domingo, 16 de outubro de 2022

O Ano Dourado

É difícil calcular com precisão os números, mas asseguram-nos os que assistiram à cerimónia, que sempre estiveram presentes na cidade cerca de duzentas mil pessoas, e que a quantidade total no ano foi fixada em dois milhões. A riqueza que fluiu desse jubileu para os cofres papais foi enorme. Supondo que cada indivíduo desse apenas uma pequena soma, que tesouro real deve ter sido coletado! As ofertas se empilhavam nos altares. Foi chamado pelos romanos de Ano Dourado. Uma testemunha ocular nos diz que viu dois sacerdotes com ancinhos nas mãos, ocupados dia e noite em varrer, sem contar, os montes de ouro e prata que foram colocados sobre os túmulos dos apóstolos. E esse tributo nem mesmo era dedicado a usos especiais, como provisões ou carregamentos para os exércitos -- como eram as ofertas ou subsídios para as cruzadas --, mas estava inteiramente à disposição livre e irresponsável do papa. Ainda assim, dos benefícios dessa indulgência deveriam ser excluídos os inimigos da igreja, ou melhor, os inimigos de Bonifácio. 

A Cristandade, com exceção de alguns notáveis rebeldes contra a Sé de Roma, havia recebido agora o dom do perdão e da vida eterna e, em troca, por sua própria vontade, amontoou aos pés do papa essa extraordinária riqueza. As autoridades haviam tomado medidas sábias e eficazes contra a fome para essas multidões acumuladas, mas muitos foram pisoteados e morreram sufocados. 

O experimento superou em muito as expectativas do papa e de seus partidários. Bonifácio havia proposto que o Jubileu fosse celebrado a cada cem anos, mas as vantagens para a igreja eram tão grandes que o intervalo acabou sendo naturalmente considerado muito longo. O Papa Clemente VI, portanto, repetiu o Jubileu em 1350, atraindo vastas multidões de peregrinos a Roma, e uma riqueza incrível. Os números eram quase tão grandes quanto em 1300. As ruas que levavam às igrejas que deveriam ser visitadas – de São Pedro, de São Paulo e de São João de Latrão -- ficaram tão cheias que não permitiam movimento, exceto com o fluxo das multidões. Preços altos eram cobrados pelos romanos por comida e hospedagem, muitos tinham que passar a noite nas igrejas e ruas, e não poucos dos pobres peregrinos iludidos pereceram. O Papa Urbano VI, em 1389, reduziu o intervalo para trinta e três anos, a suposta duração a que se estendia a vida de nosso Senhor na terra. Finalmente, o Papa Paulo II, em 1475, estabeleceu que a festa do Jubileu deveria ser celebrada a cada vinte e cinco anos, que continua até hoje a ser o intervalo em que se celebra a grande festa. 

Com as grandes imposturas religiosas da Idade das Trevas, e com o pecado de iludir um povo crédulo, já nos tornamos familiares; mas é verdadeiramente desolador descobrir que tais blasfêmias são cridas e praticadas em nossos dias, não obstante o estado de educação e o número de testemunhas da verdade da Palavra de Deus e da obra consumada de Cristo. O seguinte extrato de uma bula que foi emitida pelo papa em 1824, nomeando o Jubileu para o ano seguinte, explicará o que queremos dizer*.  

"Resolvemos, em virtude da autoridade que nos foi dada do céu, abrir totalmente esse tesouro sagrado composto dos méritos, sofrimentos e virtudes de Cristo nosso Senhor, e de sua virgem mãe, e de todos os santos que o Autor da salvação humana confiou à nossa dispensação. Portanto, a vós, veneráveis irmãos, patriarcas, primazes, arcebispos, bispos, cabe explicar com perspicuidade o poder das indulgências; qual é a sua eficácia na remissão, não só da penitência canônica, mas também do castigo temporal devido à justiça divina pelos pecados passados; e que socorro é proporcionado deste tesouro celestial, dos méritos de Cristo e Seus santos, para aqueles que partiram verdadeiros penitentes no amor de Deus, mas antes que eles foram devidamente satisfeitos por frutos dignos de penitência, pelos pecados de omissão e comissão, e que agora estão se purificando no fogo do purgatório.”** 

