domingo, 9 de abril de 2017

Reflexões sobre o Cuidado do Senhor para com os Seus

O Senhor tinha, sem dúvida, muitos que eram Seus, ocultos aos olhos da história, mesmo nos tempos mais sombrios, como em Tiatira: "Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha" (Ap 2:24-25). Uma coisa, e apenas uma, deveria ocupar os fiéis depois que a apostasia se estabelecesse -- o Salvador exaltado, o Homem na glória. E a todos esses a doce promessa é: "E dar-lhe-ei a estrela da manhã" (Ap 2:28). Mas a igreja meramente professa, como aliada do Estado, foi corrompida até o cerne, e afundou, e cegou-se, e endureceu na mais incansável perversidade, de modo que a concentração de toda a forma de mal podia ser encontrada na cadeira de São Pedro. Mesmo em relação às guerras religiosas, o próprio Carlos Magno parece inocente comparado ao papa Adriano.

Devemos nos lembrar que Carlos era um rei bárbaro, apesar de ser, talvez, o maior da história europeia, com a exceção de Alexandre e César, e assim podemos entender seu objetivo em buscar unir e consolidar um grande império. Mas ele era ignorante e supersticioso quanto às coisas divinas, embora o elemento religioso fosse forte em sua mente. Aproveitando-se disso, o papa agiu e levou-o a crer que uma igreja forte e rica faria um Estado forte e rico, e que para que agradasse aos céus e ganhasse a vida eterna, a harmoniosa união da igreja com o Estado deveria ser a base de todos os seus esquemas governamentais. Ele, pessoalmente, amava Adriano, prontamente obedecia ao seu chamado, cedia a seus conselhos, e chorou quando ouviu de sua morte, que aconteceu em 26 de dezembro de 795, após o incomum longo pontificado de mais de 23 anos. Ele podia, às vezes, enxergar o verdadeiro objetivo do papa sob seus grandes artifícios, mas, convicto de seu próprio poder autossuficiente, ele conseguia permitir que tais coisas passassem sem aqueles sentimentos de desconfiança e ciúme que teriam se engendrado em uma mente mais fraca. Não dado a mudanças, ele fez um bom amigo.

O Sistema Hierárquico Feudal

Por séculos, o clamor papal para cada monarca sucessor foi: "Dê, dê; doe, doe; e o bendito Pedro certamente te enviará vitória sobre teus inimigos, prosperidade neste mundo, e um lugar perto dele mesmo no céu". Esse clamor foi, em grande medida, respondido no início do século IX. Os extratos acima dão ao leitor alguma ideia dos espólios que o clero recebia das vitórias de Carlos na Alemanha. Foi principalmente a partir desses 33 anos de guerra sanguinolenta que o grande sistema hierárquico feudal surgiu. Inúmeros milhares foram mortos para dar espaço aos bispos e abades -- uma aristocracia eclesiástica. Ergueram-se palácios principescos para esses grandes eclesiásticos sobre toda a terra conquistada: mas seus fundamentos foram colocados sobre a crueldade, a injustiça e o sangue.

Embora mais de mil anos terem passado desde que o grande patrono da igreja morreu, os palácios ainda existem e são abundantes por toda a Europa. Mas o coração adoece ao pensar sobre a origem desses assim declarados "palácios da paz", especialmente se tivermos em mente o verdadeiro caráter do evangelho, e que os ministros de Cristo devem sempre buscar manifestar o espírito do manso e humilde Jesus. As almas dos homens, e não as propriedades, deveriam ser o objetivo. "Não busco o que é vosso, mas sim a vós" (2 Coríntios 12:14), este deveria ser o lema deles; indo adiante, "nada tomando dos gentios" (3 João 1:7). Mas o exemplo de Cristo já tinha sido, há muito tempo, esquecido. A igreja afundou a um nível e um espírito do mundo quando foi unida por Constantino ao Estado. Essa foi sua grande queda, da qual flui sua dolorosa inconsistência. O amor ao mundo, ao poder absoluto, ao domínio universal, tomou, então, posse de todo o seu ser. Enganada por Satanás, em cujo trono (Ap. 2) ela se assenta, a iniquidade desavergonhada de seu curso só pode ser explicada por causa de seu poder cegante. Todos os meios, à sua vista, tinham como justificativa seu objetivo de avanço da Sé Romana.

domingo, 2 de abril de 2017

A Influência Maligna dos Missionários do Papa

É triste refletir sobre a terrível matança dos saxões, e o batismo forçado do indefeso remanescente; mas nossa tristeza é infinitamente aumentada quando descobrimos que os professos mensageiros da misericórdia foram os grandes impulsionadores dessas longas e exterminadoras guerras. No lugar de serem missionários do evangelho da paz, eles eram, na realidade, os cruéis emissários do papado -- do poder das trevas: Carlos Magno era, sem dúvida, em grande parte enganado e instigado pelos padres.

Sob o objetivo declarado de cimentar a união entre a igreja e o Estado, para o benefício secular e espiritual da humanidade, e para a força duradoura do governo imperial, os astutos sacerdotes viram o caminho se abrindo para sua própria grandeza secular e para a mais absoluta soberania de Roma. E assim aconteceu, como toda a história afirma. Eles logo ganharam uma posição de grandeza mundana sobre o povo conquistado e suas terras. Uma mudança completa acontece, precisamente nesse momento, na condição externa do clero, e, de fato, na sociedade em geral. A história antiga desaparece, como nos é contado, na morte de Pepino, e tem início a vida medieval. Uma nova condição de sociedade é inaugurada por seu filho -- o último dos reis bárbaros e o primeiro dos monarcas feudais. Mas é na história eclesiástica que estamos interessados, e aqui, novamente, preferimos fornecer alguns extratos do decano Milman -- a quem tantas vezes nos referimos -- que não pode ser acusado de severidade desnecessária, mas cujo testemunho é da mais alta integridade.

"A subjugação da terra pareceu estar completa antes que Carlos Magno fundasse, sucessivamente, suas grandes colônias religiosas, os oito bispados de Minden, Seligenstadt, Verden, Bremen, Munster, Hildesheim, Osnaburg e Paderborn. Estes, como muitos monastérios ricamente dotados como Hersfuld, tornaram-se os centros separados dos quais o cristianismo e a civilização se espalhou em círculos cada vez maiores. Mas, embora fossem assentamentos militares assim como religiosos, os eclesiásticos eram os únicos estrangeiros. Os mais fiéis e confiáveis chefes saxões, que deram a segurança de aparente sincera conversão ao cristianismo, foram promovidos a condes: assim, a profissão do cristianismo era o único teste de fidelidade...

"Carlos Magno, na história cristã, tem um papel ainda mais importante do que apenas na subjugação da Germânia ao evangelho, por causa de sua completa organização, se não fundação, da alta hierarquia feudal em grande parte da Europa. Por todo o império ocidental, pode-se dizer, foi constitucionalmente estabelecida essa dupla aristocracia, eclesiástica e civil. Em todos os lugares, o alto clero e os nobres, e através das diferentes gradações da sociedade, mesmo os da mesma classe, estavam sujeitos aos mesmos deveres, e eram iguais, em alguns casos de coordenação, em autoridade. Cada distrito tinha seu bispo e seu conde; as dioceses e os condados possuíam, na maioria das vezes, a mesma extensão...

"O próprio Carlos Magno era não menos pródigo (liberal) do que os reis mais fracos no que diz respeito a imunidades e concessões dadas às igrejas e monastérios. Com sua rainha Hildegard, ele doou, à igreja de São Martinho, em Tours, terras na Itália. Suas concessões a São Denis, a Lorch, a Fulda, a Prum, mais particularmente a Hersfuld, e a muitas abadias italianas, aparecem entre os atos de seu reinado.

"Essas propriedades nem sempre eram obtidas do rei ou dos nobres. Os servos dos pobres eram, muitas vezes, os saqueadores dos pobres. Mesmo sob Carlos Magno há reclamações contra a usurpação de propriedades pelos bispos e abades, assim como contra condes e leigos. Eles obrigavam o homem livre pobre a vender sua propriedade, ou o forçava a servir no exército em permanente dever, para, assim, deixar suas terras sem dono, com todas as chances de que não pudesse retornar, ou entregues à custódia daqueles que permaneceram em casa em silêncio; dessa forma, os sacerdotes aproveitavam cada oportunidade para tomar posse delas. Nenhuma vinha de Nabote escapava da vigilante avareza deles.

