domingo, 13 de setembro de 2020

O Cristianismo na Irlanda

Séculos se passaram desde que vimos pela última vez o estado de coisas nessa ilha. São Patrício deixou para trás, quando morreu em 492, um grupo de homens bem educados e devotos, que veneravam muito seu mestre e procuravam seguir seus passos. A fama da Irlanda por seus mosteiros, escolas missionárias e como sede do ensino puro das Escrituras cresceu tanto que recebeu o honroso título de "Ilha dos Santos". No testemunho de Beda, aprendemos que, por volta da metade do século VII, muitos dos nobres e clérigos anglo-saxões se dirigiram à Irlanda, seja para receber instrução ou para ter a oportunidade de viver em mosteiros de disciplina mais rígida.

Já observamos o trabalho do clero irlandês como missionário*. Os Culdees de Iona devem sua origem como comunidade cristã à pregação do apóstolo irlandês Columba. A Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, os países baixos e diferentes partes do continente europeu ficaram em dívida principalmente com os missionários irlandeses por seu primeiro contato com a verdade divina. Carlos Magno, ele próprio um homem de letras, convidou para sua corte vários estudiosos eminentes de diferentes países, mas especialmente da Irlanda. Por muitas eras, ela manteve sua independência de Roma, rejeitou todo controle estrangeiro e reconheceu a Cristo somente como Cabeça da igreja. Mas a invasão dos dinamarqueses no início do século IX e a ocupação do país apagaram a luz e mudaram o caráter da "ilha dos santos". Essas hordas piráticas e predatórias devastaram seus campos, mataram seus filhos ou os despojaram de sua herança, demoliram seus colégios e se mantiveram no país com a crueldade e arrogância de usurpadores. Escuridão moral, espiritual e literária se seguiram e prepararam o caminho para o romanismo. Até então, as instituições religiosas e os trabalhos dos eclesiásticos constituíam os principais temas de sua história; mas desde então, guerras internas, turbulência, crime e desolação.

{* Veja Os Primeiros Pregadores do Cristianismo na Irlanda}

Várias tentativas foram feitas por pontífices romanos para sujeitar a Igreja Irlandesa à Sé de Roma, mas sem sucesso até o reinado do Papa Adriano IV. Ele era um inglês, conhecido pelo nome de Nicolas Breakspear; nascido na pobreza e na obscuridade, tornou-se um monge de Santo Albano, e depois elevou-se nos assuntos humanos até à dignidade pontifícia. Embora subitamente elevado da indigência à opulência, seu orgulho e arrogância eram extremos. Ele ficou muito ofendido com o imperador Frederico Barbarossa por não o apoiar e recusou-se a dar-lhe o beijo da paz. Frederico declarou que sua omissão era fruto da ignorância e, submetendo-se ao serviço como escudeiro de Sua Santidade, foi perdoado e recebeu o beijo.

Entre os primeiros atos desse “modesto” pontífice, estava a presunção de autoridade sobre a Irlanda e sua concessão a Henrique II, rei da Inglaterra. O fundamento sobre o qual o papa baseou seu direito de fazer esta concessão foi assim expresso: "Porque é inegável, e Vossa Majestade o reconhece, que todas as ilhas nas quais brilhou Cristo, o sol da justiça, e que receberam a fé cristã, pertencem de direito a São Pedro e à santíssima igreja romana." Em virtude desse “direito”, ele autoriza Henrique a invadir a Irlanda com o objetivo de ampliar a igreja, aumentar a religião e a virtude e erradicar o joio do vício do jardim do Senhor; com a condição de que um centavo seja pago anualmente de cada casa à Sé de Roma.

A partir desse período, em 1155, a igreja irlandesa passou a ser essencialmente romanista em suas doutrinas, constituição e disciplina. Muito antes da Reforma, "quase seiscentos estabelecimentos monásticos, pertencentes a dezoito ordens diferentes, estavam espalhados por toda a face do país. Frades fantasmagóricos, negros, brancos e cinzas, aglomeravam-se em incontáveis ​​multidões, praticando sua religião sobre um povo ignorante e iludido". Em 1172, Henrique completou sua conquista do país; uma assembleia do clero irlandês reunida em Waterford submeteu-se ao ditado papal, proclamou o título de Henrique ao domínio soberano da Irlanda e fez o juramento de fidelidade a ele e a seus sucessores. O rápido declínio agora marcava a igreja na Irlanda. Sua famosa espiritualidade e inteligência se foram. Antes ela tinha cerca de trezentos bispos; no alvorecer da Reforma, acreditamos que o número era inferior a trinta. Os ciúmes, contendas e rebeliões mancharam quase todas as páginas de sua história, tanto civil quanto eclesiástica, desde o século IX até o presente.*

