domingo, 17 de junho de 2018

A Lei e o Costume Inglês

Desde os mais remotos períodos, os reis da Inglaterra eram reconhecidos tanto pelo clero quanto pelos leigos como tendo o total poder em assuntos pertencentes ao governo externo da igreja. Quer fosse no que diz respeito às propriedades e dotes da igreja, ou das pessoas do clero, a autoridade da coroa era, pela lei e costume do reino, suprema. Eduardo, o rei anglo-saxão, dizia do clero que "eles empunhavam a espada de São Pedro, e ele a espada de Constantino". E de Guilherme, o Conquistador, seu biógrafo diz: "Todos os assuntos, tanto os eclesiásticos quanto os seculares, eram dependentes de seu prazer". Mas durante o século XII, o país gradualmente afundou em um estado de deplorável sujeição à Sé Romana.

Ao mesmo tempo, não podemos nos esquecer que, embora o progresso da igreja tenha ocorrido em direção à Roma, Deus em Sua infinita misericórdia subjugou o poder secular do clero e as grandes conquistas eclesiásticas dos monges para a proteção e bênção dos pobres da terra. Ele sempre pensa -- bendito seja o Seu nome -- no "pobre do rebanho". Pela conquista normanda da Inglaterra, uma hierarquia estrangeira, assim como uma nobreza estrangeira, tinha sido introduzida; mas os baixos ofícios eram geralmente cheios de saxões, cuja linguagem e sentimentos simpatizavam com a população nativa. Isso deu-lhes um imenso poder sobre a mente da população. Eles passaram a ser vistos como os verdadeiros pastores de seus rebanhos, e os guias e consoladores dos aflitos. Os normandos, cuja linguagem e sentimentos eram ainda estrangeiros, eram odiados como seus opressores e espoliadores. O inglês tinha sido sacrificado por Guilherme para suprir as concessões liberais das terras e lugares de honra, que ele concedeu aos seus seguidores, e assim os saxões, por sua vez, foram obrigados a tornarem-se os servos e dependentes de seus conquistadores. Tudo o que o homem semear, isso também ceifará. Seu pecado certamente o encontrará. Mas o sentimento de erro pessoal era outra coisa, e certamente se misturaria em cada novo conflito entre raças. Isso é manifesto na grande batalha entre o rei normando e o primaz inglês, e pode nos ajudar em nosso julgamento sobre seus importantes resultados. Mas devemos primeiramente tomar nota sobre aquilo que conduziu imediatamente à disputa.

Os Abusos de Roma na Inglaterra (1162 d.C.)

Capítulo 22: Inglaterra (1162 - 1174 d.C.)


Abordaremos agora um período em nossa história que deve despertar peculiar interesse na mente do leitor inglês*. O governo anglo-saxão estava dando lugar ao governo anglo-normando, tanto na igreja quanto no Estado. A completa condição do país, ou estava mudada, ou estava em processo de mudança. Mas o padre italiano estava longe de estar satisfeito com o estabelecimento que eles tinham conseguido sob o reinado dos normandos. A florescente vinha de Nabote (ver 1 Rs 21) era cobiçada e precisava ser possuída, quer por meios justos ou imundos. A Inglaterra, com todo o seu orgulho, riqueza e poder, deveria ser reduzida a um estado de subserviência à Sé Romana. Esse era seu propósito estabelecido e necessário para a realização de seu plano. Observaremos, primeiramente, a posição dos antagonistas, e então a natureza e o fim da feroz batalha.

{*N. do T.: O autor do livro era inglês.}

Durante o reinado de Alexandre III, um pontífice capaz, sutil e vigilante, uma grande disputa surgiu na Inglaterra entre Henrique II e Tomás Becket, arcebispo da Cantuária, que atraiu e absorveu toda a mente da Europa por muitos anos. Isso lembra, em suas principais características, a longa guerra entre Henrique IV e Gregório VII, porém, se é que isso é possível, perseguida com maior amargor e obstinação, e terminando ainda mais tragicamente. Uma colisão tão violenta entre os poderes espirituais e seculares não tinha ocorrido desde os dias de Constantino. O caráter pessoal e a posição dos líderes, sem dúvida, atraíram a atenção do interesse mundial ao conflito. Mas era muito mais que um assunto pessoal: toda a questão do poder de Roma na Inglaterra, a prerrogativa do Soberano e a responsabilidade do assunto, tudo isso estava envolvido nessa nova guerra. Henrique, de verdadeiro sangue normando, estava determinado a se tornar rei e a governar de acordo com as leis e costumes do reino; Becket, um violento eclesiástico, estava igualmente determinado a manter, de acordo com os supostos infalíveis decretos de Roma, que a hierarquia eclesiástica era uma casta separada e privilegiada na comunidade, com direito à isenção de julgamento pelo processo civil, e sujeita apenas a sua própria jurisdição.

