sábado, 10 de setembro de 2016

Qual é o Ensino de João 3:5?

Cremos que a expressão "nascer da água" não poderia, de forma alguma, se referir ao batismo. O novo nascimento é o tema do Salvador, sem o qual homem nenhum pode ver ou entrar no reino de Deus. Não havia ainda se tornado visível -- "o reino de Deus não vem com aparência exterior" (Lucas 17:20) -- mas estava lá entre eles, como a nova esfera de poder e bênção de Deus. A carne nunca poderia perceber esse reino. Cristo não tinha vindo para ensinar e melhorar a carne, como Nicodemos parece ter pensado; mas que o homem poderia ser participante da natureza divina que é transmitida pelo Espírito. Nenhum mero ritual exterior é capaz de admitir alguém ao reino. Deve haver uma nova natureza, ou uma nova vida, adequada à nova ordem de coisas. "Jesus respondeu, e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus" (João 3:3). Então o Senhor mostra a Nicodemos o único caminho para entrar no reino: "Aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus". A água é aqui usada como um símbolo do poder purificador da Palavra de Deus, como em Pedro: "Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade". Aqui, a verdade é mencionada como o instrumento, e o Espírito como o agente do novo nascimento, como ele continua dizendo: "Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus". Duas coisas são necessárias - a Palavra e o Espírito (1 Pedro 1:22,23).

A passagem obviamente indica a aplicação da Palavra de Deus no poder do Espírito -- operando no coração, consciência, pensamentos e ações -- nos trazendo, assim, uma nova vida de Deus, na qual temos Sua mente e Seus pensamentos sobre o reino. As seguintes passagens farão com que isto fique ainda mais claro: "Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade" (Tiago 1:18). "Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra" (Efésios 5:26). "Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado" (João 15:3). Aqui temos a purificação moral da alma pela aplicação da Palavra através do Espírito, que julga todas as coisas, e que opera em nós novos pensamentos e afeições adequados à presença e glória de Deus.

Como uma questão de interpretação, então, não vemos alusão alguma ao batismo em João 3:5: o batismo manifesta o que já foi transmitido, porém o batismo em si mesmo não transmite nada. Por outro lado -- de acordo com os comentários inspirados nas Epístolas -- o batismo é o sinal da morte, não de dar vida, como os "pais" uniformemente afirmavam. "Ou não sabeis", diz o apóstolo, "que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte" (Romanos 6:3-4, Colossenses 2, 1 Pedro 3). Além disso, é perfeitamente claro que Nicodemos não podia saber qualquer coisa sobre o batismo cristão, já que ele não foi instituído por nosso Senhor até depois de Ele ter ressuscitado dentre os mortos.

Reflexões sobre a História do Batismo Infantil

O suficiente, cremos, para o presente propósito, foi dito sobre o assunto do batismo infantil. O leitor tem diante de si o testemunho das mais confiáveis testemunhas para os primeiros duzentos anos de sua história. A prática parece ter tomado sua ascensão e derivado toda a sua incrível influência com base na interpretação errônea de João 3:5: "Aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus". Argumentava-se, a partir desta passagem, que o batismo era necessário para a salvação e todas as bênçãos da graça. A eficácia do sangue de Cristo, o poder purificador da palavra de Deus, e as operações graciosas do Espírito Santo, foram todas atribuídas à devida observância do batismo externo. E não é preciso muito esforço para perceber o lugar que isso tomou na igreja professa nesses últimos 1600 anos*, ou para perceber sua influência em todas as classes e épocas, embora muitos não cressem na regeneração batismal.

