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domingo, 18 de outubro de 2020

A Disseminação da Verdade

O casamento de Ana da Boêmia com Ricardo II da Inglaterra havia colocado os dois países em estreita conexão, exatamente no momento em que as doutrinas de Wycliffe estavam fazendo seu mais rápido progresso. "Eruditos boêmios", diz Milman, "sentaram-se aos pés do ousado professor de teologia de Oxford; estudantes ingleses foram encontrados em Praga. Os escritos de Wycliffe foram trazidos para a Alemanha em grande número, alguns em latim, alguns traduzidos para a língua boêmia, e disseminado por admiradores partidários." A princesa, cujos exercícios piedosos e estudo das Escrituras foram comemorados por pregadores e historiadores, foi afetada pela primeira vez pelo movimento de Reforma em sua própria terra. Ela trouxe consigo para a Inglaterra versões dos Evangelhos nas línguas alemã e boêmia, bem como em latim. Esses eram então tesouros preciosos para alguém de sua piedade e amor pela pura Palavra de Deus; mas também nos mostram, embora indiretamente, o progresso que as novas doutrinas estavam fazendo na Alemanha naquele período inicial.

Um de seus primeiros atos na Inglaterra mostra o poder da graça de Cristo em seu coração e apresenta um contraste notável com o espírito perseguidor de Jezabel. "Alguns dias após o casamento do casal real", diz a Srta. Strickland, "eles voltaram a Londres, e a coroação da Rainha foi realizada de forma magnífica. A pedido sincero da jovem Rainha, um perdão geral foi concedido pelo Rei em sua consagração. As pessoas aflitas precisavam dessa trégua, pois as execuções, desde a insurreição de Wat Tyler, tinham sido sangrentas e bárbaras como nunca antes. A terra estava fedendo com o sangue dos infelizes camponeses quando a intercessão humana da gentil Ana de Boêmia pôs fim às execuções. Essa mediação obteve para a noiva de Ricardo o título de ‘A boa Rainha Ana'; e os anos, em vez de prejudicar a popularidade, geralmente tão evanescente na Inglaterra, apenas aumentaram a estima sentida por seus súditos por esta princesa benéfica."

Como é verdadeiramente revigorante encontrar tal exemplo de piedade consistente em tal período, e em tal condição de vida! Mas havia muitos assim naquela época na Boêmia e em outras terras. Após a morte de Ana, seus assistentes boêmios voltaram ao seu próprio país e levaram consigo os valiosos escritos de John Wycliffe. Eles tinham sido estudados por muitos estrangeiros em Oxford e agora eram lidos diligentemente pelos membros da Universidade de Praga.

O mais famoso desses doutores estudiosos foi Jan Hus, ou Jan de Hassinetz, um vilarejo próximo à fronteira da Bavária. Ele nasceu por volta do ano de 1369, de modo que devia ter cerca de quinze anos de idade quando seu admirado e reconhecido professor, o venerável Wycliffe, morreu. É interessante olhar para trás e contemplar os caminhos de nosso Deus em Seu cuidado para a manutenção e difusão da verdade. Quem então poderia ter pensado, que em um vilarejo obscuro da Boêmia, Ele estava levantando e qualificando uma nobre testemunha, que deveria levar, por sua vez, "a tocha da verdade, e transmiti-la com mão de mártir a um longo sucessão de testemunhas -- seria ele digno do ofício celestial?"* Ele logo se distinguiu, como somos informados, pela força e sutileza de seu entendimento, pela modéstia e gravidade de seu comportamento e pela austeridade irrepreensível de sua vida. Ele era alto, esguio, com um semblante pensativo; gentil, amigável e acessível a todos. Sendo seus talentos de tão alto nível, foi enviado para a Universidade de Praga, com o objetivo de estudar para a igreja. Ali ele se distinguiu por suas extensas realizações como estudioso. Ele avançou rapidamente nas preferências religiosas e universitárias e foi feito confessor da Rainha Sofia. Ele também foi nomeado pregador na capela da universidade, chamada Belém -- a casa do pão -- por conta do alimento espiritual que estava ali para ser distribuído em língua vernácula.

{* Waddington, vol. 3, pág. 175.}

Isso deu ao corajoso e eloquente pregador uma excelente oportunidade para revelar a Palavra de Deus ao povo em sua língua materna; e não temos dúvidas de que fez isso, pois era um cristão sincero e uma verdadeira testemunha de Cristo. Mas como a maioria dos reformadores -- senão todos -- ele talvez tenha estado mais ansioso, no início, em pregar contra os abusos prevalecentes do que instruir o povo na pura verdade de Deus. Estamos convencidos de que geralmente tem sido esse o caso, e em todos os tipos de reforma, e que possa ser essa atitude a responsável pelas muitas cenas de violência na melhor das causas. Se o povo fosse conduzido, antes de tudo, pela bênção de Deus, a receber a verdade, especialmente a verdade como a encontramos em Jesus, o fim seria alcançado sem que a mente se inflamasse por ouvir denúncias em linguagem forte sobre os vícios de seus opressores sacerdotais. O orgulho, luxo e licenciosidade de todo o sistema clerical tornaram-se intoleráveis para a humanidade; de modo que condenar os abusos sem tocar nas doutrinas da igreja era o caminho principal para a popularidade.