O leitor inglês do século XIX ficaria surpreso ao saber que um decreto do vaticano, enviado pelo legado do papa com o propósito de mudar as leis e costumes da Inglaterra, fosse ouvido sequer por um momento. Mas era assim na época; e os mais poderosos monarcas na Europa foram obrigados a se curvarem em humilhante submissão aos pés do pontífice. Mas qual o motivo desse terrível medo de Roma? Nada mais do que a ignorância e superstição do povo em geral. "O sistema romanista, com todas as suas insolentes pretensões, ainda estava envolto em uma auréola sangrenta de reverência supersticiosa, que espantava o pensamento ou o apagava pelo medo da morte temporal e eterna". O astuto padre podia alegar esfregar as chaves de São Pedro na cara de seu oponente, e ameaçar trancá-lo do lado de fora do céu e confiná-lo no inferno, se não obedecesse à igreja. Era sua declarada santidade e sua iníqua perversão das Escrituras que lhe davam tal poder sobre os ignorantes e supersticiosos.

domingo, 10 de junho de 2018

O Encontro entre Adriano e Frederico

Se não fosse por uma circunstância que consideramos puramente infantil, o encontro entre Adriano e Frederico poderia ter passado sem tomarmos nota, de tão pouca relevância que isso tem para a história da igreja. No entanto, o acontecimento tem relevância ao considerarmos a história do papado, e pensamos ser correto observarmos tudo aquilo que manifesta seu verdadeiro espírito no período de Tiatira. Além disso, o mais insignificante incidente revela, às vezes, o propósito mais profundamente arraigado e a mais inflexível determinação.

A pronta concessão do sangue de Arnaldo não tinha removido da mente sombria de Adriano todas as suspeitas quanto às intenções de Frederico. As negociações, no entanto, foram satisfatórias, e Adriano cavalgou até o acampamento de Frederico. Ele foi gentilmente recebido por alguns dos nobres alemães e conduzido à tenda real. O papa permaneceu em seu cavalo, esperando que o imperador viesse e segurasse seu estribo enquanto desmontava. Mas sua espera foi em vão; Frederico não o fez, e o papa desceu sem sua ajuda. Essa falta de homenagem ao supremo pontífice foi considerada um grande insulto e indicativo de hostilidades. A maioria dos cardeais fugiram alarmados, mas o intrépido Nicolas Breakspeare (Adriano) permaneceu. Frederico alegou ignorância do costume, mas o papa recusou se reconciliar ou dar-lhe o beijo de paz até que ele se humilhasse e passasse pela cerimônia. O arrogante alemão disse que consultaria seus nobres. Uma longa discussão se seguiu. Adriano manteve que aquilo era um costume desde os dias de Constantino, o Grande, que segurava o estribo do papa Silvestre. Essa afirmação era totalmente falsa, pois o primeiro ato de tal homenagem tinha ocorrido cerca de cinquenta anos antes, por Conrado III, o inútil e rebelde filho de Henrique IV. Mas esse era uma questão de pouca importância para o partido papal, desde que o imperador fosse humilhado e o papa exaltado. Alegados precedentes eram produzidos de modo a provar que a prática tinha existido por oitocentos anos; e, consequentemente, "como o imperador tinha se negado às honrarias devidas aos apóstolos Pedro e Paulo, não poderia haver paz entre a igreja e o império até que ele cumprisse esse dever ao pé da letra". Tal era a blasfema suposição desses homens perversos. Eles instavam suas pretensões de homenagem por parte da humanidade ao representarem-se como estando no lugar dos apóstolos -- e de Cristo -- do próprio Deus. Como as evidências pareciam estar a favor do papa e Frederico não se importava muito com o assunto, ele se deixou persuadir de que os precedentes eram verdadeiros, e que devia prestar homenagem ao papa. Assim, no dia seguinte, como um filho obediente da igreja, o imperador desmontou do cavalo quando Adriano se aproximou, pegou o freio e segurou o estribo para o papa desmontar. A amizade exterior estava agora restaurada, e o pai espiritual e filho obsequioso avançaram em direção à cidade santa (Roma) e prosseguiram com a coroação.