{* N. do T.: o livro foi escrito no século XIX}

Dr. Wall afirma que os antigos cristãos, sem exceção de um homem sequer, ensinavam que essas palavras do Salvador se referiam ao batismo. Ele acredita que Calvino foi o primeiro homem a se opôr a essa interpretação, ou o primeiro a se recusar a aceitar a passagem como um ensino da necessidade do batismo para a salvação. Supondo que essas afirmações estejam corretas, elas provam que a grande estrutura eclesiástica que se ergueu sobre o batismo foi fundada sobre uma má interpretação. A igreja de Roma, os luteranos, os gregos, os anglicanos, continuam a seguir os "pais" nesta aplicação errada da verdade. "Devemos então", diz Hooker, referindo-se à nova interpretação de Calvino sobre João 3:5, "considerar que aquilo que sempre foi interpretado de uma determinada maneira e não de outra, seja agora aceito sob o disfarce de uma capa de novidade? Deus adotou o batismo, não apenas como um símbolo ou emblema do que recebemos, mas também como um instrumento ou meio pelo qual recebemos a graça". O bispo Burnet também observa, falando dos tempos antigos: "As palavras do nosso Salvador a Nicodemos foram expostas de modo a dar a entender a absoluta necessidade do batismo para a salvação. Essas palavras 'o reino de Deus', tomadas com o significado de glória eterna, essa expressão de nosso Salvador era entendida como querendo dizer que nenhum homem podia ser salvo a menos que fosse batizado", etc.* Calvino ensinava que os benefícios do batismo eram limitados aos filhos dos eleitos, e assim introduzia-se a ideia do cristianismo hereditário. Os presbiterianos seguem Calvino e, como consequência de seu ensinamento, a circuncisão se torna tanto a justificativa como a regra para o batismo infantil. Mas alguns de nossos leitores podem estar ansiosos por saber o que acreditamos ser a verdadeira interpretação de João 3:5, visto que tanta coisa é construída encima deste versículo.

{* Política Eclesiástica, de Hooker, livro 5. Burnet em Artigos, artigo 27.}

domingo, 4 de setembro de 2016

As Variações Eclesiásticas do Batismo

No Novo Testamento há perfeita uniformidade, tanto quanto ao preceito quanto aos exemplos, sobre o assunto do batismo. No entanto, em nossos próprios dias, e desde o início do terceiro século, encontramos na igreja professa infinitas variações tanto quanto o que diz respeito à teoria quanto à prática sobre esse importante assunto. Aqueles não familiarizados com a história eclesiástica podem naturalmente perguntar: Quando, e por quais meios, tais diferenças surgiram na igreja?

Como tem sido nosso plano, no decorrer de todo este livro, encontrar o início das grandes questões que têm afetado a paz e prosperidade da igreja, nos esforçaremos, bem brevemente, a apontar o início da história dos batismos eclesiásticos. Usamos o termo eclesiástico para distingui-lo do que é bíblico. Nada que tenha sido introduzido após os dias dos apóstolos inspirados provém de autoridade divina, seja em teoria ou prática. Assim, algo não pode ser o batismo cristão se varia daquilo que Cristo instituiu ou da prática de Seus apóstolos. Trazer alterações é o mesmo que mudar a coisa em si, e torná-la não o mesmo, mas um outro batismo; assim encontramos, na história, que surgiram muitos batismos.

Como nosso objeto de estudo, agora, é o início da história dessas variações, e não a controvérsia, evitaremos dar qualquer opinião sobre a tão longamente agitada questão. Por mais de 1600 anos a controvérsia tem sido mantida com grande determinação, e por homens capazes de ambos os lados. Nenhuma controvérsia na história da igreja tem tido tal continuidade, ou conduzida com tal confiança de vitória por ambas as partes. Como não há menção expressa de batismo infantil nas Escrituras, os batistas pensam que sua posição é inquestionável; e os pedobatistas, com a mesma firmeza acreditam que pode ser inferido, a partir de várias passagens conhecidas, que o batismo infantil era praticado nos dias dos apóstolos. Não houve tanta controvérsia quanto ao modo do batismo. Os gregos, latinos, francos e germânicos aparentemente batizavam por imersão. "Batismo é uma palavra grega", diz Lutero, "e em Latim pode ser traduzida como mersio, imersão; ... e embora essa prática tenha caído em desuso entre a maioria de nós, contudo, os que são batizados deveriam ser inteiramente imergidos, e então imediatamente levantados para fora da água, pois é isto que a etimologia da palavra indica, assim como na língua germânica". O testemunho e Neander é o mesmo: "O batismo era originalmente administrado por imersão; e muitas das comparações de São Paulo aludem a essa forma de administração. A imersão é um símbolo da morte, de ser sepultado com Cristo; a saída da água é um símbolo da ressurreição com Cristo; e ambos, tomados em conjunto, representam o segundo nascimento, a morte do velho homem, e uma ressurreição para uma nova vida"*. Cave, Tillotson, Waddington, etc. falam do modo de batismo de maneira similar. E como todos esses testemunhos são de pedobatistas, podemos descartar esta parte do assunto como justamente provada na história da igreja; no entanto, a fé deve permanecer somente sobre a Palavra de Deus. Não seguimos os "pais", mas sim a Cristo.