{* Ver History of Ireland, de Froude; Faiths of the World, de Gardner, vol. 2, pág. 150; Variations of Popery, de Edgar, p. 153 e 192.}

O Alvorecer da Reforma se Aproxima

Capítulo 27: O Amanhecer da Reforma (1155-1386 d.C.)

Séculos antes de Lutero pregar suas teses na porta da igreja em Wittemburg, o Senhor estava preparando nações e indivíduos para a realização desta grande obra. O enfraquecimento do poder papal e a ousadia crescente das testemunhas predisseram o que se aproximava.

Em nossas contemplações de Roma, devemos sempre distinguir entre a igreja católica e o papado, ou o poder eclesiástico e o temporal. A igreja, embora caída e escravizada, ainda era a igreja; protestante de coração e fiel em medida a Cristo; mas aventurar-se em seus serviços piedosos além dos limites definidos pela ortodoxia romana sujeitava-a a sua severa disciplina. O papado jurou destruição a todos os invasores. A imoralidade e a irreligião podem até ser deixadas de lado, pelo menos com uma leve censura; mas a heresia ou a cisma -- em outras palavras, qualquer forma de dissidência da igreja romana, deve ser extirpada com fogo e espada, e todos os hereges condenados por sentença pontifícia à morte eterna.

Durante o longo reinado de terror papal, os verdadeiros santos de Deus testemunharam e profetizaram vestidos de saco. Mas a linha prateada da graça soberana foi preservada ininterruptamente desde os dias dos apóstolos, sob a proteção das asas do Deus vivo. Ele preservou Suas testemunhas do dragão devorador nos lugares secretos da Terra; em montanhas, vales e cavernas; e em muitos conventos tranquilos nas regiões remotas da cristandade.

Mas pode ser interessante, em primeiro lugar, renovar nosso conhecimento sobre o estado do cristianismo em alguns dos países que já observamos. Desta forma, iremos naturalmente entrar no assunto da nossa longa linha de testemunhas, que vai até os dias de Lutero. E, primeiro na ordem, vamos notar o estado do cristianismo na Irlanda.

domingo, 6 de setembro de 2020

A Apostasia dos Mendicantes

 As duas ordens rivais, os dominicanos e franciscanos, não se contentando em envolver toda a Europa em discórdia e lutas furiosas, começaram, logo após o falecimento de seus respectivos fundadores, a disputar entre si pela precedência. E embora os pontífices deste e dos séculos seguintes terem usado vários meios para encerrar essas disputas inconvenientes, suas tentativas foram infrutíferas, pois essas duas grandes ordens continuaram por muitos anos a acalentar essa rivalidade acirrada e a lançar uma contra a outra as mais amargas recriminações. Eles lutaram muito pelo domínio em todas as cadeiras de ensino da cristandade, mas a disputa mais notável foi a dos dominicanos com a Universidade de Paris. Outro ponto proeminente de grande controvérsia que durou muito tempo foi a doutrina da imaculada conceição da Virgem Maria. Era a doutrina favorita dos franciscanos e sempre foi violentamente atacada pelos dominicanos. O famoso Tomás de Aquino argumentou a favor da visão dominicana da questão, e João Duns Escoto, o dialético, assumindo a visão franciscana da doutrina, entrou na arena do debate, que continua até hoje; pois, embora o atual papa Pio IX* tenha declarado o dogma da imaculada concepção da Virgem Maria, a fraternidade dominicana não está disposta a admiti-lo. No entanto, agora isso se tornou um artigo de fé na igreja romana.

