domingo, 1 de dezembro de 2019

Pedro Valdo

Por uma semelhança de nomes, Pedro Valdo, o reformador de Lyon, tem sido frequentemente mencionado como o fundador da seita valdense. Pensamos ser este um erro, embora um erro facilmente cometido, e um que os romanistas avidamente aumentaram como um argumento contra a antiguidade dos valdenses, e que, portanto, foi adotado pela maioria dos registros históricos gerais. Mas o Sr. Elliot, em seu livro "Horae Apocalypticae", e aqueles mencionados na nota acima (seção anterior), examinaram a questão com grande paciência e pesquisa e, cremos, claramente estabeleceram uma conclusão sobre a ortodoxia e antiguidade dos "homens dos vales"*.

{* Veja no Dicionário de Marsden o artigo sobre os "Albigenses". Veja também: Milner, vol. 3, p. 92; e Scenery of the Waldenses, de Bartlett, Introduction.}

Ao mesmo tempo, Pedro Valdo é digno de todo elogio por seus serviços abnegados pela causa da verdade e contra o erro. Sua piedade, zelo e coragem foram muito notáveis em um período em que a hierarquia papal começava a perseguir todos aqueles que questionavam sua autoridade e infalibilidade. Ele foi, sem dúvida, levantado por Deus justamente naquela época para dar maior distinção ao testemunho dos camponeses alpinos. A simplicidade da adoração deles e a cena de sua tranquilidade parecem não ter excitado a inveja de seus vizinhos ou a suspeita da igreja católica até a época em que Pedro Valdo entrou em cena. Aconteceu, sob a mão de Deus, da seguinte maneira:

Por volta do ano 1160, as práticas de idolatria que acompanhavam a doutrina da transubstanciação impressionaram Pedro profundamente com um senso alarmante da iniquidade daquela época e das perigosas corrupções do papado. Isso levou à verdadeira conversão de sua alma a Deus. Desde aquele momento, ele passou a se dedicar a servir a Deus e à Sua glória. Ele abandonou suas ocupações mercantis e distribuiu suas riquezas aos pobres, em imitação aos primeiros discípulos. Muitos se reuniram em torno dele, e ele sentiu a necessidade de instrução nas coisas de Deus; perguntou-se, então, onde a encontraria. Ele ficou profundamente desejoso de compreender os Evangelhos que estava acostumado a ouvir na igreja. Ele, então, empregou dois eclesiásticos para traduzi-los para a sua língua nativa, assim como outros livros das Escrituras, e algumas passagens dos pais apostólicos. Essa foi a maior obra de Valdo, pela qual ele merece os melhores agradecimentos da posteridade. As Escrituras, naquela época, eram em grande medida um livro selado na Cristandade, estando disponíveis somente em Latim. Os seguidores de Valdo, estando assim providos com cópias das Escrituras em sua própria língua, eram capazes de explicar às pessoas que eles não estavam promovendo doutrinas próprias, mas uma fé pura conforme realmente existia na Bíblia. Seguindo o exemplo dos setenta, ele enviou seus discípulos, dois a dois, às aldeias vizinhas para pregar o evangelho.

Isso despertou os trovões do Vaticano. Enquanto Valdo e seus amigos se limitavam a protestar contra as inovações, a hierarquia não os molestava seriamente; mas assim que eles empregaram o temido motor -- as Escrituras na língua popular -- eles foram imediatamente amaldiçoados e excomungados. Até esse momento, os valdenses não contemplavam qualquer secessão da igreja, mas apenas sua reforma. Eles persistiram em pregar o glorioso evangelho da graça de Deus aos pecadores perdidos: e então um interdito foi emitido contra eles pelo arcebispo de Lyon. Valdo respondeu resolutamente: "Devemos obedecer a Deus, e não ao homem". A partir de então, "os homens pobres de Lyon", como eram chamados, foram rotulados pelo clero com descrédito e desprezo como hereges. Por três anos após essa primeira condenação, que ocorreu em 1172, Valdo conseguiu permanecer escondido na cidade de Lyon ou nas cidades próximas, mas o papa Alexandre III fulminou suas ameaças e terrores tão efetivamente, não apenas contra Valdo, mas contra todos que ousassem manter a menor comunicação com o reformador que, por amor de seus amigos, Valdo fugiu de Lyon e tornou-se um andarilho pelo resto de sua vida. Após buscar abrigo em vários lugares, mas não encontrando descanso em nenhum lugar, ele passou, enquanto andava entre os alpinistas boêmios, os ancestrais de Huss e Jerônimo, para seu descanso eterno por volta do ano de 1179.