{* The Inquirer, 1839, p. 232}

Irineu, bispo de Lion, é o primeiros dos "pais" a aludirem ao batismo infantil. Ele morreu por volta do ano 200, de modo que seus escritos são datados por volta do fim do segundo século. Os "pais" apostólicos nunca mencionaram isso. Por essa época a superstição, em grande medida, tinha tomado o lugar da fé, de modo que o leitor deve estar preparado a ouvir algumas noções extravagantes colocadas por alguns dos grandes doutores; ainda assim, muitos deles, sem dúvidas, eram verdadeiro cristãos fervorosos. "Cristo veio salvar todas as pessoas para Si mesmo", diz Irineu, "com isso quero dizer que todos os que, por Ele, forem regenerados -- batizados -- para Deus: infantes e pequeninos, crianças e jovens, e pessoas mais velhas. Portanto Ele passou por várias idades: para os infantes ele foi feito um infante, santificando infantes; para os pequeninos Ele foi feito um pequenino, santificando os dessa idade; e também dando-lhes um exemplo de piedade, justiça e obediência: para os jovens Ele foi um jovem", etc. O batismo era, portanto, ensinado como sendo uma lustração da alma para todas as idades e condições da humanidade. Mas a controvérsia logo se resumiu em uma questão -- criança ou adulto. Regeneração, nascer de novo, batismo, eram usados como termos intercambiáveis, como se significassem a mesma coisa, nos escritos dos "pais".*

{* Veja História do Batismo Infantil, de Dr. Wall. Nós citamos sua tradução (para o Inglês) dos "pais". Tendo recebido os agradecimentos do clero da Câmara dos Comuns, da Convocação, e as honras de D. D. da Universidade de Oxford, por sua grande obra em defesa do batismo infantil, podemos confiar em suas citações como essencialmente corretas, e como as mais favoráveis em relação ao tema.}

Aqui temos a origem, até onde a antiguidade eclesiástica nos informa, do batismo infantil. A passagem é um tanto obscura e extremamente fantasiosa, mas é o primeiro traço que temos da questão ainda instável, e provavelmente a raiz de todas as suas variações vistas eclesiasticamente. O efeito de tal ensino nas mentes supersticiosas foi imenso. Pais ansiosos apressaram-se para ter seus delicados bebês batizados para que não morressem sob a maldição do pecado original, e o homem do mundo atrasava seu batismo até a aproximação da morte para evitar qualquer mancha subsequente, e para que pudesse emergir das águas da regeneração para os recintos da pura e genuína bem-aventurança. O exemplo e reputação de Constantino levou muitos a adiar, desse modo, o batismo, embora o clero testificava ser contra a prática.

Tertuliano. O testemunho deste "pai" prova que os bebês eram batizados em seus dias -- ele morreu por volta de 240 -- mas que ele não era favorável à prática: como ele diz, "Mas aqueles cujo dever é administrar o batismo devem saber que ele não deve ser dado precipitadamente... Portanto, de acordo com a condição e disposição de cada homem, e também de acordo com sua idade, o adiamento do batismo é mais proveitoso, especialmente no caso de crianças pequenas. Pois qual a necessidade de colocar os padrinhos em perigo? pois podem falhar em suas promessas por causa da morte, ou podem estar enganados se uma criança se provar ser de disposição ímpia."