{*Este livro foi escrito no século XIX.}

Já em 1256, quando Boaventura se tornou o general dos franciscanos, ele descobriu que eles haviam começado a se tornar infiéis para com sua noiva, a pobreza, e estavam lutando pelo divórcio. As afeições de Francisco não sobreviveram em seus seguidores. Mas, sob a gestão prudente de seu novo general, relativa tranquilidade foi mantida durante sua vida; mas, depois de sua morte, ocorrida em 1274, as dissensões eclodiram com a maior violência, como de costume. Na verdade, essas ordens mendicantes, ou melhor, satânicas, causaram as mais violentas contendas em quase todos os países da Europa até o período da Reforma. Mas todas as classes, tanto na Igreja quanto no Estado, tiveram que suportar seu orgulho e arrogância, pois eram os mais fiéis servos e satélites da Sé Romana.

O breve esboço a seguir, de Mateus de Paris, um beneditino de St. Albans, que escreveu por volta de 1249, apresentará ao leitor o verdadeiro caráter dos caminhos dessas terríveis pragas da sociedade. O quadro não está, de forma alguma, exagerado, embora Mateus pertencesse à velha ordem aristocrática e pudesse desprezar seus novos irmãos democráticos. Solidão, reclusão, a cela solitária, a capela privada, a comunicação com o mundo exterior severamente cortada, era a velha ordem; o que se segue é uma amostra do novo e do que prevalecia na Inglaterra no século XIII.

“É um terrível – é um horrível – presságio que em trezentos anos, em quatrocentos anos, e até mais, as antigas ordens monásticas não se degeneraram tão completamente como estas fraternidades. Os frades, que foram fundados há apenas quarenta anos, construíram, e ainda constroem até hoje, na Inglaterra, residências tão elevadas quanto os palácios de nossos reis. São eles que, ampliando dia a dia seus suntuosos edifícios, circundando-os com paredes elevadas, acumulam dentro deles tesouros incalculáveis, transgredindo imprudentemente os limites da pobreza e violando, segundo a profecia da alemã Hildegarda, as próprias regras fundamentais da sua confissão. São eles que, impelidos pelo amor ao ganho, se impõem às últimas horas dos senhores e dos os ricos que eles sabem estar transbordando de riquezas; e estes, desprezando todos os direitos, suplantando os pastores comuns, extorquem confissões e testamentos secretos, gabando-se de si mesmos e de sua ordem, e afirmando sua vasta superioridade sobre todos os outros. Tanto é assim que nenhum dos fiéis agora acredita que pode ser salvo a menos que seja guiado e dirigido pelos pregadores ou pelos frades menores. Ansiosos por obter privilégios, eles servem nas cortes de reis e nobres, como conselheiros, camareiros, tesoureiros, padrinhos ou tabeliães de casamentos; eles são os executores das extorsões papais. Em sua pregação, às vezes tomam o tom de lisonja, às vezes de censura mordaz; eles não têm escrúpulos em revelar confissões ou apresentar as acusações mais precipitadas. Eles desprezam as ordens legítimas, aquelas fundadas pelos santos padres, por São Bento ou Santo Agostinho, com todos os outro. Eles colocam sua própria ordem acima de tudo; consideram os cistercienses rudes e simples, meio leigos, ou melhor, camponeses; tratam os frades negros (os dominicanos) como epicuristas arrogantes."*

{* Milman, vol. 4, pág. 276; Mosheim, vol. 2, pág. 523.}

As Primeiras Ordens Monásticas e as Posteriores

Temos plena consciência de que todos os sistemas humanos devem ser examinados pela Palavra de Deus se quisermos compreender corretamente seu verdadeiro caráter. Não é contrastando o último com o anterior que podemos descobrir o quão longe eles podem ter se distanciado da mente do Senhor. A Palavra do Deus vivo, pela qual todos serão finalmente julgados, deve ser nosso único padrão agora. Pouco importa quais melhorias podem ser encontradas em um sistema em comparação com outro, se ambos são o resultado de invenção humana. Isso é verdade para todas as pessoas e também para todos os sistemas. A Palavra de Deus deve ser a única regra do cristão, e o próprio Cristo a única cabeça e centro, poder e autoridade, no sistema que Ele possui -- a igreja, a assembleia de Deus*. Mas, como em diferentes ocasiões examinamos as escrituras sobre esses pontos, iremos agora, em poucas palavras, falar sobre a diferença entre os sistemas monásticos anteriores e posteriores. **

{*N. do T.: a expressão “assembleia de Deus” aqui não se refere a uma denominação cristã que adotou este nome (tal denominação nem mesmo existia à época do autor), mas sim à igreja de Deus, a universal assembleia (Hebreus 12:23), composta por todos aqueles que pela graça foram salvos e acrescentados a essa igreja (Atos 2:47) ao crerem em Jesus como Salvador.}