{* O autor viveu no século XIX.} 

{** Faiths of the World, de Gardner, vol. 2, pág. 252.}  

O Primeiro Jubileu Papal

Capítulo 34: Lutero: A Reforma na Alemanha (1517-1521 d.C.)

A avareza do clero romano e a superstição do povo foram grandemente excitadas pelas Cruzadas. Por duzentos anos, elas foram a fonte de enorme riqueza e poder para a igreja, e de incalculável miséria, ruína e degradação para as nações da Europa. Nessas chamadas guerras santas, cerca de seis milhões de europeus morreram e cerca de duzentos milhões de dinheiro foram gastos; além disso, a propriedade de um cruzado era comumente colocada, durante a expedição, sob a proteção do bispo e, no caso de sua morte -- o que geralmente acontecia -- ficava em suas mãos. Mas felizmente aquilo que "está singularmente marcado no templo da história como um monumento do absurdo humano, de uma paixão unânime", chegou ao fim no final do século XIII. 

No ano de 1291, o Acre, o último posto militar ocupado pelos cristãos na Palestina, caiu nas mãos dos turcos. Os incrédulos ficaram então de posse do sepulcro de Cristo e de todos os lugares santos e objetos de peregrinação. Assim terminou o grande esquema papal e a alardeada glória das Cruzadas à Terra Santa. 

Duas questões graves surgiram então: Como o tesouro papal deveria ser nutrido e como o desejo do povo por indulgências deveria ser satisfeito? O papa quer dinheiro, o povo quer que seus pecados sejam perdoados e está disposto a pagar por isso. Para atender a esses dois importantes objetivos, o papa descobriu um novo e mais bem-sucedido caminho. “Chegamos ao último ano do século XIII”, disse o Papa Bonifácio, “que o primeiro ano do décimo quarto século seja ano de jubileu”. A Palestina estava irremediavelmente perdida; a cruz e o sepulcro do Salvador estavam nas mãos dos sarracenos; mas a cidade santa de Roma e os túmulos dos apóstolos estavam abertos aos peregrinos. Ao mudar habilmente o local de peregrinação de Jerusalém para Roma, o fim desejado foi alcançado. Nunca a superstição obteve tanto sucesso. 

Em 22 de fevereiro de 1299, foi emitida uma bula, prometendo indulgências de extraordinária plenitude a todos que, no ano seguinte, com a devida penitência e devoção, visitassem os túmulos de São Pedro e São Paulo -- os romanos uma vez por dia, por trinta dias sucessivos, e os estrangeiros por quinze. A bula foi imediatamente promulgada em toda a Cristandade. Afirmava que todos os que confessassem e lamentassem seus pecados, e fizessem devotamente uma peregrinação ao túmulo do "chefe dos apóstolos", receberiam uma indulgência plenária; ou, em outras palavras, uma remissão completa de todos os pecados, passados, presentes e futuros. Uma indulgência desse tipo até então estava limitada aos cruzados; a consequência foi que toda a Europa entrou em um frenesi de excitação religiosa. Multidões de todas as partes apressaram-se a Roma. O som de boas-vindas do Jubileu atraiu toda a Cristandade ocidental para esta vasta e pacífica cruzada. "Durante todo o ano, as estradas nas partes mais remotas da Alemanha, Hungria e Grã-Bretanha estavam cheias de peregrinos de todas as idades, de ambos os sexos, que procuravam expiar seus pecados, não por uma peregrinação armada e perigosa a Jerusalém, mas por uma menos dispendiosa, e menos perigosa, viagem a Roma."  