Orígenes, ao discorrer sobre o pecado da nossa natureza, faz alusão ao batismo como o meio indicado de removê-lo. "Os bebês são batizados", diz ele, "para o perdão dos pecados. De que pecados? Ou quando eles pecaram? Ou como pode, nesse caso, o batistério suprir qualquer bem que seja? Mas de acordo com o sentido que mencionamos agora: ninguém é livre da poluição, mesmo que sua vida tenha durado apenas um dia sobre a terra. E é por este motivo, porque pelo sacramento do batismo a poluição que temos de nascença é levada embora, que os bebês são batizados."

Cipriano, bispo de Cartago, por volta do ano 253, recebeu uma carta de Fido, um bispo do interior, perguntando se um bebê, antes dos oito dias de idade, podia ser batizado se necessário. A resposta prova, não apenas que o batismo infantil era então praticado, mas a necessidade disto na mente deles por causa de sua eficácia. Cipriano, com sessenta e seis bispos em concílio, diz: "Quanto ao caso dos bebês, visto que você julga que eles não devem ser batizados dentro de dois ou três dias após terem nascido, e que a regra da circuncisão deve ser observada, de modo que ninguém deve ser batizado e santificado antes do oitavo dia após ter nascido: todos nós em assembleia fomos de opinião contrária. Seja o que for que você pensa adequado de se fazer, não houve nenhum dentre nós que tivesse a mesma ideia, mas todos nós, pelo contrário, julgamos que a graça e misericórdia de Deus não deve ser negada a qualquer pessoa nascida. Pois já que o nosso Senhor em Seu evangelho diz 'o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las', então no que depender de nós, nenhuma alma, se possível, será perdida", etc.

Gregório Nazianzeno
, bispo de Constantinopla, foi um "pai" notável por volta do ano 380. Ele foi o meio de destruir o poder do arianismo na capital oriental, onde tinha sido mantido com grande força por quase quarenta anos. Ele teve de encontrar muita oposição e até mesmo perseguição no início; mas aos poucos sua eloquência, o tom prático e sério de seu ensino, e a influência de sua vida piedosa começaram a dar resultado e a mantê-lo firme na cidade, embora nunca tenha gostado do estilo imperial da capital.

Dr. Wall cita Gregório largamente sobre o batismo, mas nossos extratos serão breves. Como o restante dos "pais", ele é enfático sobre o assunto. "O que você diz sobre aqueles que ainda são crianças e não têm capacidade de serem sensíveis, seja da graça ou da falta dela? Devemos batizá-las também? Sim, por todos os meios, se qualquer perigo torná-lo necessário. Pois é melhor que elas sejam santificadas sem terem consciência disso do que morrerem não seladas e não iniciadas. E uma base para isto, para nós, é a circuncisão, que era feita no oitavo dia e era um típico selo, e era praticada naqueles que não tinham o uso da razão". Contra a prática de adiar o batismo até um leito de morte, ele fala forte e seriamente, comparando o serviço à lavagem de um cadáver, em vez de um batismo cristão.

Basílio
, bispo de Cesareia, é constantemente associado com os dois Gregórios. Gregório de Nissa era seu irmão, e o outro seu melhor amigo. A Capadócia gerou três "pais". Basílio era fiel ao credo de Atanásio durante seus dias de depressão e adversidade, mas não viveu para contemplar seu triunfo final. Ele morreu por volta de 379. Ele foi um grande admirador e um verdadeiro exemplo do cristianismo monástico. Ele abraçou a fé ascética, abandonou sua propriedade e praticou tamanhas austeridades severas a ponto de prejudicar sua saúde. Ele fugiu para o deserto, mas sua fama fez com que uma cidade fosse construída ao redor dele, e construiu um monastério, e então os monastérios surgiram por todos os lados.

