domingo, 2 de julho de 2017

Gregório VII e sua Reforma

Por volta do fim do primeiro ano oficial de Gregório como papa (março de 1074), ele reuniu um numeroso concílio em Roma, com o propósito de declarar guerra contra os dois grandes vícios do clero europeu, e os dois grandes obstáculos para seu esquema teocrático -- o concubinato e a simonia, isto é: o casamento de sacerdotes e a venda de benefícios. Muitos que eram favoráveis à reforma achavam o decreto quanto ao celibato não apenas severo, como também injusto, porque se aplicava igualmente aos mais honráveis casamentos e aos de maior desprezo. Foi resolvido no concílio, sem oposição: primeiro, que os padres não deveriam se casar; segundo, que aqueles que estavam casados deveriam deixar suas esposas ou renunciar ao sacerdócio; terceiro, que no futuro ninguém que não professasse continência inviolável deveria ser admitido às ordens sagradas.

Muitos dos primeiros pais se esforçaram para estabelecer a conexão entre o celibato e a santidade, e a persuadir os homens que aqueles que se casaram com a igreja deveriam evitar a contaminação de uma união terrena. Muitos dos papas também defenderam o celibato; mas, a não ser sob a mais severa disciplina pessoal ou nas comunidades monásticas mais estritas, o celibato era pouco observado e provavelmente nunca tenha sido forçado além das fronteiras da Itália. Mas Gregório fez sua voz ser ouvida e temida quanto a esse assunto, desde o Vaticano até os limites mais longínquos da Cristandade latina. Ele escreveu cartas a todos os arcebispos e bispos, aos príncipes, potentados e oficiais leigos de todos os níveis, sob pena de incorrerem em severa punição ou perdição eterna, para que expulsassem e depusessem, sem misericórdia, todos os padres e diáconos casados, e a recusar seus contaminantes ministérios. Esses despachos estavam cheios de anátemas (maldições) contra todos os que resistissem aos seus decretos; e, assumindo o lugar de Deus, ele diz: "Como obterão perdão por seus pecados aqueles que desprezam aquele que abre e fecha as portas do céu a quem ele se agrada? Que todos se cuidem de não invocarem a ira divina sobre suas próprias cabeças,... como eles incorrem na maldição apostólica, em vez de ganharem essa graça e bênção tão abundantemente derramada sobre eles pelo bendito Pedro! Que fiquem bem certos que nem príncipe nem clérigo escapará da condenação do pecador em deixar de expelir, com rigor inexorável, todos os padres simoníacos e casados, e todos os que ouvirem ao chamado da simpatia ou afeição carnal, ou por qualquer motivo mundano reterem a espada de derramar sangue pela causa de Deus e de Sua igreja, ou permanecerão distantes enquanto essas heresias condenadoras estiverem roendo os sinais vitais da religião,... estes devem ser considerados indiscriminadamente como cúmplices dos hereges, como falsificações e fraudes."*

{* Greenwood, Cathedra Petri, vol. 4, p. 331.}

Os "Ditados de Gregório"

As seguintes citações são atribuídas como sendo algumas das máximas de Gregório VII; elas darão ao leitor uma ideia do homem e do espírito do papado. "Está estabelecido que o pontífice romano é o bispo universal, que seu nome é o único desse tipo no mundo. A ele somente pertence o direito da deposição e reconciliação de bispos; e ele pode depô-los em sua ausência, e sem a ocorrência de um sínodo. Somente a ele é permitido enquadrar novas leis para a igreja -- e dividir ou unir bispados. Ele somente pode usar as insígnias do império; todos os príncipes são obrigados a beijar seu pé, e ele tem o direito de depôr imperadores e de absolver súditos com base em sua fidelidade. Ele mantém em suas mãos a mediação suprema em questões de guerra e paz, e só ele pode jugar as sucessões contestadas aos reinos -- pois todos os reinos são mantidos como fiéis a São Pedro. Com sua permissão, inferiores podem acusar seus superiores. Nenhum concílio pode ser designado como geral sem seu comando. A igreja romana nunca cometeu erros e, como testificam as Escrituras, nunca errará. O papa está acima de todo o julgamento, e pelos méritos de São Pedro é sem dúvida considerado santo. A igreja não deveria ser a serva de príncipes, mas sim sua senhora; se ela recebeu de Deus o poder de ligar e desligar no céu, muito mais deve ter ela igual poder sobre as coisas terrenas."*

{* Robertson, vol. 2, p. 567.}


Mas enquanto a dominação soberana da igreja tinha há muito tempo sido o grande sonho de Hildebrando, ele viu que certas reformas eram necessárias para o cumprimento de seu objetivo; e a este ele agora dedicava-se com toda a energia e firmeza intrépida de seu caráter.

Gregório e a Independência Clerical

Ainda vai chegar o dia em que o homem, o anticristo de 2 Tessalonicenses 2, energizado e conduzido por Satanás e que "se levanta [se exalta a si mesmo] contra tudo o que se chama Deus, ou se adora", mas certamente na vida e no caráter de Gregório temos uma sombria prefiguração dessa obra-prima do inimigo. Se não fosse pela prova e ilustração das Escrituras sobre os desígnios que Hildebrando alcançou, certamente pularíamos a sua história. Nenhuma linha prateada da graça, nenhum amor humano ou divino, podem ser traçados em um único ato de sua administração pública; mas com grandes palavras inchadas da mais ousada blasfêmia, ele chama a si mesmo de sucessor de São Pedro, e seguidor de Jesus, e aquele que fala como a boca de Deus. Ao mesmo tempo, é evidente para todos que ele era a própria encarnação do orgulho, arrogância e intolerância anticristã. Sua linguagem às vezes dá a entender que ele assumia ser divino, e quase se aproximava da blasfêmia do homem do pecado.

Desde o momento em que ele entrou em Roma na companhia de Bruno até seu avanço para a cadeira pontifical -- um período de 24 anos -- ele foi o espírito dominante no Vaticano; mas ele não tinha pressa pela preferência. Com mais do que sagacidade humana ele estava estudando a condição e relações da Igreja com o Estado; ele estava adquirindo um conhecimento sobre o homem e sobre os assuntos de toda a Europa; ele estava amadurecendo um esquema elevado, porém ousado, de uma vasta autocracia espiritual na pessoa do Papa. Tudo isso se manifestou quando subiu ao trono, e assumiu em sua própria pessoa a responsabilidade do poder que ele tinha conduzido a tanto tempo, embora em uma posição inferior. Seu alegado objetivo desde o início era a absoluta liberdade e independência do clero da interferência imperial e de todos os leigos, seja para nominar ou para consagrar um eclesiástico; e, sobre a base de sua liberdade, ele ousadamente afirmou que a autoridade espiritual era mais elevada e mais legítima que a temporal [ou secular]. Essas orgulhosas pretensões levaram a igreja de Roma, na pessoa de seu pontífice, a usurpar domínios sobre o império ocidental e sobre todos os reinos da Europa -- ou melhor, do mundo inteiro. Nada melhor para confirmar essas afirmações do que os ditados citados a seguir.

domingo, 18 de junho de 2017

Extremos de Caráter

Exatamente neste ponto de nossa história encontramos, através da sutileza de Satanás, os caracteres mais extremos e opostos. O único objetivo de Hildebrando era subjugar o mundo exterior; as autoinfligidas crueldades dos outros deveriam subjugar o mundo dentro de si mesmos.

Pedro Damiano, bispo de Óstia, era severamente ascético [voltado ao monasticismo]. Ele se reclusava em roupas de saco, fazia jejuns, vigiava, orava e, tentando domar suas paixões, podia se levantar à noite, ficar por horas debaixo de uma corrente de água até que seus membros ficassem rígidos de frio, e depois passava o resto da noite visitando igrejas e recitando o Saltério*. O objetivo declarado pelo qual ele tanto trabalhava era a restauração da dignidade do sacerdócio e uma disciplina da igreja mais rigorosa. Tal é o poder delusório do inimigo dentro da igreja de Roma. 

{*Saltério: Livro dos Salmos}

Mas um monge, chamado Domínico, foi considerado o grande herói dessa guerra contra o pobre e inofensivo corpo. Satanás escondeu dessa dupla a diferença entre o corpo e as obras do corpo. Domínico usava, próximo à pele, uma apertada couraça de ferro, a qual ele nunca tirava. Seu pescoço era carregado de pesadas correntes, suas poucas roupas eram desgastadas como trapos, sua comida era das mais grosseiras, sua pele era tão escura como a de um negro pelos efeitos de sua disciplina. Seu exercício usual era recitar o Saltério duas vezes por dia, enquanto se flagelava com as duas mãos a uma frequência de mil chicotadas a cada dez salmos. Era reconhecido que 3000 chicotadas eram equivalentes a um ano de penitência; o Saltério inteiro, portanto, com esse acompanhamento, era equivalente a cinco anos. Na Quaresma, ou em ocasiões de penitência especial, a média diária subia para três saltérios; ele "facilmente" (?) passava por vinte -- equivalente a cem anos de penitência -- em seis dias. Certa vez, no início da Quaresma, ele implorou para que uma penitência de mil anos fosse-lhe imposta, e cumpriu toda ela antes da Páscoa.   

Supunha-se que essas flagelações tivessem o efeito de uma satisfação pelos pecados de outras pessoas -- obras de supererrogação*, que formavam o capital para a venda de indulgências, das quais ouviremos mais no decorrer da história. A morte misericordiosamente pôs um fim aos seus lamentáveis delírios no ano 1062.

{*Supererrogação: Demasia, excesso.}

Tomemos mais um exemplo da vida eclesiástica, uma vez que Satanás encontrou algo adequado a todos os gostos.