domingo, 9 de outubro de 2022

Sumário

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Sumário:


Prefácio
Capítulo 1 - Verdades Fundamentais
Capítulo 2 - De Pentecostes ao Martírio de Estêvão
Capítulo 3 - De Estêvão ao Apostolado de Paulo
Capítulo 4 - Os Apóstolos e os Pioneiros
Capítulo 5 - As Duas Primeiras Viagens de Paulo
Capítulo 6 - A Terceira Viagem de Paulo
Capítulo 7: Roma e seus Governantes (64 d.C. - 177 d.C.)
Capítulo 8: A História Interna da Igreja (107 d.C. - 245 d.C.)
Capítulo 9: Roma e seus Governantes (180 d.C. - 313 d.C.)
 Capítulo 10: O Período de Pérgamo (313 d.C. - 606 d.C.)
Capítulo 11: Roma e seus Governantes (313 d.C. - 397 d.C.)
Capítulo 12: A História Interna da Igreja (245 - 451 d.C.) 
 Capítulo 13: Roma e a Expansão de Sua Influência (397 - 590 d.C.)
Capitulo 14: Europa (372 d.C. - 814 d.C.)
Capítulo 15: Islamismo - Iconoclastia (569 - 741 d.C.)
Capítulo 16: Europa (653 d.C. - 855 d.C.)
Capítulo 17: Europa (814 d.C. - 1000 d.C.)
Capítulo 18: Europa (1000 d.C. - 1110 d.C.)
Capítulo 19: O Papa Gregório VII (1049 - 1085 d.C.) 
Capítulo 20: As Cruzadas (1093 - 1213 d.C.)
Capítulo 21: Roma (1106 - 1190 d.C.)
Capítulo 22: Inglaterra (1162 - 1174 d.C.)
Capítulo 23: A Teologia de Roma
Capítulo 25: França (814-1229 d.C.)
Capítulo 26: A Ordem Monástica (480-1275 d.C.)
Capítulo 27: O Amanhecer da Reforma (1155-1386 d.C.)
  • Em breve...

Lutero visita Roma

Tendo surgido algumas disputas entre o vigário-geral e vários dos mosteiros agostinianos, Lutero foi escolhido como uma pessoa apta para representar todo o assunto perante Sua Santidade em Roma. Era necessário, na sabedoria de Deus, que Lutero conhecesse Roma. Como monge no norte, ele só pensava no papa como o pai santíssimo e em Roma como a cidade dos santos; e esses preconceitos e ilusões só podiam ser dissipados pela observação pessoal: as informações não circulavam naquela época como agora. 

No ano de 1510, sem um tostão e descalço, Lutero cruzou os Alpes. Uma refeição e uma noite de descanso ele pedia nos mosteiros ou nas casas de fazenda enquanto caminhava. Mas mal havia descido os Alpes, quando encontrou mosteiros de mármore e os monges alimentando-se da comida mais suntuosa. Tudo isso era novo e surpreendente para o frugal monge de Wittemberg. Mas quando chegou a sexta-feira, qual foi seu espanto ao encontrar as mesas dos beneditinos repletas de carnes saborosas? Ele ficou tão indignado que se aventurou a dizer: "A Igreja e o papa proíbem essas coisas". Por este protesto, alguns dizem, ele quase pagou com sua vida. Tendo recebido um convite amigável para se retirar, ele deixou o mosteiro, viajou pelas quentes planícies da Lombardia e chegou a Bolonha, gravemente doente. Aqui o inimigo fez com que ele voltasse seus pensamentos para si mesmo, deixando-o muito perturbado com o senso de sua própria pecaminosidade, pois a perspectiva da morte o enchia de medo e terror. Mas as palavras do apóstolo, "o justo viverá pela fé", como um raio de luz do céu, afugentou as nuvens escuras, mudou a corrente de seus pensamentos e restaurou sua paz de espírito. Com o retorno de suas forças, retomou sua jornada, e depois de passar por Florença, e labutando sob um opressivo sol italiano pela longa extensão dos Apeninos, ele finalmente se aproximou da cidade das sete colinas*. 

