sábado, 24 de dezembro de 2016

O Único Grande Objetivo do Papado

A cada dia tornava-se mais e mais evidente que não poderia haver paz sólida para Roma, nem fundamento seguro para a supremacia já alcançada, a menos que fosse alcançada a derrubada total tanto dos poderes gregos quanto lombardos na Itália, e a apropriação de seus espólios pela santa Sé. Este era então o único grande objetivo dos sucessores de São Pedro e a batalha que eles tinham que lutar. Mas, assim como a vinha de Nabote, o jizreelita, isso deveria ser possuído por bem ou por mal. Jezabel conspira, e a morte de Nabote é realizada. A história dos reis lombardos e da grande controvérsia iconoclástica durante os séculos VII e VIII lançam muita luz sobre os meios usados para alcançar esse fim; mas disso tudo podemos dizer apenas uma palavra para passarmos adiante, e sugerir aos nossos leitores a consulta direta à história geral.*

{* Veja especialmente a Cathedra Petri de Greenwood.}


"Há abundante fundamento histórico para acreditar", diz Greenwood, "que esse objetivo havia, por essa época, se moldado muito distintamente na mente do papado: o território de seu inimigo religioso, o imperador, devia ser definitivamente anexado ao patrimônio de São Pedro, juntamente a um Estado territorial muito mais extenso à medida que a oportunidade viesse ao alcance.  Mas restava a árdua e aparentemente impossível tarefa de arrancar essas potenciais aquisições das mãos do inimigo lombardo. E, de fato, todo o curso da política papal estava então direcionada ao cumprimento desse único objetivo."

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O Período de Transição do Papado

Retornemos agora a Roma. Sua importância e influência como um centro reivindica nossa maior atenção por mais um pouco. Os domínios espirituais do papa então se estendiam por toda a parte. De todas as partes do império bispos, príncipes e povos olhavam para Roma como o pai de sua fé e a mais elevada autoridade na Cristandade. Mas, embora assim exaltada à mais alta soberania espiritual, o supremo pontífice e sua relação com o império oriental ainda era um assunto delicado. Isto era insuportável para o orgulho e ambição de Roma. A poderosa batalha pela vida e poder político agora começava, e durou por todo século VII e VIII. Este foi o período de transição de um estado de subordinação ao poder civil ao estado de auto-existência política. Como isto poderia ser alcançado era então o grande problema que o Vaticano tinha que resolver. Mas o domínio espiritual não podia ser mantido sem o poder secular.

Os lombardos -- os vizinhos mais próximos e temidos dos papas -- e o império grego eram os dois grandes obstáculos no caminho da soberania secular do papa. A queda do império ocidental e a ausência de qualquer governo nacional fez com que o povo romano olhasse para o bispo como seu chefe natural. Ele foi assim investido com uma influência política especial, distinta de seu caráter eclesiástico. As invasões dos lombardos, como já vimos, e a fraqueza dos gregos, contribuíram para o aumento do poder político nas mãos dos pontífices. Mas isto foi apenas acidental, ou uma necessidade diante das emergências imprevistas. Os Estados romanos ainda eram governados por um oficial do império oriental, e o próprio papa, se ofendesse o imperador, era suscetível de ser preso e lançado na prisão, como foi, de fato, o caso do papa São Martinho no ano 653, que morreu no exílio no ano seguinte.

O Grande Projeto Papal para o Engrandecimento

A difusão do cristianismo nesse século ultrapassou em muito seus anteriores, tanto nos países do Oriente quanto do Ocidente. Vimos alguns de seus triunfos no Ocidente. No Oriente conta-se que os nestorianos trabalharam com incrível afinco e perseverança para propagar a verdade do evangelho na Pérsia, Síria, Índia, e entre as nações bárbaras e selvagens habitantes dos desertos e das costas mais remotas da Ásia. Em particular, o vasto império da China foi iluminado por seu zelo e diligência com a luz do cristianismo. Durante vários séculos sucessivos, o patriarca dos nestorianos enviou um bispo para presidir sobre as igrejas de então na China. Essas interessantes pessoas rejeitaram a adoração de imagens, a confissão auricular, a doutrina do purgatório, e muitas outras doutrinas corruptas das igrejas romana e grega.