Após um reinado de cerca de quatro anos, e, podemos acrescentar, de conflitos incessantes e derramamento de sangue, Adriano morreu em 1159. Ele se preparava para uma declaração aberta de guerra e para a excomunhão do imperador, quando a morte pôs um fim ao conflito. Assim a maioria desses homens viveram e assim morreram, em guerra declarada com o poder secular. Frederico Barbarossa é conhecido como o mais poderoso soberano que reinou na Europa desde Carlos Magno. Ele entrou para a terceira Cruzada, como já vimos, em 1189, e morreu, ou foi afogado, nas correntezas do rio Salepe, próximo a Tarso, em 1190.

O Martírio de Arnaldo (1155 d.C.)

O novo papa era um inglês de grande habilidade, e o único inglês que já se sentou no trono papal. Ele era originalmente um monge de Santo Albans, mas foi obrigado a deixar seu lar por causa da severidade de seu pai. Após viajar por algum tempo no continente, estudar teologia e lei canônica com grande ardor e sucesso, e subir de classe em classe na ordem eclesiástica, ele foi, com o tempo, elevado à mais alta ordem da grandeza eclesiástica pelo nome de Adriano IV. Seu nome inglês era Nicolas Breakspeare.

Uma oportunidade então surgiu para que se livrassem do ousado reformador. O imperador Frederico Barbarossa estava a caminho para receber das mãos de Adriano a coroa imperial. Ele enviou uma embaixada de três cardeais para se encontrarem com o imperador, e para solicitar, como preço de sua coroação, a rendição de Arnaldo de Bréscia em suas mãos. Para um homem que pensava tão pouco sobre a vida humana como Frederico, pareceu de fato algo leve de se executar, obrigando então os amigos de Arnaldo a entregá-lo nas mãos dos emissários papais. Não havia tempo a perder, para que seus amigos não ouvissem sobre isso e tentassem resgatá-lo. A igreja tomou por si mesma a responsabilidade pela sumária condenação e execução do rebelde, sem empregar, como de costume, a espada secular. Antes do dia amanhecer, o oficial do papa já tinha sujado suas mãos no sangue de sua vítima; seu corpo foi queimado até as cinzas, que foram jogadas no rio Tibre, para que o povo não coletasse a adorasse as relíquias de seu amigo martirizado. O clero triunfou em sua morte, mas sua memória viveu nas mentes dos romanos. "E nas cinzas da pilha fúnebre de Arnaldo", diz Milman, "o fogo ardeu durante séculos, o que levou, com o tempo, a uma explosão irresistível de violência".

Bernardo, o grande Antagonista de Abelardo e de Arnaldo, tinha falecido em paz em Claraval, no ano de 1153. O santo, o filósofo e o reformador passaram para outro mundo, para serem julgados, não pelos decretos papais, mas pelo trono de eterna justiça e imaculada santidade. A fé no Senhor Jesus Cristo é o único fundamento do perdão e aceitação aos olhos de Deus. Não há purgatório, mas sim o precioso sangue de Sua cruz. Mas, que misericórdia! Esse sangue pode tornar limpo o mais vil! "Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e ficarei mais branco do que a neve" (Salmos 51:7). Nada além do sangue de Jesus pode tornar a alma mais branca do que a neve e apta para o céu. Todos os outros meios nada mais são do que uma zombaria, uma ilusão de Satanás que apenas aprofunda e perpetua a culpa da alma. "O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado" (1 João 1:7). A salvação é pela fé somente, sem as obras da lei. Cristo é a única videira; os crentes são os ramos. "Aquele que diz que está nele, também deve andar como ele andou" (1 João 2:6). Aparte de uma verdadeira e viva fé em Cristo, não há perdão, nem salvação, nem felicidade, e nem o céu; "bem-aventurados todos aqueles que nele confiam" (Salmos 2:12).

