4). Apesar de toda a sua glória exterior -- aquela que o mundo considera preciosa e bonita -- ela é, aos olhos de Deus, uma mulher indecente com uma bela taça cheia de todas as abominações. Já vimos seu amor tenaz por imagens (de ídolos), as quais são aqui referidas pelo termo "abominações".

5. Suas grandes, ostensivas e exclusivas pretensões de possuir a verdade de Deus. "E na sua fronte estava escrito um nome simbólico: A grande Babilônia, a mãe das prostituições e das abominações da terra" (v. 5). Este é o mais grave e pesado dos pecados de Roma; a horrível falsificação de Satanás e a mais baixa de todas as suas hipocrisias. Sobre a verdade, o mistério celestial, lemos: "Grande é este mistério", diz Paulo, "mas eu falo em referência a Cristo e à igreja" (Efésios 5:32). Mas no lugar de sujeição a Cristo e fidelidade a Ele, ela -- como uma mulher abandonada e desavergonhada -- corrompe, com seu abominável abraço, os grandes da terra. E isso não é tudo. Ela é a mãe -- a mãe das prostituições, que tem muitas filhas. Todo sistema religioso da Cristandade que tende, em qualquer medida, a guiar as almas para longe de Cristo, a engajar suas afeições a coisas que se põem entre o coração e o Homem na glória, está relacionado a essa grande mãe da iniquidade espiritual.

6. Sua sede insaciável pelo sangue dos santos de Deus. "E vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus. Quando a vi, maravilhei-me com grande admiração" (v. 6). Esta estranha visão -- uma mulher -- uma comunidade religiosa, professando ser a verdadeira esposa de Cristo, embriagada com o sangue dos mártires, os santos de Deus, enche a mente do apóstolo com grande admiração. Nem precisamos nos perguntar o porquê. Mas logo também teremos que ver essa estranha vista, não apenas em visão, mas em realidade sem precedentes. Inocêncio III foi o homem que declarou guerra aos camponeses do sul da França e virou a espada do notório Simão de Monforte contra os bem conhecidos Albigenses e Valdenses, e isto sob o pretexto de fazer a vontade de Cristo e de agir sob Sua autoridade.

A partir do versículo 7, temos a explicação que o anjo dá sobre a visão, e a terrível condenação da Babilônia vinda da mão tanto do homem quanto de Deus, até perto do fim do capítulo 18. Mas como não estamos interpretando todos esses detalhes, não precisamos prosseguir adiante com o solene tema desses capítulos. Acompanhemos agora os passos tenebrosos e manchados de sangue do historiador sob a luz das Escrituras Sagradas.*

{*Para maiores detalhes veja Estudos sobre o Apocalipse, de William Kelly.}

Inocêncio III e Sua Época (1198-1216 d.C.)

Capítulo 24: O Papa Inocêncio III (1190-1216 d.C.)

Durante o reinado desse grande papa, a Sé romana chegou ao seu auge. O século XIII é comumente distinguido como o grande dia da glória pontifícia. Vimos a aurora do pressuposto papal, ou melhor, os primeiros raios da aurora, nas ousadas concepções de Inocêncio I e Leão, o Grande, no século V. Gregório, o Grande, no século VII, e Nicolau e João no século IX, fizeram grande esforço em lançar as bases do grande esquema papal; mas foi Gregório VII que ergueu a superestrutura. O grande objetivo desse padre ousado, ambicioso e inescrupuloso era restaurar à Roma papal tudo o que a Roma imperial tinha perdido; e assim estabelecer a cadeira de São Pedro acima de todos os outros tronos. Mas o ousado papa pereceu em sua luta desesperada. Roma foi tomada, como vimos; Hildebrando (Gregório VII) foi obrigado a fugir, e morreu em exílio em Salerno. Por mais de cem anos após sua morte, nenhum papa que se sentou na cadeira pôde completar a obra que ele tinha iniciado. Mas no início do século XIII, o gênio superior de Gregório foi ultrapassado por Inocêncio. Os ousados esquemas que o primeiro tinha planejado foram plenamente executados pelo último. Sem dúvida, a conjunção de muitas circunstâncias foi favorável, e os poderes de sua mente foram adaptados para o cumprimento de seu grande objetivo, de modo que obteve plenamente o que enchia a imaginação dos papas por eras -- "supremacia sacerdotal, monarquia régia e domínio sobre os reis da terra". O padre coroado de Roma agora movia, com mão magistral, e com incansável dedicação, a máquina do papado, de modo que obtivesse e consolidasse a absoluta soberania da Sé romana. Mas aqui, neste ponto, devemos fazer uma pausa para uma breve reflexão. Esforcemo-nos por compreender a mente do Senhor sobre esse grande sistema religioso, e não meramente o testemunho da história.