Deus é mais sábio do que os homens; e se formos guiados por Sua palavra, devemos procurar levar os ignorantes a amar a verdade e segui-la, em vez de criar em suas mentes um ódio pelo erro que, sem o conhecimento de Cristo, certamente terminará em excitação revolucionária e desastre. Este princípio divino é aplicável tanto às menores quanto às maiores disputas entre os homens. É sempre melhor iluminar do que agitar. "Ao servo do Senhor não convém contender, mas sim, ser manso para com todos, apto para ensinar, sofredor; instruindo com mansidão os que resistem, a ver se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade, e  tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do diabo, em que à vontade dele estão presos.” (2 Timóteo 2:24-26)

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Reflexões Sobre a Vida de Wycliffe

O cristão humilde, a testemunha ousada, o pregador fiel, o professor competente e o grande reformador saíram de cena. Ele foi descansar e sua recompensa está nas alturas. Mas as doutrinas que ele propagou com tanto zelo nunca podem morrer. Seu nome em seus seguidores continuou formidável contra os falsos sacerdotes de Roma. "De cada dois homens que você encontra pelo caminho", disse um adversário amargurado, "um é wycliffita." Ele foi usado por Deus para dar um impulso ao questionamento cristão que foi sentido nos cantos mais distantes da Europa e que continuou através dos tempos futuros. Nenhuma pessoa expressou um senso mais justo da influência dos trabalhos bíblicos de Wycliffe do que o Dr. Lingard, o historiador católico romano. Assim ele escreve: "Ele fez uma nova tradução, multiplicou cópias com a ajuda de transcritores, e por seus padres pobres recomendou seus ouvintes à sua leitura. Nas mãos deles, tornou-se um motor de poder incrível. Os homens ficaram lisonjeados com o apelo a seu julgamento particular das Escrituras; as novas doutrinas insensivelmente adquiriram partidários e protetores nas classes mais altas, os únicos familiarizados com o uso das letras; um espírito de questionamento foi gerado; e as sementes daquela revolução religiosa, que, em pouco mais de um século, surpreendeu e convulsionou as nações da Europa, foram lançadas." Muitas das doutrinas de Wycliffe estavam muito adiantadas em relação à época em que viveu. Ele antecipou os princípios de uma futura geração mais iluminada. “Só a Escritura é a verdade”, disse ele; e sua doutrina foi formada somente sobre esse fundamento. Mas foi a tradução e circulação da Bíblia que deu eficácia duradoura às santas verdades que ele ensinou, e foi a coroa imperecível de todos os seus outros trabalhos -- o tesouro que ele legou para o futuro e para épocas melhores. *

{* Waddington, vol. 3, pág. 175.}

Enquanto Wycliffe confinasse suas veementes denúncias ao espírito anticristão da corte de Roma, à riqueza do clero e aos dogmas peculiares do papado, ele poderia contar com muitos protetores poderosos. Ele poderia varrer um a um os muitos abusos do sistema; mas assim que ele ascendeu à região mais elevada da verdade positiva e da graça gratuita de Deus, o número e entusiasmo de seus seguidores declinou rapidamente. Sua controvérsia doutrinária garantiu seu banimento de Oxford cerca de dois anos antes de sua morte. Mas isso, na providência de Deus, foi permitido para dar-lhe um período de repouso no final de uma vida laboriosa e tempestuosa. Por muitos anos ele pregou as doutrinas mais distintas dos reformadores do século XVI, especialmente as defendidas por Calvino. Mas sua oposição à doutrina romana da salvação pelas obras o levaria naturalmente a falar com veemência. "Acreditar no poder do homem na obra de regeneração", dizia ele, "é a grande heresia de Roma, e desse erro veio a ruína da igreja. A conversão procede somente da graça de Deus, e o sistema que o atribui em parte ao homem e em parte a Deus é pior do que o pelagianismo. Cristo é tudo no Cristianismo; todo aquele que abandona aquela fonte que está sempre pronta a dar vida e se volta a águas lamacentas e estagnadas, é um louco. A fé é um dom de Deus, ela põe de lado todo mérito humano, e deve banir todo o medo da mente. Que os cristãos se submetam não à palavra de um padre, mas à palavra de Deus. Na igreja primitiva havia apenas duas ordens, bispos e diáconos: o presbítero e o bispo, ou supervisor, eram a mesma pessoa. A chamada mais sublime que o homem pode alcançar na terra é a de pregar a palavra de Deus. A verdadeira igreja é a assembleia dos justos por quem Cristo derramou Seu sangue.”