"Em seus feudos, o bispo ou abade exercia todos os direitos de um chefe feudal... Assim, a hierarquia, então uma instituição feudal, paralela e coordenada com a aristocracia secular feudal, aspirava desfrutar, e já a algum tempo desfrutava, da dignidade, riqueza e poder dos senhores suseranos. Bispos e abades tinham a independência e os privilégios sobre os feudos inalienáveis; e, ao mesmo tempo, começaram, quer hostilmente contestar, quer arrogantemente recusar, os pagamentos ou reconhecimentos da vassalagem, que muitas vezes pesavam sobre outras terras. Durante o reinado de Carlos Magno essa teoria da imunidade espiritual adormeceu, ou melhor, não tinha ainda tomado vida. No entanto, no conflito com seu filho, Luís, o Piedoso, ela foi corajosamente anunciada e seu crescimento foi rápido. Foi, então, afirmado pela hierarquia, que toda propriedade dada à igreja, aos pobres, aos santos, e ao Próprio Deus -- tais eram as frases especiosas -- era dada absoluta e irrevogavelmente, sem reservas. O rei podia ter poder sobre os honorários dos cavaleiros; mas sobre a igreja, ele não tinha poder nenhum. Tais reivindicações seriam consideradas ímpias, sacrílegas, e implicavam na perda da vida eterna. O clero e suas propriedades pertenciam a outro reino, a outra comunidade. Eles eram inteira e absolutamente independentes do poder civil."*

{* Cristianismo Latino, vol. 2, p. 286}

A Espada de Carlos Magno ou o Batismo

O objetivo professo de Carlos Magno era estabelecer o cristianismo nas partes remotas da Germânia, mas deve-se sempre lembrar que ele usou de meios muito violentos para cumprir seu fim. Milhares foram forçados às águas do batismo para escapar de uma morte cruel. "A espada ou o batismo" eram os termos usados pelo conquistador. Foi promulgada uma lei que estabelecia a pena de morte contra a recusa do batismo. Ele não podia oferecer condições de paz, nem entrar em qualquer tratado, no qual o batismo não fosse a principal condição. A conversão ou o extermínio foi a palavra de ordem dos francos. E, embora a antiga religião pudesse não estar tão arraigada na consciência do saxão, ele não podia ver nada melhor na nova; pois, para sua mente, o batismo estava identificado à escravidão e o cristianismo à submissão a um jugo estrangeiro. Submeter-se ao batismo era renunciar, não apenas à sua antiga religião, mas à sua liberdade pessoal.

Com tais sentimentos anticristãos e desumanos, a guerra seguiu em frente, como já mencionamos, por 33 anos. À frente de seus exércitos superiores, Carlos Magno oprimiu as tribos selvagens, que eram incapazes de confederar-se para sua segurança comum; conta-se que ele nem mesmo encontrou um adversário igual em números, em disciplina ou em armas. Mas, após uma luta de derramamento de sangue incalculável, e de quase sem igual obstinação e duração, os números, a disciplina e o valor dos francos prevaleceu com o tempo sobre os indisciplinados e desconsiderados esforços dos saxões. "O remanescente de trinta campanhas de indistinta matança", diz Greenwood, "e generalizada expatriação aceitou o batismo e tornou-se permanentemente incorporado ao império dos francos e ao cristianismo. Abadias, monastérios e casas religiosas de todos os tipos se espalharam por toda as partes do território conquistado, e as novas igrejas* eram supridas por ministros da escola de Bonifácio -- uma escola que não admitia qualquer distinção entre a lei de Cristo e a lei de Roma."

{* N. do T.: Aqui no sentido de edifícios religiosos, e não no sentido bíblico do corpo de Cristo ou de uma assembleia reunida somente ao nome de Cristo.}

O batismo era a única segurança e garantia de paz que os francos aceitariam pela submissão dos saxões. E assim foi -- e quão triste e humilhante é essa relação! -- quando a conquista foi concluída, e finda a carnificina, que os padres entraram em campo. O ofício deles era batizar os vencidos. Milhares dos bárbaros foram, assim, forçados, na ponta da espada, ao que os padres chamavam de águas regeneradoras do batismo. Mas, para os saxões, o batismo significava nem mais nem menos do que a renúncia à sua religião e sua liberdade. A consequência foi que, assim que os exércitos de Carlos se retiraram, os infatigáveis saxões voltaram a se erguer, atravessando os imponentes limites do império e devastando tudo por onde passavam. Em sua fúria ardente e amarga vingança eles cortaram cruzes, queimaram "igrejas", destruíram monastérios, mataram seus prisioneiros, sem respeitar idade nem sexo, até que todo o país pareceu estar envolvido em chamas e inundado de sangue. Dizem que tais revoltas eram muitas vezes provocadas pela linguagem insolente, e ainda mais pelo comportamento ofensivo dos monges missionários, e pela severa avareza com a qual exigiam seus dízimos. Mas tais explosões da parte dos saxões eram seguidas por uma nova invasão e matança implacável pelos francos, até que tribo após tribo cedeu aos braços conquistadores de Carlos Magno. Em uma ocasião, após uma severa revolta, Carlos massacrou,  a sangue frio, 4500 guerreiros valentes que tinham se rendido. Esse cruel e covarde abuso de poder deixou uma mancha escura e indelével em sua história, que nenhuma desculpa pode jamais remover. Mesmo o historiador cético alude a ela de forma muito verdadeira e tocante. "Em um dia de igual retribuição", diz ele, "os filhos de seu irmão Carlomano, o príncipe merovíngio de Aquitânia, e os 4500 saxões que foram decapitados no mesmo local, terão algo a alegar contra a justiça e humanidade de Carlos Magno. Seu tratamento para com os vencidos saxões foi um abuso do direito de conquista".

A Grande Época nos Anais do Papado

Como o império de Carlos Magno possui, de um modo peculiar, conexão com a história da igreja, e forma uma grande época nos anais da Sé Romana, ele exige uma consideração mais completa. O catolicismo romano quase devia tanto ao grande príncipe quanto o islamismo devia ao grande profeta árabe (Maomé) e seus sucessores. "As guerras saxônicas de Carlos Magno", diz Milman, "que acrescentou quase toda a Germânia (atual Alemanha) aos seus domínios, eram declaradamente guerras religiosas. Se Bonifácio era o "apóstolo" cristão, Carlos Magno era o "apóstolo" maometano [N. do T.: no sentido de que agia como Maomé na conquista dos povos pela violência] do evangelho. O objetivo declarado de suas invasões era a extinção do paganismo, a sujeição à fé cristã, ou o extermínio. O batismo era o sinal de subjugação e fidelidade, e os saxões o aceitavam ou rejeitavam, de acordo com o estado de submissão ou revolta em que se encontravam. Essas guerras eram inevitáveis; eram nada mais que a continuação da grande luta travada, por séculos, entre os bárbaros do Norte e do Oriente contra os civilizados do Sul e do Ocidente. A diferença é que, agora, a população romana e cristã, revigorada pela grande infusão de sangue teutônico, em vez de esperar pela agressão, tinha se tornado a agressora. A maré de conquista se invertia; os súditos dos reinos ocidentais, do império ocidental, em vez de esperarem para ver suas casas invadidas por hordas de invasores ferozes, agora ousadamente marchavam ao coração do país de seus inimigos, penetravam em suas florestas, cruzavam seus pântanos, e plantavam suas cortes feudais de justiça, suas igrejas e seus monastérios nas regiões mais remotas e selvagens, desde o Elba até as margens do Báltico."

Os saxões estavam divididos em três tribos principais: os ostefalianos, os vestefalianos e os angarianos. Cada clã, de acordo com o antigo uso teutônico, consistia em nobres, homens livres e escravos; mas, às vezes, a nação inteira se encontrava em uma grande convenção armada. Os saxões desprezavam e detestavam os francos romanizados, e os francos consideravam os saxões bárbaros e pagãos. Durante 33 anos, o poderoso Carlos empenhou-se em subjugar essas hordas selvagens de saxões. "A área do país habitada por essas tribos", diz Greenwood, "compreendia a totalidade do que é conhecido como o círculo moderno da Vestfália, e a maior porção da Baixa Saxônia, estendida do rio Lippe até o Weser e o Elba; limitada ao norte pelas tribos aparentadas, os jutos, os anglos e os danos; e ao leste de origem eslava, que tinha gradualmente avançado sobre as mais antigas raças teutônicas da Germânia Oriental". Mas devemos nos limitar principalmente ao aspecto religioso dessas guerras; ainda assim, é interessante, neste momento, estudar esses registros antigos, uma vez que acabamos de testemunhar a conclusão da grande guerra franco prussiana de 1870-71 {* N. do T., este livro foi escrito no século XIX} entre os descendentes dos francos e dos germanos da antiguidade.

domingo, 12 de março de 2017

A Soberania dos Pontífices Romanos (775 d.C.)

O papa tornou-se então um príncipe secular. O dia a tanto tempo esperado tinha chegado; o sonho afeiçoado de séculos tinha se realizado. Os sucessores de São Pedro são proclamados soberanos pontífices e os senhores da cidade e dos territórios de Roma. O último elo da sombria vassalidade e subserviência ao Império Grego [ou Império Oriental] está quebrado para sempre, e Roma tornou-se novamente a reconhecida capital do Ocidente.

O grande papa Adriano assumiu imediatamente os privilégios do poder e a linguagem de um soberano secular a quem é devida fidelidade. Murmúrios vindos de Ravena e do Oriente foram rapidamente silenciados, e Roma reinou suprema. A linguagem do papa, até mesmo para com Carlos Magno, era a de um igual: "Como os vossos homens", diz ele, "não estão autorizados a vir a Roma sem vossa permissão e carta especial, do mesmo modo meus homens não estão autorizados a aparecer perante a corte da França sem as mesmas credencias vindas de mim". Ele reivindicou a mesma fidelidade dos italianos que os súditos de Carlos Magno deviam a ele. "A administração da justiça estava no nome do papa; não apenas os assuntos eclesiásticos e nas rendas das propriedades que formavam parte do patrimônio de São Pedro, como também as receitas civis entraram em seu tesouro... Adriano, com o poder, assumiu a magnificência de um grande potentado... Roma, com o aumento das receitas papais, começou a retomar mais de seu antigo esplendor."

