sábado, 8 de outubro de 2016

A Heresia Pelagiana

A condição da igreja no início do século V deu ao adversário uma oportunidade de trazer uma nova heresia, que introduziu uma nova controvérsia que continuou com mais ou menos violência desde aqueles dias até hoje. Trata-se do pelagianismo. A grande heresia, o arianismo, que tinha até então agitado a igreja, originou-se no Oriente e era relacionada à Divindade de Cristo, e agora esta nova se erguia no Ocidente, e tinha por assunto a natureza do homem após a queda e suas relações com Deus. Esta deturpava a questão do pecador perdido, e aquela, o divino Salvador.

Diz-se que Pelágio foi um monge do grande monastério de Bangor, no País de Gales, e provavelmente o primeiro bretão que se distinguiu como um teólogo. Seu verdadeiro nome era Morgan. Supõe-se que seu seguidor, Celéstio, era nativo da Irlanda. Agostinho fala dele como sendo mais jovem que Pelágio -- e mais ousado e menos astuto. Estes dois companheiros no erro visitaram Roma, onde se tornaram íntimos de muitas pessoas de reputação ascética e santa, e disseminaram suas opiniões com cautela e privacidade. Mas, após o cerco do ano 410, eles passaram para a África, onde avançaram mais abertamente com suas opiniões.

Aparentemente a motivação de Pelágio não estava em qualquer desejo de formar um novo sistema doutrinal, mas sim de se opôr ao que considerava ser indolência moral e um espírito mundano entre os irmãos. Por isso, ele sustentava que o homem possuía um poder inerente para fazer a vontade de Deus e para alcançar o mais alto grau de santidade. Deste modo suas visões teológicas foram, em grande medida, bem formadas e determinadas, porém totalmente falsas, sendo consistentes somente com seu asceticismo rígido e com os frutos nativos que este produzia. Como as Escrituras inegavelmente atribuem todo o bem no homem à graça de Deus, assim Pelágio também, num sentido criado por ele próprio, reconhecia isso; mas suas ideias sobre graça divina eram, de fato, nada mais do que os meios externos para ressaltar os esforços humanos: ele não via a necessidade de uma obra de graça celestial no coração e nem da operação do Espírito Santo. Isto o levou a ensinar que o pecado de nossos primeiros antepassados não tinham prejudicado ninguém além deles mesmos, e que o homem é agora nascido tão inocente como Adão, como Deus o havia criado, e que era possuidor do mesmo poder e pureza moral. Estas doutrinas, e outras ligadas a elas, especialmente a ideia do livre arbítrio do homem -- "um poder imparcial de escolha entre o bem e o mal" -- foram secretamente disseminadas por Pelágio e seu colega Celéstio em Roma, Sicília, África e Palestina. No entanto, as novas opiniões foram geralmente condenadas, exceto no Oriente. Lá, por exemplo, João, bispo de Jerusalém, que considerava que as doutrinas de Pelágio concordavam com as opiniões de Orígenes, às quais ele tinha aderido, promoveu Pelágio, permitindo que ele professasse livremente seus sentimentos e angariasse discípulos.*

{*"O erro fundamental do monge Pelágio era a negação de nossa total corrupção pelo pecado derivado de Adão, e expiado unicamente pela morte e ressurreição do segundo Homem, o último Adão. Por isso ele pregava que a liberdade era verdadeiramente possuída por todos os homens, não apenas no sentido de isenção de alguma restrição exterior, mas da liberdade da natureza de escolher entre o bem e o mal, negando, assim, a escravidão do pecado no interior do homem. Assim, mesmo em sua aplicação cristã, ele parece ter compreendido a graça como pouco mais do que o perdão por esta ou aquela ofensa, e não como a concessão de uma nova natureza ao crente, devido a qual ele não pratica o pecado, pois nasceu de Deus. Assim não havia lugar no esquema pelagiano para o homem estar perdido de um lado, e para o crente estar salvo no outro. De fato, ele pregava que a raça humana era concebida em uma inocência como a do estado primordial de Adão até que pecasse e então caísse sob a culpa e suas consequências. Os pelagianos negavam a imputação do pecado de Adão, vendo nele nada mais do que a influência de um mal exemplo. Assim, enquanto a ruína moral do homem o fazia perder a força, bem como o relacionamento com o Cabeça da igreja, por um lado, pelo outro lado, sob a graça, estavam contadas todas as naturais e as sobrenaturais dotações da família humana. Por isso, a lei da consciência e o evangelho eram considerados como diferentes métodos e diferentes estágios de justiça, sendo os recursos e operações da graça válidos apenas de acordo com as tendências da vontade. Novamente, a redenção em Cristo se tomou, se não um mero aperfeiçoamento, com certeza uma exaltação e transfiguração da humanidade. O próprio Cristo não era nada além do padrão supremo de justiça, alguém que estimulava uns a guardarem perfeitamente a lei moral, e, por Sua obra, estimulava outros ao amor e ao exemplo pelos conselhos evangélicos da perfeição moral superior à lei." W. Kelly }