{** Ver "Reflexões sobre os Princípios da Asceticismo", Cap. 12.}

O principal, senão o objetivo exclusivo dos primeiros eremitas, anacoretas e ascetas de todos os nomes, era sua própria perfeição religiosa. A instrução ou salvação de outros não fazia parte de seu credo. O isolamento do mundo perigoso e a reclusão em alguma cela solitária, com todas as suas privações, eram considerados necessários para esse fim. À medida que o halo da santidade deles atraía e seduzia outras pessoas, foram construídas casas e cultivadas grandes extensões de terra para as necessidades desta vida. Esses pequenos começos muitas vezes se tornaram os assentamentos mais imponentes de um país. E durante a longa e escura noite da Idade Média, com sua barbárie e feudalismo, os mosteiros frequentemente se mostravam uma grande misericórdia para os doentes, os pobres e os viajantes. Todos devem reconhecer este fato com gratidão. Durante os cinco ou seis séculos que se seguiram à subversão do império ocidental, o sistema monástico tornou-se um poderoso instrumento para corrigir os vícios da sociedade e proteger as classes mais baixas da opressão sem lei do senhor feudal. Hospitalidade, ou o entretenimento de estrangeiros e peregrinos, era um dos usos importantes dos mosteiros naquele tempo. As estalagens para a recepção de viajantes parecem não ter existido antes do século XI. Praticamente os dois únicos edifícios imponentes que chamavam a atenção do viajante naquela época eram o castelo do poderoso barão e a abadia dos monges em oração. Um era guerra, e o outro paz. A religião, o aprendizado e a ciência encontraram um refúgio atrás das paredes do mosteiro, e a verdadeira piedade podia trabalhar pacificamente ali, escrevendo, transcrevendo, coletando e preservando informações úteis.

"Os beneditinos", diz Travers Hill, "eram os depositários do saber e das artes; eles reuniam livros e os reproduziam no silêncio de suas celas, e preservavam dessa forma não apenas os volumes das escrituras sagradas, mas muitas das obras de tradição clássica. Eles começaram a arquitetura gótica; só eles tinham os segredos da química e da ciência médica; eles inventaram muitas cores; foram os primeiros arquitetos, artistas, pintores de vidro, entalhadores e trabalhadores de mosaico nos tempos medievais. Foi um sistema poderoso e fez um bom trabalho no mundo, mas seguiu o caminho de coisas e instituições humanas, ficou intoxicado com seu poder, cegado por seu próprio esplendor e corrompido por sua própria riqueza; seus abades tornaram-se avarentos , seus monges voluptuosos; eles perderam sua simplicidade original; o governo de seu fundador não existia mais na atividade de seus lavradores, seus estudiosos e seus artistas, mas só era encontrado nas palavras mecanicamente lidas na capela. O [HH1] monasticismo engendrou sua própria corrupção, e dessa corrupção veio a morte."

A magnífica abadia de Glastonbury já chegou a cobriu sessenta acres. Antes da queda dos mosteiros na Inglaterra, os comissários reais relatam a esse respeito; que eles nunca tinham visto uma casa tão grande, boa e principesca, com quatro parques contíguos, um grande pesqueiro de cinco milhas, bem abastecido com lúcios, percas, douradas e leuciscos; quatro solares, além da capela, hospital, tribunal, escolas e a grande portaria. Muitas das casas de Glastonbury foram construídas com materiais desta outrora soberba abadia.*

{*Gazetteer, de Johnston.}

Os hábitos dos monges modernos contrastavam perfeitamente com os anteriores. Em lugar de morar dentro das paredes de uma abadia soberba, toda a cristandade em um curto período de tempo foi inundada por hostes de dominicanos e franciscanos. Eles vinham de todos os países e falavam, portanto, todas as línguas e dialetos. Eles pregaram a velha fé em seu mais completo rigor inflexível medieval, em quase todas as cidades e vilas. Lealdade inabalável ao papa e a extirpação da heresia eram seus grandes temas. E os pontífices em troca os protegiam e conferiam a eles os mais altos privilégios e vantagens. Antes de encerrar o século, os mosteiros e conventos da ordem minorita atingiram o surpreendente número de oito mil e eram habitados por pelo menos duzentos mil internos.