A igreja oriental, ou igreja grega, parece ter sido impedida, por causa de dissensões internas, de se preocupar muito com a disseminação do cristianismo entre os pagãos. No Ocidente tudo era atividade mas, infelizmente, não para a disseminação do evangelho ou para a conversão de almas.*

{*Mosheim, vol. 2, p. 29.}

A Disseminação do Cristianismo na Alemanha e Arredores

É mais do que provável que a cruz tenha sido introduzida, num período primitivo, no coração das florestas germânicas, assim como naquelas cidades e distritos que estavam sujeitos ao Império Romano. Os nomes de vários bispos da Alemanha {*N. do T.: ou Germânia, como era conhecida a região na época romana} são encontrados nas listas dos concílios de Roma e Arles realizados sob a autoridade de Constantino nos anos 313 e 314. Mas não foi até o final do sexto e início do sétimo século que o cristianismo foi amplamente disseminado e firmemente enraizado na região. Os bretões (ou britânicos), os escotos (ou escoceses) e os irlandeses foram honrados por Deus como os principais instrumentos nessa grande e abençoada obra. O ardente Columbano, cuja missão já tomamos nota, foi o líder dos primeiros grupos que foram ao auxílio dos pagãos no continente europeu. Ele primeiramente atravessou a França, então passou o Reno e trabalhou pela conversão dos suábios, bávaros, francos e outras nações da Alemanha. St. Kilian, um escocês e evangelista muito devoto, o seguiu. Ele é considerado o apóstolo da Francônia e honrado como um mártir por sua fidelidade cristã por volta do ano 692. Willibrord, um inglês missionário com onze de seus compatriotas, cruzou para a Holanda para trabalhar entre os frísios; mas assim como outros anglo-saxões do período ele era fervorosamente devoto à Sé Romana. Ele foi ordenado bispo de Witteburg pelo papa; seus associados propagaram o evangelho através da Vestfália e dos países vizinhos.

Mas o homem que levou as nações da Germânia como um rebanho de ovelhas sob o pastorio de Roma foi o famoso Vinfrido. Ele nasceu em Crediton, em Devonshire, de uma nobre e rica família, por volta do ano 680. Ele entrou em um monastério em Exeter quando tinha sete anos, e mais tarde se mudou para Nursling em Hampshire. Ali ele se tornou famoso por sua capacidade como pregador e como expositor das Escrituras. Ele se sentia chamado por Deus logo no início de sua vida para ir mundo afora como um missionário aos pagãos. Ele navegou para a Frísia no ano 716. Seus labores foram longos e abundantes. Três vezes ele visitou Roma e recebeu grandes honras do papa. Sob o título de São Bonifácio, e considerado o apóstolo da Germânia, ele morreu como um mártir aos sessenta e cinco anos. Mas embora ele tenha sido um missionário muito bem-sucedido, um homem de grande força de caráter, de grande erudição e de vida santa, ele era um vassalo jurado do papa, e buscava mais o avanço da igreja de Roma do que o avanço do evangelho de Cristo.*

{*Para detalhes particulares veja Middle Ages, de Hardwicke; J. C. Robertson, vol. 2, p. 95}

Quem Eram os Culdees?

Culdees eram uma espécie de reclusos religiosos que viviam em lugares afastados. A comunidade cristã de Iona foi chamada de Culdees. E este é, provavelmente, o motivo pelo qual aquele ponto isolado foi fixado por Columba como o local de seu monastério. Embora totalmente livres das corrupções dos grandes monastérios no continente, a vida e as instituições de Columba eram estritamente monásticas. E, a partir de fragmentos de informação recolhidos da história, parece bem certo de que "eles se gloriavam em seus milagres, respeitavam relíquias, praticavam penitências, jejuavam às quartas e sextas-feiras, tinham algo bem similar às confissões auriculares, às absolvições e às missas para os mortos; mas é certo que eles nunca se submeteram aos decretos do papado em relação ao celibato". Muitos dos culdees eram homens casados. São Patrício era filho de um diácono e neto de um sacerdote.*

{* Cunningham, vol. 1, p. 94.}


Mas, embora esses homens bons e santos fossem tão infectados pela superstição dos tempos, a situação remota em que se encontravam, a simplicidade de seus modos, e a pobreza de seu país devem tê-los preservado muito das influências romanas e dos vícios predominantes dos monastérios mais opulentos. Prefiramos pensar no monastério deles como um seminário, nos quais homens eram treinados para a obra do ministério. Em anos posteriores os monges foram frequentemente perturbados, e algumas vezes abatidos, por piratas. No século XII passou a ser posse dos monges romanos. "Sue fé pura e primitiva", diz Cunningham, "havia partido; seu renome por causa da piedade e erudição se foi; mas a memória deles sobreviveu, e era então considerada com maior reverência supersticiosa do que nunca. Muito antes disso o monastério foi usada como sepulcro da realeza, numerosas peregrinações foram feitas até ele, e agora reis e chefes começaram a enriquecê-lo com doações de dízimos e terras. As paredes que então estavam desmoronando foram consertadas; e os viajantes podem apreciar essas veneráveis ruínas eclesiásticas se erguendo de um cais em meio ao vasto oceano com sentimentos parecidos com aqueles com os quais é possível considerar os templos de Tebas meio enterrados, mas ainda em pé, no meio das areias do deserto".