Os clérigos mundanos tinham o hábito de comparecer junto às tropas de soldados, com espadas e lanças. Eles se cercavam de homens armados como um general pagão. Todos os dias desfrutavam de banquetes reais e desfiles diários; a mesa cheia de iguarias; os convidados, seus voluptuosos favoritos. Crime e licenciosidade eram comuns nos palácios do clero. Tão grande era a iniquidade de Roma no século X que os historiadores, em consenso geral, colocam um véu sobre isso pelo bem de nossa humanidade comum. Será que as pessoas que corriam para Roma sabiam que, durante um período de um século e meio, por volta dessa época, eram tão terríveis as cenas do Vaticano, a ponto de "dois papas terem sido assassinados, cinco foram exilados, quatro foram depostos, e três renunciaram a sua perigosa dignidade. Alguns foram levados à cadeira pontifical pelas armas, alguns por dinheiro, e alguns receberam a tiara das mãos de cortesãs principescas... Seria herege dizer que as portas do inferno tinham prevalecido contra o trono e o centro do catolicismo; mas o próprio Barônio pode ser citado para provar que eles tinham recuado de suas articulações infernais para enviar espíritos malignos, comissionados para esvaziar sobre sua cabeça devota os frascos de amargura e ira."*

{* Sir James Stephens, Biografia Eclesiástica, vol. 1, p. 2; Milman, vol. 3, p. 103; Robertson., vol. 2, p. 515.}

Passamos agora ao objeto imediato de nossa história -- a carreira de Hildebrando como Gregório VII, de cujos lábios ouviremos um relato de papas infalíveis muito diferentes dos citados acima.

O Pontificado de Gregório VII

Capítulo 19: O Papa Gregório VII (1049 - 1085 d.C.)


Hildebrando, um nativo da Toscana, nascido na primeira parte do século XI, tinha abraçado, desde de sua infância, as mais rígidas ideias do monasticismo. Não satisfeito com o laxismo* dos monges italianos, ele cruzou os Alpes e entrou para o austero convento de Cluny, na Borgonha, então o mais importante em números, riqueza e piedade.

{*Laxismo: doutrina, tendência ou comportamento que busca suavizar ou limitar as restrições e imposições colocadas pela moral cristã.}

No ano 1049, Bruno, bispo de Toul, vestido com todo o esplendor de um pontífice eleito, e acompanhado pelo séquito*, chegou em Cluny e exigiu a hospitalidade e homenagem dos monges. Bruno era primo de Henrique III, imperador da Alemanha, e tinha sido nominado por ele para preencher o lugar vago na Sé de Roma. Hildebrando, o prior** de Cluny, logo adquiriu grande influência sobre a mente de Bruno. Ele o convenceu de que tinha tomado um passo em falso ao ter aceitado a indicação das mãos de um leigo, e sugeriu-lhe que deixasse de lado as vestimentas pontificais que ele tinha assumido prematuramente, viajasse a Roma como peregrino, e ali recebesse do clero e do povo esse ofício apostólico que nenhum leigo tinha o direito de conceder. Bruno concordou. As visões sublimes de Hildebrando sobre a dignidade eclesiástica prevaleceram sobre a mente mais genial de seu novo amigo. Ele seguiu seu conselho: tirou suas vestes e, tomando o monge como seu companheiro, seguiu sua jornada a Roma com a simplicidade de um peregrino.

{*Séquito: conjunto das pessoas que acompanham outra(s); cortejo que acompanha uma pessoa, ger. distinta, para servi-la ou honrá-la; comitiva.}
{**Prior: pároco; superior de um convento ou de certas ordens religiosas.}

A impressão produzida foi grande, e toda em favor de Bruno. Nenhuma demonstração sacerdotal ou imperial podia ter tido o mesmo poder sobre o povo. Dizem que milagres acompanharam seu caminho, e por suas orações rios caudalosos se contiveram em seus limites naturais. Ele foi aclamado com aclamações universais como Papa Leão IX. Hildebrando foi imediatamente recompensado por seus serviços. Ele foi elevado à classe de cardeal, e recebeu os ofícios de subdiácono de Roma com outros preferenciais. Desde esse tempo ele era praticamente um papa -- o verdadeiro diretor do papado.

domingo, 4 de junho de 2017

Reflexões sobre o Espírito Missionário de Roma

Temos visto, ao traçar a boa obra do evangelho em diferentes países, a atividade, energia e o caráter agressivo da igreja de Roma. E embora houvesse uma terrível quantidade de tradição humana e muitas tolices absurdas misturadas ao "evangelho de Deus", ainda assim o nome de Jesus Cristo era proclamado, e a salvação por meio dEle, embora, infelizmente, não por Ele somente. No entanto, Deus em graça podia usar esse bendito nome e dar os olhos de fé para ver sua preciosidade em meio ao lixo da superstição romana. O evangelho de Cristo pleno e claro tinha se perdido completamente. Não era mais Cristo apenas, mas Cristo e mil outras coisas. Eles eram eloquentes em pregar boas obras, mas, ao mesmo tempo, obscureciam a fé da qual toda a boa obra deveria emanar. "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo"; "Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro"; "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei"; "O que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora". (João 1:29, Isaías 45:22, Mateus 11:28, João 6:37). Textos como esses dão uma ideia de um evangelho que traz almas para o Próprio Cristo, pela fé somente; não a Cristo e aos ritos e cerimônias inumeráveis, antes da alma poder ser salva. Ser convertido ao Próprio Cristo é a melhor de todas as conversões. Descansar sobre a infalível eficácia do sangue de Cristo é salvação certa e segura para a alma, e perfeita paz com Deus.

Havia, sem dúvida, muitos homens bons e sinceros no campo missionário, cujo estado espiritual poderia ter sido muito melhor do que sua posição eclesiástica, e a quem Deus poderia ter usado para ganhar almas preciosas para Si. Mas não pode haver dúvida de que o espírito dos missionários de Roma eram mais de proselitismo para a igreja de Roma do que para a fé e obediência a Cristo. O batismo e a implícita e inquestionável sujeição à autoridade do papa era a exigência feita a todos os convertidos, fossem governadores ou súditos. Não buscava-se a fé em Cristo. A ambição da Sé Romana era abraçar o mundo todo e, no que diz respeito à Europa, toda confissão pública de cristianismo que professasse independência da dominação romana deveria ser imediatamente suprimida, e totalmente destruída.

Exatamente nessa época, um monge de origem humilde, mas do mais extraordinário caráter, apareceu em cena. Nele foram cumpridos todos os sonhos de domínio da mente humana. Até então a missão do papado nunca tinha sido totalmente cumprida. Mas como nunca houve um papa assim até então, e nunca mais houve um assim desde então, devemos esboçar brevemente sua incomparável carreira.

Traços da Linha Prateada da Graça de Deus (Parte 2)

Lanfranco e Anselmo são nomes famosos na história da igreja dessa época, embora não tanto para a graça quanto para a erudição e controvérsia: ambos foram arcebispos da Cantuária. Ambos tinham sido monges e celebrados mestres nessa humilde classe. Mais de quatro mil estudiosos assistiram as preleções de Lanfranco quando era monge em Caen. Anselmo era de  igual reputação na Normandia. Nanfranco, no entanto, tem a nada invejável reputação de confirmar, por sua grande influência e erudição, o dogma da transubstanciação. Nas trevas do século X essa doutrina fez sua primeira aparição autoritativa na igreja. Esse dogma foi atacado por Berengário de Tours, que usou todas as forças de sua mente e todos os recursos ao seu alcance para demonstrar a falta de credibilidade do dogma. Mas Lanfranco o defendia, e tendo a maioria do clero ao seu lado, Berengário foi rejeitado, despojado de todos os seus privilégios e condenado a uma rigorosa seclusão pelo resto de sua vida. O berengarismo tornou-se um termo de reprovação e foi considerado heresia. Assim o misterioso dogma da Presença Real [de Cristo na Eucaristia] foi estabelecido por volta da metade do século XI. Lanfranco morreu em 1089. Guilherme, o Ruivo, apontou Anselmo como seu sucessor. Ele tem a reputação de ser um cristão sincero e muito irrepreensível em sua vida. Ele morreu em 1109, no décimo sexto ano de seu arcebispado, e aos 76 anos de idade. Ambos Lanfranco e Anselmo, como mal precisamos dizer, foram zelosos apoiadores do poder de Roma.

Margaret, rainha da Escócia, foi evidentemente um canal divino da graça de Deus naqueles dias, não obstante o legalismo do papado. Ela era filha de Etelredo e irmã de Edgar, o Atelingo, o último da linhagem de príncipes saxônicos. A agressividade e a profanação dos príncipes normandos, especialmente de Guilherme, o Ruivo, levou Edgar e Margaret a buscar um retiro seguro na Escócia. O rei Malcolm Canmore se casou com a princesa inglesa. As coisas mais maravilhosas são relatadas sobre sua piedade, liberalidade e humildade. Seu caráter era perfeito para lançar um brilho sobre uma época mais pura. Ela teve com Malcolm seis filhos e duas filhas. Três de seus filhos reinaram sucessivamente, e sua filha, Matilda, foi esposa de Henrique I da Inglaterra, e era considerada uma cristã piedosa.

Como a vida e o caráter de Margaret nos darão uma visão melhor do cristianismo romano em um de seus mais brilhantes exemplos do que poderíamos descrever, citaremos algumas passagens reais de sua vida. "A senhora real, que foi honrada com a canonização, embora muito supersticiosa, e de certo modo ostentosa em seus atos de beneficência, possuía, no entanto, muitas eminentes virtudes, e deve ser classificada entre as melhores de nossas rainhas. Ela exerceu ilimitada influência sobre seu bravo, porém iletrado, marido, que, embora incapaz de ler seus livros de devoção, era fervorosamente acostumado a beijá-los. Toda manhã ela preparava comida para nove órfãos, e de joelhos dobrados os servia. Com suas próprias mãos ela servia à mesa a multidões de pessoas indigentes que se reuniam para compartilhar da doação; e à noite, antes de se retirar para a cama, ela dava ainda mais impressionante prova de sua humildade ao lavar os pés de seis deles. Ela estava frequentemente na igreja, prostrada perante o altar, e ali, com soluços e lágrimas e orações prolongadas, ela se oferecia a si mesma como sacrifício ao Senhor. Quando chegava a época da Quaresma, além de recitar ofícios particulares, lia todo o livro dos Salmos duas ou três vezes em um mesmo dia. Antes de participar da missa pública, ela se preparava para a solenidade ouvindo de cinco a seis missas privadas, e quando todo o serviço religioso acabava, ela alimentava 24 dependentes e assim demonstrava sua fé por suas obras. Enquanto esses não estivessem satisfeitos ela não se retirava para sua própria pequena refeição. Mas com todo esse desfile de humildade, havia também uma igual exibição de orgulho. Seu vestido era lindo, seu séquito enorme e sua comida devia ser servida em pratos de ouro e prata, algo inédito na Escócia até seu tempo.