A Origem e Caráter dos Franciscanos

Contemporâneo de São Domingos, São Francisco foi seu grande concorrente em fama eclesiástica, que rivalizou e até superou o monge espanhol em celebridade. Ele era natural de Assis, uma cidade da Itália Central. As muitas lendas absurdas que lotam as páginas de seus biógrafos franciscanos não precisam ser mencionadas; eles são realmente blasfemos. Tamanho era o frenesi entusiástico deles, que impiamente sustentaram que São Francisco era um segundo cristo; que os estigmas, ou feridas do Salvador, foram milagrosamente impressos em seu corpo, em imitação do corpo crucificado de Jesus, e esta impostura eles ousaram fundar no texto: "Desde agora ninguém me inquiete; porque trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus.” (Gálatas 6:17)

Durante o cativeiro de um ano em Perúgia e outras aflições corporais, ele se tornou o objeto das mais extraordinárias visões e arrebatamentos, pelos quais foi encorajado a sair ao mundo como um servo de Deus e um salvador da humanidade. Os sonhos febris de sua mente fraca foram considerados revelações divinas para os católicos.

Francisco então começou a falar misteriosamente sobre sua futura noiva – e essa noiva era a pobreza. Ele trocou o vestido por trapos. Ele foi criado, como disse, "para opor a verdade ao erro, a pobreza ao desejo de riqueza e a humildade à ambição". Ele implorou nos portões de mosteiros; ele desempenhou os ofícios mais servis; ele se dedicou ao cuidado dos leprosos, lavava seus pés e fazia curativos em suas feridas. "Sua mãe", lemos, "ouviu e viu todos os seus atos estranhos com uma admiração terna e profética: mas seu pai tinha vergonha dele e o tratou como um louco." Mas embora a princípio ele fosse ridicularizado e agredido nas ruas de Assis, ele foi acreditado pela Igreja, abrigado pelo bispo, e logo seguido por uma multidão de imitadores.

Francisco estava então abertamente casado com a pobreza por um juramento que nunca seria quebrado; e deveria ser pobreza em sua forma mais baixa -- mendicância. Ele aceitou de um velho amigo "um traje de eremita, uma túnica curta, um cinto de couro, um bastão e chinelos"; mas isso era bom e confortável demais para as ideias do jovem fanático. Fazendo o pior uso possível das instruções do Salvador a Seus discípulos em Mateus 10 e Lucas 10, ele jogou fora tudo o que tinha, exceto uma túnica grossa cinza escuro, que amarrou em volta dele com uma corda, e saiu pela cidade, chamando todos ao arrependimento.

Essa piedade ou fanatismo estranho, mas fervoroso, naquele período de sombria superstição e ignorância, não poderia deixar de despertar o zelo de outras pessoas. A essência do evangelho ensinado por Jesus Cristo, afirmava ele, consistia na mais absoluta pobreza de todas as coisas -- que não havia caminho seguro para o céu a não ser pela destituição de todos os bens terrenos. "Os que se maravilharam passavam à admiração, da admiração para a emulação, e da emulação a seguir cegamente seus passos. Discípulos, um por um, começaram a se reunir em torno dele. Ele se retirou com eles para um local solitário na curva do rio chamado Rivo Torto. Faltava uma regra para a jovem irmandade. Os Evangelhos foram abertos. Francisco leu três textos: 1. 'Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres.' 2. ‘E ordenou-lhes que nada tomassem para o caminho' 3. ‘Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me’ (Mateus 19:21; Marcos 6:8; Mateus 16:24). Francisco fez o sinal-da-cruz e enviou seus seguidores para as cidades vizinhas, a leste e oeste, norte e sul."

Tal foi a origem e tal o caráter das novas ordens. Embora um tanto diferentes em sua primeira constituição, eles eram quase semelhantes em caráter, e até mesmo em confissão de fé, e iniciaram a mesma carreira com quase os mesmos objetivos em vista e os mesmos princípios de ação. Pregadores itinerantes sob o voto de pobreza caracterizavam ambos. Em sua identificação com o mais baixo da humanidade, eles estavam inteiramente de acordo. O inimigo viu o que os Pobres Homens de Lyon, os valdenses, estavam fazendo; e esses seriam os pobres homens do papado, que iriam enfrentar os hereges em seu próprio terreno e superá-los em pobreza, humildade, trabalho e sofrimento. Tendo recebido a sanção formal e proteção do papa, Francisco enviou seus seguidores, jurados ao serviço de Deus, à extirpação dos hereges, à castidade, pobreza e obediência.