Suas visões sobre o batismo são similares às de seu amigo Gregório: ele exorta a necessidade disto com base no mesmo sentimento supersticioso que todos eles tinham. "Se Israel não tivesse passado através do mar", diz ele, "eles não teriam se livrado de Faraó: e a menos que tu passes através das águas do batismo, não te livrarás da cruel tirania do diabo", etc. Ele aplicava isto a todas as idades, e o reforçava pelas palavras do Senhor a Nicodemos: "Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus." (João 3:5)

Ambrósio, bispo de Milão, como todos os "pais" que já conhecemos, se engana completamente quanto ao significado de João 3:5: "Aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus". "Você vê", diz ele, "que Cristo não excetua pessoa nenhuma, nem um bebê, nem mesmo aquele que é morto por um acidente inevitável."

João, apelidado Crisóstomo, que significa "boca dourada", obteve esse nome por conta de sua eloquência suave e fluída. Ele era tão favorito do povo que eles costumavam dizer: "Nós preferimos que o sol não brilhe a João não pregar". Ele era evidentemente a favor do batismo infantil, embora não seja claro se acreditava no pecado original. "Por este motivo também batizamos bebês", diz ele, "embora eles não estejam corrompidos pelo pecado, para que possa ser acrescentadas a eles a santidade, a justiça, a herança de adoção, uma fraternidade com Cristo e para que sejam feitos membros com Ele". Seria difícil falar mais quanto aos alegados benefícios do batismo além dos que vemos aqui enumerados. Mas por mais extravagante que toda a sentença possa parecer, esse era o texto dos pedobatistas desde aqueles dias até hoje. A maioria dos nossos leitores são familiares a essas palavras: "O batismo é onde eu sou feito um membro de Cristo, um filho de Deus, e um herdeiro do reino dos céus". Tais palavras foram tiradas não das Escrituras, mas de Crisóstomo.

Dr. Wall parece ansioso por deixar transparecer que esse grande doutor [Crisóstomo] não estava alienado quanto ao pecado original. Ele sugere que o significado de suas palavras possam ser: "eles não se corromperam pelos seus próprios pecados". Mas Crisóstomo não diz "seus próprios", mas que eles não estão corrompidos pelo pecado. E certamente toda criança é corrompida, como disse o salmista: "Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe" (Salmos 51:5). Em vão procuramos solidez em muitas das doutrinas fundamentais do cristianismo entre os "pais", para não dizer sobre o que eles negligenciaram, tal como a presença do Espírito Santo na assembleia, o chamado celestial e as relações celestiais da igreja, a diferença entre a casa de Deus e o corpo de Cristo, a bendita esperança, e o glorioso aparecimento do grande Deus e nosso Salvador Jesus Cristo (Tito 2:11-15).

A História Interna da Igreja

Capítulo 12: A História Interna da Igreja (245 - 451 d.C.)


O século que termina com a morte do grande Teodósio e Ambrósio foi cheio do mais profundo interesse para o leitor cristão. Passaram-se eventos, dentre os mais momentosos, que afetaram a majestade e glória de Deus e o bem-estar da humanidade. Do ano 303 até 313, a igreja passou através de suas provações mais difíceis sob Diocleciano. Por dez anos ela esteve em uma fornalha ardente, mas em vez de ser consumida, como seu inimigo em vão imaginara, ela parece ter aumentado em número assim como em pureza e poder. A Satanás foi permitido fazer o que queria contra ela, e ele moveu e agitou tanto a população pagã que em todas as partes do império eles ergueram seus braços: primeiro, para defender o politeísmo, e, segundo, para erradicar o cristianismo ao perseguir os cristãos e destruir seus livros sagrados. Assim, o século começou com o grande e final embate entre o paganismo e o cristianismo, e terminou com a total ruína do primeiro, e o completo triunfo do último. A disputa terminou com o quarto século, e a vitória descansou sobre o cristianismo desde então.