Retornemos agora a nossa história, e primeiro tomaremos nota sobre o encontro entre Adriano e Frederico.

A Pregação de Arnaldo

A essas novas e perigosas doutrinas o povo de Bréscia ouvia com o maior ardor. Ele desdobrou para eles as páginas escuras da história eclesiástica, sobre a qual estivemos também viajando. A cidade inteira ficou em um estado de grande excitação. Não é de admirar o entusiasmo da população, quando ouviram que as riquezas do clero deveriam retornar aos leigos, e que, no futuro, seus pastores deveriam ser mantidos pelas contribuições voluntárias do rebanho. Ele seria um pregador ousado que se atreveria a despertar o povo ao fanatismo com tais apelos e propostas no século XIX, mas o que seria dele no século XII, em meio às trevas, ignorância e superstição? Tal homem foi o reformador prematuro de Bréscia, e, sendo um severo monge de vida irrepreensível, inquestionável quanto a sua ortodoxia, e possuindo a total simpatia da religião popular, seu poder era irresistível. O grande objetivo de seus esforços era a completa derrubada do poder sacerdotal -- a supremacia secular do papa. Ele, assim, se atreveu a colocar a mão no grande esquema papal de domínio universal, e por um momento abalou sua base. O papa foi expulso de seu trono, a república foi proclamada, o estandarte da liberdade levantado, e o governo dos padres abolido. Mas o entusiasmo dos cidadãos era evanescente, sem unidade, e de curta duração. O solo ainda não estava preparado para o crescimento da liberdade. A iniquidade do sistema anticristão ainda não estava completa. A sede de Jezabel ainda não estava saciada com o sangue dos santos de Deus. Milhões ainda pereceriam antes que ela recebesse sua ferida mortal. Isso veremos em breve.

Arnaldo não estava mais seguro na Itália. O ressentimento do clero era mais forte e profundo do que o favor da população. Ele escapou para além dos Alpes, e finalmente encontrou um abrigo seguro e hospitaleiro em Zurique. Ali, foi permitido ao precursor do famoso Zuínglio que tivesse um tempo para lecionar, e o povo simples manteve por muito tempo o espírito de suas doutrinas. Mas não poderia ser permitido que tal homem vivesse em lugar algum. Bernardo observava cada um de seus movimentos. Ele implorou ao papa por medidas extremas, e escreveu raivosamente àqueles que lhe deram abrigo, alertando-os para que tomassem cuidado com a infecção fatal da heresia. Ele repreendeu severamente o bispo diocesano de Zurique por protegê-lo. "Por que", disse ele, "você ainda não afastou Arnaldo há muito tempo? Aquele que consente com o suspeito torna-se suscetível a suspeitas; aquele que favorece alguém sob a excomunhão papal contraria o papa e até mesmo o próprio Senhor Deus. Agora, portanto, que você sabe quem é esse homem, expulse-o do meio de vós; ou, melhor ainda, acorrente-o, para que não faça mais mal".

Após várias circunstâncias, como é comum no caso desse tipo de homem, e que não precisamos traçar com detalhes aqui, Arnaldo retornou a Roma. Ali foi-lhe permitido permanecer por algum tempo por causa da fraqueza do pontífice e do estado conturbado da cidade; mas quando o papa Adriano IV subiu a trono de São Pedro, os dias de Arnaldo estavam contados.

Arnaldo de Bréscia

Embora Arnaldo tenha sido um discípulo e um fiel seguidor de Abelardo, é evidente, a partir de todas as informações que podemos reunir sobre ele, que foi um homem de outra ordem. Há motivos para crer que ele tenha sido um cristão sincero, e possuía muitos dos elementos de um reformador, embora em uma época imatura para a reforma. Além disso, ele era político demais -- um grande admirador da velha República Romana -- para ser usado por Deus no estabelecimento de uma fundação sólida para a reforma da igreja. Ele foi honrado com o martírio, mas foi mais por sua defesa da liberdade civil do que por sua sujeição à pregação de Cristo e à Palavra de Deus. No entanto, ele merece nosso respeito e gratidão como um semeador precoce das sementes da grande Reforma.