"Afortunada de ter obtido uma boa educação, Santa Margaret gostava particularmente de demonstrar sua erudição e conhecimento das Escrituras. Ele frequentemente discursava com o clero da Escócia sobre questões teológicas e, através de sua influência, a Quaresma passou a ser observada de acordo com a instituição católica. Ele fez um bom serviço à religião e virtude de muitas formas; mas a vida dessa boa rainha foi encurtada pela severidade de seus jejuns, que pouco a pouco minaram sua saúde... Ela estava deitada, desgastada e moribunda, com o crucifixo diante de si, quando seu filho, Edgar, chegou da batalha de Alnwick. 'O que aconteceu com o Rei e com meu Eduardo?', disse a mãe moribunda. O jovem rapaz ficou em silêncio. 'Eu sei de tudo', gritou ela, 'Eu seu de tudo. Pela santa cruz, pela seu afeto de filho, conjuro-te, diga-me a verdade.' 'Seu marido e seu filho, ambos estão mortos', disse o rapaz. Erguendo suas mãos e seus olhos para o céu, ela devotamente disse, 'Louvor e bênção seja para Ti, Deus Todo-Poderoso, que tens prazer em me fazer suportar uma angústia tão amarga na hora de minha partida, e confio que isso seja para me purificar em alguma medida das corrupções dos meus pecados e Tu, Senhor Jesus Cristo, que, através da vontade do Pai, deu vida ao mundo por Tua morte, oh, liberta-me!' Enquanto as palavras ainda estavam em seus lábios, ela suavemente expirou."*

{* A História da Igreja da Escócia, de Cunningham, vol. 1, p. 97; Milner, vol. 2, p. 566; Robertson, vol. 2, p. 441.}

Traços da Linha Prateada da Graça de Deus (Parte 1)

Estêvão, o príncipe mais piedoso da Hungria, foi batizado por Adalberto, bispo de Praga, e começou a reinar no ano 997. Ele foi um apoiador muito zeloso do evangelho, das escolas e da obra missionária. Ele muitas vezes acompanhava os pregadores, e às vezes ele mesmo pregava. Sua piedosa rainha, Gisla, filha de Henrique III, o auxiliava muito. Ele também introduziu muitas reformas sociais, era gentil para com os pobres, e tentou suprimir toda a impiedade ao longo de seus domínios. Ele viveu para ver, sob a bênção de Deus, toda a Hungria tornar-se cristã exteriormente. Ele morreu no ano 1038. Uma mudança de governo trouxe perseguição, e os piedosos obreiros tiveram sua boas obras interrompidas.

Otingar, um bispo da Dinamarca, e Unwan, bispo de Hamburgo, eram sinceros e devotos servos de Cristo, e usados por Ele para a disseminação da verdade. João, um escocês, bispo de Mecklenburgo, batizou um grande número de eslavônios, mas os prussianos resistiram a todas as tentativas de introdução do evangelho entre eles. Boleslau, rei da Polônia, tentou evangelizá-los pela força, mas em vão. Os dezoito missionários, sob um homem chamado Bonifácio, foram trabalhar entre os prussianos por meio do pacífico evangelho, mas foram todos massacrados por aquele povo bárbaro. Eles parecem ter sido a última das nações europeias a se submeterem ao jugo de Cristo. O cristianismo não teve força na Prússia até o século XIII.

O reinado de Olavo [também conhecido como "o Tesoureiro"], que se tornou rei da Suécia próximo ao fim do século X, tendo morrido por volta de 1024, foi famoso pela propagação do evangelho naquele país. O zelo do clero inglês abraçou a oportunidade, e muitos deles saíram a pregar o evangelho na Suécia. Dentre eles estava Sigfrido, arquidiácono de York, que trabalhou por muitos anos entre os suecos. Mas o zelo de Olavo levou-o a usar medidas violentas na disseminação do cristianismo, e excitou um ódio geral contra ele entre os adeptos da antiga religião. Após muitas lutas e muito derramamento de sangue, a religião cristã foi firmemente estabelecida por volta do final do século XI. O número de igrejas na Suécia aumentou para cerca de 11.000.

O progresso do evangelho na Noruega tinha sido lento desde o tempo da missão de Ansgário; mas quando Olavo, filho de Haroldo, tornou-se rei em 1015, determinou-se a continuar a boa obra com grande zelo. Muitos missionários foram convidados da Inglaterra, tendo a sua frente um bispo chamado Grimkil, que elaborou um código de leis eclesiásticas para a Noruega. Mas o rei buscou aplicar o sistema -- tão comum naqueles dias, mas sempre o sistema romano -- de fazer prevalecer o cristianismo por meios tais como a confiscação e punições corporais severas, mesmo até a morte. Assim, ele muitas vezes teve de encontrar resistência armada. Finalmente, uma conferência foi marcada. O rei e seu missionário, Grimkil, se encontraram com o sacerdote pagão em Dalen, em 1025. Conta-se que Olavo passou uma grande parte da noite em oração. O deus Tor, que era representado como superior ao Deus cristão pois podia ser visto, foi trazido ao lugar da conferência. Quando se encontraram de manhã, o rei apontou para o sol nascente como uma testemunha visível de que seu Deus tinha criado aquilo; e, enquanto os pagãos contemplavam seu brilho, um enorme soldado ergueu sua clava e quebrou o ídolo em pedaços. Um enxame de criaturas repugnantes, tendo sido perturbadas, saíram de dentro da estátua e correram para todos os lados, e então os homens de Dalen foram convencidos de quão vã era a velha superstição, e concordaram em serem batizados. Olavo foi, mais tarde, morto em uma guerra civil, mas surgiram rumores de que seu sangue tinha curado uma ferida na mão do guerreiro que o matou; e muitos outros milagres lhe foram atribuídos. Ele foi canonizado, e Santo Olavo foi eleito o patrono da Noruega.

Os triunfos do evangelho foram especialmente visíveis na Dinamarca, próximo ao fim desse século. "Olhem", disse Adão de Brema, que escreveu no ano 1080; "Olhem para essa tão feroz nação dos dinamarqueses; já a um longo tempo estão acostumados a celebrar os louvores de Deus. Olhem para esse povo pirata; eles estão agora contentes com os frutos de seu próprio país. Olhem para essa região horrível, antigamente completamente inacessível por conta da idolatria; eles agora admitem com entusiasmo os pregadores da Palavra". A história representa os dinamarqueses e os ingleses como desfrutadores de uma espécie de cena milenar nessa época, por meio dos efeitos das obras missionárias. Em confiança e caridade mútuas, eles estavam desfrutando juntos das bênçãos do cristianismo. Isto deve ter sido, de fato, maravilhoso e surpreendente para aqueles que tinham conhecido a selvagem barbárie dos dinamarqueses que tinha antigamente desolado as habitações dos ingleses. Estes eram os pacíficos triunfos do evangelho de Cristo. A pregação da cruz, realizada com a energia do Espírito Santo, certamente terá como efeito tais mudanças benditas e salutares nas mais rudes pessoas. O evangelho não apenas emancipa a alma imortal da escravidão e condenação do pecado, como também melhora grandemente a condição do homem nesta vida, e difunde pelo mundo os preceitos da paz, ordem e bom governo. Esses são os efeitos nativos do evangelho, que muitas vezes são prejudicados pela inimizade natural do coração, especialmente por aqueles que têm a espada ao seu lado.

O Aprendizado dos Árabes Importado para a Cristandade

O papa Silvestre II, que ocupava a cadeira de São Pedro quando nasceu a primeira manhã do século XI sobre a Europa, formou o elo entre a sabedoria e erudição dos árabes e a ignorância e credulidade dos romanos. Ele tinha estudado nas escolas muçulmanas na cidade real de Córdova, onde tinha adquirido muito conhecimento útil quanto a esta vida, os quais ele começou a ensinar e praticar em Roma. Mas tal era a sombria superstição do povo em geral que eles atribuíram suas grandes conquistas às artes mágicas, e acreditavam que tais poderes podiam apenas ser possuídos através de um pacto com o maligno. Por eras após o papa Silvestre ele foi lembrado com horror, como se o trono de São Pedro tivesse sido ocupado por um necromante. Mas à medida que o tempo passou e as trevas do século X ficavam cada vez mais para trás, ergueu-se uma raça de homens que eram distintos, não apenas por grandes realizações filosóficas, mas também pelo estudo das Sagradas Escrituras e pela devoção  ao progresso do cristianismo. Pessoas aprendendo a ler e a buscar o significado das palavras, naquele tempo, especialmente em conexão com os escritos sagrados, foram bênçãos para a humanidade. A superioridade do século XI sobre o século X deve ser atribuída principalmente às melhorias e avanços no aprendizado, como um meio nas mãos do Senhor para a bênção do povo.

Mas devemos nos ocupar com mais algumas palavras sobre Silvestre. Seria injusto deixar um homem tão importante e tão bom sob a escura sombra dos preconceitos do povo. Ele é mencionado pela história esclarecida e imparcial como o mais eminente prelado de sua época. Seu nome próprio era Gerbert. "De erudição sem igual, e de piedade irrepreensível, foi Gerbert de Ravena", diz Milman. Ele foi tutor, guia e amigo de Roberto, o filho e sucessor do rei Hugo Capeto, que, por uma grande mas silente revolução, foi levado ao trono da imbecil raça de Carlos Magno no ano 987. O pupilo real parece ter tirado proveito das instruções de Gerbert. Ele subiu ao trono da França por volta do ano 996, e reinou até o ano 1031. Ele foi um grande amigo do aprendizado e da erudição, morreu em lamentos e foi apelidado de "o Sábio". Em 998 Gerbert foi apontado como papa por Oto III, Imperador da Alemanha, quando tomou o nome de Silvestre II. Ele morreu em 22 de maio de 1003.

domingo, 28 de maio de 2017

O Reavivamento das Letras pelos Árabes

Encontramo-nos agora com um fenômeno um tanto curioso e inesperado na história da literatura durante essa Idade das Trevas, e embora possa não dizer respeito propriamente à linha de nossa história da igreja, é interessante e importante demais para ser ignorado. Os professos mestres da Cristandade estavam, nessa época, como é bem conhecido, mergulhados nas profundezas da ignorância. Mas descobrimos que os sarracenos tinham se levantado para ser os estudantes e os mestres da literatura nacional da Grécia. E este era o marcante estado das coisas no início do século XI.