Tal foi a história exterior da igreja, e o cumprimento, até então, da palavra do Senhor nas epístolas a Esmirna e Pérgamo. Mas há outras coisas que muito razoavelmente demandam um pouco de nossa atenção antes de entrarmos no quinto século, e nenhuma parte do amplo campo que se estende diante de nós parece ter uma importância tão forte quanto a esfera e influência dos grandes prelados do Oriente e do Ocidente. Deve também ter ocorrido aos nossos leitores, a partir das necessárias alusões ao batismo, que a observância desse rito tinha um imenso lugar nas mentes daqueles primeiros cristãos. Eles acreditavam que as águas do batismo purificavam a alma completamente. Pensamos, então, em combinar os dois -- daremos uma breve história do batismo a partir dos escritos dos "pais", o que, ao mesmo tempo, nos dará uma oportunidade de vermos quais visões eles tinham, não apenas sobre o batismo, mas sobre as verdades fundamentais do evangelho.

domingo, 28 de agosto de 2016

Reflexões sobre a Disciplina de Ambrósio e a Penitência de Teodósio

Há poucos eventos nos anais da igreja tão profundamente interessantes quanto a penitência do grande Teodósio, e as rigorosas condições de restauração exigidas por Ambrósio. Despojados das superstições e formalidades que eram peculiares àqueles tempos, temos diante de nós um caso da mais genuína e salutar disciplina. Não devemos supor nem por um instante que o comportamento de Teodósio foi o resultado de fraqueza e pusilanimidade*, mas de um verdadeiro temor de Deus; um verdadeiro sentimento de sua culpa, uma consciência sensível, um reconhecimento das exigências de Deus, a quem toda a grandeza mundana está sujeita.

{*N. do T.: pusilanimidade é fraqueza de ânimo, falta de energia, de firmeza, de decisão.}

Ambrósio não era nem arrogante nem hipócrita, como muitos pontífices que o sucederam. Ele possuía uma forte afeição pelo imperador, e uma sincera preocupação por sua alma, mas agiu em relação a ele com um solene senso de seu dever. Ele tinha uma grande ideia, sem dúvida, sobre a dignidade com que seu ofício o investiu; e ele se sentia obrigado a usá-la em prol da justiça e humanidade, e para controlar o poder da soberania terrena: uma classe de poder muito certamente nunca concedida por Deus a um ministro cristão, e que frequentemente provou ser, em tempos mais recentes, um poder muito perigoso, uma vez que o sacerdote que possui em suas mãos a consciência de um rei pode inflamar ou moderar suas paixões sanguinárias. No caso de Ambrósio, tratava-se puramente de influência cristã. Ele apareceu, embora um pouco fora de sua atribuição, como o vingador dos ultrajados, e exercendo  uma autoridade judicial sobre os mais mesquinhos e poderosos dentre os homens. Mas é sempre desastroso interferir com a ordem estabelecida por Deus, mesmo quando nobres objetivos pareçam ter sido alcançados.

Cerca de quatro meses após sua vitória sobre Eugênio, e o castigo dos assassinos de Valentiniano, Teodósio, o Grande, morreu em Milão, no ano de 395, não passando dos cinquenta anos de idade; o último imperador que manteve a dignidade do nome romano. Ambrósio não viveu muito após a morte de seu amigo imperial. Ele morreu em Milão na véspera da Páscoa, em 397. Ele aprofundou e fortaleceu as bases do poder eclesiástico que influenciaria o cristianismo em todos os tempos futuros. Basílio, os dois Gregórios, e Crisóstomo floresceram neste período.

O Pecado e o Arrependimento de Teodósio

A história do tumulto e massacre em Tessalônica, no ano de 390, grava linhas ainda mais profundas sobre o caráter de Teodósio. Ao estudarmos esse período de sua vida, lembramos de Davi, o rei de Israel. Neste triste caso o inimigo ganhou uma grande vantagem sobre o imperador cristão; mas Deus fez com que esses atos se tornassem na mais profunda bênção para sua alma.