domingo, 2 de outubro de 2016

A Influência Degenerativa do Ritualismo

A tendência de todo o ritualismo eclesiástico é produzir um espírito de superstição que subverte a fé: do mero formalismo que substitui a direção do Espírito Santo, e de descansar em nossas próprias boas obras em rejeição à obra consumada de Cristo. A Palavra de Deus é assim praticamente deixada de lado, o Espírito Santo é entristecido, e o coração é aberto para as incursões de Satanás. Quando a fé se encontra em vivo exercício, a Palavra de Deus é estritamente seguida, e a prometida direção do Consolador é confiada, a alma é forte e vigorosa na vida divina, e as sugestões do inimigo passam despercebidas. Satanás é um atento observador dos diferentes estados da alma do crente e da igreja professa. Ele sabe quanto será bem-sucedido em suas tentativas contra o crente individual ou contra a igreja; ele espera o tempo certo -- ele aguarda uma oportunidade. Quando ele vê a mente tomando uma direção errada, ele sussurra, bajula, estimula. Que pensamento solene para todos nós!

Ritos e Cerimônias

A adoção mais generalizada do cristianismo, como pode-se imaginar, foi seguida por um aumento do esplendor em tudo o que dizia respeito à -- assim chamada -- adoração a Deus. "Igrejas" foram construídas e adornadas com maiores custos; o clero oficiante passou a vestir-se em roupas mais ricas, a música se tornou mais elaborada, e muitas novas cerimônias foram introduzidas. E esses usos eram então justificados sobre o mesmo terreno que a alta cúpula da igreja usa para justificar os extraordinários ritos e cerimônias nos dias de hoje*. A intenção era recomendar o evangelho aos pagãos por cerimônias que pudessem superar aquelas da velha religião. Multidões eram, então, atraídas à igreja, como são hoje, sem qualquer entendimento suficiente sobre sua nova posição, e com mentes ainda possuídas de noções pagãs e corrompidas pela moralidade pagã. Mesmo nos primeiros dias do cristianismo encontramos irregularidades na igreja em Corinto no que diz repeito às práticas não esquecidas dos pagãos. O acendimento de velas à luz do dia, incenso, images, procissões, purificações, e inumeráveis outras coisas, foram introduzidas nos séculos IV e V. Como observa Mosheim: "Enquanto a boa vontade dos imperadores colaborasse com o avanço da religião cristã, a piedade indiscreta dos bispos obscurecia sua verdadeira natureza e oprimia suas energias pela multiplicação dos ritos e cerimônias."**

{* Veja A Igreja e o Mundo, 1866.}
{** História Eclesiástica, vol. 1, p. 366, Murdock e Soames. Robertson, vol. 1, p. 316.}

A Conversão de Clóvis

Como a conversão de Clóvis é conhecida como sendo a mais importante do século V, devemos fornecer alguns detalhes em particular sobre o evento -- importante, em relação às suas consequências, tanto imediatas quanto remotas, na história da Europa, e também da igreja.

Os francos, um povo da Germânia, tinham se estabelecido no norte da França, perto da aldeia Cambrai, uma parte mais religiosa do país, que ficou famosa pelo santuário de São Martinho de Tours e pelas lendárias virtudes de outros santos. Clóvis era um pagão, mas Clotilda, sua esposa, tinha abraçado a fé católica. Ela vinha a muito tempo incitando-o a tornar-se cristão, mas ele se demorava a crer. Por fim, no entanto, quando em uma batalha contra os alamanos, e se encontrando em perigo, ele pensou no Deus de Clotilda, e orou a Ele, declarando que seus antigos deuses tinham falhado para com ele, e prometendo se tornar um cristão se ele ganhasse a vitória. A maré da batalha virou; seus inimigos foram derrotados, e, fiel ao seu voto, no Natal de 496, Clóvis foi batizado em Reims pelo bispo Remígio. Três mil guerreiros seguiram seu exemplo, declarando estarem dispostos a adotarem a mesma religião de seu rei.