Vamos agora deixar de lado por um tempo as Ilhas Britânicas. A primeira introdução da cruz na Inglaterra, Escócia e Irlanda, e o triunfo final de Roma nesses países, são eventos do mais profundo interesse por si só; mas por terem acontecido em nosso próprio país* eles têm direito à nossa atenção especial. A partir desse momento poucas mudanças exteriores aconteceram na história da igreja, embora possam ter havido muitas lutas internas a partir dos numerosos abusos e das exigências audaciosas de Roma. 

{*N. do T.: o autor vivia na Inglaterra}

domingo, 18 de dezembro de 2016

A Tonsura Clerical

Dentre os muitos assuntos de disputa entre os missionários celtas e italianos, o verdadeiro dia para a celebração da Páscoa e a verdadeira forma da tonsura clerical animaram as mais ferozes controvérsias, despertaram as mais fortes paixões e, finalmente, levaram à queda da igreja da Escócia e ao triunfo dos sacerdotes de Roma. Mas, tendo já falado sobre a questão da Páscoa em ligação com o concílio de Niceia, vamos apenas tomar nota sobre a disputa sobre a tonsura.

Pode parecer estranho aos nossos jovens leitores protestantes, que podem nunca ter visto um padre católico sem seu chapéu, que o corte de seu cabelo fosse algo de mais peso em sua ordenação do que sua erudição ou sua piedade. E a mera forma em que era raspada era considerada de tanta importância que tornou-se um teste de ortodoxia. Os monges escoceses seguiam as igrejas do Oriente, tanto na observância da Páscoa quanto na forma de tonsura. Eles raspavam a parte de trás da cabeça de orelha a orelha na forma de uma crescente. Os orientais reivindicavam João e Policarpo como seu exemplo e autoridade. Os italianos professavam ficar em grande choque por tal barbaridade, e chamavam-na de tonsura de Simão Mago.  O clero romano usava uma forma circular. Isto era feito tornando careca um pequeno ponto redondo bem no topo da cabeça, e aumentando o ponto à medida que o eclesiástico avançava nas ordens sagradas. A tonsura tornou-se um requisito como uma preparação para as ordens por volta do quinto ou sexto século.

Agostinho [de Cantuária] e seus sucessores na sé da Cantuária, seguindo os escritos dos mais antigos e veneráveis "Pais", afirmavam que a tonsura foi primeiramente introduzida pelo príncipe dos apóstolos, em honra à coroa de espinhos que foi pressionada sobre a cabeça do Redentor; e que o instrumento inventado pela impiedade dos judeus para a ignomínia e tortura de Cristo pode ter sido utilizada por Seus apóstolos como seu ornamento e glória. Por mais de um século a controvérsia se ergueu com grande ferocidade. As questões prosseguiam a tal ponto que um homem era ou não era considerado um herege de acordo com o local do couro cabeludo em que se fazia careca: na coroa (topo da cabeça) ou na parte de traz da cabeça. Roma se encheu de raiva; meios humanos pareciam insuficientes para conquistar um miserável bando de presbíteros em um canto remoto da ilha. Eles se recusavam a curvar-se perante ela. O que deveria ser feito? Como sempre, achando-se incapaz de alcançar seu objetivo por meio dos padres, ela recorreu a favoritos na corte, nobres e príncipes. Naitam, rei dos pictos, foi convencido a crer que, ao se submeter ao papa, ele seria igual a Clóvis e Clotaire. Lisonjeado por tal grandeza de glória futura, ele recomendou que todo o clero de seu reino recebesse a tonsura de São Pedro. Então, sem demora, ele enviou agentes e cartas para cada província e fez com que todos os monastérios e monges recebessem a tonsura circular de acordo com a moda romana. Alguns se recusaram. Os anciãos da rocha aguentaram por um tempo, mas as ordens do rei, o exemplo do clero e a fraqueza de alguns dentre eles conduziu ao caminho da destruição de Iona e de toda a antiga igreja da Escócia. Por volta do início do século VIII a navalha foi introduzida, eles receberam a tonsura latina, tornaram-se servos de Roma, e continuaram assim até o período da Reforma.*

{* D'Aubigne, vol. 5, p. 77. Cunningham, vol. 1, p. 90.}

Os Missionários de Iona

Perto do fim do século VI, ou início do século VII, missionários começaram a sair dos claustros de Iona carregando a luz do cristianismo, não meramente a diferentes partes da Escócia, mas também à Inglaterra e ao continente. Agostinho [de Cantuária] e seus monges italianos chegaram em Kent um pouco antes do famoso Aidan de Iona e seus monges entrarem em Northumberland. Assim a igreja saxônica foi invadida por cristãos missionários em suas duas extremidades.