Os Valdenses e os Albigenses

4. A origem dos assim chamados sectários ocidentais sob o nome dos valdenses é assunto de muita controvérsia. Uma classe de escritores, favoráveis ao catolicismo, visando envolvê-los na acusação comum de maniqueísmo, se esforçaram em provar que suas opiniões eram de origem oriental, ou pauliciana, enquanto que os escritores opositores ao catolicismo afirmam que eles eram livres do erro maniqueísta, e que foram os herdeiros e mantenedores, sendo algo passado de pai para filho, de um cristianismo puro e bíblico, desde os tempos de Constantino, se não desde os dias dos apóstolos.*

{* Na primeira edição deste livro, ocorre a seguinte frase: "Parece também ser muito certo que os albigenses das províncias do sul da França devem sua origem aos paulicianos." A maioria dos registros históricos gerais dão essa impressão; mas após consultar os registros históricos específicos e pesquisas trabalhosas de Peter Allix, D.D., W.S. Gilly, M.A., W. Beattie, M.D, e outros, estamos plenamente persuadidos da maior antiguidade dos albigenses, da pureza de sua fé e de sua localização alpina -- de que existiam como um povo cristão distinto muito antes dos paulicianos, ou até mesmo do papado.}

Mas, como atualmente não é tanto nosso objetivo traçar a história desse povo cristão antigo, simples e devoto, mas sim trazer à tona mais uma característica do papado sob a direção de Inocêncio em sua mais plenamente expressa blasfêmia e crueldade, satisfaremos o leitor apenas quanto a quem eram essas pessoas e quanto à cena de seu extermínio. "Os termos", diz o Dr. Gilly, "Vaudois em Francês, Vallenses em Latim, Valdisi em Italiano, e Waldenses na história eclesiástica inglesa, significava mais ou menos a ideia de 'homens dos vales'; e como os vales de Piemonte tiveram a honra de produzir um grupo de pessoas que tinham permanecido verdadeiras à fé introduzida pelos primeiros missionários que pregaram o Cristianismo naquelas regiões, esses sinônimos foram adotados como o nome distintivo de uma comunidade religiosa, fiel ao credo primitivo, e livre das corrupções da igreja de Roma."

Os albigenses, embora fossem essencialmente idênticos aos valdenses em matéria de fé, eram assim chamados porque a maior parte da Gália Narbonense, onde habitavam, era chamada de Albigésio, ou de Albi, uma vila em Languedoque. Os Alpes separavam as duas comunidades. Deus encontrou um refúgio para os valdenses nos vales do lado ocidental daquela grande cordilheira, onde foram preservados e fortificados por muitos séculos.  

domingo, 24 de novembro de 2019

Os Henricianos

3. O fogo que queimou Pedro de Bruys nunca desencorajou nem silenciou seus seguidores. Um deles, chamado Henrique, um monge de Cluny, que também era diácono, tornou-se um pregador mais ousado e mais poderoso do que Pedro. Ao retirar-se do monastério, dedicou-se ao estudo do Novo Testamento, e, tendo ganhado um conhecimento do cristianismo direto da Palavra de Deus pura, desejava ir ao mundo proclamar a verdade aos seus semelhantes. Sua aparência pessoal e sua educação se combinavam para tornar sua pregação ainda mais poderosa e despertadora. A rápida mudança em seu semblante é comparada a um mar tempestuoso; sua estatura era elevada, seus olhos estavam revirados e inquietos; sua poderosa voz, seus pés descalços e aparência negligenciada atraíam a atenção, e eram marcadas pela fama de sua erudição e santidade.

Durante anos ele era apenas um jovem, mas seus tons profundos, sua eloquência maravilhosa, com sua aparência notável, horrorizavam o clero e encantavam o povo. Em um espírito similar ao de João Batista, ele chamava o povo ao arrependimento para que se convertessem ao Senhor, e não poucas vezes atacava os vícios já impopulares do clero.