{* N. do T.: Roma. } 

Devemos prefaciar a entrada de Lutero em Roma lembrando aos nossos leitores que, embora ele tivesse recebido a verdade do evangelho, ele ainda era um papista, e que sua devoção ao papado partilhava da veemência do fanatismo. Roma, para o rude alemão, era a cidade santa, santificada pelos túmulos dos apóstolos, pelos monumentos dos santos e pelo sangue dos mártires. Mas, infelizmente, a Roma da realidade era muito diferente da Roma de sua imaginação. Ao se aproximar dos portões, seu coração batia violentamente. Ele caiu de joelhos e, com as mãos levantadas para o céu, exclamou: "Santa Roma, eu te saúdo! Bem-aventurada Roma, três vezes santificada pelo sangue de teus mártires!" Com todo tipo de termos afetuosos e respeitosos ele saudou assim a metrópole da Cristandade. E sob a influência desse grande entusiasmo ele se apressou para os lugares sagrados, ouvindo todas as lendas pelas quais eles são consagrados; e tudo o que ele viu e ouviu, ele creu com muita devoção. Mas seu coração logo adoeceu com a profanação dos padres italianos. Um dia, quando ele estava repetindo a missa com grande seriedade, ele descobriu que os padres em um altar adjacente já haviam repetido sete missas antes que ele terminasse uma. "Rápido, rápido!" exclamou um deles, "devolva a Nossa Senhora o seu Filho", fazendo uma alusão ímpia à transubstanciação do pão no corpo e sangue de Jesus Cristo. A profanação dificilmente poderia alcançar um tom mais alto. O desencanto de Lutero foi completo, e o propósito de Deus em sua educação foi cumprido. 

Lutero esperava encontrar em Roma uma religião austera. "Sua fronte rodeada de dores, repousando sobre a terra nua, saciando sua sede com o orvalho do céu, vestida como os apóstolos, andando por caminhos pedregosos, e o evangelho debaixo do braço; mas em lugar disso ele viu a triunfal pompa do pontífice; os cardeais em liteiras, a cavalo ou em carruagens, brilhando com pedras preciosas e cobertos do sol por um dossel de penas de pavão. As igrejas esplêndidas, os rituais mais esplêndidos e o esplendor pagão das pinturas eram para Lutero, cujo coração estava pesado com os pensamentos das profanações dos padres, totalmente insuportáveis. O que era a Roma de Rafael, de Michelangelo, de Perugino e de Benvenuto, para o pobre monge alemão, que havia percorrido quatrocentas léguas a pé, esperando encontrar aquilo que aprofundaria sua devoção e fortaleceria sua fé? 

No entanto, tal era o poder da superstição que Lutero recebeu em sua educação, não obstante seu conhecimento das Escrituras e seu amargo desapontamento por Roma, que um dia, desejando obter uma indulgência prometida pelo papa a todos os que subissem de joelhos o que é chamado de escada de Pilatos, lá estava ele humildemente subindo aqueles degraus, que lhe disseram terem sido milagrosamente transportados de Jerusalém para Roma. Foi então que ele pensou ter ouvido uma voz, alta como um trovão, clamando: "O justo viverá pela fé". Espantado, ele se levanta dos degraus pelos quais arrastava o corpo; envergonhado de ver a que profundidade a superstição o havia mergulhado, ele foge com toda a pressa da cena de sua loucura. 

Tendo resolvido o negócio para o qual foi enviado, ele virou suas costas para a cidade pontifícia, para nunca mais lá voltar. "Adeus! Roma", disse ele; "que todos os que desejam levar uma vida santa afastem-se de Roma. Tudo é permitido em Roma, exceto ser um homem honesto." Ele não pensava ainda em deixar a igreja católica romana, mas, perplexo e perturbado, voltou para a Saxônia. 