Tais eram os pontos essenciais da pregação e panfletos de Wycliffe por quase quarenta anos, proclamados com grande fervor e habilidade em meio à escuridão papal, à superstição e às piores formas de mundanismo. Escrever as palavras que foram transmitidas à posteridade tão grandiosa, tão gloriosamente, uma obra do Espírito de Deus em nossa terra*, faz com que o coração se expanda e se eleve ao trono da graça em louvor e ação de graças não fingido, sem mistura, sem fim. Os papas, cardeais, arcebispos, bispos, abades e doutores que tinham sede de seu sangue, ou decaíram das páginas da história, ou estão associados em nossas mentes ao demônio da perseguição, enquanto o nome e a memória de John Wycliffe continuam a ser mantidos com veneração intacta e crescente. **

{* N. do T.: O autor deste livro viveu na Inglaterra.}

{** Ver Enciclopédia Britânica, vol. 21, pág. 949; D'Aubigné, vol. 5, pág. 137.}

domingo, 4 de outubro de 2020

Wycliffe, um Herege

Wycliffe alcançara então grande distinção e recebera muitos sinais do favor real. No final do ano de 1375, ele foi nomeado pela coroa à reitoria de Lutterworth em Leicestershire, que foi sua casa pelo resto de sua vida, embora ele frequentemente visitasse Oxford. Mas os perigos estavam se acumulando ao seu redor de outras partes: ele incorrera no desagrado do papa e dos prelados. Em Lutterworth e nas aldeias vizinhas, ele era um pregador vernáculo simples, ousado; em Oxford, ele foi o grande mestre. Mas, seja na cidade ou no campo, ele ergueu sua voz contra a disciplina da igreja, as vidas escandalosas dos religiosos, sua ignorância, sua negligência na pregação e o abuso de seus privilégios como eclesiásticos para abrigar criminosos notórios. É natural que falar tão francamente fosse ofensivo. O professor foi acusado de heresia e intimado a comparecer perante a convocação que iniciou suas sessões em fevereiro de 1377.

Wycliffe respondeu à citação e seguiu para a Catedral de São Paulo, em Londres, mas não foi sozinho. Ele estava acompanhado por João de Gante, duque de Lancaster, e o conde Percy, marechal da Inglaterra. Os motivos desses grandes personagens eram sem dúvida políticos e não acrescentavam nenhuma honra real ao nome ou à causa de Wycliffe. Mas encontramos uma estranha colisão e confusão entre religião e política na história de todos os reformadores. William Courtenay, filho do conde de Devon, era então bispo de Londres e nomeado presidente da assembleia pelo arcebispo Sudbury. O orgulhoso e arrogante bispo ficou com grande desgosto ao ver o herege apoiado pelos dois nobres mais poderosos da Inglaterra. Tão grande foi a multidão de pessoas para testemunhar esse emocionante julgamento, que o conde-marechal assumiu a autoridade de seu cargo para abrir caminho até a presença dos juízes. O indignado bispo se ressentiu com o exercício do poder do marechal dentro da catedral.

"Se eu soubesse, meu senhor", disse Courtenay a Percy bruscamente, "que afirmarias ser mestre nesta igreja, eu teria tomado medidas para impedir tua entrada." Lancaster, que na época administrava o reino, respondeu friamente "que o marechal usaria a autoridade necessária para manter a ordem, apesar dos bispos." Quando chegaram ao tribunal na Capela Lady, Percy exigiu um assento para Wycliffe. Courtenay cedeu à sua raiva e exclamou em voz alta: "Ele não deve se sentar, os criminosos devem permanecer em pé diante de seus juízes". Palavras ferozes se seguiram de ambos os lados. O duque ameaçou humilhar o orgulho, não só de Courtenay, mas de toda o clero da Inglaterra. O bispo respondeu com uma humildade provocadora e falsa que sua confiança estava somente em Deus. Seguiu-se uma cena de grande violência; e, em vez do inquérito proposto, a assembleia se desfez em confusão. Os partidários do bispo teriam caído sobre o duque e o marechal; mas eles tinham força suficiente para sua proteção. Wycliffe, que permanecera em silêncio, escapou sob a proteção deles.