Mas a oposição do clero que Henrique enfrentava apenas atraía mais o povo para si. Multidões, tanto das classes mais pobres quanto das mais ricas, o recebiam como guia espiritual em todas as coisas. A primeira vez que se ouviu falar dele, historicamente, foi em Lausana, mas atravessou o sul da França desde Lausana até Bordéus; e, como observa Neander, "ele atraía o povo para si, e os enchia de desprezo e ódio contra o alto clero -- dizendo que não deveriam ter nada a ver com eles. Eles deixavam de participar do serviço religioso, e o clero se achou exposto a insultos por parte da população, tendo que solicitar a proteção ao poder civil". O prudente bispo de Le Mans, vendo a influência que ele tinha conquistado sobre o povo, contentou-se em simplesmente direcionar Henrique a outro campo de trabalho. O zeloso monge retirou-se silenciosamente e apareceu em Provença, onde Pedro de Bruys tinha trabalhado antes dele. Ali ele desenvolveu ainda mais claramente sua oposição aos erros da igreja de Roma, e atraiu para si a mais amarga hostilidade da hierarquia clerical.

Henrique foi preso pelo arcebispo de Arles, sendo condenado como herege pelo Concílio de Pisa, que ocorreu em 1134, e sentenciado ao confinamento em uma cela. Em pouco tempo, ele escapou e retornou a Languedoque. Conta-se que deserções de igrejas e um total desprezo para com o clero seguiam o eloquente heresiarca por onde passava. Um legado chamado Alberico foi enviado pelo papa Eugênio III para subjugar a revolta, mas não foi proveitoso. "Henrique é um antagonista", disse ele, "que só pode ser derrubado pelo conquistador de Abelardo e de Arnaldo de Bréscia."

O poderoso abade de Claraval escreveu ao príncipe de Provença para que se preparasse para sua chegada, já adiantando o objetivo de sua vinda. "As igrejas", ele escreveu, "estão sem povo; o povo sem padres; os padres sem honra; e os cristãos sem Cristo. As igrejas não são mais tidas como santas, nem os sacramentos, nem as festas são celebradas. Os homens morrem em seus pecados -- almas são levadas às pressas ao terrível tribunal -- sem penitência ou comunhão; o batismo é recusado aos bebês, que são assim impedidos da salvação." O abade fez milagres, como se acreditava; o povo se maravilhava e se admirava; Henrique fugiu; Bernardo o perseguiu, purificando os lugares infectados pela pestilência da heresia. Por fim, o herege foi preso e levado acorrentado ao bispo de Toulouse, que o condenou à prisão, onde logo depois morreu repentinamente. Ele foi, então, libertado de todos os seus perseguidores no ano de 1148 e entrou em seu descanso.

Os Petrobrussianos

2. Por volta do ano de 1110, um pregador chamado Pedro de Bruys começou a declamar contra as corrupções da igreja dominante e os vícios do clero. Como missionário, ele trabalhou principalmente no sul da França, em Provença e Languedoque. E, o que pode nos parecer estranho, foi-lhe permitido disseminar suas novas doutrinas com impunidade por cerca de vinte anos. O inimigo não o podia silenciar nem matar a testemunha até que seu testemunho estivesse terminado. Mas, como quase tudo o que sabemos sobre tais homens chegou até nós através dos escritos de seus adversários, apenas ouvimos sobre o que eles chamavam de suas heresias. O venerável abade de Cluny escreveu um tratado contra os seguidores de Pedro de Bruys -- os assim chamados petrobrussianos: eles foram acusados de muitas ofensas, mas que podem ser resumidas da seguinte forma -- oposição ao batismo de crianças, à missa, ao celibato, aos crucifixos, à transubstanciação e à eficácia das orações pela salvação dos mortos. Mas nada que o fundador dessa seita fizesse ou dissesse parecia despertar o sentimento público contra ele até que ele queimou várias cruzes com a imagem de Cristo. Os padres então conseguiram, por meio de um tumulto popular, e ele foi queimado vivo em St. Gilles, em Languedoque. Mas seu protesto não foi tão facilmente consumido. A luz divina pode ser ofuscada por um tempo, mas nunca extinta.

A Cadeia de Testemunhas

Quando comentamos sobre os paulicianos -- as testemunhas de Deus e de Sua verdade no Oriente -- falamos que os encontraríamos novamente no Ocidente. Afirma-se que, em seu zelo missionário, eles se espalharam por toda a Europa; mas se eles continuaram sendo uma seita distinta e característica ou se misturaram-se com outros sectários do Ocidente, esta é uma questão em que não há consenso por parte dos historiadores. Dentre as várias formas de heresia que eram denunciadas pela igreja dominante, dificilmente alguma delas escapou da acusação de maniqueísmo -- o rótulo que era afixado sobre os emigrantes do Oriente. Mas não seria correto dizer, como faziam, que todas as seitas ocidentais eram fruto da missão deles, apesar de serem taxados com o mesmo nome. É mais do que provável, no entanto, que eles tenham encontrado muitos com espírito separatista em relação à igreja católica, embora não o demonstrassem abertamente, e que em tais casos os paulicianos podem ter se tornado seus mestres, podendo, desse modo, perpetuar seus princípios.