Adriano Envia Carlos Magno

O papa então enviou mensagens com a maior pressa pedindo a ajuda imediata de Carlos, e ao mesmo tempo diligentemente supervisionava, em pessoa, os preparativos militares para a defesa da cidade e a segurança de seus tesouros. E, de acordo com uma velha estratégia de Roma, [o papa] Adriano enviou três bispos para intimidar o rei e ameaçá-lo de excomunhão se ele ousasse violar a propriedade da igreja. O papa, deste modo, ganhou tempo, e Carlos, com sua usual rapidez, reuniu suas forças, cruzou os Alpes e sitiou Pavia. Durante o cerco, que continuou por vários meses, Carlos fez uma visita ao papa com grande pompa, e foi recebido com toda a honra. Ele foi aclamado pelos nobres, senadores e cidadãos como patrício de Roma e o filho obediente da igreja, que tinha obedecido tão rapidamente a convocação de seu pai espiritual e veio libertá-los dos odiosos e temidos lombardos. Quando as festividades sacras terminaram, Carlos e seus oficiais retornaram ao exército.

Pavia, com o tempo, caiu. Desidério, sucessor do grande e sábio Luitprando, foi destronado, e tomou refúgio em um monastério -- o habitual asilo dos reis destronados; seu valente filho Adalgis fugiu para Constantinopla; e assim expirou o reino dos lombardos, os inimigos mortais dos italianos, e o grande obstáculo para a agressividade papal. O caminho estava então limpo para que o conquistador desse ao papa um reino, não apenas no papel, como fez seu pai Pepino, mas em cidades, províncias e rendimentos públicos. E assim ele fez, e assim ratificou o magnânimo presente de seu pai. Como senhor pela conquista, Carlos Magno presenteou aos sucessores de São Pedro, por uma concessão absoluta e perpétua, o reino da Lombardia; e, como dizem alguns, de toda a Itália. Ao mesmo tempo Carlos reivindicou o título real, e exerceu um tipo de soberania sobre toda a Itália e até mesmo sobre a própria Roma. Mas o papa, estando então seguro na posse do território, podia bem dispôr-se a permitir todas as honras reais ao seu grande benfeitor.

domingo, 5 de março de 2017

As Guerras Religiosas de Carlos Magno (por volta de 771-814)

A assim chamada história eclesiástica, desde a época de Pepino, está tão entrelaçada com a história dos reis francos e com as vergonhosas intrigas dos papas que devemos ir mais além, embora brevemente, em traçar o curso dos eventos que tem importante influência no caráter do papado e na história da igreja.

O poder crescente de Carlos Magno, o filho mais novo de Pepino, foi assistido pelos ocupantes da cadeira de São Pedro com o maior interesse possível, e habilmente usado por eles para o cumprimento de seus ambiciosos desígnios. O papa Adriano I e Leão III, ambos homens talentosos, sentaram-se no trono papal durante o longo reinado de Carlos, e foram bem-sucedidos em engrandecer muito, através do que é chamado suas guerras religiosas, a Sé Romana.

Uma disputa entre Desidério, rei dos lombardos, e o papa Adriano, levou a uma guerra com a França que acabou na completa derrota do reino lombardo na Itália. Este foi o resultado do grande esquema do papado, e provocado pela política sem princípios e traiçoeira do pontífice. Carlos era genro de Desidério, mas depois de um ano de casamento ele se divorciou de Hermingard, a filha do lombardo, e imediatamente se casou com Hildegard, uma senhora de uma nobre casa da Suábia. O insultado pai, ao receber de volta sua filha repudiada, naturalmente buscou por reparação por meio do papa, o chefe da igreja, de quem Carlos era um filho tão obediente. Mas embora a igreja, adequando-se a seus próprios propósitos, tivesse afirmado em termos fortes a santidade do vínculo matrimonial, a violação aberta no exemplo de Carlos foi ignorada; o papa se recusou a interferir.

Roma reconhecia o bom serviço do grande Carlos e não podia arriscar seu desagrado. Nem uma palavra foi dita contra a conduta do dissoluto monarca. Desidério, por fim, ressentiu-se pelo amargo insulto de Carlos e pela ímpia conivência de Adriano. Ele apareceu à frente de suas tropas na Itália papal, e sitiou, invadiu e espalhou a devastação por toda a parte, e ameaçou o papa em sua capital.

Os Paulicianos na Europa

Por volta da metade do século VIII, o imperador Constantino V, também conhecido como Coprônimo, seja como um favor ou como um castigo, transferiu um grande número de paulicianos para a Trácia, um posto avançado do império, e ali eles agiram como uma missão religiosa. Por essa emigração suas doutrinas foram introduzidas e difundidas na Europa. Eles parecem ter trabalhado com grande sucesso entre os búlgaros. Foi de modo a guardar a jovem igreja da Bulgária que Pedro da Sicília, por volta do ano 870, escreveu ao arcebispo dos búlgaros um tratado alertando-o contra a infecção dos paulicianos. Este documento é a principal fonte de informação quanto à seita. No século X o imperador João Tzimisces conduziu uma nova grande migração dos paulicianos aos vales do monte Haemus. A história deles após esse período se passa na Europa. Eles foram favorecidos com uma livre tolerância na terra de seu exílio, o que muito suavizou a condição deles e fortaleceu sua comunidade. A partir desses assentamentos búlgaros o caminho deles se abriu para a Europa Ocidental. Muitos búlgaros nativos se associaram a eles; daí o nome dos búlgaros, de uma forma pejorativa, ter se tornado uma denominação de ódio vinculada aos paulicianos em todas as regiões.

Quanto à história religiosa subsequente desse interessante povo, os historiadores são bastante divididos. Não se sabe deles senão pelos escritos de seus inimigos; portanto, na justiça comum, somos obrigados a suspender nossa fé em suas declarações. Uma coisa, no entanto, é certa: eles protestavam contra a adoração a santos e imagens dos católicos, e contra a legitimidade do sacerdócio pelo qual a idolatria era defendida. Eles também protestavam contra muitas coisas nas doutrinas, na disciplina e na assumida autoridade da igreja de Roma. Os escritores católicos geralmente falam deles como maniqueístas, o tipo mais odioso de hereges. Mas há alguns escritores protestantes, que examinaram com grande cuidado tudo o que pode lançar luz sobre a história deles, que chegaram à conclusão de que eles eram inocentes das heresias que lhes foram imputadas, e afirmam que eles foram as testemunhas fiéis e verdadeiras de Cristo e de Sua verdade durante um período muito obscuro da Idade Média.*

{* Para detalhes e uma pesquisa mais cuidadosa, veja Hora Apocalyptica, vol. 2, 249-344, 5ª edição.}

Voltemos agora a nossa história geral.

Os Paulicianos de Rebelam Contra o Governo

Do mesmo modo que alguns dos albigenses, hussitas da Boêmia e calvinistas da França, os paulicianos da Armênia e das províncias adjacentes determinaram-se a uma resistência mais decidida aos seus perseguidores. Esta foi a triste falha deles, e o triste fruto de dar ouvidos às sugestões de Satanás. Por quase duzentos anos eles tinham sofrido como cristãos, adornando o evangelho por uma vida de fé e paciência. Até onde podemos julgar, eles parecem ter mantido a verdade através de um longo curso de sofrimento, no nobre, embora passivo, espírito de conformidade a Cristo. Mas a fé e a paciência falharam com o tempo, e eles se rebelaram abertamente contra o governo. Aconteceu assim:

Carbeas
, um oficial do alto escalão no serviço imperial, ao ouvir que seu pai tinha sido empalado pelos inquisidores católicos, renunciou a sua lealdade ao império, e com cinco mil companheiros, buscou um refúgio entre os sarracenos. O califa acolheu com prazer os desertores, e deu-lhes permissão para se estabelecerem dentro de seu território. Carbeas construiu e fortificou a cidade de Tefrique, que se tornou a sede dos paulicianos. Eles naturalmente se afluíram para esse novo lar, buscando um refúgio contra as leis imperiais. Eles logo se tornaram uma poderosa comunidade. Sob as ordens de Carbeas, a guerra foi travada contra o império, e mantida com vários êxitos por mais de trinta anos; mas como os detalhes seriam mais deprimentes do que interessantes, preferimos nos abster deles.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A Admiração de Roma pela Conduta de Teodora

Nicolau I, que se tornou papa de Roma em 858, elogiou muitíssimo, por carta, a conduta da supersticiosa e cruel Teodora. Ele admira e aprova especialmente sua implícita obediência à Sé Romana. "Ela resolveu", diz ele, "trazer os paulicianos à verdadeira fé, ou cortá-los todos pela raiz e pelos ramos. Em conformidade com essa resolução, ela enviou homens nobres e magistrados a diferentes províncias do império; e por eles alguns daqueles infelizes desgraçados foram crucificados, alguns mortos pela espada, e alguns lançados ao mar e afogados". Nicolau, ao mesmo tempo, observa que os hereges, experimentando nela toda a resolução e vigor de um homem, mal podiam acreditar que ela fosse uma mulher. De fato, o poder cegante de uma idolatria supersticiosa tinha realizado em Teodora (como fez, mais tarde, na rainha da Inglaterra, a "Maria Sangrenta") a transformação do coração terno e compassivo de uma mulher no de uma tirana impiedosa e sedenta de sangue. Pelas próprias palavras do papa, é perfeitamente evidente que a Sé Romana tinha participação principal na matança dos paulicianos. Depois de dizer a ela que os hereges a temiam, e, ao mesmo tempo admiravam sua resolução e firmeza em manter a pureza da fé católica, o papa acrescenta: "e por que fizeste isso, a não ser porque seguiste as direções da Sé Apostólica?"*

{* Milner, vol. 2, p. 498}

É difícil acreditar que o professo vigário de Cristo e pastor de Suas ovelhas pudesse jamais ter deixado em seus registros tais dizeres. Mas assim ele se permitiu, e assim eles vêm até nós como o verdadeiro testemunho da tirania anticristã de Roma no século IX.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Uma Nova Jezabel no Poder (842 d.C.)