Arnaldo nasceu em Bréscia, na Lombardia -- provavelmente por volta do ano 1105. Em um período inicial de sua sua história ele se separou do clero secular, abraçou a vida monástica, e começou a pregar insensivelmente contra as corrupções, tanto do clero quanto dos monges. Ele parece ter sido possuído por uma convicção interior de que tinha uma comissão divina de pregar contra o orgulho, a luxúria e a imortalidade do sacerdócio, do próprio papa até a classe mais baixa na igreja; e a essa missão ele ousada e destemidamente devotou todas as suas forças. Possuído, de acordo com todos os relatos, do mais vigoroso e desperto estilo de discurso, combinado com uma eloquência que era particularmente copiosa e fluída, ele poderosamente movia as massas para onde quer que pregasse. "Suas palavras", disse Bernardo, "são mais suaves que o azeite e mais afiadas do que a espada". Sua grande ideia era a completa separação da igreja e do Estado. O velho edifício papal --  a hierarquia que tinha se elevado a tais vastas proporções desde os dias de Constantino, e que, sob a ideologia de Gregório VII, aspirava o governo de todo o mundo, e a vinculação de todas as nações da Terra como feudos de São Pedro -- ele ousadamente manteve que deveria ser totalmente demolido e varrido da face da Terra. Ele usava, assim como muitos desde então, e embora sem conhecer sua importância espiritual, o mote: "Meu reino não é deste mundo". Ministros do evangelho, argumentava ele, não deveriam ter qualquer poder além do governo espiritual do rebanho de Cristo, e quaisquer riquezas além dos dízimos e ofertas voluntárias dos fiéis. Os imensos males e discórdias que surgiram na igreja, afirmava ele, eram principalmente devidos às vastas riquezas do pontífice, bispos e padres.

Embora houvesse uma grande medida de verdade em muito do que ele dizia, ele misturou, da maneira mais dolorosa, seu amor à velha liberdade romana à humilde religião de Jesus -- misturou o rígido monge ao feroz republicano. "Se a pobreza era uma característica de Cristo", ele exclamava, "se a pobreza era uma característica de Seus apóstolos, se a única semelhança viva e real dos apóstolos e de Cristo são os monges famintos e mal vestidos, com suas faces afundadas pela fome, seus olhos cabisbaixos, quão longe de Cristo são aqueles bispos principescos, aqueles altivos abades, com seus mantos de pele escarlata e púrpura, que montam em seus curvos palafréns, com seus adereços de ouro, suas esporas de prata, e segurando seus báculos como reis!" Consistentemente com isso, ele também ensinava ao povo "que o soberano secular é a verdadeira fonte de honra, de riqueza, de poder, e para essa fonte deveriam ser revertidas todas as posses da igreja, as propriedades dos mosteiros, as realezas dos papas e dos bispos."*

{*Latin Christianity, vol. 3, p. 333.}

O Alvorecer da Luz na Idade das Trevas

Durante a última parte do século XI, encontramos nomes famosos como Lanfranco, Anselmo e Berengário. Um novo impulso foi dado à atividade intelectual pelo trabalho desses e de outros professores eminentes. Foi por volta dessa época que as velhas escolas catedráticas se desenvolveram em seminários de aprendizagem geral, e estes se tornaram os ancestrais de nossas universidades modernas. Essa atividade intelectual, após um longo período de apatia, tornou-se extremamente atrativa, de modo que milhares se aglomeravam para assistirem às aulas, e, como homens há muito tempo privados da árvore do conhecimento, abraçaram com entusiasmo o que ouviam. No fundo, foi uma reação contra a autoridade dogmática da igreja, pois ensinava aos homens que, a partir daí, era possível raciocinar e inquirir.