Já vimos que no século VII os companheiros e sucessores de Maomé desolaram a face da terra com seus exércitos, e a obscureceu pela sua ignorância e pelos atos de barbárie atribuídas a eles -- tais como o incêndio da biblioteca de Alexandria, o que atestava seu desprezo pelo aprendizado, e a aversão pelos monumentos que destruíam. No século VIII eles parecem ter se estabelecido nos países que subjugaram e, com as vantagens de um clima mais agradável e um solo mais rico, começaram a estudar as ciências e os conhecimentos úteis. "No século IX", diz o decano Waddington, "sob o favor de um sábio e magnânimo califa, eles aplicaram o mesmo ardor pela busca de literatura que tinham até então pelos exércitos e armas. Amplas escolas foram fundadas nas principais cidades da Ásia, Bagdá, e Cufa, e Bassora; numerosas bibliotecas foram formadas com cuidado e diligência, e homens de erudição e ciência foram solicitamente convidados para a esplêndida corte de Almamunis. A Grécia, que tinha civilizado a república romana, e estava destinada, em eras posteriores, a iluminar as extremidades do Ocidente, foi então chamada a tornar o fluxo de seu conhecimento em direção ao seio estéril da Ásia; pois a Grécia ainda era a única terra que possuía uma literatura original. Suas produções mais nobres foram então traduzidas para a língua dominante do Oriente, e os árabes tiveram prazer em perseguir as especulações, ou a se submeter às regras, de sua filosofia.

"O impulso assim dado ao gênio e indústria da Ásia foi comunicado com inconcebível rapidez ao longo das margens do Egito e da África até as escolas de Sevilha e Córdova; e o choque não foi menos sentido por aqueles que o receberam por último. Dali em diante o gênio da erudição acompanhava até mesmo os exércitos dos sarracenos. Eles conquistaram a Sicília; desde a Sicília invadiram as províncias ao sul da Itália e, como que para completar a excêntrica revolução da literatura grega, a sabedoria de Pitágoras foi restaurada na terra de sua origem pelos descendentes dos guerreiros árabes."*

{* História, de Waddington, vol. 2, p. 44}

O Reavivamento da Literatura

O início do século XI não foi apenas famoso pela difusão de grande habilidade arquitetônica, mas também de energias renovadas da mente humana nos vários departamentos da aprendizagem. A longa, aborrecida e inquestionável crença de eras seria então perturbada por uma investigação livre e saudável.

A energia intelectual da Europa, dizem, esteve em condição de decadência gradual desde o século V até metade do século VIII, e embora a condição das ilhas britânicas e os trabalhos do venerável Beda possam parecer fornecer alguma exceção à regra geral, foi nesses tempos que a ignorância alcançou seus limites mais amplos e obscuros. Bede, como podemos observar de passagem, é referenciado como o homem que mais eminentemente merecia ser chamado de professor da Inglaterra. Ele nasceu no ano 673, na vila de Jarrow, na Nortúmbria; ele foi um monge e um padre, mas um homem muito devoto, laborioso e piedoso: a instrução aos jovens foi um dos grandes objetivos de sua vida, no qual perseverou até suas últimas horas: ele morreu em meio aos seus amados acadêmicos, em 26 de maio de 735.*

{* Neander, vol. 5, p. 197.}

O Espírito de Construção de Igrejas Reavivado

Capítulo 18: Europa (1000 d.C. - 1110 d.C.)


O início do século XI foi marcado por grande atividade na reparação e construção de igrejas*; e, se não fosse pelos muitos usos em que essas edifícios sacros foram aplicados pela população pobre, eles mal poderiam ser dignos de nota. Podemos razoavelmente supôr que, durante os últimos trinta ou quarenta anos, tenha havido pouca disposição para se engajar nessas obras. Mas quando a terrível noite se passou, e quando o primeiro dia do ano 1001 brilhou sobre o mundo, as esperanças de todas as nações reviveram. As mentes dos homens tinham alcançado, com o fim do século X, o ponto mais baixo; mas, à partir dessa data, uma manifesta melhoria era aparente: e a primeira atenção deles foi dada aos edifícios sagrados, por cujas virtudes, como acreditavam, o juízo foi afastado, e o favor do céu restaurado.

{*N. do T.: aqui no sentido de edifícios nos quais cristãos se reuniam, e não no sentido da igreja como corpo de Cristo ou como assembleia reunida somente ao nome do Senhor em uma localidade.}

Esse sentimento supersticioso foi, sem dúvida, o que levou a esses grandes esforços e resultados arquitetônicos que caracterizam esse período. Muitos deles ainda estão de pé para atestar a grandeza do plano e a solidez da obra. "As fundações eram largas e profundas, as paredes de imensa espessura, telhados íngremes e altos, para evitar a chuva e a neve... Altos pilares suportavam a abóbada elevada, em vez dos telhados planos dos dias passados. A grande torre quadrada, que tipificava resistência à agressão mundana, foi trocada pelo alto e gracioso pináculo, que apontava encorajadamente para o céu."*

{* Eighteen Christian Centuries (Dezoito Séculos Cristãos), por James White.}

Mas não devemos supôr que os usos e propósitos desses enormes edifícios eram meramente usados como lugares de adoração pública. A igreja da vila nos tempos medievais equivalia a vários edifícios separados em nossos dias. Era grande o bastante para permitir que a maior parte da população vagasse em seus corredores. As casas dos pobres eram, então, cabanas miseráveis, sem janelas, nas quais eles se retiravam para dormir. Mas o edifício vasto e bonito consagrado pela religião era a mansão do pobre, onde ele passava o seu tempo de lazer, e onde sentia que tudo aquilo pertencia a si mesmo. Era como a praça da cidade, o mercado, a sala de imprensa, a escola e o lugar de encontro de amigos, tudo em um lugar só. Nós, que vivemos nas confortáveis casas do século XIX*, não podemos ter nem ideia dos usos e conveniência de tais edifícios. Mas tudo tendia, como todo o resto naqueles tempos, a aumentar o poder do clero e a servidão do povo. Não só o santuário era santificado como também os padres tornaram-se glorificados, e, aos olhos do povo, possuíam muito mais dignidade do que os reis.

{* N. do .T.: O autor viveu no seculo XIX na Inglaterra.}

domingo, 7 de maio de 2017

O Ano do Terror

(Continuação da seção anterior)

Os cuidados comuns e afazeres da vida foram deixados de lado. A terra para o cultivo foi abandonada; pois, por que arar, por que semear, se ninguém seria deixado para colher? Foi permitido que casas caíssem  na deterioração; pois, por que construir, por que reparar, por que se incomodar com as propriedades, se daqui a alguns meses todas as coisas terrenas terão um fim? A história foi negligenciada; pois, para que relatar eventos, quando não se esperava que uma posteridade fosse ler os registros? O rico, o nobre, os príncipes, os bispos, abandonaram seus amigos e famílias e correram para as margens da Palestina, persuadidos de que o Monte Sião seria o trono de Cristo quando descesse para julgar o mundo. Grandes somas de dinheiro foram doadas às igrejas e monastérios, como se fossem assegurar uma sentença mais favorável do supremo Juiz. Reis e imperadores imploravam nas portas dos monastérios para serem admitidos como irmãos da ordem sagrada; multidões de pessoas comuns dormiam nas varandas dos edifícios sagrados, ou pelo menos sob suas sombras.

Mas, entretanto, as multidões deviam ser alimentadas. O último dia dos 1000 anos ainda não tinha chegado. Mas não havia comida, e o milho e o gado tinham se esgotado, e nenhuma provisão tinha sido feita para o futuro. As condições extremas mais terríveis foram suportadas, revoltantes demais para serem repetidas aqui. Mas o "dia da desgraça" se aproximava cada vez mais. A última noite dos 1000 anos chegou: uma noite sem sono em toda Europa! A imaginação é suficiente para pintar o doloroso quadro. Mas, em vez de alguma extraordinária convulsão, que todos esperavam trêmulos, a noite passou como todos as outras noites, e de manhã o sol lançou seus raios com a mesma tranquilidade de sempre.  As multidões espantadas, mas então aliviadas, começaram a voltar para suas casas, a repararem seus edifícios, a arar, a semear e a continuar com suas ocupações anteriores.

Assim terminaram os primeiros mil anos da história da igreja; o dia mais sombrio no reinado de Jezabel e nos anais da Cristandade.

O Suposto Fim do Mundo

Nenhum período na história da igreja, ou talvez em toda a história, ou em qualquer país, apresenta uma figura mais tenebrosa do que a Europa cristã ao final do século X. A degradação do papado, o estado corrupto da igreja do lado de dentro, e o número e o poder de seus inimigos do lado de fora, ameaçavam sua completa destruição. Além dos incrédulos islâmicos no Oriente e dos nórdicos pagãos no Ocidente, um novo inimigo -- os húngaros -- apareceram de repente sobre a Cristandade. Na linguagem forte da história, eles pareciam hordas de selvagens, ou bestas selvagens, soltos sobre a humanidade. Sua origem era desconhecida, mas seu número parecia inesgotável. O massacre indiscriminado parecia ser a única lei deles: a civilização e o cristianismo se secaram diante de sua marcha desoladora, e toda a humanidade estava em pânico.