Após a morte do imperador Teófilo, Teodora, sua viúva, governou como regente durante o período de minoridade de seu filho. Seu apego dissimulado à idolatria era bem conhecido do sacerdócio, e não muito tempo após a morte de Teófilo ela se dedicou ao completo cumprimento de seu grande objetivo. Quando o caminho ficou limpo, um festival solene foi marcado para a restauração das imagens. "Todo o clero de Constantinopla, e todos os que podiam se reunir dos arredores, se encontraram diante do palácio do arcebispo e marcharam em procissão com cruzes, tochas e incenso à igreja de Santa Sofia. Ali eles se encontraram com a imperatriz e seu pequeno filho Michael. Eles fizeram o circuito da igreja, com suas tochas ardendo, prestando homenagem a cada estátua e pintura, que foram cuidadosamente restauradas, para nunca mais serem apagadas até tempos depois por iconoclastas ainda mais terríveis, os turcos otomanos."*

{* Cristianismo Latino, vol. 2, p. 202.}

Após um restabelecimento tão triunfante das imagens, o partido vitorioso sem dúvida pensou que havia chegado o tempo de propôr e tentar assegurar outro triunfo; eles agora instavam a imperatriz a empreender a total supressão dos paulicianos. Eles tinham pregado contra imagens, relíquias e a madeira podre da cruz. Eles não podiam continuar vivendo, e os católicos atingiram esse objetivo! Um decreto foi emitido sob a regência de Teodora, que decretou que os paulicianos deveriam ser exterminados por fogo e espada, ou trazidos de volta à igreja grega. Mas eles recusaram todas as tentativas que foram feitas para ganhá-los, e assim o feroz demônio da perseguição foi solto entre eles. Seus inquisidores exploraram as cidades e montanhas da Ásia menor e executaram sua comissão da maneira mais cruel possível. Os números da seita, e a severidade da perseguição, podem ser julgados pelas multidões que foram mortas pela espada, decapitadas, afogadas ou consumidas nas chamas. Afirma-se, tanto pelos historiadores civis quanto eclesiásticos, que, em um curto reinado, cem mil paulicianos foram condenados à morte. Houve alguma vez uma filha mais genuína de Jezabel do que esta? Ela nem mesmo tinha um Acabe para fazer este trabalho cruel por ela, mas com suas próprias mãos, por assim dizer -- infelizmente, as mãos de uma mulher -- por seu próprio decreto, ela assassinou cem mil santos de Deus*, restabeleceu a adoração aos ídolos, e nutriu com favor real os padres idólatras de Roma.

{* Não pretendemos afirmar que todos os que foram mortos por Teodora eram cristãos verdadeiros. Não podemos julgar o coração; mas eles professavam ser e voluntariamente morreram como mártires.}

A história da iconoclastia foi notável pela influência feminina. Helena foi a primeira a sugerir e encorajar a veneração por relíquias; Irene foi a restauradora da adoração de imagens quando ameaçada de destruição; e agora Teodora não apenas restabelece a idolatria que seu marido tinha se esforçado para suprimir, como também persegue os verdadeiros adoradores. Certamente a mulher Jezabel -- símbolo da igreja dominante na Idade das Trevas -- tem seu antítipo nessas três mulheres, especialmente as duas últimas. A semelhança é marcante demais para ser questionada. Mas todo o sistema do catolicismo respira esse terrível espírito, e é caracterizado pelas tenebrosas características do caráter de Jezabel. A palavra do Senhor não pode ser quebrada. "Ninguém fora como Acabe, que se vendera para fazer o que era mau aos olhos do Senhor; porque Jezabel, sua mulher, o incitava". Este é o tipo (figura). O antítipo é: "Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu." (1 Reis 21:25, Apocalipse 2:20,21)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Silvano em Cibossa

Constantino [de Mananalis], que se denominou Silvano, dirigiu seus primeiros apelos aos habitantes de um lugar chamado Cibossa, na Armênia, a quem ele chamou de macedônios. "Eu sou Silvano", disse ele, "vós sois macedônios". Ali ele fixou sua residência e trabalhou com energia incansável por quase trinta anos; por meio dele muitos foram convertidos, tanto da Igreja Católica quanto do zoroastrismo. Com o tempo, tendo a seita se tornado suficientemente considerável para atrair atenção, a questão foi reportada ao imperador e um decreto foi emitido em 684 contra Constantino e as congregações paulicianas. A execução do decreto foi confiada a um oficial da corte imperial chamado Simeão. Ele tinha ordens de executar o mestre e de distribuir seus seguidores entre o clero e em monastérios, com vista à recuperação deles. O governo, sem dúvida, agiu conforme a direção da Igreja [Católica]; como no caso de Acabe, "porque Jezabel, sua mulher, o incitava." (1 Reis 21:25). Mas o Senhor está acima de tudo, e Ele pode tornar a ira do homem em louvor para Si.

Simeão colocou Constantino -- o principal objeto de vingança dos padres -- perante um grande número de companheiros, e ordenou-lhes que o apedrejassem. Eles se recusaram e, em vez de obedecer, todos largaram as pedras com as quais tinham se armado, com exceção de um rapaz; e assim Constantino foi morto por uma pedra da mão daquele jovem sem coração --  seu próprio filho adotivo Justus. Este ingrato apóstata foi exaltado pelos inimigos dos paulicianos como um outro Davi que, com uma pedra, derrubou um outro Golias -- o gigante da heresia. Mas do apedrejamento de Constantino, assim como do apedrejamento de Estêvão, um novo líder se ergueu na pessoa do seu assassino imperial. O que Simeão tinha visto e ouvido causou impressões em sua mente que ele não podia ignorar. Ele começou a conversar com alguns dos sectários, e o resultado foi que ele se tornou um de seus convertidos. Ele retornou à corte imperial, mas após passar três anos em Constantinopla com grande inquietação, ele fugiu, deixando todas as suas propriedades para trás, e assumiu sua residência em Cibossa onde, sob o nome de Tito, tornou-se o sucessor de Constantino Silvano.

Cerca de cinco anos após o martírio de Constantino o mesmo renegado Justus traiu os paulicianos. Ele conhecia, como traidor de outrora, os hábitos e movimentos da comunidade, e também onde ele seria recompensado por sua traição. Ele foi ter com o bispo de Colônia e reportou o reavivamento e disseminação da assim chamada heresia. O bispo comunicou essa informação ao Imperador Justiniano II e, em consequência, Simeão e uma grande quantidade de seus seguidores foram queimados até a morte em uma grande pira funerária. O cruel Justiniano em vão pensou ter extinguido o nome e a memória dos paulicianos em uma única conflagração, mas o sangue dos mártires pareceu apenas ter multiplicado seu número e sua força. Uma sucessão de mestres e congregações surgiram de suas cinzas. A nova seita se espalhou por todas as regiões adjacentes, Ásia Menor, Ponto, as fronteiras da Armênia e a oeste do Eufrates. Eles suportaram, durante muitos reinos sucessivos, com paciência cristã, a ira intolerante dos governadores através da instigação dos padres. Mas o preço pela crueldade, como observaremos, deve, sem dúvida, ser recompensado pela devoção sanguinária de Teodora, que restaurou as imagens na igreja oriental.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

A Origem dos Paulicianos (653 d.C.)

Os gnósticos, que tinham sido tão numerosos e poderosos durante os primeiros dias do cristianismo, eram então um obscuro remanescente, principalmente confinados às aldeias ao longo das margens do Eufrates. Eles tinham sido expulsos pelos todo-poderosos católicos das capitais do Oriente e do Ocidente, e o restante de suas diferentes seitas passaram sob o genérico e odioso nome dos maniqueístas.

Nessa região, na aldeia dos Mananalis, próximo à Samósata, viveu por volta do ano 653 um homem chamado Constantino, que é descrito pelos escritores romanos como descendente de uma família maniqueísta. Logo após a conquista dos sarracenos da Síria, um diácono armênio, que retornava do cativeiro entre os sarracenos, tornou-se hóspede de Constantino. Em reconhecimento de sua hospitalidade o diácono presenteou-o com um manuscrito contendo os quatro Evangelhos e as quatorze Epístolas de São Paulo. Este era, de fato, um presente raro, uma vez que as Escrituras já eram escondidas dos leigos. O estudo desses livros sagrados produziu uma revolução completa em seus princípios religiosos, e em todo o curso subsequente de sua vida. Alguns dizem que ele tinha sido treinado no gnosticismo, outros, que ele era um membro da igreja grega estabelecida; mas, seja como possa ter sido, aqueles livros tornaram-se então seu único estudo e a regra de sua fé e prática.