Aqui temos outro Constantino. Clóvis encontrou na profissão do cristianismo algo mais favorável aos seus interesses políticos, mas isto não produziu mudança para melhor em sua vida. Seu objetivo era conquistar, sua ambição não tinha limite, suas obras eram ousadas e cruéis. De um mero líder franco com um território pequeno ele se tornou o fundador da grande monarquia francesa. E de sua confissão da fé católica, e de sua aliança com o Pontífice Romano, ele foi reconhecido como o campeão do catolicismo, e declarou-se o único soberano ortodoxo do Ocidente: todos os outros eram arianos. Alarico, que conquistou Roma; Genserico, que conquistou a África; Teodorico, o Grande, que se tornou o rei da Itália; e muitos dos reis lombardos, eram todos arianos. Por esse motivo os reis da França derivam de Clóvis o título de "Filho mais velho da Igreja". 

Ao estudante da profecia é interessante observar que, por essa época, pelo menos cinco ou seis reis bárbaros estavam em posse das províncias romanas, e governavam o que havia sido o império latino. Mas isto havia morrido. Morreu como um império, e deve permanecer no lugar de morte até ser ressuscitado, de acordo com a Palavra do Senhor, nos últimos dias (Apocalipse 13, 17).

Antes de concluirmos o período de Pérgamo, achamos que será necessário observar, mesmo que brevemente, três coisas: o estado interno da igreja, a controvérsia pelagiana e a controvérsia nestoriana.

A Conversão dos Bárbaros

É sempre interessante e edificante identificar a mão do Senhor ao tornar a ira do homem em instrumento para Seu próprio louvor, e ao trazer o maior bem ao Seu próprio povo em meio ao que parecia ser sua mais pesada calamidade. No reinado de Galieno, por volta de 268, um grande número de provinciais Romanos tinham sido levados em cativeiro pelos bandos góticos; muitos desses cativos eram cristãos, e vários pertenciam à ordem eclesiástica. Eles foram dispersos por seus mestres como escravos nos vilarejos: mas também como missionários pelo Senhor. Eles pregaram o evangelho ao povo bárbaro, e muitos foram convertidos. Seu aumento e ordem podem ser inferidos do fato de que eles foram representados no concílio de Niceia por um bispo chamado Teófilo.

Ulfilas, que é comumente chamado "o Apóstolo dos Godos", mereceu a grata lembrança da posteridade, mas especialmente dos cristãos. Por volta da metade do século IV, ele inventou um alfabeto e traduziu as Escrituras para a linguagem gótica, com a exceção do livro de Samuel e de Reis, por receio de que seu conteúdo belicoso (cheio de guerras) pudesse parecer favorável à ferocidade dos bárbaros. A princípio eles parecem ter sido simples e ortodoxos em sua fé, mas mais tarde se tornaram profundamente manchados com o arianismo, especialmente após os ministros arianos, que foram expulsos de suas "igrejas" por Teodósio, terem trabalhado diligentemente entre eles.

Alarico e seus godos eram cristãos professos. Eles dirigiam sua ira contra os templos pagãos, mas reverenciavam muito as "igrejas". Esta foi a grande misericórdia de Deus para Seu povo. Muitos fugiam para as "igrejas", onde encontravam um santuário. A fé fervorosa e o zelo infatigável de Ulfilas, juntamente com sua vida irrepreensível, tinha ganhado o amor e confiança do povo. Eles receberam na fé as doutrinas do evangelho, que ele pregava e praticava: de modo que os primeiros invasores do império tinham previamente aprendido, em sua própria terra, a professar, ou ao menos respeitar, a religião dos conquistados. E aqui vemos a verdade, ou melhor, o cumprimento das palavras do Apóstolo em sua Epístola aos Romanos: "O evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego"; e depois: "Eu sou devedor, tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes." Os cidadãos cultos do Império Romano e os rudes habitantes da Cítia e da Germânia foram, do mesmo modo, colocados sob o poder salvador do evangelho. 