Além dessas terríveis calamidades, fomes prevaleciam e traziam pragas e pestilência consigo. Supostamente, os mais alarmantes sinais eram vistos no sol e na lua. A predição de nosso Senhor parecia ter se cumprido. "E haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; e sobre a terra haverá angústia das nações em perplexidade pelo bramido do mar e das ondas. Os homens desfalecerão de terror, e pela expectação das coisas que sobrevirão ao mundo; porquanto os poderes do céu serão abalados". Mas, embora essas palavras descrevessem adequadamente o estado das coisas de então, a profecia estava longe de ser cumprida, como nosso Senhor imediatamente acrescenta: "Então verão vir o Filho do homem em uma nuvem, com poder e grande glória." (Lucas 21:25-27)

Mas, se alguma vez o homem pudesse ser perdoado pela ilusão de acreditar que o fim do mundo tinha chegado, foi nessa época. O clero pregava isso, e o povo acreditava, e isso logo se espalhou por toda a Europa. Foi ousadamente promulgado que o mundo chegaria a um fim quando expirassem os 1000 anos desde o nascimento do Salvador. Por volta do ano 960 o pânico aumentou, mas o ano 999 era tido como o último que qualquer um jamais viveria. Essa ilusão generalizada, por meio do poder de Satanás, foi fundamentada em uma total falta de entendimento e falsa interpretação da profecia referente ao reino milenial dos santos com Cristo por 1000 anos. "Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes não tem poder a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com ele durante os mil anos." (Apocalipse 20:6)

Os Nórdicos

Se não acreditássemos que esses poderosos inimigos do cristianismo -- os nórdicos, ou piratas das regiões do Norte -- fossem instrumentos nas mãos de Deus para a punição da apóstata igreja de Roma, não estaria em nossos planos apresentá-los. Mas como eles aparecem como nada mais do que o juízo de Deus contra o completo mundanismo de todas as ordens do sacerdócio católico, vamos tomar uma breve nota.

Originalmente, eles vieram das margens do Báltico, na Dinamarca, Noruega e Suécia. Provavelmente eles era uma mistura dos godos, dinamarqueses, noruegos, suecos e frísios. Mas, embora compostos de tantas diferentes tribos, todos concordavam quanto ao mesmo objetivo principal -- saquear e matar. Seus pequenos reis e chefes eram piratas experientes, e os mais ousados que já infestaram os mares ou as margens da Cristandade Ocidental. Eles empurravam seus barcos leves rio acima até onde podiam ir, queimando, matando e saqueando onde quer que chegassem.

"Das margens do Báltico", diz Milman, "das ilhas escandinavas, dos golfos e lagos, suas frotas velejavam para onde a maré ou a tempestade os levassem. Eles pareciam desafiar, em suas embarcações mal formadas, o mais selvagem clima, a fim de poderem desembarcar nas margens mais inacessíveis, a fim de encontrar seu caminho até os riachos mais estreitos e os rios mais rasos. Nada estava seguro, nem mesmo no coração do país, da repentina aparição desses selvagens implacáveis". Eles foram chamados de "os árabes do mar", mas, diferente dos muçulmanos, eles não lutavam uma guerra religiosa. Eles eram pagãos ferozes, e seus deuses, assim como eles próprios, eram guerreiros e piratas. O saque, e não a propagação da fé, era o objetivo deles. O castelo ou o monastério, o senhor nobre, o bispo ou o monge, eram todos iguais aos seus olhos, desde que se pudesse obter um rico montante. As propriedades religiosas, especialmente na França, foram as que mais sofreram. A riqueza e a posição indefesa dos monastérios os tornavam os principais objetivos de ataque.

Um dia de retribuição tinha chegado. A mão de Deus pesava sobre aqueles que chamavam a si mesmos de Seu povo. Sua ira parecia queimar. A igreja tinha agora de pagar caro por sua grandeza e glória mundana. Tinha sido sua ambição por séculos, e Carlos Magno tinha elevado o clero a grande riqueza e honra mundana. Mas, mal eles sentaram em seus palácios e a maré de invasão bárbara começou a assolar o império e a depredar os edifícios religiosos. Quanto mais rica a abadia, mais tentadora a presa, e mais implacável era a espada do bárbaro. Ignorantes das diferentes ordens do clero, eles massacravam indiscriminadamente. Fogo e espada eram as armas que usavam ao longo de suas carreiras. "A França estava coberta de bispos e monges que fugiam de seus claustros arruinados, seus monastérios incendiados, suas igrejas desoladas, levando consigo as preciosas relíquias dos seus santos, e assim aprofundando o pânico universal, e pregando o desespero por onde quer que fossem."

A fim de obter paz com os normandos, que forçaram seu caminho até o rio Sena, e por dois anos sitiaram a cidade de Paris, Carlos, o Simples, da França, cedeu o ducado da Normandia ao líder deles, Rollo, em 905. Assim o pirata do Báltico abraçou a religião cristã, tornou-se o primeiro Duque da Normandia e um dos doze nobres associados da França. William, conquistador da Inglaterra em 1066, foi o sétimo Duque da Normandia.

A Inglaterra, assim como a França, foi muito assediada e desolada pelos nórdicos. A primeira descida, que foi severamente sentida, aconteceu por volta do ano 830. Desde aquele tempo essas invasões foram incessantes. E ali, assim como na França, encontraram o mais rico saqueio nos monastérios indefesos. Os santuários foram degradados com fogo e espada. Com o tempo, após a vitória conquistada por Alfredo sobre Guthrum em 878, um grande território foi cedido aos dinamarqueses no Leste da Inglaterra, sob a condição de que abraçassem o cristianismo e vivessem sob leis iguais com os habitantes nativos. Mas a paz assim obtida duraria apenas por um tempo.*

{*Robertson, vol. 2, p. 360}

Inglaterra, Escócia e Irlanda

Antes de encerrarmos nosso breve relato sobre as ações do Senhor nessa época, tomemos nota de alguns nomes que indicam o estado das coisas na Grã-Bretanha.

Da glória do reinado de Alfredo é desnecessário dizer muito. Para alguns historiadores ele chega à concepção de um soberano perfeito. Seja como for, podemos dizer que ele foi um verdadeiro rei cristão, e foi feito uma bênção tanto para a igreja quanto para o mundo. Sua bem-sucedida guerra contra os dinamarqueses; seu resgate da Inglaterra de um retorno à barbárie; seu encorajamento à educação e aos homens eruditos; seus próprios abundantes labores; sua fé e devoção cristã; tais coisas são bem conhecidas a todos familiarizados com a história da Inglaterra. Ele sucedeu seu pai em 871 com 21 anos de idade, e reinou por 30 anos. Assim o século IX, que se abriu com os grandes dias de Carlos Magno, encerrou com os ainda mais gloriosos dias de Alfredo, provavelmente o nome mais honrável na história medieval.

Clemente, um piedoso eclesiástico da igreja escocesa, apareceu no centro da Europa por volta da metade do século VIII como um pregador das doutrinas evangélicas*. A história fala dele como um defensor ousado e destemido da autoridade da Palavra de Deus, em oposição a Bonifácio, o paladino da tradição e das decisões dos concílios. Luz pode ser lançada sobre a condição da Cristandade e da história da igreja ao vermos esses dois missionários como representantes de dois sistemas: a grande organização humana de Roma; e o remanescente do cristianismo bíblico da Escócia.

{*N. do T.: Aqui no sentido de doutrinas condizentes com o evangelho, e não às atuais denominações ditas "evangélicas"}

Alarmado pela coragem de Clemente, Bonifácio, então arcebispo das igrejas germânicas, comprometeu-se a opor-se a ele. Ele confrontou o escocês com as leis da igreja romana, com as decisões dos vários concílios, e com os escritos dos mais ilustres pais da igreja latina. Clemente replicou que nenhuma lei da igreja, nenhuma decisão de concílios, ou escritos dos "pais, que fossem contrários às Sagradas Escrituras, tinham qualquer autoridade sobre os cristãos. Bonifácio apelou para a invencível unidade da igreja católica com seu papa, bispos, padres, etc., mas seu oponente sustentou que somente onde o Espírito Santo habita pode ser encontrada a esposa de Jesus Cristo.

Bonifácio ficou frustrado. Meios justos tinham falhado, então a punição devia ser aplicada. Clemente foi condenado como herege por um concílio reunido em Soissons em março de 744. Ele, mais tarde, pediu que fosse enviado a Roma sob uma guarda segura. O resto da história de Clemente é desconhecida, mas é fácil conjecturar qual deve ter sido seu fim.

Alguns dizem que Clemente mantinha noções estranhas quanto à descida do Senhor ao hades, quanto ao assunto do casamento, e quanto à predestinação, mas pouca confiança deve ser posta sobre as afirmações de seus inimigos. Bonifácio apareceu na corte como seu adversário, acusador e juiz. Esperemos que tenha sido um verdadeiro representante da antiga fé de seu país. Mas não devemos supôr que Clemente tenha sido o único que aparece em disputa com os missionários romanos nesse período da história. De tempos em tempos encontramos tais testemunhas da verdade testificando abertamente contra as pretensões de Roma. Alguns escoceses, que se chamavam de bispos, foram condenados em um concílio em Châlons, no ano 813. Vemos então que, por causa das formas clericais que tomavam o lugar da Palavra de Deus, homens iluminados e fiéis foram condenados como hereges.

João Escoto Erígena, um nativo da Irlanda que residia principalmente na França e na corte de Carlos, o Calvo, foi, segundo Hallam, o homem mais notável da Idade das Trevas, em um sentido literário e filosófico. Mas ele foi mais um filósofo do que um teólogo, embora tenha escrito largamente sobre assuntos religiosos, e parece ter pertencido a alguma ordem do clero. Ele tinha estudado os primeiros "pais" e a filosofia platônica, e era também inclinado a favorecer a razão humana, até mesmo em relação à recepção da verdade divina. Mas, de acordo com D'Aubigne, parece ter havido verdadeira piedade em seu coração. "Ó Senhor Jesus", ele exclamou, "não Te peço outra felicidade além de entender, sem a mistura de teorias engenhosas, a palavra que Tu inspiraste pelo Teu Santo Espírito. Mostra-Te àqueles que procuram a Ti somente". Supõe-se que ele tenha morrido por volta do ano 852.