A Origem do Confessionário

A história dessa inovação não é fácil de traçar, nem é necessária para nosso propósito. A questão da confissão privada e da absolvição sacerdotal foi muitas vezes discutida pelos teólogos, mas nenhuma lei sobre o assunto foi estabelecida pela igreja até o início do século XIII. No ano de 1215, sob o pontificado de Inocêncio III, a prática da confissão auricular foi autoritariamente imposta pelo quarto Concílio de Latrão aos fiéis de ambos os sexos, que deveriam fazê-la pelo menos uma vez ao ano. A partir dessa época, até o presente, a confissão auricular tem sido considerada uma ordenança divina na igreja de Roma, sendo também praticada na igreja grega (ortodoxa) e copta.

As principais passagens das Escrituras citadas pelos romanistas sobre esse assunto são: "Confessai as vossas culpas uns aos outros, e orai uns pelos outros, para que sareis" ... "Àqueles a quem perdoardes os pecados lhes são perdoados; e àqueles a quem os retiverdes lhes são retidos" (Tiago 5:16; João 20:23). A primeira passagem evidentemente se refere à confissão mútua de falhas pela parte dos cristãos; e a segunda fala da disciplina na igreja (assembleia), mas nenhuma delas, certamente, fala de uma confissão secreta de pecados aos ouvidos de um padre com o objetivo de receber a absolvição. O dever, ou privilégio, da confissão, deve ser admitido por todos, tanto por protestantes quanto por católicos; mas a questão é: a quem devemos confessar? A um padre, ou a Deus? Numerosas passagens podem ser citadas, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, para provar que a confissão dos pecados deve ser feita a Deus. Vamos tomar dois exemplos: "Então disse Josué a Acã: Filho meu, dá, peço-te, glória ao Senhor Deus de Israel, e faze confissão perante ele; e declara-me agora o que fizeste, não mo ocultes"... "Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça" (Josué 7:19; 1 João 1:8,9).

Mas a forma da confissão prescrita pela igreja romana para ser usada por todo penitente no confessionário demonstra melhor seu verdadeiro caráter. Devia-se ajoelhar ao lado do seu confessor e fazer o sinal da cruz, dizendo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo: "Eu pecador, me confesso a Deus Todo-Poderoso, à Bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao Bem-aventurado São Miguel Arcanjo, ao Bem-aventurado São João Batista, aos Santos Apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os Santos, e a ti, meu padre espiritual, que pequei muitas vezes por pensamentos, palavras e ações, por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa". Nesse momento da cerimônia, o penitente especifica seus vários pecados em detalhes, sem evasões ou equívocos; os atos mais indelicados ou diabólicos são derramados nos ouvidos do padre, o que quer que seja. Quando o padre se satisfaz com os detalhes, o penitente prossegue: "Por isso rogo a Deus Todo-Poderoso, à Bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao Bem-aventurado São Miguel Arcanjo, ao Bem-aventurado São João Batista, aos Santos Apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os Santos, e a ti, meu padre espiritual, que ore ao nosso Senhor Deus por mim. Estou sinceramente arrependido(a), proponho firmemente emendar-me, e muito humildemente peço o perdão de Deus, e penitência e absolvição de ti, meu padre espiritual."*

{*Faiths of the World, de Gardner, vol. 1, p. 582. Milman, vol. 6, p. 361.}

O penitente se encontra, então, nas mãos e inteiramente a mercê do padre. Ele pode prescrever a mais irracional penitência, ou adiar sua absolvição até que possa alcançar seus próprios fins malignos. Mas deixemos-no para tomar nota, brevemente, de mais um dogma relacionado da teologia romana: as indulgências.

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