As testemunhas ocidentais, sem dúvida, foram o resultado do mesmo espírito de graça e verdade que tinham os paulicianos, através da fidelidade de Deus, que nunca permitiu-Se ficar sem um testemunho na terra, mas não vemos fundamento para falar deles como descendentes dos mal-representados paulicianos. É mais provável que eles fossem uma mistura desses dissidentes da igreja estabelecida.

Procuraremos agora traçar a linha prateada da graça de Deus, que estava trabalhando ativamente, embora sob diferentes formas e nomes, durante o período mais sombrio da opressão papal. Não há dificuldade em identificar as testemunhas de Deus, desde o início da igreja até a Reforma, ou em traçar a cadeia ininterrupta de testemunhas que eram contra a iniquidade de Roma e a favor do verdadeiro evangelho da graça de Deus. Já vimos essa cadeia de testemunhas desde a história dos paulicianos até o século X; veremos agora as seitas mais proeminentes que surgiram no Ocidente antes de e desde esse período.

1. Cláudio de Turim, nascido espanhol, foi um famoso comentarista das Escrituras na corte de Luís, na Aquitânia. Seu patrono, o imperador, o promoveu ao bispado de Turim no ano de 814. Ele é tido na história como o Wycliffe do século IX e um vigoroso defensor do cristianismo primitivo. Ao chegar à diocese, ele encontrou as igrejas cheias de imagens e embelezamentos com flores e guirlandas. Imediatamente e sem cerimônia, ordenou que todos esses ornamentos fossem removidos. Nenhuma distinção deveria ser feita em favor de qualquer imagem, relíquia ou crucifixo; todos deveriam ser retirados para destruição. Ele denunciou a adoração a tais coisas como uma renovação da adoração aos demônios sob outros nomes, o que estava substituindo a pregação da gloriosa ressurreição do Senhor Jesus. Ele declarava também que o ofício apostólico de São Pedro tinha cessado com o fim da vida do apóstolo. Ele, portanto, desprezava as censuras papais e o alegado poder das chaves de São Pedro. Dizem que ele separou sua igreja da comunhão romana.

Mas, como muitos outros reformadores, Cláudio era duro e intemperante em seu zelo. As terríveis corrupções do clero e as idolatrias do povo o levaram a falar e escrever em termos fortes e cheios de paixão, o que não é de se admirar. Mas o Senhor cuidou dele do modo mais maravilhoso possível. Embora fosse um ousado reformador e um destemido iconoclasta em uma cidade italiana, a invisível mão da providência divina permitiu que terminasse seus labores permanecendo ainda nos plenos privilégios de um bispo, apesar de não ter sido livre de oposições.

Como um elo na cadeia de testemunhas, Cláudio ocupa um lugar muito distinto. Sua influência foi grande e amplamente difundida. Teodomiro, abade de um monastério perto de Nismes, ingenuamente confessou, de acordo com Milman, que a maioria dos grandes clérigos transalpinos* pensavam como Cláudio. Assim, a hostilidade contra a igreja católica e seus muitos sacramentos, que mais tarde prevaleceu nos vales alpinos, tem sido geralmente traçada desde esse reformador, Cláudio. Ele morreu no ano de 839. 

{*Transalpino: que se situa além dos Alpes}

Inocêncio e o Sul da França

Capítulo 25: França (814-1229 d.C.)

Um novo campo de sangue e um caráter inteiramente novo de guerra foram trazidos diante da mente do voraz papa de Roma. Era uma guerra não contra os inimigos de uma fé estrangeira, ou contra os reis domésticos insubmissos, mas do exército da igreja romana guerreando contra os seguidores confessos do Senhor Jesus Cristo. Isso era algo novo nos anais da Cristandade.

Pelo favor dos príncipes e pela indiferença do clero, os albigenses tinham sido permitidos, por séculos, a pregar o evangelho e disseminar a verdade sem serem molestados. O catolicismo romano quase perecera nas províncias do conde Raimundo VI. O povo desses locais, em geral, era muito inclinado a quebrar sua conexão com a igreja de Roma definitivamente. Quando esse estado de coisas chegou aos ouvidos de Inocêncio, ele convocou uma cruzada contra os hereges de Languedoque, e não descansou até ter varrido toda essa população do solo da França.