Os teólogos irlandeses no século VIII tiveram um caráter tão elevado pela erudição que os homens literários convidados por Carlos Magno a sua corte eram principalmente da Irlanda. Até o tempo de Henrique II, rei da Inglaterra, a igreja da Irlanda continuou a afirmar sua independência de Roma, e a manter sua posição como ramo ativo e vivo da igreja de Cristo, sem possuir um chefe terreno. Mas a partir desse período, a igreja da Irlanda original, com sua grande reputação, desaparece completamente.

O Fluxo do Rio da Vida

Como é bom o Senhor, o grande Cabeça [Chefe] da igreja, que envia a muitas terras distantes as águas vivas do santuário, quando Roma, o centro da Cristandade, estava estagnada e corrompida. Nessa mesma época, Barônio, o famoso analista da igreja romana, e cuja parcialidade quanto à Sé Romana é notória, clama: "Quão deformada e assustadora era a face da igreja de Roma! A santa Sé caiu sob a tirania de duas mulheres relaxadas e desregradas, que colocavam e tiravam bispos ao seu bel-prazer, e (o que tremo ao pensar e falar) colocaram seus galantes na cadeira de São Pedro", etc. Referindo-se ao mesmo período, Arnoldo, bispo de Orleans, exclama: "Ó miserável Roma! Tu que antigamente apresentavas tantas grandes e gloriosas luminárias aos nossos ancestrais, em que prodigiosa escuridão não caíste, o que te tornará infame a todos os séculos posteriores."*

{*Conforme dado por Du Pin, vol. 2, p. 156.}

Enquanto tal era o estado de Roma, a capital da corrupta Jezabel, o fluxo vital de vida eterna do exaltado Salvador fluía livremente nas extremidades do império. Muitas nações, tribos e línguas tinham recebido o evangelho com as muitas bênçãos que ele lhes trazia. Sem dúvida, ele estava saturado com muitas superstições; mas a Palavra de Deus, até então, e o nome de Jesus, tinham sido introduzidos entre eles; e o Espírito de Deus pode obrar maravilhas com esse tão bendito nome e com essa tão bendita Palavra. O Salvador era pregado; o amor de Deus e a obra de Cristo parecem ter sido ensinados com uma unção divina carregada de convicção aos rudes bárbaros. Era a obra do próprio Deus e o cumprimento de Seus próprios propósitos. Em tal caso, não diria Paulo: "nisto me regozijo, sim, e me regozijarei"? (Filipenses 1:18)

domingo, 30 de abril de 2017

Os Eslavônios Recebem o Evangelho

Por volta desse tempo, alguns esforços foram feitos para a conversão dos russos, húngaros, etc., mas a obra do evangelho parece ter feito pouco progresso nessas regiões até a conquista da Boêmia por Oto, no ano 950, ou talvez até o casamento de Vladimir, príncipe dos russos, com Ana, irmã de Basílio, o imperador grego. Ele abraçou a fé de sua rainha, viveu até uma idade bem avançada, e foi seguido em sua fé pelos seus súditos. A conversão do Duque da Polônia é também atribuída à influência de uma rainha cristã. Naqueles dias a crença do príncipe se tornava a regra de seu povo, tanto na fé como na prática, e a fé da rainha, geralmente falando, tornava-se a regra do rei. Daí a influência da esposa para o bem ou para o mal. Isto podemos já ter notado, especialmente nos dias de Clotilda e Clóvis.  "Há uma estranha uniformidade", diz Milman, "nos instrumentos usados na conversão dos súditos bárbaros. Uma mulher de classe e influência, um monge zeloso, alguma terrível calamidade nacional; logo que esses três coincidem, então a terra pagã abre-se ao cristianismo."

Bulgária. A introdução do cristianismo entres os búlgaros foi referenciada em nossas notas sobre os paulicianos. Eles eram um povo bárbaro e selvagem. Depois dos hunos, os búlgaros eram os mais odiosos e mais terríveis para os europeus invadidos. A irmã de Bóris, seu rei, tendo sido levada cativa pelos gregos em sua infância, tinha sido educada em Constantinopla na fé cristã. Após sua redenção e retorno ao lar, ela se sentiu muito incomodada pelos hábitos idólatras de seu irmão e de seu povo. Ela parece ter sido uma cristã fervorosa, mas todos os seus apelos em favor do cristianismo foram pouco atendidos, até que uma fome e uma praga devastaram a Bulgária. O rei foi finalmente persuadido a orar ao Deus dos cristãos. O Senhor, em grande misericórdia, fez cessar a praga. Bóris reconheceu a bondade e poder do Deus cristão e concordou que aos missionários fossem permitido pregar o evangelho ao seu povo.

Metódio e Cirilo, dois monges gregos, distintos por seu zelo e erudição, instruíram os búlgaros nas verdades e bênçãos do evangelho de Cristo. O rei foi batizado, e seu povo gradualmente seguiu seu exemplo. Conta-se que 106 perguntas foram enviadas pelo rei ao papa Nicolau I, abrangendo cada ponto da disciplina eclesiástica, da observância cerimonial e dos costumes. As respostas, conta-se, foram sábias e discretas, e adequadas para mitigar a ferocidade de uma nação selvagem.

A partir da Bulgária os zelosos missionários visitaram muitas das tribos eslavônias, e penetraram em regiões de genuíno barbarismo. O dialeto deles ainda não tinha escrita. Mas esses homens devotos dominaram a língua do país e pregaram o evangelho ao povo em sua língua nativa. Isso era algo completamente novo naqueles dias,  mas o cristianismo celestial traz em sua comitiva muitos dons preciosos. A prática comum da época era pregar e ensinar nas línguas eclesiásticas -- o grego e o latim; de fato, reclamações foram feitas ao papa sobre a novidade da adoração em uma língua bárbara, mas os escrúpulos do pontífice foram superados pelos argumentos  dos missionários, embora a controvérsia tenha sido renovada em dias póstumos, uma vez que alguns tolamente pensaram que seria uma profanação que os serviços da igreja fossem celebrados em uma língua bárbara. Conta-se que Cirilo inventou um alfabeto, ensinou o povo rude a usar as letras, e traduziu a liturgia e certos livros da Bíblia para o dialeto dos morávios. Quem pode dizer que efeito a obra de Cirilo pôde ter até o presente dia? O rei da Morávia foi batizado e, como de costume naqueles tempos, seus súditos seguiram seu exemplo. A província da Dalmácia, e muitas outras, até então em densas trevas, receberam o evangelho durante os séculos IX e X!

A Conversão das Nações do Norte

A disseminação do evangelho em direção às extremidades ao norte da Europa, durante os séculos IX e X, tem sido tão detalhada nas histórias gerais que faremos pouco mais do que nomear os principais lugares e os principais atores em conexão com a boa obra. Mas nos regozijamos em traçar os passos daqueles missionários abnegados, no próprio coração do reino [ou trono] de Satanás, onde por séculos ele já tinha reinado imperturbável. Já vimos que a espada de Carlos Magno tinha aberto o caminho para os frísios, os saxões, os hunos, e outras tribos.

Na primeira parte do reinado de seu filho Luís, o evangelho foi introduzido entre os dinamarqueses e suecos. Disputas quanto ao trono da Dinamarca entre Haroldo e Godofredo levaram Haroldo a buscar a proteção de Luís. O piedoso imperador pensou que isso poderia ser uma oportunidade conveniente para a introduzir o cristianismo entre os dinamarqueses. Ele, portanto, prometeu ajuda a Haroldo na condição de que ele próprio abraçasse o cristianismo e admitisse pregadores do evangelho em seu país. O rei aceitou os termos e foi batizado em Mentz, no ano 826 d.C., junto a sua rainha e uma numerosa comitiva de súditos. Luís apadrinhou Haroldo, a imperatriz apadrinhou sua rainha, e Lotário o seu filho; e padrinhos de classes adequados foram encontrados para os membros de sua comitiva. Assim cristianizados, como pensava-se naqueles dias, ele voltou para casa, levando consigo dois mestres do cristianismo. E, embora Haroldo não tenha conseguido recuperar seu reino, Luís designou-lhe um território na Frísia.

Ansgarius e Aubert, os dois monges franceses que o acompanharam, trabalharam com grande zelo e sucesso; mas Aubert, um monge de nobre nascimento, morreu dois anos depois entre os trabalhos de missionário.

O infatigável Ansgarius, na morte de seu companheiro, foi para a Suécia. Ele foi igualmente feliz e bem-sucedido em sua obra lá. Em 831, Luís recompensou seus grandes labores tornando-o arcebispo de Hamburgo e de todo o norte. Ele frequentemente encontrou grande oposição, mas comumente desarmava seus perseguidores pela bondade de suas intenções e pela retidão de sua conduta. Ele viveu até o ano 865, e trabalhou principalmente entre os dinamarqueses, os cimbrianos e os suecos.