Constantino pensou então em formar uma nova seita, ou melhor, em restaurar o cristianismo apostólico. Ele renunciou e jogou fora seus livros maniqueístas, como dizem seus inimigos; abjurou ao maniqueísmo e tornou uma lei para seus seguidores que não lessem qualquer outro livro além dos Evangelhos e das Epístolas do Novo Testamento. Isto pode ter dado aos seus inimigos o pretexto para acusá-los de rejeitarem o Antigo Testamento e as duas epístolas de São Pedro. Mas é mais que provável que eles não possuíssem essas porções da Palavra de Deus. É de se temer, no entanto, a partir de seu apego e devoção peculiar aos escritos e ao caráter de São Paulo, que outras Escrituras foram negligenciadas.

É geralmente aceito que a palavra pauliciano foi cunhada a partir do nome do grande apóstolo dos gentios. Seus cooperadores, Silvano, Timóteo, Tito e Tíquico eram representados por Constantino e seus discípulos; e suas congregações, como se espalharam por diferentes lugares, eram chamadas segundos os nomes das igrejas apostólicas. É difícil perceber como nesta assim chamada "inocente alegoria" os católicos poderiam ter sido tão gravemente ofendidos com os paulicianos, ou nisto encontrado um pretexto para caçá-los com fogo e espada. E mesmo assim o fizeram, como veremos a seguir. Seu "pecado imperdoável" era sua separação da igreja do Estado, seu testemunho contra a superstição e apostasia, e seu reavivamento de uma memória de um cristianismo primitivo puro.

Os Nestorianos e os Paulicianos

A ascensão dos nestorianos no século V e seu grande zelo missionário já foram mencionados. Em sua chefia havia um bispo, conhecido pelo título de Patriarca da Babilônia. Sua residência era originalmente na Selêucia. Desde a Pérsia, conta-se, eles levaram o evangelho para o Norte, para o Oriente e para o Sul. No século VI eles pregaram o evangelho com grande sucesso aos hunos, aos indianos, aos medos e aos elamitas: na costa de Malabar e nas ilhas do oceano grandes números se converteram. Seguindo o curso do comércio, os missionários tomaram o caminho da Índia à China, e penetraram pelos desertos até sua fronteira setentrional [mais ao norte]. Em 1625 uma pedra foi descoberta, pelos jesuítas, próximo a Singapura, que leva uma longa inscrição, parte em siríaco e parte em chinês, gravando os nomes dos missionários que tinham trabalhado na China, e a história do cristianismo naquele país desde o ano 636 a 781. Mas a propagação do cristianismo, pensa-se, despertou o ciúme do Estado e, após testemunharem o sucesso do evangelho e experimentarem perseguição, eles provavelmente foram exterminados, ou fugiram, por volta do fim do século VIII. Os nestorianos foram patrocinados por alguns dos reis persas, e sob o reinado dos califas eles foram protegidos e prosperaram grandemente. Eles assumiram a designação de cristãos caldeus, ou assírios, e ainda existem sob esse nome.*

{* Veja Crenças do Mundo (Faiths of the World), vol. 2, p. 527; e J.C. Robertson, vol. 2, p. 163.}

As doutrinas, o caráter e a história dos paulicianos têm sido assuntos de grande controvérsia; mas não lhes foi permitido falar por eles mesmos para a posteridade. Seus escritos foram cuidadosamente destruídos pelos católicos, e eles nos são conhecidos apenas através de relatos de inimigos amargos que os rotulam como hereges, e como os ancestrais dos reformadores protestantes. Por outro lado, alguns escritores protestantes aceitam o pedigree, e afirmam que eles foram os mantenedores de um cristianismo puramente bíblico, que pode ter parecido herético pelo papado. Esta última circunstância, pelo que já demonstramos, é facilmente crível. As mais dolorosas corrupções, tanto na doutrina quanto na adoração da igreja católica, tinham sido não apenas admiradas, como forçadas, muito antes do surgimento dos paulicianos. Nem o espírito nem a simplicidade do evangelho permaneceram; portanto, o cristianismo bíblico deve ter parecido aos adoradores de imagens como uma heresia.

Passando por cima de muitos nomes individuais desde a época de Santo Agostinho, que foram testemunhas dignas da verdade, vamos falar diretamente da origem dos paulicianos.

A Linha Prateada da Graça Soberana

Capítulo 16: Europa (653 d.C. - 855 d.C.)


A monarquia papal está agora estabelecida. A corte da França e o papado estão unidos. Roma está agora separada do Oriente, e se torna o centro de influência sobre todo o Ocidente. Mas tendo traçado as tenebrosas linhas da apostasia no cristianismo latino desde o início do século IV até o início do século IX, voltemo-nos um pouco e esforcemo-nos em traçar a linha prateada da soberana graça de Deus naqueles que se separaram da comunhão da igreja latina durante o mesmo período. Se Satanás estava ativo em corromper a igreja no sentido exterior, Deus estava ativo na coleta dos Seus em meio a massa corrupta, e em fortalecê-los como Suas próprias testemunhas especiais. Desde os dias de Agostinho [de Hipona], a nobre testemunha de Sua graça contra o pelagianismo na Cristandade ocidental, até a Reforma, pode ser traçada uma linhagem de testemunhas fiéis que testificaram contra a idolatria e tirania de Roma, e que pregavam a salvação por meio da fé em Cristo Jesus sem obras de mérito*. Além de multidões que se alimentavam às escondidas, tanto em conventos quanto em famílias, da simples verdade do evangelho, observamos brevemente alguns dos mais proeminentes que formam um importante elo na grande cadeia de testemunhas, especialmente ligados à história da igreja na Europa.

{* Veja Hora Apocalyptica, de E. B. Elliot, vol. 2, p. 219.}

domingo, 15 de janeiro de 2017

Helena e Irene

Assim terminou a questão mais crítica que já tinha se erguido desde que o cristianismo tornou-se a religião do mundo romano. Pelo sétimo concílio geral a idolatria foi formal e veementemente estabelecida como a adoração do grande sistema papal, e anátemas foram denunciadas contra todos os que ousassem afastar-se disto. Daí a perseguição implacável aos assim chamados separatistas. Mas é digno de nota, de acordo com nossa visão do caráter de Jezabel, que uma mulher foi a primeira a mover-se em relação ao culto de imagens, e uma mulher foi a restauradora das imagens quando foram derrubadas. Helena, a mãe de Constantino, o Grande, foi uma mulher irrepreensível e devota, mas foi usada pelo inimigo para introduzir relíquias emocionantes e memoriais sagrados que mudaram o cristianismo de uma adoração espiritual pura para aquela forma paganizante de religião que cresceu com tanta rapidez nos séculos seguintes. A esperta Irene foi também usada por Satanás para restaurar e reestabelecer a adoração de imagens. Daquele dia até hoje ambas igrejas grega e latina aderiram a essa forma de culto, e mantiveram a santidade de suas imagens e pinturas.

Os resultados políticos da controvérsia iconoclástica foram igualmente grandes e importantes. Roma então rompeu os laços de sua conexão com o Oriente, separando-se para sempre do Império Bizantino; e o cristianismo grego, a partir de então, tornou-se uma religião separada, e o império um Estado separado. O Ocidente, recebendo uma grande adesão de poder através dessa revolução, finalmente criou seu próprio império, formou alianças com os reis francos, e colocou a coroa do império ocidental na cabeça de Carlos Magno, como já vimos anteriormente.

O Segundo Concílio de Niceia

Decretos foram emitidos para um concílio a ser realizado em Niceia -- uma cidade santificada pelas sessões do primeiro grande concílio da Cristandade -- para decidir a questão da adoração de imagens. O número de eclesiásticos presentes eram cerca de 350. Seus homens escolhidos tomaram a liderança; tudo era, sem dúvida, pré-arranjado. Entre os atos preliminares do concílio, foi debatido a que classe de hereges os iconoclastas deviam ser incluídos. Tarásio, presidente da assembleia, afirmou que era pior que a pior heresia, sendo uma negação absoluta de Cristo. Todo o procedimento do concílio foi caracterizado pelo mesmo tom condenatório para com os adversários da adoração de imagens. Após assentirem aos decretos dos seis primeiros concílios e às anátemas contra os hereges neles denunciados, eles passaram -- agindo, como declaravam, sob a direção do Espírito Santo -- ao seguinte cânon:

"Com a venerável e vivificante cruz serão colocadas as veneráveis e santas imagens, seja em cores, em obra mosaica, ou qualquer outro material, dentro das igrejas consagradas de Deus, nos vasos sagrados e vestimentas, nas paredes e tábuas, nas casas e estradas. As imagens de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, da imaculada mãe de Deus; dos anjos honrados; de todos os santos -- essas imagens devem ser tratadas como memoriais sagrados, adoradas, beijadas, apenas sem aquela adoração peculiar que é reservada para o Invisível e Incompreensível Deus. Todos os que violarem esta, como se afirma, tradição imemorial da igreja, e esforçar-se, forçadamente ou por artifício, em remover qualquer imagem: se eclesiásticos, devem ser depostos e excomungados; se monges ou leigos, devem ser excomungados."