Pedro Abelardo foi o mais audacioso, e de longe o mais popular de todos os professores sobre dialética -- que declarava ser a ciência ou a arte de discriminar a verdade do erro pela razão humana. Esse notável homem nasceu em 1079, perto de Nantes, na região francesa da Bretanha. Seu pai, Berengário, foi senhor do castelo de Le Pallet, e embora Pedro fosse seu filho mais velho, desde cedo preferia "os conflitos de disputas de argumentos aos troféus dos exércitos", e assim, renunciando à herança familiar de seus irmãos, entregou-se à vida acadêmica. Foi primeiro aluno de Roscelino, e depois de Guilherme, arquidiácono de Paris, e também de Anselmo, professor de teologia de Lauduno. Mas não precisamos entrar em detalhes sobre a longa e extraordinária história desse homem. É uma história de vitórias, crimes e infortúnios. Ele foi, ao mesmo tempo, o representante e a vítima da teologia escolástica que pôs em perigo o poder e a constituição da igreja romana. Ele foi o primeiro exemplo de um homem que professava a ciência da teologia e que não era um padre. Por onde ia, milhares de acadêmicos entusiastas lhe rodeavam. "Multidões", diz o biógrafo de Bernardo, "somando milhares, cruzavam altas montanhas e amplos mares, e suportavam todo tipo de inconveniência da vida, para desfrutar do privilégio de ouvir as aulas de Abelardo". "Sua eloquência", disse outro, "era tão fascinante que o ouvinte se encontrava irresistivelmente levado pela correnteza; e se um oponente fosse forte o suficiente para se levantar contra ele, a agudeza de sua lógica era tão infalível quanto a torrente de sua oratória, e em todos os combates levava o prêmio"*.

{*Life and Times of Bernard, Morrison, p. 290; Eighteen Christian Centuries, White, p. 266.}

Abelardo escreveu, assim como lecionou, sobre muitos assuntos importantes; mas ele não era sábio no que diz respeito às doutrinas fundamentais do cristianismo. E mesmo assim, em toda Europa, nenhum campeão da verdade e ortodoxia podia ser encontrado para enfrentar em combate esse gigante herético. Bernardo de Claraval, com o tempo, recebeu inúmeros apelos. Uma carta de Guilherme, abade de São Teodorico, tirou-o de seu claustro. O santo e o erudito em lógica se encontraram em Sens, em 1140. O rei da França estava presente, com um grande número de bispos e eclesiásticos. Abelardo estava cercado de seus discípulos, e Bernardo com dois ou três monges. Um se dirigiu a razão de poucos, e o outro inflamou os corações e paixões de todas as classes. Um foi apoiado por seus admiradores, e o outro por adoradores. Um tinha sido denunciado como herege, e o outro tinha a reputação de ser o homem mais santo de sua época, acima de reis, clérigos, e até mesmo do papa. Sob tais circunstâncias, Abelardo não tinha chances. Ele logo sentiu o poder que estava contra ele, e, antes que as passagens incriminadas fossem todas lidas, ele ergueu-se e disse, para o espanto de todos os presentes: "Eu me recuso a ouvir mais, ou a responder a qualquer pergunta; eu apelo a Roma"; e deixou a assembleia.

Alguns dizem, em explicação para essa conduta inesperada, que as fileiras de rostos hostis que ele viu diante dele, não apenas apagaram seu entusiasmo, como também fizeram com que ele sentisse que sua vida estava em perigo. Ouvindo que um relatório do concílio tinha chegado em Roma, e que tinha sido condenado pelo papa, ele, em sua angústia, pediu socorro ao "venerável" Pedro de Cluny, que, por pena de seus infortúnios, ofereceu-lhe asilo em seu mosteiro, embora fosse oposto a suas doutrinas.

Podemos apenas observar, de passagem, que a bem conhecida história dos sofrimentos de sua bela Eloísa deu origem a uma nova ideia sobre o lugar da mulher na sociedade, sem a qual nenhuma civilização verdadeira poderia ter acontecido. Até esse período, a igreja olhara declaradamente com desdém para a mulher, pois ela tinha sido a primeira a cair em transgressão. Mas a tocante história dos infortúnios de Eloísa levou à elevação da mulher ao seu devido lugar no círculo social.

Abelardo, caído e de coração partido, após passar cerca de dois anos nas solidões de Cluny, recebendo muita bondade de seu caridoso abade, e satisfazendo seus juízes eclesiásticos com a humildade de seu arrependimento, encerrou sua agitada vida no ano de 1142. Seus princípios viveram em muitos de seus discípulos, e um deles merece uma atenção especial.

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