Luís, o Piedoso

Não há dúvida de que Luís, apelidado de Piedoso, foi um cristão sincero e humilde. Mas nunca houve um homem em uma posição tão falsa como o manso e gentil Luís quando o império caiu em suas mãos. Ele viveu até o ano 840. Mas sua vida é uma das mais tocantes, trágicas e lamentáveis nos anais dos reis. Houve algo parecido com uma rebelião universal quando os princípios de seu governo se tornaram conhecidos. Ele era gentil e escrupuloso demais para seus soldados; piedoso demais para seu clero. Os bispos foram impedidos de usar a espada e armas, ou de andarem com esporas brilhantes em seus calcanhares. Os monges e freiras encontraram nele um segundo São Bento. A permissividade da corte de seu pai rapidamente desapareceu dos recintos sagrados de seu palácio; mas ele pegava muito leve na disciplina de seus filhos. Tal piedade verdadeira, como pode-se facilmente imaginar, acabou sendo considerada ridícula, e não poderia ser suportada por muito tempo. Ele foi abandonado por seus soldados, cujas riquezas deviam aos inimigos saqueados; seus filhos, Pepino, Luís e Lotário ficaram, mais de uma vez, contra ele. O clero, que deveria estar cercando o monarca caído com sua simpatia no dia da adversidade, apenas tomou ocasião para mostrar seu poder degradando-o às profundezas de um claustro; e, para dar uma aparência justa à injustiça deles, ele foi forçado pelos padres a confessar pecados dos quais ele era inteiramente inocente. Eles, juntamente ao seu filho rebelde, Lotário, um homem cruel, que temia sancionar a execução de seu pai, determinaram-se a incapacitar o rei por meio da degradação civil e eclesiástica para o exercício de sua autoridade real. Ele foi obrigado a fazer penitência pública pelos supostos crimes, e foi forçado a deitar sua armadura real e seu vestuário imperial no altar de São Sebastião, e a vestir um manto escuro de luto.*

{* Para detalhes, veja Cristianismo Latino, de Milman, vol. 2}

Mas o orgulho de seus nobres foi insultado por essa exibição da presunção eclesiástica, e a nação chorou pelo destino do bom e gentil imperador. Uma reação foi inevitável. Indignados pelo seu tratamento, o povo exigiu sua restauração. Ele foi tirado do monastério, re-vestido e restaurado, mas apenas para experimentar uma humilhação ainda mais profunda. Ele foi, com o tempo, resgatado, pela mão da misericórdia divina, da conduta estranha de seus filhos e da impiedosa perseguição do clero, que se importava apenas em exibir e estabelecer seu próprio poder. Pressionando um crucifixo sobre seu peito, seus olhos se ergueram para o céu, e respirando perdão ao seu filho Luís -- que estava, então, contra ele -- ele partiu desta vida para estar com Cristo, o que é muito melhor (Filipenses 1:23).

domingo, 23 de abril de 2017

O Despertar da Educação

Embora a ambição sanguinária e a vida dissoluta de Carlos Magno nos impeçam de pensar que ele era possuidor de qualquer princípio cristão, no entanto, é justo reconhecermos que ele foi usado por Deus para o avanço da educação em casa, e para a disseminação do cristianismo em outros países. Escolas foram erguidas, universidades foram fundadas, homens eruditos foram procurados na Itália, Inglaterra e Irlanda, visando elevar seus súditos a um nível moral, religioso e intelectual mais elevado. Próximo ao fim de seu longo reinado, ele estava cercado, em sua residência real em Aix-la-Chapelle, por homens letrados de todas as nações. Os estudiosos, gramáticos e filósofos da época eram recebidos no grande Sala de Audiência. Mas o principal entre esses era o monge anglo-saxão Alcuíno, um nativo da Nortúmbria, e tutor da família imperial.

Alcuíno foi o mais importante, tanto por sua erudição quanto pela extensão de seus trabalhos como um mestre entre os francos. Mas o que é ainda mais importante, ele parece ter tido alguns pensamentos corretos sobre o cristianismo. Ele frequentemente protestava com o imperador contra a imposição dos dízimos aos saxões recém-convertidos, e contra a administração compulsória e indiscriminada do batismo. "A instrução", diz ele, "sobre os grandes pontos da doutrina e prática cristã deve ser primeiramente dada, e então devem seguir-se os sacramentos. O batismo pode ser forçado aos homens, mas não a fé. O batismo recebido sem fé ou entendimento por uma pessoa capaz de raciocinar não passa de um lavagem do corpo sem proveito algum."*

{*Robertson, vol. 2, p. 131.}

Que refrigério para o espírito, e quão verdadeiramente gratos estamos em encontrar tais atos simples e honestos do grande imperador. Isto nos mostra que o Senhor tinha Suas testemunhas em todos os tempos e em todos os lugares. Tenhamos esperança de que ele possa ter sido usado pelo Senhor para a disseminação da verdade e para a benção de almas naqueles círculos superiores.

O fim do grande Carlos se aproximava. Embora ele tivesse se cercado com literatura, música e tudo o que pudesse agradar e gratificar todos os seus gostos e paixões; e embora -- dizem -- suas antecâmaras estivessem cheias com os monarcas caídos de territórios conquistados, aguardando para suplicar seu favor, ou buscando restauração de seus legítimos domínios; apesar de tudo isso, ele teve de ceder ao golpe do qual ninguém pode desviar. Ele morreu em 28 de janeiro de 814, na idade avançada de 72 anos, e após um longo reinado de 43 anos. Ele nomeou seu filho, Luís, como seu sucessor.

A Propagação do Cristianismo (Século IX)

Capítulo 17: Europa (814 d.C. - 1000 d.C.)


É realmente um grande alívio para a mente, tanto do escritor quanto do leitor, afastar-se das regiões sombrias e poluídas de Roma, e traçar, por um momento, a linha prateada da graça salvadora de Deus na disseminação do evangelho e na devoção de muitos de Seus servos. Ao mesmo tempo, não podemos esperar muito de Cristo, ou do que é chamado de um evangelho puro, no testemunho dos missionários nesse período. O estado da Europa em geral no século IX, comparado ao século XIX {*N. do T.: e também ao século XX e XXI}, deve ser considerado se quisermos que nossos corações se elevem a Deus em gratidão pelo dia das coisas pequenas.

A preferência dada aos escritos humanos sobre as Escrituras era, então, um hábito, pelo menos onde a influência de Roma prevalecia. Os paulicianos, provavelmente, e outros que estavam separados da comunhão de Roma, mantinham a autoridade da Palavra de Deus. Mas os missionários romanos eram instruídos e obrigados a cumprir as decisões dos pais [apostólicos]. Apelava-se constantemente aos cânones dos concílios e aos escritos dos grandes doutores, de modo que o volume sagrado (as Escrituras) fosse completamente esquecido. Muito antes desse período, a Palavra de Deus já vinha sendo tratada como obscura, confusa e inadequada para a leitura geral. E assim tem sido considerada pelos católicos desde aqueles dias até hoje. Ainda assim, Deus estava, e está, acima de tudo, subjugando tudo isso para Sua própria glória, para a disseminação do cristianismo, e para a salvação dos pecadores. "Todo o que o Pai me dá", disse Jesus, "virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora", não importa o país, o período, a educação, ou a condição. (João 6:37)

domingo, 9 de abril de 2017

O Resumo de Mosheim

"No Oriente, desígnios sinistros, rancores, contendas e conflitos eram, em todos os lugares, predominantes. Em Constantinopla, ou Nova Roma, eram elevados à cadeira patriarcal aqueles que eram favoráveis à corte; e ao perderem esse favor, um decreto do imperador tirou-lhes de suas posições elevadas. No Ocidente, os bispos rodeavam as cortes dos príncipes, e se entregavam a toda espécie de voluptuosidade: enquanto o clero inferior e os monges eram sensuais e, pelos vícios mais grosseiros, corrompiam o povo a quem se destinavam a reformar. A ignorância do clero, em muitos lugares, era tão grande que poucos deles podiam ler ou escrever. Assim, sempre que uma carta devia ser escrita, or qualquer coisa de importância tivesse de ser firmada por escrito, recorria-se, geralmente, a algum indivíduo cuja fama lhe investia com uma certa destreza em tais assuntos...

"Os bispos e os chefes de monastérios detinham muitos bens imobiliários ou propriedade fundiária pela posse feudal; pelo que, quando uma guerra irrompia, eles eram convocados pessoalmente para o acampamento militar, atendidos por um número de soldados que eram obrigados a se apresentarem aos seus soberanos. Reis e príncipes, além de poderem recompensar seus servos e soldados por seus serviços, muitas vezes se apoderavam de propriedade consagrada, dando-as a seus dependentes; em consequência, os padres e monges, antes apoiados por eles, buscavam alívio para suas necessidades de cometer qualquer tipo de crimes e embustes inimagináveis.

"Poucos daqueles que foram elevados, nessa época, às mais altas posições na igreja, podem ser elogiados por sua sabedoria, erudição, virtude e outros dons adequados a um bispo. A maior parte deles, por seus numerosos vícios, e todos eles, por sua arrogância e cobiça de poder, ocasionaram desgraças às suas próprias memórias. Entre Leão IV, que morreu em 855 d.C., e Bento III, uma mulher que escondeu seu sexo e assumiu o nome de João, conta-se, abriu seu caminho ao trono pontifício por sua própria esperteza e engenhosidade, e governou a igreja por um tempo. Ela é comumente chamada de Papisa Joana. Durante os cinco séculos subsequentes as testemunhas desse evento extraordinário são inúmeras, mas nenhuma, antes da Reforma de Lutero, considerou isso como algo inacreditável ou vergonhoso para a igreja.

"Todos concordam que nesses dias sombrios o estado do cristianismo era, em todos os lugares, muito deplorável; não apenas pela incrível ignorância, a mãe da superstição e degradação moral, como também por outras causas... A ordem sagrada, tanto no Oriente quanto no Ocidente, era composta principalmente por homens analfabetos, estúpidos, ignorantes de tudo concernente à religião... O que os pontífices gregos eram é demonstrado pelo único exemplo de Teofilato que, como testificam historiadores confiáveis, fazia tráfico de tudo o que era sacro, e não ligava para nada que não fosse seus cachorros e cavalos. Mas, embora os patriarcas gregos fossem homens muito indignos, ainda assim possuíam mais dignidade e virtude do que os pontífices romanos. Um fato reconhecido por todos os melhores escritores, sem exceção até mesmo daqueles que advogam a autoridade papal, é que a história dos bispos romanos nesse século é uma história, não de homens, mas de monstros, uma história das mais atrozes vilanias e crimes.

"A essência da religião foi pensada, tanto pelos gregos como pelos latinos, de modo a consistir na adoração de imagens,  em honrar os santos que partiram, em buscar por e preservar relíquias e em enriquecer padres e monges. Dificilmente um indivíduo se aventurava a se aproximar de Deus antes do assunto de interesse ter sido devidamente buscado por meio de imagens e santos. Todo o mundo estava insanamente ocupado em juntar relíquias e procurá-las."*

{* História, de Mosheim, vol. 2, p. 184 & 272.}

Nada mais, pensamos, precisa ser dito, no momento, quanto à natureza -- raiz e ramos -- do sistema papal. Pela boca de pelo menos três testemunhas competentes, tudo o que foi dito de Roma, desde o início do período de Tiatira, foi confirmado. E não foi dito nem metade, especialmente sobre o assunto da imoralidade. Não poderíamos transferir para nossas páginas a devassidão dos padres e monges. Alguns pensam que o papado caiu no ponto mais profundo de degradação nos séculos IX e X. Por muitos anos a mitra papal foi usada livremente pela infame Teodora e suas duas filhas, Marózia e Teodora. Tal era seu poder e sua influência maligna, por meio de suas vidas licenciosas, que colocavam na cadeira de São Pedro quem elas queriam -- homens ímpios como elas próprias. Nossas páginas seriam contaminadas por um relato de suas abertas e descaradas imoralidades. Tal foi a sucessão papal. Certamente Jezabel foi realmente representada por essas mulheres, e na influência que obtiveram sobre os papas e sobre a cidade de Roma. Mas, infelizmente, Jezabel, com todas as suas associações, corrupções, tiranias, idolatrias e usos da espada civil, foi muito fielmente representada pelo papado desde sua própria fundação.