As novas ordens incluíam freiras, cujas ordens eram fundadas em conexão com cada uma das irmandades. Havia também um grau relacionado aos frades mendicantes, chamados terciários, que continuavam envolvidos nas ocupações comuns do mundo, o que aumentava enormemente a popularidade e a influência dos frades. Tratava-se de um elo declarado entre o mundo e a Igreja. Algumas palavras sobre os hábitos dos frades pregadores, em contraste com as ordens monásticas anteriores, serão a maneira mais simples de dar ao leitor uma visão clara de ambos. E, sem dúvida, as novas ordens foram permitidas por Deus para sustentar a estrutura cambaleante da Igreja romana e impedir a cumprimento da Reforma por trezentos anos, daí o grande interesse relacionado com sua história. Mas os santos de Deus teriam ainda muita coisa para aprender e a verdadeira igreja de Cristo seria ainda mais enriquecida com um nobre exército de mártires antes que o glorioso fim seja alcançado.

A Origem e Caráter dos Dominicanos

Como pensamos ser mais satisfatório conhecer o início das coisas, vamos agora descrever brevemente a origem e o caráter desses dois grandes pilares do orgulhoso templo de Roma. Até esta época -- o início do século XIII -- os esforços dos papas foram quase inteiramente confinados à construção deste templo -- o estabelecimento de sua própria supremacia na Igreja e de sua autoridade secular sobre o Estado. Mas a crescente luz dos séculos XI e XII e a crescente depravação da igreja trouxeram ao campo do testemunho muitas nobres testemunhas de Cristo e de Seu evangelho. O templo começou a se abalar. O clero havia alienado os corações das pessoas comuns por seu poder opressor e ganancioso; e sua indolência, indulgência e imoralidades contrastavam desfavoravelmente com a laboriosidade, humildade, abnegação e consistência dos acusados ​​de heresia. Todo o tecido do catolicismo romano estava em perigo, pois esses heresiarcas estavam espalhados por todas as províncias e entre todas as classes da sociedade, até mesmo na própria Roma. O inimigo, percebendo as necessidades do momento, apressou-se em resgatar a hierarquia ameaçada. Os dois homens da época adaptados a essas exigências eram Domingos e Francisco.

Domingos nasceu em 1170, na aldeia de Calaroga, na Velha Castela. Seus pais eram de nome nobre, o de Gusmão, se não de sangue nobre. De acordo com alguns escritores, o efeito de sua ardente eloquência como pregador foi previsto por sua mãe em um sonho, no qual ela dera à luz um filhote carregando um tição de fogo na boca, com o qual ele incendiou o mundo. Mas quer tenha sido sua mãe ou seu monge historiador que teve tal visão, ele respondeu fielmente à semelhança. O aviso de "Cuidado com os cachorros" nunca teve uma aplicação tão verdadeira quanto em Domingos; e o fogo literal, não apenas o fogo de sua eloquência, foi seu agente de destruição escolhido e favorito desde o início de sua carreira. As chamas do inferno, como assim chamava Domingos e seus seguidores, eram reservadas para todos os hereges, e eles consideravam ser uma boa obra iniciar as queimadas eternas ainda aqui neste mundo. Desde a infância, sua vida foi rigidamente ascética (voltada ao monasticismo). Sua natureza, em um período inicial, mostrou sinais de ternura e compaixão, mas seu zelo religioso, com o passar do tempo, fortaleceu-o contra todo impulso bondoso da natureza. Suas noites eram, em sua maior parte, passadas em severos exercícios penitenciais; ele se açoitava todas as noites com uma corrente de ferro, uma vez por seus próprios pecados, uma vez pelos pecadores deste mundo e uma vez pelos do purgatório.