O concílio não se contentou com esse abaixo-assinado formal e solene. Com uma voz eles irromperam em uma longa aclamação. "Todos cremos, todos afirmamos, todos assinamos. Esta é a fé dos apóstolos, esta é a fé da igreja, está é a fé do ortodoxo, esta é a fé de todo o mundo. Nós que adoramos a Trindade adoramos imagens. Qualquer que não seja assim, anátema sobre eles! Anátema sobre todos que chamam as imagens de ídolos! Anátema sobre todos que comunicam com aquele que não adoram imagens... Glória eterna aos romanos ortodoxos, a João de Damasco! A Gregório de Roma, glória eterna! Glória eterna a todos os pregadores da verdade!"

O Fim da Iconoclastia

Gregório II não sobreviveu muito tempo após ter escrito suas epístolas. No ano seguinte ele foi sucedido por um terceiro papa de mesmo nome. Gregório III também era zeloso na causa das imagens, e trabalhava para aumentar a popular veneração por elas. Em Roma, ele estabeleceu o exemplo de adoração de imagens na mais esplêndida escala. Um concílio solene foi convocado, consistindo de todos os bispos dos territórios lombardos e bizantinos ao norte da Itália, totalizando 93 bispos. A assembleia foi realizada na presença real das relíquias sagradas do apóstolo Pedro e teve a participação de todo o corpo do clero da cidade, dos cônsules e de uma grande multidão. Ali um decreto foi formulado, unanimemente adotado e assinado por todos os presente, com o efeito que: "Se qualquer pessoa, a partir de agora, desprezando os costumes antigos e fiéis de todos os cristãos e da igreja apostólica em particular, aparecer como um destruidor, difamador ou blasfemador das imagens sagradas de nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, e de Sua mãe, a imaculada Virgem Maria, dos apóstolos benditos, e de todos os santos, seja ele excluído do corpo e do sangue do Senhor, e da comunhão da universal igreja"*.

{* Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3, p. 480.}

Leão, indignado pela audácia do papa, prendeu seus mensageiros e resolveu montar uma numerosa frota e exército para reduzir a Itália a uma melhor sujeição. Mas a armada grega encontrou uma terrível tempestade no Adriático, deixando a frota incapacitada, e assim Leão foi obrigado a postergar seus desígnios de forçar a execução de seus decretos contra imagens nas dependências italianas do império. Ele se indenizou, no entanto, confiscando as receitas papais na Sicília, Calábria e outras partes de seus domínios, e transferindo a Grécia e o Ilírico do patriarcado romano para o de Constantinopla. Mas aqui, com ambos, a cena se fecha, mas não a disputa. Ambos Gregório e Leão morreram em 741. O imperador foi sucedido por seu filho Constantino, cujo reino se estendeu pelo incomum período de 34 anos. Gregório foi sucedido por Zacarias, um homem de grande capacidade e profundamente imbuído do espírito do papado. Ao final de seu reinado, Constantino era implacável em sua inimizade contra os adoradores de imagens. Ele é culpado por grande crueldade contra os monges, mas ele foi, sem dúvidas, provocado até o último grau pelo comportamento violento e fanático deles.

Irene, esposa do filho e herdeiro de Constantino, uma princesa ambiciosa, intrigante e altiva, apoderou-se do governo na morte de seu fraco marido, em nome de seu filho, que tinha apenas dez anos de idade. Ela escondeu por um tempo seus desígnios pela restauração das imagens. A política e a idolatria, juntas, tomaram lugar em seu coração. Ela era ciumenta, astuta e cruel. Sua história é o registro do ódio interior e da traição com aparência exterior de cortesia. Mas estamos interessados apenas na parte religiosa de seu reinado.

Um Espírito de Mentira na Boca do Papado

Após lermos cuidadosamente essas antigas epístolas (ver seção anterior), é impossível acreditar que Gregório podia ser tão ignorante a ponto de afirmar tantas coisas a Leão em favor da adoração de imagens que eram certamente falsas: somos mais inclinados a acreditar que ele sabia que eram falsas, mas que apostou na ignorância do imperador. "Dizes", continuou Gregório, "que somos proibidos de venerar coisas feitas pelos mãos dos homens. Mas és uma pessoa iletrada, e deveria, portanto, ter perguntado aos seus eruditos prelados o verdadeiro significado do mandamento. Se não fosses obstinado e intencionalmente ignorante teria aprendido deles que teus atos estão em direta contradição com o testemunho unânime de todos os pais e doutores da igreja, e em particular repugnante à autoridade dos seus concílios gerais". Tão flagrantemente falsas são essas afirmações que podemos apenas nos perguntar como qualquer pessoa poderia ter coragem de escrevê-las como se fossem verdade, especialmente o mais elevado eclesiástico da Cristandade. Mas isto prova que houve, desde o início, um espírito de mentira na boca do papado, assim como houve nos profetas de Baal (1 Reis 22:23). Até mesmo Greenwood {*N. do T.: o historiador} diz: "Em nenhum dos concílios gerais uma palavra sequer sobre adoração de imagens ocorre. A afirmação quanto ao testemunho unânime dos pais é igualmente falha. Com a exceção das obras de Gregório, o Grande, não encontrei nenhuma menção à prática da adoração de imagens nos pais dos seis primeiros séculos da era cristã."*

{* Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3, p. 476.}

Mas o espírito de mentira continua dizendo que a aparência visível de Cristo na carne causou tal impressão nas mentes dos discípulos que "assim que eles lançaram os olhos sobre Ele, apressaram-se em fazer retratos dEle, e os carregavam consigo, exibindo-os por todo o mundo, para que ao vê-los os homens pudessem ser convertidos da adoração de Satanás para o serviço de Cristo -- porém só poderiam adorar as imagens, não com adoração absoluta, mas apenas com uma veneração relativa". Do mesmo modo, o papa assegurou a Leão que "pinturas e imagens tinham sido tomadas de Tiago, o irmão do Senhor, de Estêvão, e de outros santos notáveis. E tendo assim feito, ele os dispersou por cada parte da terra para o aumento manifesto da causa do evangelho."

Por uma estranha perversão ou confusão quanto aos fatos bíblicos, o papa compara o imperador ao "ímpio Uzias que", diz ele, "sacrilegamente removeu a serpente de bronze que Moisés tinha erguido, e a quebrou em pedaços". Aqui podemos dar ao papa o benefício da ignorância. Era menos provável que ele conhecesse sua Bíblia do que os seis concílios gerais. Ele parece ter tido alguma lembrança confusa sobre a história de Uzá, a quem o Senhor feriu por ter estendido a mão para segurar a arca quando os bois tropeçaram, e do ato de Ezequias, que quebrou em pedaços a serpente de bronze expressamente para prevenir que o povo pagasse homenagem divina (i.e. idolatrassem) a ela (1 Crônicas 13:9; 2 Reis 18:4). "Uzias", diz ele, embora fosse na verdade Ezequias -- "Uzias verdadeiramente era teu irmão, obstinado e, como tu, ousava fazer violência aos sacerdotes de Deus". Pode-se então perguntar: o que as crianças de nossas escolas diriam ao papa que confundiu o bom rei Ezequias por um rei perverso, e seu ato de destruição da serpente de bronze por um ato de impiedade? Do mesmo modo podemos esperar que jogassem suas tábuas de escrever na cabeça de Gregório, assim como na de Leão (veja a seção anterior). Mas foi dito o suficiente sobre esse ponto para mostrar ao leitor qual era o espírito e caráter do papado desde sua própria fundação. Sempre foi um sistema descarado, mentiroso e idólatra, embora incontáveis números de santos de Deus tivessem estado nele durante seus mais tenebrosos períodos. O Nome salvador de Jesus sempre manteve-se em meio aos mais grosseiros absurdos e idolatrias, e qualquer que crê nesse Nome certamente será salvo. O dedo da fé que toca mesmo que somente a bainha de Sua veste, mesmo pressionado em meio a uma multidão de idólatras, abre as fontes eternas de todas as virtudes curadoras, e a própria fonte da doença é imediatamente extinta. E qualquer que seja a pressão ou trono Ele olhará ao redor para ver aquele que tocou nEle pela fé, e comunicará paz à alma atribulada (Marcos 5:25-34).  

O Papa Rejeita os Decretos de Leão

A inteligência do primeiro assalto de Leão III contra as imagens de Constantinopla encheu os italianos de dor e indignação; mas quando as ordens chegaram para forçar esses decretos fatais dentro das dependências italianas do império, todos levantaram seus braços contra isso, desde os maiores até os menores. O papa se recusou a obedecer as ordens e desafiou o imperador; e todo o povo jurou viver e morrer em defesa do papa e das imagens sagradas. Mas a complicação política dos assuntos naquele momento tornou impossível para o imperador forçar seus decretos nos domínios papais. Gregório se dirigiu ao imperador com grande tensão; o tom de sua resposta ao manifesto imperial respira um espírito do mais sedicioso desafio. Os monges, que viam seu ofício em perigo -- a superstição à qual deviam sua riqueza e influência -- pregavam contra o imperador como a um apóstata abandonado. Ele foi pintado por esses escravos da idolatria como alguém que combinava em sua pessoa todas as heresias que já haviam poluído a fé cristã e que ameaçavam as almas dos homens. Mas, exibindo o verdadeiro espírito do papado, tanto na defesa de sua querida superstição e idolatria, quanto em seu desafio ao poder secular, transcreveremos partes das epístolas originais do segundo e terceiro Gregório, deixando ao leitor que examine o quadro.