Os Fundamentos e o Edifício do Papado

Tais, infelizmente, foram os fundamentos do grande edifício papal. E não estamos errados em sofrer vendo eles serem estabelecidos. Se fôssemos caracterizar as pedras de fundação separadamente, poderíamos nos referir a elas como as mais extravagantes pretensões, a mais insultante arrogância, as mais descaradas falsificações, o mais abertamente confessado -- e até mesmo desafiador da morte -- amor à idolatria, a mais inescrupulosa apropriação de território roubado, o mais implacável espírito de perseguição, e, o que pode ser dito como a pedra (assim como a fundação) mais elevada: o mais desordenado amor pela soberania secular. Mas se olharmos dentro da casa, o que encontramos ali? É cheia de blasfêmias, os piores tipos de corrupções, e concentração de todas as atrações para a carne (Ap 18:12,13). As próprias essências do cristianismo -- tais como o sacrifício, o ministério e o sacerdócio -- ou foram corrompidas ou rejeitadas. A obra consumada de Cristo foi substituída pela missa; o ministério do Espírito de Deus pelo ensino dogmático da igreja; e o comum sacerdócio de todos os crentes, e sim, até mesmo o sacerdócio do Próprio Cristo, foi substituído pelo grande sistema eclesiástico do sacerdócio, ou melhor, pelo poder sacerdotal.

A Ceia do Senhor foi gradualmente modificada, da simples lembrança de Seu amor e anúncio de Sua morte para a ideia de um sacrifício. Muitas superstições foram praticadas com o pão consagrado, ou melhor, as hóstias*. Supunha-se que esse "sacrifício" servia tanto para os vivos quanto para os mortos; daí a prática de dar a hóstia aos mortos e enterrá-la com eles. A destrutiva doutrina do purgatório, que tinha sido sancionada por Gregório, o Grande, então se espalhou por toda a parte. Parece ter criado raízes especialmente na igreja inglesa antes do século IX. Mas o engano é manifesto, pois não há purgatório senão o sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus; como disse o apóstolo João: "O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado" (1 João 1:7). Graças a Deus, não há limite para o poder purificador {N. do T.: "purgatório" significa "purificador") do sangue de Jesus, Seu Filho. Todos os que têm fé nesse sangue são mais alvos que a neve -- perfeitamente preparados para a presença de Deus. Mas a doutrina do purgatório atinge a própria raiz dessa verdade fundamental, e tornou-se um poderoso instrumento nas mãos dos padres para extorquir dinheiro dos moribundos, e para assegurar grandes legados à igreja; mas quase tudo era, então, feito em subordinação a esses objetivos básicos. A verdade de Deus, a obra de Cristo, o caráter da igreja, as almas e corpos dos homens, foi tudo prontamente sacrificado para o engrandecimento da Sé de Roma, e para o engrandecimento do clero em subordinação ao sistema papal.

{*N. do T.: hóstia significa "vítima expiatória", e traz a ideia de que Cristo é sacrificado novamente em cada missa, anulando a consumada obra expiatória de Cristo, "feita uma vez" (Hebreus 10:10). }

As vidas ímpias daqueles a quem foi confiado o governo da igreja e o cuidado pelas almas são também questões de amarga queixa de todos os historiadores honestos, tanto daqueles tempos como dos atuais. Mas aqui pode ser interessante introduzir um historiador que é bom em relatos -- Mosheim -- como uma testemunha e confirmação do que temos dito sobre esse período.

A Ignorância e Credulidade da Época

Tão profunda era a ignorância e credulidade daqueles tempos que as mais absurdas fábulas eram recebidas com grande reverência por todas as classes. Os astutos padres sabiam como vestir suas fraudes religiosas com a mais especiosa piedade, e como cegar tanto o rei como o povo. De acordo com a lenda, Constantino foi curado da lepra pelo papa Silvestre; e assim, o imperador, repleto de gratidão, renunciou, em favor do papa, a livre e perpétua soberania de Roma, da Itália, e das províncias do Ocidente; e resolver fundar uma nova capital para si mesmo no Oriente [Constantinopla].

O objetivo de Adriano em forjar tal escritura, e em escrever tal carta, foi, sem dúvida, influenciar Carlos Magno para que imitasse a alegada liberalidade de seu grande predecessor. Se ele meramente desse ao papa a posse da dita doação de Constantino, ele estaria apenas agindo como o executor da escritura; se ele aspirasse ser um benfeitor espontâneo da igreja, ele deveria ir além dos limites da escritura de doação original. Mas ainda não sondamos as profundezas dessa falsificação. Ela serviu para provar que: (1) os imperadores gregos, por todos esses séculos, eram culpados de usurpação e de roubar o patrimônio de São Pedro; (2) que era justificável que os papas se apropriassem de seu território e se rebelassem contra a autoridade imperial; (3) que as doações de Pepino e Carlos Magno eram nada mais que a restituição de uma pequena porção dos justos e legítimos domínios originalmente concedidos à cadeira de São Pedro; e (4) que ele, Carlos Magno, deveria considerar-se como devedor de Deus e de Sua igreja enquanto um único item dessa dívida inalienável permanecesse sem ser paga.

Tais eram alguns dos convenientes efeitos do documento para os propósitos de Adriano na época; mas, embora possa ter sido produtivo de grandes vantagens ao papado, tanto então como depois, a falsificação há muito foi exposta. Com a restauração das cartas e da liberdade, a escritura fictícia foi condenada, assim como seus Falsos Decretos -- a mais audaciosa e elaborada de todas as fraudes religiosas. Falando nos Decretos, Milman observa: "Eles são então abandonados por todos; nenhuma voz é erguida em seu favor; o máximo que é feito por aqueles que não podem suprimir todos os lamentos por sua exposição é aliviar a culpa do falsificador, questionar ou enfraquecer a influência que eles tiveram em seus próprios dias e por toda a história posterior do cristianismo."*

{* Milman, vol. 2, p. 375; Greenwood, livro 6, capítulo 3, p. 82.}

A Falsificação Papal

Mas a bondade de Carlos Magno apenas excitou a avareza e inveja dos gananciosos padres. Não contentes com suas propriedades e dízimos, eles aspiravam por uma posição muito superior à dos senhores leigos, e até mesmo superior à do próprio monarca. Estimulados por sucessos passados, eles então tentaram, por uma ousada falsificação, alcançar o objetivo de sua ambição secular. Um título de propriedade de poder quase imperial é então, pela primeira vez, após um período de 450 anos, trazido à luz. Por esse ato original de doação foi descoberto que tudo o que Pepino ou Carlos Magno tinham conferido à igreja de Roma não passava de uma parte da doação real para a cadeira de São Pedro feita pelo "piedoso imperador Constantino".

Como nosso principal objetivo através desse período da história da igreja é apresentar o verdadeiro caráter do sistema papal, os meios pelos quais ele alcançou sua incrível influência e poder, e os efeitos secularizantes da aliança da igreja com o Estado, copiamos, de Greenwood, a própria carta do papa. O leitor, sem dúvida, ficará surpreso em ver que qualquer homem com a menor pretensão possível de respeitabilidade -- ainda mais o "chefe da igreja" -- pudesse jamais ter fabricado tal documento, e isso somente para ganhar mais território e poder. Mas devemos nos lembrar que Tiatira era caracterizada pelas "profundezas de Satanás" (Ap 2:24), e assim tem sido o papado desde seu primeiro fôlego, e assim deve ser até que dê o seu último suspiro. Apocalipse 17 e 18 descrevem seu caráter e seu fim.

"Considerando", diz o papa Adriano, "que nos dias do bendito pontífice Silvestre, aquele tão piedoso imperador [Constantino], por sua doação, exaltou e ampliou a santa igreja católica e apostólica de Roma, dando a ela seu supremo poder sobre toda a região do Ocidente, assim agora vos suplicamos que, neste nosso mesmo feliz dia, a mesma santa igreja possa brotar e exultar, e ser cada vez mais e mais exaltada, de modo que todos os povos que dela ouvirem exclamem: 'Deus salve o rei, e nos ouça no dia em que te invocarmos!'. Pois eis que naqueles dias ergueu-se Constantino, o imperador cristão, por quem Deus concedeu todas as coisas a Sua santíssima igreja, a igreja do bendito Pedro, príncipe dos apóstolos. Tudo isso, e muitos outros territórios que imperadores, patrícios e outras pessoas tementes a Deus deram ao bendito Pedro e à santa igreja de Deus apostólica de Roma, para o benefício de suas almas e para o perdão de seus pecados, nas regiões da Toscana, Espoleto, Benevento, Córsega e Savona -- territórios que foram tomados e mantidos pelas ímpias nações dos lombardos -- que tudo isso nos seja restaurado nestes nossos dias, de acordo com o teor de tuas várias escrituras de doação depositadas em nossos arquivos, em Latrão. Com este fim, ordenamos a nossos enviados para que te mostrem tais escrituras, para tua satisfação, e em virtude delas, agora te rogamos que ordenes a restituição ininterrupta desse patrimônio de São Pedro que está em tuas mãos; que para tua conformidade nisto com a santa igreja de Deus, possa ser colocada em plena posse e gozo de seu inteiro direito; de modo que o próprio príncipe dos apóstolos possa interceder perante o trono do Todo-Poderoso por uma longa vida para ti, e prosperidade em todas as tuas obras."

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