Logo após o retorno de Lutero a Wittemberg, a pedido urgente de Staupitz, ele obteve o grau de Doutor em Divindade. O Senado também lhe deu o púlpito da igreja paroquial, o que lhe abriu imediatamente uma esfera da maior utilidade. Mas Lutero, alarmado com a responsabilidade, mostrou alguma relutância em aceitar uma dignidade de tal importância espiritual. Como o seu amigo vigário procurou tirar-lhe a hesitação, forçando-o a esse serviço, submeteu-se, e no desempenho das suas funções de púlpito teve a rara oportunidade de pregar a Palavra de Deus e o Evangelho de Cristo nos claustros do seu convento, na capela do castelo, e na igreja colegiada. Sua voz, diz a história, era boa, sonora, eletrizante; suas gesticulações eram simples e nobres. Uma ousada originalidade sempre marcou a mente de Lutero, encantando muitos por suas novidades e dominando outros por sua força. Ele adquirira nos últimos quatro ou cinco anos um conhecimento respeitável tanto do grego quanto do hebraico; ele havia lido profundamente o Novo Testamento; ele estava plenamente seguro de que a justificação pela fé era a verdadeira doutrina do evangelho; que a Palavra de Deus era o meio primário e fundamental para o reavivamento e reforma da igreja. 

Do ano de 1512 ao memorável ano de 1517, Lutero foi um arauto intrépido da Palavra de vida. Em todas as coisas ele desejava apenas conhecer a verdade, livrar-se e expulsar de si as falsidades e superstições de Roma. E assim deixamos Lutero por um tempo, engajado em sua gloriosa obra, enquanto nos voltamos por alguns momentos ao estado de coisas na igreja que trouxe Johann Tetzel e suas indulgências para as redondezas de Wittemberg.* 

{*D'Aubigné, vol. 1. Short Studies, de Froude, vol. 1. Reformation, de Waddington, vol. 1. Universal History, vol. 6, de Bagster e Filhos.} 

(Fim do Capítulo 33)

Lutero – Um Sacerdote e Professor

Ele passou três anos agitados no claustro de Erfurt. Mas para ele esses anos não foram perdidos. O cultivo geral de sua mente, a disciplina de sua alma, seu estudo do hebraico e do grego: eram muitos ramos da educação necessária para sua futura carreira no serviço do Senhor. Além disso, foi o lugar de seu nascimento espiritual e o lugar onde ele ouviu pela primeira vez sobre a justificação pela fé – aquela doutrina divina sobre a qual grande parte de seu trabalho subsequente foi construído. 

No ano de 1507 foi ordenado padre, cerimónia em que o seu pai estava presente, embora ainda insatisfeito com o curso de vida do filho. Lutero tinha então recebido poder do bispo para oferecer sacrifícios pelos vivos e pelos mortos, e para converter, murmurando algumas palavras, o pão sem fermento no “verdadeiro corpo e sangue do Senhor”. Lutero submeteu-se e aceitou essas pretensões papistas, embora contra suas convicções, e com medo e tremor, mas sua alma nunca chegou a se recuperar completamente dos efeitos dessa ordenança blasfema. Uma cegueira de juízo quanto à simplicidade escriturística da Ceia do Senhor se estabeleceu em sua mente. Ele foi capacitado, pela graça de Deus, a se livrar e denunciar muitas das superstições de Roma, mas nunca totalmente de seu ápice: a transubstanciação. 