Reflexões sobre as Calamidades de Roma

O leitor cristão pode aqui achar proveitoso fazer uma pausa por um momento e contemplar a derrubada do império ocidental e a divisão de seu território entre as várias hordas de bárbaros. É nosso privilégio e para nossa edificação vermos, em tudo isso, o cumprimento e harmonia das Escrituras, a soberana providência de Deus, e o cumprimento de Seus propósitos. Podemos também nos permitir derramarmos lágrimas de compaixão pelas misérias de nossos iludidos semelhantes. Isso não seria nada mais do que a terna compaixão daquEle que chorou sobre a devota cidade de Jerusalém. É nosso dever estudarmos a história pela certeza da luz das Escrituras; se não for pelas Escrituras -- como tentam alguns -- será pela incerta luz da história. Assim podemos nos alegrar na presença de Deus com a página da história aberta diante de nós, e nossa fé fortalecida pelo poderoso contraste entre o reino de Deus e toda a glória terrena. "Por isso", diz o apóstolo, "tendo recebido um reino que não pode ser abalado, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus agradavelmente, com reverência e piedade" (Hebreus 12:28). A superioridade do cristianismo sobre as mais poderosas instituições pagãs foi então manifesta a todos. Quando os esmagadores juízos de Deus caíram sobre a Itália, quebrando em pedaços o cetro de ferro do império, a igreja não sofreu nenhum dano. Em vez de ser exposta ao perigo, ela foi bastante protegida, e usada como o meio para proteger outros. Como a arca que se ergueu sobre as tenebrosas águas do dilúvio, a igreja foi preservada da fúria do invasor. Não houve sinal de bárbaros abraçando a velha religião da Grécia e de Roma: ou eles aderiam às superstições de seus ancestrais, ou adotavam alguma forma de cristianismo. Não há um solo firme para o pecador em meio às convulsões da terra, as ascensões e quedas de impérios, além da Rocha Eterna, o Cristo de Deus ressuscitado e exaltado. "Bem-aventurados todos aqueles que nele confiam" (Salmos 2:12). O Senhor providenciou a segurança de Seu povo pela conversão prévia daqueles que subverteram o império.

Arcádio e Honório (395 d.C.)

Teodósio, o Grande, deixou dois filhos, Arcádio, com idade de dezoito anos, e Honório, que tinha apenas onze. O mais velho ficou com a soberania do Oriente, e o mais novo a do Ocidente. Nada pode ser mais impressionante do que a condição do mundo romano nesse momento, ou mais adequado para despertar nossa compaixão: dois imperadores de tal fraqueza a ponto de serem incapazes de conduzir a administração dos assuntos públicos, e todo o império em um estado de perigo e alarme por causa dos invasores góticos. A mão do Senhor é manifesta aqui. Onde está agora o gênio, a glória e o poder de Roma? Expiraram junto com Teodósio. Em um momento em que o império precisava de prudência, de habilidade marcial e dos talentos de um Constantino, ele foi declaradamente governado por dois príncipes imbecis. Mas seus dias estavam contados na providência de Deus, e deveriam passar muito rápido.

A mais feroz tempestade que já tinha assolado o império estava então pronta a irromper em sua hora de fraqueza. O competente general Flávio Stilicho (ou Stilico), a última esperança de Roma, foi assassinado logo após a morte de Teodósio, e toda a Itália caiu nas mãos dos bárbaros. Os godos tinham se rendido aos exércitos e especialmente à política de Teodósio, mas bastou as notícias de sua morte para que eles se erguessem em revolta e vingança. O famoso Alarico, o astuto e competente líder dos godos, apenas esperou para uma oportunidade favorável para levar adiante um esquema de maior magnitude e ousadia do que qualquer outro que tenha passado na mente de qualquer dos inimigos de Roma desde os tempos de Aníbal. Ele foi, sem dúvida, um ministro dos justos juízos de Deus sobre um povo tão manchado com o sangue de Seus santos, além de terem crucificado o Senhor da glória e matado Seus apóstolos. Deixaremos os detalhes com os historiadores do declínio e queda de Roma: mas podemos dizer brevemente que Alarico era então seguido não apenas pelos godos, mas também pelas tribos de quase todo nome e raça. A fúria do deserto seria então derramada sobre a amante e corrupta do mundo. Ele conduziu suas forças para a Grécia sem oposição; ele devastou sua terra frutífera e saqueou Atenas, Corinto, Argos e Esparta; e aquela que era impiamente chamada de "a cidade eterna" foi sitiada e saqueada. Por seis dias ela foi entregue ao abate sem remorsos e a todo tipo de pilhagem. Assim caiu a culpada e devota cidade pelo juízo de Deus: nenhuma mão se estendeu para ajudá-la: ninguém para lamentar seu destino. Também as províncias mais ricas da Europa, como a Itália, a Gália e a Espanha, foram devastadas pelos sucessores imediatos de Alarico, especialmente Átila, e novos reinos foram instituídos pelos bárbaros. Assim a história do quarto grande império mundial termina por volta do ano 478 d.C., 1229 anos ano após a fundação de Roma.

Teodorico, rei dos ostrogodos, um príncipe de igual excelência nas artes da guerra e no governo, restaurou uma era de paz e prosperidade, varreu todos os vestígios do governo imperial, e fez da Itália um reino.*

{* Enciclopédia Britânica, vol. 19, p. 420. Dezoito Séculos Cristãos, de White, p. 94.}

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