O papa Gregório II disse ao imperador: "Durante dez puros e afortunados anos temos provado os confortos anuais de tuas cartas reais, assinadas em tinta púrpura por tua própria mão, nas quais pudemos ver as sagradas promessas de teu apego ao credo ortodoxo de teus pais. Que deplorável mudança! Que tremendo escândalo! Tu agora acusas os católicos de idolatria; e pela acusação, trais tua própria impiedade e ignorância. A esta ignorância somos obrigados a adaptar a descortesia de nosso estilo e argumentos: os primeiros elementos das cartas sagradas são suficientes para tua confusão; e, se o imperador entrasse em uma escola de gramática e se declarasse o inimigo de nossa adoração, as simples e piedosas crianças lançariam suas tábuas de escrever em tua cabeça." 

Após essa desleal e ofensiva saudação, o papa tenta, como de costume, defender a adoração de imagens. Ele se esforça para provar a Leão a vasta diferença entre imagens cristãs e ídolos da antiguidade. Os últimos eram a representação fantasiosa de demônios, e as primeiras seriam a semelhança genuína de Cristo, de Sua mãe e de Seus santos. Ele então apela para as decorações no templo judaico -- o propiciatório, os querubins e os vários ornamentos feitos por Bezalel para a glória de Deus -- a fim de justificar o culto às imagens. Apenas os ídolos dos gentios, afirma ele, eram proibidos pela lei judaica. Ele nega que os católicos adoravam a madeira e a pedra: estes seriam apenas memoriais destinados a despertar sentimentos de piedade.

Ao falar de sua própria edificação ao contemplar as pinturas e imagens nas igrejas*, temos uma passagem de grande interesse histórico que mostra os temas habituais dessas pinturas: "O retrato miraculoso de Cristo enviado por Abgaro, rei de Edessa; as pinturas dos milagres do Senhor; a virgem mãe com o menino Jesus em seu colo, cercada por coros de anjos; a última ceia; a ressurreição de Lázaro; o milagre que deu vista ao cego; a cura do paralítico e do leproso; a alimentação das multidões no deserto; a transfiguração; a crucificação, sepultamento, ressurreição e ascensão de Cristo; o dom do Espírito Santo; e o sacrifício de Isaque."*

{* Cristianismo Latino, de Milman, vol. 2, p. 160.}


Gregório aborda longamente os argumentos comuns em defesa das imagens, e reprova o imperador pela violação dos mais solenes compromissos, e então irrompe em um tom desdenhoso, tal como: "Tu exiges um concílio: revogue teus decretos, cesse a destruição de imagens; um concílio não será necessário. Tu nos atacas, ó tirano, com um grupo carnal e militar: desarmado e nu só podes implorar a Cristo, o príncipe das hostes celestiais, pois Ele enviará a ti um demônio para a destruição de teu corpo e salvação de tua alma. Tu declaras, com tola arrogância: 'Despacharei minhas ordens a Roma, quebrarei em pedaços a imagem de São Pedro; e Gregório, como seu predecessor Martinho, será transportado em correntes, e em exílio, aos pés do trono imperial'. Quisera Deus que me fosse permitido pisar as pegadas do santo Martinho; mas que o destino de Constâncio possa servir de alerta aos perseguidores da igreja. Mas é nosso dever viver para a edificação e apoio ao povo fiel; e também não iremos arriscar nossa segurança no evento de um combate. Incapaz como és de defender teus súditos romanos, a situação marítima da cidade pode talvez expô-la a tuas depredações; mas só temos de nos retirar à primeira fortaleza dos lombardos, e então poderás, do mesmo modo, perseguir os ventos. Ignora tu que os papas são o vínculo de união, os mediadores da paz entre o Oriente e o Ocidente? Os olhos das nações estão fixados em nossa humildade; e elas reverenciam, como um Deus sobre a terra, o apóstolo São Pedro, cuja imagem tu ameaças destruir." 

{* N. do T.: aqui no sentido de edifícios onde cristãos se reuniam, e não no sentido bíblico do corpo de Cristo, composto por todos os verdadeiros crentes em Jesus, ou de uma assembleia reunida somente ao nome do Senhor.}


A conclusão da carta do papa evidentemente se refere a seus novos aliados além dos Alpes. Os francos tinham escutado obedientemente à recomendação papal de Bonifácio, o "apóstolo" da Alemanha. Negociações secretas já tinham começado para garantir a ajuda deles. A história e os resultados disso já examinamos em um capítulo anterior. Por isso o papa assegurou ao seu correspondente real que "os reinos remotos e interiores do Ocidente apresentam sua homenagem a Cristo e a Seu vice-gerente: e agora nos preparamos para visitar um dos mais poderosos monarcas, que deseja receber de nossas mãos o sacramento do batismo. Os bárbaros se submeteram ao jugo do evangelho, enquanto tu, sozinho, estás surdo à voz do Pastor. Esses piedosos bárbaros se acendem de raiva, têm sede de vingar as perseguições do Oriente. Abandona tua empreitada precipitada e fatal; reflita, trema e arrepende-te. Se persistires, somos inocentes do sangue que será derramado nessa disputa; que ele caia sobre tua cabeça."*

{* Veja Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3.}

domingo, 8 de janeiro de 2017

O Segundo Decreto é Publicado

O segundo decreto era tão avassalador que os oficiais do império, conta-se, foram até mesmo além de suas ordens. As mais sacras estátuas e imagens foram, em todo lugar, impiedosamente quebradas, rasgadas em pedaços, ou publicamente lançadas nas chamas debaixo dos olhos dos enfurecidos adoradores. "Correndo risco de morte", diz Greenwood, "homens, mulheres e até crianças correram para a defesa dos objetos como se fossem tão queridos para eles como a própria vida. Eles atacavam e matavam os oficiais do império envolvidos na obra de destruição; estes, apoiados pelas tropas regulares, retaliavam com igual ferocidade; e as ruas da metrópole exibiam tal cena de indignação e abate como só pode ser proveniente de paixões religiosas envenenadas. Os líderes do tumulto foram, a maior parte, condenados à morte no local; as prisões se encheram totalmente; e multidões, após sofrerem várias punições corporais, foram transportadas a lugares de exílio".*

{* Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3, p. 474}

O populacho ficou então excitado à fúria; mesmo a presença do imperador não os intimidava. Os oficiais do império tinham ordens de destruir uma estátua do Salvador que ficava sobre o Portão de Bronze do palácio imperial, e que era conhecida pelo nome de Segurança. Esta imagem era famosa por seus milagres, e recebia grande veneração do povo. Multidões de mulheres de reuniram em torno do lugar e ansiosamente suplicaram ao soldado que poupasse sua imagem favorita. Mas ele subiu na escada, e com seu machado atingiu o rosto que elas tão frequentemente contemplavam, e que, pensavam elas, benignamente olhava para elas. Os céus não interferiram, como esperavam; mas as mulheres tomaram a escada, derrubaram o ímpio oficial, e o cortaram em pedaços. O imperador enviou uma guarda armada para suprimir o tumulto; a multidão se uniu às mulheres e um assustador massacre se sucedeu. "A Segurança" tinha sido derrubada, e seu lugar foi preenchido com uma inscrição na qual o imperador dava vazão a sua inimizade contra as imagens.*

{* J. C. Robertson, vol. 2, p. 83; Milman, vol. 2, p. 156.}

A execução das ordens imperiais foram rejeitadas em todos os lugares, tanto na capital quanto nas províncias; o entusiasmo popular era tão grande que só poderia ser debelada pelos mais fortes esforços do poder civil e militar. Paixões se acendiam dos dois lados, que naturalmente resultaram na mais ousada rebelião e na mais violenta perseguição.

As Tentativas de Leão de Abolir a Adoração de Imagens (por volta de 726 d.C.)

O imperador Leão III, de sobrenome Isáurico, um príncipe de grandes habilidades, teve a ousadia de empreender, em face de tantas dificuldades, a purificação da igreja de seus detestáveis ídolos. Como os escritos do partido vencido foram cuidadosamente suprimidos ou destruídos, a história é silente quanto aos motivos do imperador: mas estamos dispostos a acreditar que o novo credo e o sucesso de Maomé influenciaram muito Leão. Além disso, havia um sentimento bastante generalizado entre os cristãos no Oriente de que a crescente idolatria da igreja era o que tinha trazido sobre eles o castigo de Deus pela invasão maometana. Os cristãos constantemente ouviam tanto dos judeus quanto dos islâmicos o odioso nome dos idólatras. A grande controvérsia evidentemente surgiu a partir dessas circunstâncias.