Domingos tornou-se cônego na rigorosa casa de Osma e logo superou os demais em austeridades. Por causa de sua reputação, o bispo espanhol de Osma -- prelado de grande habilidade e forte entusiasmo religioso -- convidou Domingos a acompanhá-lo em uma missão na Dinamarca. Ele então havia atingido os trinta anos de idade e, embora fosse considerado brando para com os judeus e infiéis, ardia em ódio implacável pelos hereges. Tendo cruzado os Pirineus, o zeloso bispo e seu companheiro se encontraram no meio da heresia albigense; não conseguiam fechar os olhos para o estado vergonhoso do clero romano, para o desprezo em que haviam caído e para a prosperidade dos sectários. A missa não era celebrada em alguns lugares havia trinta anos. Também a comissão papal, que havia sido nomeada por Inocêncio III, por volta do ano 1200, foi encontrada em um estado muito abatido. Essa missão, deve-se lembrar, consistia em homens como Reinerius, Gui, Castelnau e o infame Arnaldo, todos monges cistercienses, a descendência espiritual de São Bernardo. Eles lamentaram amargamente sua falta de sucesso: a heresia era surda às suas advertências e ameaças; não respeitavam a autoridade do papa.

 Os legados papais, de acordo com o bom e velho estilo, marchavam por terra, de cidade em cidade, na mais hierárquica pompa, em ricos trajes, com seu séquito e uma vasta cavalgada. "Como esperar sucesso com essa pompa secular?", questionavam os espanhóis, que eram mais severos. "Semeai a boa semente como os hereges semeiam o mal. Jogai fora essas vestes suntuosas, renunciai àqueles palafréns ricamente adornados, andai descalços, sem bolsa e alforje, como os apóstolos; trabalhai duro, rápido, disciplinai esses falsos mestres." O bispo de Osma e seu fiel Domingos enviaram de volta seus próprios cavalos, vestiram-se com as roupas mais rudes de monge, e, assim, lideraram o exército espiritual.

Essa foi a profunda sutileza de Satanás. O poder do Espírito Santo era manifestado pelos homens dos vales e pelos Pobres Homens de Lyon, que se espalharam pelas províncias; e agora vem uma grande demonstração de falsa humildade e falso zelo, uma vil imitação dos dons e graças do Espírito Santo. Era apenas por meio de tais mentiras e hipocrisia que a autoridade de Roma poderia ser mantida, ou que o inimigo poderia esperar manter as nações da Europa no cativeiro.

Já falamos sobre os trabalhos de Domingos no território albigense. Lá ele passou dez anos se esforçando para erradicar a heresia. Formou-se então uma pequena fraternidade, cujos membros saíam de dois em dois, imitando a comissão do Senhor para os setenta. (Lucas 10; Mateus 10) As queimadas em Languedoque então começaram. Como cães de olfato agudo, os dominicanos iam de casa em casa em busca de presas para alimentar a espada de Monforte e as fogueiras que haviam acendido. As grandes realizações de Domingos garantiram-lhe o favor dos pontífices, Inocêncio III e Honório III, que o estabeleceu nos privilégios de um "Fundador". Ele morreu em 1221; mas, antes de abandonar o cenário de suas crueldades, não menos que sessenta mosteiros de sua ordem surgiram em várias regiões da cristandade. Ele foi canonizado por Gregório IX em 1233. O temível tribunal da Inquisição, direta ou indiretamente, sem dúvida, deve sua origem a Domingos, e os mais numerosos e impiedosos de seus oficiais pertenciam a sua irmandade. Mais alguns detalhes poderão ser mencionados ao falarmos sobre os franciscanos, pois tinham coisas em comum.

As Novas Ordens -- São Domingos e São Francisco

Frequentemente, tem sido observado que, onde o Espírito de Deus está operando por meio do evangelho, e onde há resultados manifestos na conversão de almas a Cristo, aí também o inimigo certamente estará ativo. Ele não vai permitir em silêncio que seu reino seja invadido. Pode ser impedindo o trabalho pela perseguição, ou corrompendo-o, induzindo à autocondescendência, ou imitando-o de maneira iníqua e perversa. Temos muitos exemplos tristes de tais coisas na história de Israel e da Igreja -- casos numerosos demais para serem mencionados aqui; mas veremos agora, neste período de nossa história das instituições monásticas, o que explicará o que queremos dizer.