Botérico, comandante-chefe do distrito, e vários de seus principais oficiais, foram mortos pelo populacho em uma corrida de carruagem. Um dos cocheiros favoritos tinha sido lançado na prisão por um crime notório e, consequentemente, estava ausente no dia dos jogos. O populacho injustificadamente exigiu sua liberdade. Botérico recusou, e assim o tumulto começou e seguiram-se as terríveis consequências. A notícia exasperou o imperador, que ordenou a liberação da espada sobre todos. Ambrósio intercedeu, e Teodósio prometeu perdoar os tessalonicenses. Seus conselheiros militares, no entanto, artisticamente insistiram no caráter hediondo do crime, e obtiveram uma ordem para punir os ofensores, o que foi cuidadosamente guardado em segredo do bispo. Os soldados atacaram o povo indiscriminadamente quando reunidos no circo, e milhares foram mortos para vingar a morte de seus oficiais.

A mente de Ambrósio se encheu de horror e angústia ao ouvir sobre o massacre. Como servo de Deus, ele se separa do mal, até mesmo da presença de seu mestre imperial. Ele retirou-se para o interior do país para curar sua dor, e para evitar a presença do imperador. Mas escreveu uma carta, na qual expunha da maneira mais solene a profunda culpa do imperador; assegurando que não o permitiria entrar na "igreja" (N. do T.: templo) de Milão até estar convencido da autenticidade de seu arrependimento. O imperador, neste tempo, estava profundamente afetado pelas reprovações de sua própria consciência e de seu pai espiritual. Ele amargamente lamentou as consequências de sua irrefletida fúria ao substituir a justiça pela barbárie, e procedeu a exercer suas devoções na igreja de Milão. Mas Ambrósio o encontrou no alpendre, e, lançando mão de seu manto, pediu-lhe que se retirasse, como um homem manchado com sangue inocente. O imperador assegurou Ambrósio sobre sua contrição, que lhe respondeu que remorsos privados eram insuficientes para expiar ofensas públicas. O imperador mencionou Davi, um homem segundo o coração de Deus. "Você o imitou nesse crime, então imite-o em seu arrependimento", foi a resposta destemida do bispo.

O imperador se submeteu ao sacerdote. Por oito meses, ele permaneceu em reclusão penitencial, deixando de lado todos os seus ornamentos imperiais, até que na época do Natal ele se apresentou perante o arcebispo, e humildemente rogou pela readmissão à igreja. "Eu choro", disse ele, "pois o templo de Deus, e consequentemente o céu, está fechado para mim, e está aberto para escravos e mendigos". Ambrósio ficou firme, e solicitou algum fruto prático de seu arrependimento. Ele exigiu que, no futuro, a execução da pena de morte fosse adiada até trinta dias após a sentença, de modo que os efeitos nocivos da raiva descontrolada pudessem ser prevenidos. O imperador concordou prontamente, e foi então permitido a entrar na "igreja" (N. do T.: templo). A cena que se seguiu foi comovente. O imperador, tirando suas vestes imperiais, orou prostrado no chão. "A minha alma se apega ao pó", gritou ele, "vivifica-me segundo a Tua palavra". O povo chorou e orou por ele, comovidos por sua dor e humilhação.

Ambrósio menciona, em sua oração fúnebre, que desde o tempo da profunda angústia do imperador, ele nunca passou um dia sem levar à mente o crime no qual ele tinha sido traído por sua grande falha -- uma fraqueza de temperamento.