Osvaldo, então rei da Nortúmbria, era cristão. Ele tinha sido convertido, batizado e recebido à comunhão na igreja escocesa quando era um jovem e exilado nesse país. Ao recuperar o trono de seus ancestrais ele naturalmente desejou que seu povo fosse levado ao conhecimento do Salvador. A seu pedido, os anciãos de Iona lhe enviaram um grupo missionário chefiado pelo piedoso e fiel Aidan. O rei atribuiu-lhes a ilha de Lindisfarne por residência. Ali Aidan estabeleceu o sistema de Iona, e a comunidade viveu de acordo com o governo monástico. Muitos se uniram ao monastério, vindos tanto da Escócia quanto da Irlanda. O próprio rei zelosamente ajudou na disseminação do evangelho: às vezes pregando, e às vezes agindo como um interpretador, tendo aprendido a língua celta durante seu exílio. Beda, embora fortemente romano em suas afeições, dá um testemunho sincero às virtudes desses clérigos do Norte -- "Seu zelo, sua gentileza, sua humildade e simplicidade, seu estudo sério das Escrituras, sua liberdade de todo o egoísmo e avareza, sua honesta ousadia ao lidar com os grandes, sua ternura e caridade para com os pobres, sua vida estrita e abnegada."*

{* J. C. Robertson, vol. 2, p. 62}

A obra da conversão parece ter prosperado nas mãos de Agostinho [da Cantuária] e Aidan. Os monges italianos estendiam seus ensinamentos e influência sobre o sul e sudoeste do reino, enquanto os monges escoceses espalhavam a verdade de um evangelho mais puro e simples sobre as províncias do norte, do leste e da região central. Ao mesmo tempo, York, Durham, Lichfield e Londres se encheram de homens escoceses. Assim Roma e Iona se encontraram em solo inglês, uma colisão que era inevitável; quem se tornaria o mestre? Agostinho [de Cantuária], que tinha sido consagrado primaz da Inglaterra pelo papa, exigiu que os monges celtas se conformassem à disciplina romana: a isto eles se recuraram prontamente, e defenderam com grande firmeza sua própria disciplina e as regras de Iona. Sérias disputas então se levantaram. Roma não podia se submeter a nenhum rival, ela estava determinada a manter a Inglaterra sob seus domínios.

Após a morte do piedoso e generoso Osvaldo, o trono foi preenchido por seu irmão Oswiu, que também tinha se convertido ao cristianismo e foi batizado na Escócia durante seu cativeiro. Mas sua princesa aderiu aos costumes de Roma, e a família seguiu a mãe. Uma forte influência foi assim exercida contra os monges escoceses; e, cansados das contínuas provocações e da conduta inescrupulosa dos agentes do pontífice, tanto eclesiásticos quanto seculares, os firmes presbíteros ficaram determinados a deixar a Inglaterra e retornarem a Iona. De longe, a maior e mais importante parte do país tinha sido convertida ao cristianismo por meio de seus labores; mas o triunfo de Roma na conferência de Whitby em 664, através da sutileza do padre Wilfred, os desencorajou tanto que eles silenciosamente se retiraram do campo após a ocupação de cerca de trinta anos. "Por mais santo que tenha sido o teu Columba", disse o astuto Wilfred, "prefere-o ao príncipe dos apóstolo, a quem Cristo disse 'Tu és Pedro, e te darei as chaves do reino dos céus'?". O Rei Oswiu estava presente, e professou obediência a São Pedro. "Receio", disse ele, "que quando eu chegar ao portão do céu, não haverá ninguém para abri-lo para mim". O povo logo seguiu seu príncipe, e em um curto período de tempo toda a Inglaterra tornou-se subserviente de Roma. Mas nem argumentos, intimidação, nem o escárnio, tinham qualquer efeito sobre os presbíteros do Norte. Eles se recusaram a reconhecer que deviam fidelidade ao bispo de Roma. A Escócia ainda era livre. Os padres, como de costume, puseram-se a trabalhar com os príncipes. Isto foi realizado como descrito a seguir.

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