O objetivo especial das novas ordens que surgiram no início do século XIII era contrabalançar a influência que os pregadores albigenses adquiriram sobre as classes mais pobres do povo ao se familiarizarem com elas e constantemente pregarem o evangelho a elas. Pregar o evangelho de Cristo adequadamente para as classes mais humildes foi completamente negligenciado durante séculos pelo clero da igreja romana. Vez ou outra, um pregador fervoroso surgia, tais como Cláudio de Turin, Arnaldo de Bréscia, Fulco de Neuilly, Henrique, o diácono, ou Pedro Valdo, que se dedicaram à obra do evangelho e à salvação de almas; mas esses casos foram poucos e distantes entre si. Mais comumente, as pregações tinham algum objetivo puramente papista, como as Cruzadas, quando o clero tentava despertar o povo com sua eloquência.

"Em teoria", diz o historiador eclesiástico, "era um privilégio especial dos bispos pregar, mas havia poucos entre eles que tinham o dom, a inclinação, o tempo livre de suas ocupações seculares, judiciais ou bélicas, para pregar até mesmo nas catedrais de suas cidades; no restante de suas dioceses, sua presença era apenas ocasional, um progresso, ou uma visitação de pompa e forma, em vez algum tipo de instrução popular. Praticamente o único meio de instrução religiosa era o Ritual, que, no que diz respeito à linguagem utilizada, há muito havia deixado de ser inteligível; e os padres eram quase tão ignorantes quanto o povo; eles apenas aprendiam a passar pelas observâncias da maneira mais mecânica possível. Os casados, ou clérigos seculares, como eram chamados, embora fossem de longe os mais morais e respeitáveis, agiam em oposição às leis da Igreja, e eram até mesmo sujeitos à acusação de viver em concubinato; portanto, seus ministérios tinham muito pouco peso para o povo. O clero regular obedecia à regra externa, mas, segundo todos os relatos, eles violavam tão flagrantemente os princípios mais severos da Igreja, que seu ensino, se tentassem ministrar um ensino verdadeiro, cairia em descrédito na mente do povo."*

{*Dean Milman, vol. 4, pág. 243. J.C. Robertson, vol. 3, pág. 363.}

Tal estado de coisas na Igreja Estabelecida deixou o caminho aberto para os assim chamados hereges. Eles aproveitaram a oportunidade, entraram em cena e trabalharam diligentemente para divulgar suas doutrinas ao povo. Pregar em público e em privado era o segredo, sob a permissão de Deus, do grande sucesso dos valdenses e albigenses. Esta foi desde os primeiros tempos, e ainda é, a maneira divina de disseminar a verdade e reunir almas para Jesus. Quanto mais pública a pregação, melhor. Em todas as épocas agradou a Deus aquilo que o mundo chama de "loucura da pregação, para salvar os crentes". Pregação ao ar livre, visitas e ensino de casa em casa, testemunho público dentro e fora de casa, são maneiras e meios que Deus sempre abençoará. E esses meios parecem ter sido usados ​​diligentemente por aqueles acusados ​​de heresia em Languedoque (os albigenses).

O inimigo atento, observando o efeito desse modo de ação, muda então sua tática. Em vez de calar todos os membros sinceros, fervorosos e piedosos da igreja de Roma nos mosteiros, para pensarem apenas em si mesmos, instruírem-se, orarem e pregarem apenas para si mesmos, ele agora os envia como pregadores ao ar livre e para invadir os próprios campos que haviam sido ocupados por séculos pelos verdadeiros seguidores de Cristo. Seus emissários tinham ordens estritas, não apenas para imitar os hereges, mas para superá-los, na simplicidade de vestir, humildade, pobreza e familiaridade com o povo. Uma mudança completa ocorre então na história das ordens monásticas; no lugar de monges enclausurados, isolados dos olhos do mundo, fazendo suas orações, trabalhando nos campos ou colhendo os frutos de seus jardins, temos frades pregadores nas esquinas de todas as ruas e em todas as cidades da Europa, sim, implorando de porta em porta. Mas isto não foi tudo; sendo favoritos dos pontífices, eles tomaram a direção de quase tudo na Igreja e no Estado por três séculos. “Eles ocupavam os mais altos cargos, tanto civis quanto eclesiásticos”, diz Mosheim, “ensinavam com autoridade quase absoluta em todas as escolas e igrejas, e defendiam a majestade dos pontífices romanos contra os reis, bispos e hereges, com incrível zelo e sucesso. O que os jesuítas foram depois da Reforma, os mesmos foram os dominicanos e franciscanos do século XIII até os tempos de Lutero. Eles eram a alma de toda a Igreja e do Estado, e os projetores e executores de todos tipo de empreendimento no decorrer de toda essa época."


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