Staupitz, o fiel amigo e patrono de Lutero, colocou-o, aos vinte e cinco anos de idade, em uma posição adequada para a exibição de sua mente poderosa e ativa, e para o posterior desenvolvimento de seu caráter. Ele foi convidado pelo príncipe-eleitor Frederico*, por sugestão do vigário-geral, a ocupar uma cadeira de filosofia na universidade que tinha fundado. Assim, mudou-se para Wittemberg no ano de 1508. Mas, embora chamado para ser professor, não deixou de ser monge; ele se hospedou em uma cela no convento agostiniano. Os assuntos sobre os quais ele foi designado a lecionar foram a física e a dialética de Aristóteles. Este era um emprego desagradável para alguém que estava faminto e sedento pela Palavra de Deus. Nem a ciência física nem a filosofia moral se adequavam ao espírito de sua mente. Mas, novamente, podemos dizer, era parte de sua educação necessária. Aquele que passou pelo claustro deve agora ocupar por um tempo a cadeira de filosofia escolástica, para que possa se tornar mais apto a expor os males e combater os erros de ambos os sistemas, e assim emancipar as mentes dos homens de sua influência. 

{* Eleitores ou príncipes-eleitores (em alemão é Kurfürst, plural Kurfürsten) foram os membros do colégio eleitoral do Sacro Império Romano-Germânico, tendo desde o século XIII, a função de eleger o Rei dos Romanos, ou, a partir de meados do século XVI em diante, diretamente o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pr%C3%ADncipe-eleitor } 

Nesse meio tempo, embora atraísse os jovens de Wittemberg pela força e estilo de suas palestras, dedicava-se zelosamente ao estudo do grego e do hebraico. Seu desejo era beber na fonte, e Aquele que viu o grande desejo de seu coração e o trabalho de sua vida lhe abriu o caminho. Poucos meses depois de sua chegada à universidade, obteve o grau de Bacharel em Divindade, que o habilitava a dar palestras sobre teologia ou sobre a Bíblia. Ele agora se sentia em sua esfera adequada e determinado a comunicar apenas o que aprendeu da Palavra de Deus. Seus primeiros discursos foram sobre os Salmos, e então ele passou para a Epístola de Paulo aos Romanos. 

Suas preciosas meditações sobre essas porções em sua cela silenciosa, tanto em Erfurt quanto em Wittemberg, deram um caráter totalmente novo às suas palestras. Ele falava, não apenas como um estudante eloquente, mas como um cristão que sentia o poder das grandes verdades que ensinava. Quando ele alcançou, em suas exposições, a última sentença de Romanos 1:17, “o justo viverá pela fé”, uma luz, podemos dizer, além do brilho do sol, encheu toda a sua alma. O Espírito de Deus revestiu as palavras de luz e poder ao entendimento e ao coração de Lutero. A grande doutrina da justificação pela fé ele recebeu em seu coração como vinda da voz de Deus. Ele agora via que a vida eterna deveria ser obtida não pela penitência, mas pela fé. Toda a história da Reforma alemã está ligada a estas poucas palavras. À luz delas, ele explicou as escrituras do Antigo e do Novo Testamento; por sua verdade, expôs as falsidades do papado, emocionou o coração da Europa, pôs fim ao reino da impostura e realizou a grande Reforma. Sozinho ele ficou em pé diante de toda autoridade – diante de todo o mundo – na verdade da Palavra de Deus: “o justo viverá pela fé”. A palavra de Deus é verdadeira, o papado é uma mentira; um deve cair, o outro deve triunfar. A verdade é saúde para a alma, a mentira é um veneno mortal. Esses princípios de justiça eterna estavam agora firmemente fixados no coração de Lutero pelo Espírito de Deus; e, por mais simples que pareçam, ele foi capacitado, pela fé na Palavra de Deus, a triunfar sobre papas, bispos, clérigos, reis e imperadores, levantando a bandeira da salvação pela fé no Senhor Jesus Cristo, sem obras de lei. 