Leão subiu ao trono do Oriente no ano 717 e, após assegurar o império contra os inimigos estrangeiros, começou a se preocupar com os assuntos religiosos. Ele em vão pensou que podia mudar e melhorar a religião de seus súditos por seu próprio comando imperial. Por volta do ano 726, ele emitiu um decreto contra o uso supersticioso de imagens -- não sua destruição. Não podemos supôr que Isáurico estava agindo por temor ao verdadeiro Deus, mas sim que seus motivos eram puramente egoístas. Sendo chefe do império e ainda ostensivamente o chefe da igreja, ele sem dúvidas pensou que por seus decretos poderia cumprir a abolição total e simultânea da idolatria por todo o império, e estabelecer uma autocracia eclesiástica. Mas Leão superestimou demais seu poder secular nos assuntos espirituais. Havia passado o tempo de decretos imperiais mudarem a religião do império. Ele ainda tinha que aprender, para sua profunda mortificação, o desdenhoso, insolente e arrogante orgulho e poder dos pontífices, e o apego religioso do povo a suas imagens.

O primeiro decreto meramente interditou a adoração de imagens, e ordenou que fossem removidos a tal ponto que não poderiam ser tocados ou beijados. Mas o momento que a ímpia mão do imperador tocou nos ídolos, a excitação foi imensa e universal. A proibição afetou todas as classes: instruídos e não instruídos, sacerdotes e camponeses, monges e soldados, clérigos e leigos, homens, mulheres, e até crianças, se envolveram nessa nova agitação. O efeito do decreto imediatamente ocasionou uma guerra civil tanto no Oriente quanto no Ocidente. A influência dos monges foi especialmente forte. Eles arranjaram um novo pretendente ao trono, armaram a multidão e apareceram em uma frota mal equipada perante Constantinopla. Mas o fogo grego desbaratou os assaltantes desordenados; os líderes foram presos e condenados à morte. Leão, provocado pela resistência que seu decreto tinha encontrado, emitiu um segundo e mais rigoroso decreto. Ele agora ordenava a destruição de todas as imagens, e o branqueamento de todas as paredes nas quais tais coisas tinham sido pintadas.

O Primeiro Objeto Visível de Veneração Cristã

Por mais de trezentos anos após a primeira publicação do evangelho há boas razões para crer que nem imagens nem qualquer outros objetos visíveis de reverência religiosa eram admitidos no serviço público das igrejas, ou adotados nos exercícios de devoção privada. Provavelmente tal coisa nunca tinha sido pensada pelos cristãos antes dos dias de Constantino; e podemos apenas considerá-la como um dos primeiros frutos da união da igreja com o Estado. Até esse período o grande protesto dos cristãos era contra a idolatria dos pagãos: e por isto eles sofreram até a morte. E não é pouco notável que a imperatriz Helena, a mãe de Constantino, foi a primeira a excitar a mente cristã a esta degradante superstição. Conta-se que ela, em seu zelo por lugares religiosos, tenha descoberto e desenterrado a madeira da "verdadeira cruz". Isto foi o suficiente para o propósito do inimigo. A predileção da natureza humana por objetos de veneração se acendeu; a chama se espalhou rapidamente; e seguiu-se a usual consequência -- a idolatria.

Memoriais similares do Salvador, da Virgem Maria, dos Apóstolos inspirados, e dos "Pais da Igreja", foram também "encontrados". As relíquias mais sagradas que estavam escondidas por séculos eram então descobertas por visões. Tão grande e tão bem-sucedida foi a ilusão do inimigo que toda a igreja caiu na armadilha. Da época de Constantino até a época da invasão árabe, a veneração por imagens, pinturas e relíquias gradualmente aumentou. A reverência pelas relíquias era mais característica dos ocidentais, e a reverência por imagens das igrejas orientais. Mas, a partir da época de Gregório, o Grande, o sentimento do Ocidente se tornou mais favorável às imagens. Em consequência da decadência quase total da literatura, tanto entre o clero quanto entre os leigos, o uso de imagens tornou-se uma imensa fonte de poder para o sacerdócio. Pinturas, estátuas e representações visíveis de objetos sagrados tornaram-se o modo mais fácil de dar instruções, encorajar a devoção e fortalecer os sentimentos religiosos nas mentes do povo. Os mais intelectuais ou iluminados dentre o clero podiam se esforçar em manter a distinção entre o respeito por imagens com um meios e não como objetos de adoração. Mas a devoção indiscriminada do vulgar desconsidera totalmente essas sutilezas. O apologista pode estabelecer distinções muito sutis entre imagens como objetos de reverência e como objetos de adoração, mas não pode haver dúvida que, com mentes ignorantes e supersticiosas, o uso, a reverência, a adoração de imagens, seja em pinturas ou estátuas, invariavelmente se degenera em idolatria.

Antes do final do século VI a idolatria estava firmemente estabelecida na igreja oriental, e durante o século VII fez um progresso gradual e muito geral no Ocidente, onde já tinha anteriormente ganhado algum terreno. Tornou-se comum cair prostrado perante imagens, rezar para elas, beijá-las, adorná-las com gemas e metais preciosos, colocar as mãos sobre elas em juramento, e até mesmo empregá-las como madrinhas e padrinhos de batismo.

Monotelismo e Iconoclastia

Enquanto os árabes sob Abu Bakr e Omar estavam invadindo os países gregos, e arrancando província após província do império, o imperador contentou-se em enviar exércitos para repeli-los e permaneceu em sua capital para a discussão de questões teológicas. Desde a conclusão de suas guerras bem-sucedidas contra a Pérsia, a religião tinha se tornado quase o objetivo exclusivo de sua solicitude. Duas grandes controvérsias estavam, no momento, agitando todo o mundo cristão. A primeira dessas, a assim chamada controvérsia monotelista, pode ser descrita, em geral, como um reavivamento, sob uma forma um pouco diferente, da velha heresia monofisita, ou de Eutiques. Sob o nome geral dos monofisitas estão compreendidos os quatro principais ramos de separatistas da igreja oriental: os jacobitas sírios, os coptas, os abissinianos e os armênios. O originador dessa numerosa e poderosa comunidade cristã foi Eutiques, abade de um convento de monges em Constantinopla, no século V. Os monofisitas negavam a distinção das duas naturezas em Cristo; os monotelitas, por outro lado, negavam a distinção da vontade, divina e humana, no bendito Senhor. Uma tentativa bem-intencionada, porém frustrada, do imperador Heráclito, foi reconciliar os monofisitas à igreja grega. Mas, como o som da controvérsia é raramente ouvido dentre os sectários orientais após esse período, e como um relato detalhado de suas disputas não seria de nenhum interesse aos nossos leitores, deixamos isto para as páginas da história eclesiástica.*

{* Para maiores detalhes sobre as diferentes seitas, veja Dicionário das Igrejas Cristãs e Seitas, de Marsden, e Crenças do Mundo, de Gardner.}

A iconoclastia, ou o surto de destruição de imagens, merece uma consideração mais detalhada. Ela penetrou no coração da Cristandade como nenhuma outra controvérsia tinha feito até então, e forma uma importante época na história da Sé Romana. Jezabel agora aparece em suas verdadeiras cores, e, deste momento em diante, seu caráter maligno é indelevelmente estampado no papado. Os papas que então preenchiam a cadeira de São Pedro defendiam e justificavam abertamente a adoração a imagens. Este foi, certamente, o início do papado -- a maturidade do sistema de desonra a Deus. Os fundamentos do papado foram descobertos, e assim tornou-se evidente que a perseguição e a idolatria eram os dois pilares sobre os quais seu domínio arrogante repousava.

Reflexões sobre o Islamismo e o Romanismo

Tendo chegado a nossa história, tanto civil quanto eclesiástica, ao final do século VIII, podemos fazer uma breve pausa e refletir sobre o que vimos, onde estamos, e o que esperar. Temos visto o crescimento da Sé Romana no Ocidente, e como ela alcançou o cume de sua ambição. Vimos também o surgimento do grande poder antagonista no Oriente, inferior apenas na extensão de sua influência religiosa e social ao próprio cristianismo de modo geral. O primeiro se espalhou gradualmente no próprio centro da Cristandade iluminada, e o último surgiu de repente em um obscuro distrito de um deserto selvagem. Mas qual -- pode-se perguntar -- é a lição moral a ser tomada do caráter e dos resultados desses dois grandes poderes? Ambos foram permitidos por Deus e, se julgamos corretamente, foram permitidos por Ele como um juízo divino sobre a Cristandade por sua apostasia, e sobre os pagãos por sua idolatria. Por um lado, o grito de guerra foi erguido contra todos os que recusavam a fé ou o tributo ao credo e aos exércitos dos califas; por outro lado, um grito de guerra mais implacável foi erguido contra quem se recusasse a crer na Virgem e nos santos, suas visões e milagres, suas relíquias e imagens, de acordo com as exigência intolerantes da idólatra Roma. As igrejas orientais tinham se enfraquecido e se perdido desde os dias de Orígenes por uma filosofia platônica, na forma de uma teologia metafísica, o que causou contínuas dissensões. No Ocidente as controvérsias tinham sido grandemente evitadas: o poder era o objetivo ali. Roma tinha aspirado, por séculos, o domínio da Cristandade -- e do mundo. Ambos foram tratados judicialmente por Deus no dilúvio de fogo vindo da Arábia; mas o islamismo permanece como o poderoso flagelo de Deus no Oriente, e o romanismo no Ocidente.

Postagens populares