Mas devemos, antes de tudo, retroceder alguns passos de modo a ligarmos a isso a linha de testemunhas de Cristo e de Seu evangelho.

domingo, 10 de novembro de 2019

A Ira de Inocêncio

Dentre as testemunhas da assinatura da Magna Carta estava Pandolfo, o legado arrogante do papa. Ele viu aquilo como um golpe mortal contra o poder papal na Inglaterra. Inocêncio logo ficou informado da surpreendente notícia. Sua infalibilidade estremeceu com alarme; se enfureceu e jurou, como era de seu costume; franziu a testa, como diz o historiador, e irrompeu em palavras de perplexidade. "O que! Esses barões da Inglaterra presumem destronar o rei que tomou a cruz e  que colocou-se sob a proteção da Sé apostólica? Como podem eles transferir a outros aquilo que é patrimônio da Igreja de Roma? Por São Pedro, não podemos deixar tal crime impune." A grande carta foi declarada pelo papa nula e sem efeito, o rei foi proibido, sob pena de excomunhão, de respeitar o juramento que tinha feito ou as liberdades que tinha confirmado. Mas as censuras espirituais e os editos anulatórios foram recebidos pelos barões com total desconsideração.

A guerra eclodiu; e para a desgraça ainda mais profunda de João, que não tinha exército próprio, ele trouxe do continente bandos de aventureiros e piratas, prometendo-lhes as propriedades dos barões ingleses como recompensas pela bravura. À frente dessas tropas mercenárias, com o auxílio de dois bispos sedentos por guerra, Worcester e Norwich, ele atravessou o país inteiro, desde o canal até o rio Forth. Ele soltou suas hordas ferozes como bestas selvagens em seu reino infeliz. Os barões não tinham feito qualquer preparo para a guerra, e nem suspeitavam da introdução de um exército estrangeiro. Aqui, novamente, vemos as profundezas de Satanás; ele está sempre pronto a dar a outro o poder que ele tiver sobre as nações, desde que aquele a quem ele o dá se submeta inteiramente a sua vontade. "Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares" (Mateus 4:8,9). Foi exatamente o mesmo que ele fez a João, seja tornando-se vassalo do papa, de Maomé ou de Satanás. Por um  curto período de tempo ele foi um mestre imbatível no campo de batalha. Toda a terra foi devastada com fogo e espada. Pilhagem, assassinato e tortura se enfureciam descontroladamente. Nada era tido por sagrado, nada era seguro. Nobres e pedintes fugiam com suas esposas e famílias quando era possível. Os assassinos manchados de sangue do rei e do papa passaram por todo o país com a espada em uma mão e a tocha na outra, enquanto um clamor subia ao céu: "Oh, infeliz Inglaterra! Oh, infeliz país! Que Deus tenha misericórdia de nós, e que Seus juízos caiam sobre o rei e o papa."

O juízo não demorou muito. Nem o céu nem a terra podiam mais tolerar suas crueldades e tiranias. O papa morreu em 16 de julho de 1216, aos 55 anos de idade; apenas um ano, um mês e um dia após a assinatura da Magna Carta. João viveu apenas alguns meses a mais que o papa. Morreu em 12 de outubro de 1216, aos 49 anos de idade, e no décimo sétimo ano de seu reinado. Supõe-se que tenha morrido com o pavor acompanhado pela embriaguez. Enquanto retornava de uma de suas cenas de matança, os vagões reais estavam cruzando as areias de Wash, desde Norfolk até Lincolnshire, quando a maré subiu repentinamente e todos se afundaram no abismo. O acidente encheu o rei de terror; ele sentiu que a terra estava à beira de se abrir e engoli-lo vivo. Ele bebeu copiosas doses de cidra, as quais, juntamente com o medo e o remorso, encerraram os dias do tirano mais cruel e desprezível que já se sentou no trono da Inglaterra. Os nomes dos demais reis cujos vícios são tenebrosos o suficiente para provocar execrações da posteridade são muitas vezes cercados por uma auréola de talento, seja no senado ou no campo de batalha, de modo a mitigar a severidade da sentença. Mas o rei João morre: seu caráter permanece diante de nós de forma não redimida por uma virtude solitária.*

{*Enciclopedia Britânica, vol. 8, p. 721; D'Aubigné, vol. 5, p. 98; Eighteen Christian Centuries, de James White, p. 290.}

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