A grande obra estava agora iniciada, mas o obreiro ainda tinha algumas lições a aprender.  

domingo, 2 de outubro de 2022

Reflexões Sobre a Conversão de Lutero

Esta é a história simples da conversão de Lutero, e foi uma conversão genuína, pela graça de Deus, mas, no que dizia respeito à mente de Lutero, não foi uma obra muito sólida. A medida e o caráter da verdade apresentada por Staupitz e o velho monge não poderiam tê-lo fortalecido contra os ataques do inimigo. Com tão pouco conhecimento da mente de Deus, do amor de Cristo, da completude de Sua obra, da libertação por meio de Sua morte e ressurreição, uma alma convertida pode rapidamente ficar cheia e atormentada por dúvidas e temores. E é isso que encontramos por todos os lados nos dias atuais. Muito poucos estabeleceram a paz com Deus. Eles esperam, eles confiam, que são salvos, mas há muito pouco da plena certeza da fé. E por quê? Apenas por causa de visões defeituosas de seu próprio estado perdido e da obra de Cristo como atendendo perfeitamente a esse estado. Tome um texto como ilustração: "Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados" (Hebreus 10:14). Certamente, se entendêssemos corretamente a dignidade e a glória do Sofredor, qual seria nossa fé no valor de Seu sacrifício, de Sua única oferta? Não há repetição, nem segunda aplicação do sangue; nunca pode perder sua eficácia. Podemos ser limpos diariamente com a água da purificação, mas a ideia de uma segunda aplicação do sangue da propiciação é desconhecida nas Escrituras. Uma vez lavada nesse sangue precioso, a consciência é perfeita para sempre. Essa palavra, "para sempre", significa não tanto eternamente, mas continuamente, permanentemente, ininterruptamente perfeito diante de Deus, assim como Cristo sempre é. Deus nunca poderá ignorar aquilo que tão perfeitamente apagou o pecado, tão perfeitamente glorificou a Si mesmo, tão perfeitamente venceu todos os inimigos, e tão perfeitamente obteve a redenção eterna para cada crente. 

Até o momento em que Lutero se encontrou com Staupitz e o velho monge, ele estava, de acordo com suas próprias palavras, "nos cueiros* do papado e não tinha visto seus males". E isso é verdade em certo sentido, inclusive acerca de milhares de pessoas. Elas estão nos cueiros de seus respectivos sistemas de doutrina e igreja, sem nunca terem examinado cuidadosamente essas coisas pela Palavra de Deus. Consequentemente, elas são estranhas à feliz liberdade com a qual Cristo torna seu povo livre. Lutero foi convertido, mas de modo algum estava fora da casa da escravidão. A remoção das faixas de sua alma foi através da incredulidade, um processo lento. Ele não sabia quase nada sobre os privilégios e bênçãos dos filhos de Deus, e de sua posição em Cristo. Mas sabemos pelas Escrituras quais foram suas bênçãos e quais são as bênçãos de cada alma convertida. Imediatamente após a mulher ter tocado a bainha do manto do Redentor a fonte de sua doença secou. Pelo delicado toque da fé, a virtude que havia em Jesus tornou-se sua. Bela ilustração da alma recém-convertida diante de Deus em todas as virtudes, excelências, vida, justiça, paz, alegria e feliz liberdade do próprio Cristo! A vida eterna tomou o lugar da morte espiritual, da justiça divina do pecado humano e da proximidade com Deus em distância moral. Tal é a bênção de toda alma no primeiro momento de sua conversão, mesmo que esteja à beira do desespero da escuridão de sua condição, como Lutero estava. 

{* cueiro: pano leve e macio com que se envolvem (em torno das nádegas e das pernas) as crianças de colo (Fonte: Oxford Languages}  

Veja outra ilustração – o ladrão penitente na cruz. Poucos momentos depois de sua conversão, ele entra no céu com Cristo, e tão apto para aquele lugar santo quanto o próprio Cristo. "Hoje estarás comigo no paraíso." A consequência imediata da fé em Cristo é a satisfação da herança dos santos na luz. Veja também Lucas 23:39-43; Marcos 5:25-34; Col. 1:12-13, 14

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