As Falhas e Virtudes de Teodósio

O defeito mais proeminente no caráter de Teodósio era uma propensão à raiva violenta. Ainda assim, ele conseguia se acalmar e se tornar bastante misericordioso após uma grande provocação, se fosse adequadamente abordado. Temos um exemplo notável disso em seu perdão ao povo da Antioquia. Aconteceu desta forma:

No ano 387, os habitantes se tornaram impacientes por conta de um imposto que o imperador cobrou deles. Como eles tinham sido tratados com arrogância pelos governadores, a quem eles tinham respeitosamente solicitado alívio, um grande tumulto se ergueu na cidade. As estátuas da família imperial foram derrubadas e tratadas com desprezo. No entanto, quando uma companhia de soldados apareceu imediatamente, a sedição foi suprimida. O governador da província, de acordo com o dever de seu ofício, enviou uma fiel narrativa de todo o ocorrido ao imperador. No entanto, como havia 800 milhas de distância entre Antioquia e Constantinopla, deve ter demorado semanas para que uma resposta fosse recebida. Isto deu tempo para que os antíoques refletissem sobre a natureza e consequência de seus crimes. Eles ficaram muito e constantemente agitados com esperanças e medos, como pode se supor. Eles sabiam que seu crime era sério, mas eles tinham confessado isso a Flaviano, o bispo deles, e a outras pessoas influentes, com total garantia de arrependimento genuíno. Finalmente, vinte e quatro dias após a sedição, os comissários imperiais chegaram, trazendo a vontade do imperador, e a sentença de Antioquia. O seguinte mandato imperial  mostrará ao leitor como as coisas dependiam muito da vontade ou paciência de um único homem naqueles tempos.

Antioquia, a metrópole do Oriente, foi rebaixada da condição de cidade; despojada de suas terras, seus privilégios e seus proventos, ela foi subjugada, sob a humilhante denominação de vila, à jurisdição de Laodiceia. Os banhos, o circo e os teatros foram fechados, e, para que qualquer fonte de abundância e prazer pudesse ser interceptada, a distribuição de milho foi abolida. Os comissários então passaram a investigar a culpa dos indivíduos. O mais nobre e rico dos cidadãos da Antioquia foi trazido perante eles acorrentado. O exame foi assistido pelo uso de tortura, e a sentença deles foi pronunciada, ou suspendida, de acordo com o julgamento daqueles extraordinários magistrados. As casas dos criminosos foram postas à venda, suas esposas e crianças subitamente perderam suas riquezas e luxo e foram lançadas na mais abjeta miséria; e uma sangrenta execução podia ser esperada para fechar os horrores daquele dia, que o eloquente Crisóstomo descreveu como uma imagem viva do juízo final do mundo. Mas Deus, que possui os corações de todos os homens em Suas mãos, e em lembrança ao que Antioquia tinha sido nos primeiros dias do cristianismo, moveu os ministros de Teodósio à piedade. Dizem que eles derramaram lágrimas sobre as calamidades do povo, e que ouviram com reverência às solicitações prementes dos monges e eremitas, que desceram em enxames das montanhas. A execução da sentença foi suspensa, e foi acordado que um dos comissários permanecessem em Antioquia enquanto os outros retornassem o mais rápido possível a Constantinopla.

A raiva exasperada de Teodósio tinha arrefecido. Os representantes do aflito povo obtiveram uma audiência favorável. A mão do Senhor estava nisso: Ele tinha ouvido o clamor deles. A graça triunfou em Teodósio. Um perdão livre e geral foi concedido à cidade e aos cidadãos da Antioquia; as portas da prisão foram abertas; os senadores, que tinham perdido as esperanças, recuperaram a posse de suas casas e propriedades; e a capital do Oriente foi restaurada para o gozo de sua antiga dignidade e esplendor. Teodósio condescendeu em elogiar e recompensar o bispo de Antioquia e outros que tinham generosamente intercedido por seus aflitos irmãos; e confessou que, se o exercício da justiça de um soberano é o dever mais importante, a indulgência da misericórdia é o prazer mais requintado.*

{* História do Cristianismo de Milman, vol. 3, p. 140; História da Igreja de Robertson, vol. 1, p. 242; História da Igreja de Milner, vol. 2, p. 28}

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