Embora todas as pessoas fossem então católicas romanas, muitos eram a favor de uma reforma; estes eram chamados de wycliffitas e prudentemente permaneceram em suas próprias casas durante essa agitação. O partido clerical que havia lotado a catedral enchia as ruas com seu clamor. A população se levantou -- um tumulto selvagem começou. Os desordeiros primeiro atacaram a casa de Percy; mas depois de abrirem todas as portas e vasculharem todos os cômodos, sem encontrá-lo, imaginaram que ele deveria estar escondido no palácio de Lancaster. Eles correram para o Savoy, na época o edifício mais magnífico do reino. Um clérigo que teve a infelicidade de ser confundido com Lord Percy foi morto. Os braços do duque foram torcidos como os de um traidor; o palácio foi saqueado, e outros ultrajes poderiam ter sido cometidos, não fosse a interposição do bispo, que tinha motivos para temer as consequências de tais procedimentos ilegais.

Wycliffe em Avignon

Embora fosse então bem conhecido que Wycliffe mantinha muitas opiniões antipapais, ele ainda não se comprometera a manter oposição direta a Roma. Mas no ano de 1374 ele foi comissionado a uma embaixada do papa Gregório XI, cuja residência era em Avignon. O objetivo desta missão era representar e remover os abusos flagrantes da reserva papal de benefícios na Igreja inglesa. Mas não temos dúvidas de que o Senhor permitiu isso, para que Wycliffe pudesse ver o que os estrangeiros demoravam a acreditar, a saber, que a corte papal era a fonte de toda iniquidade. Em seu retorno dessa missão, ele se tornou o antagonista aberto, direto e temido de Roma. A experiência de Avignon e Bruges acrescentou aos resultados de seu pensamento e investigação anteriores, e satisfez seu pensamento de que as pretensões do papado não tinham qualquer fundamento na verdade. Ele incansavelmente tornou públicas as convicções profundas de sua alma em conferências eruditas e disputas em Oxford, em discursos pastorais em sua paróquia e em tratados espirituosos escritos em clara prosa inglesa, de tal modo que alcançaram as classes mais humildes e menos educadas. Ele denunciou com indignação ardente e acalentada todo o sistema papal. "O evangelho de Jesus Cristo", disse ele, "é a única fonte da verdadeira religião. O papa é anticristo, o orgulhoso sacerdote mundano de Roma e o mais amaldiçoado dos batedores de carteira." O orgulho, a pompa, o luxo e a moral frouxa dos clérigos caíram sob sua fulminante repreensão. E sendo ele próprio um homem de moral incontestável, de profunda devoção, sinceridade indubitável e eloquência original, muitos se reuniram em torno do destemido professor.*

{* J.C. Robertson, vol. 4, pág. 203; Latin Christianity, vol. 4, pág. 94; Encyclopedia Britannica, artigo WYCLIFFE.}


Wycliffe e o Governo

A fama de Wycliffe como defensor da verdade e da liberdade não estava mais confinada à Universidade de Oxford. O papa e os cardeais o temiam e observaram minuciosamente seus procedimentos. Mas, por outro lado, o rei e o parlamento nutriam uma opinião tão elevada de sua integridade e julgamento a ponto de consultá-lo sobre um assunto de grande importância para a Igreja e o Estado.

Por volta do ano 1366, surgiu uma controvérsia entre o papa Urbano V e o rei Eduardo III como consequência da renovação da exigência de um tributo anual de mil marcos, que o rei João se comprometera a pagar à Sé Romana como um reconhecimento da superioridade feudal do pontífice romano sobre os reinos da Inglaterra e da Irlanda. O pagamento desse tributo humilhante nunca foi regular, tendo sido totalmente interrompido por trinta e três anos. Urbano exigiu o pagamento integral das dívidas. Eduardo recusou, declarando-se decidido a manter seu reino em liberdade e independência. O parlamento e o povo simpatizaram com o rei. A arrogância do papa causou grande agitação na Inglaterra; ambas as casas do parlamento foram consultadas; a resolução da questão interessava a todas as classes, e até mesmo a toda a Cristandade. Wycliffe, que já era um dos capelães do rei, foi nomeado para responder aos argumentos papais, e assim efetivamente provou que o cânon, ou lei papal, não tem força quando se opõe à Palavra de Deus, e que o papado daquele dia em diante cessava de reivindicar a soberania da Inglaterra. Os argumentos de Wycliffe foram usados ​​pelos senhores no parlamento, que resolveram unanimemente manter a independência da coroa contra as pretensões de Roma. Os discursos curtos, enérgicos e simples dos barões nesta ocasião são curiosos e característicos da época.

No ano de 1372, Wycliffe foi elevado à cadeira teológica na Universidade de Oxford. Este foi um passo importante na causa da verdade e usado pelo Senhor. Sendo um Doutor em Divindade, ele tinha o direito de ministrar palestras sobre teologia. Ele falava como um mestre aos jovens teólogos de Oxford, e, tendo tal autoridade nas escolas, tudo o que ele dizia era recebido como um oráculo. Seria impossível avaliar a influência benéfica que exerceu sobre a mente dos alunos, que compareciam em grande número naquela época. A invenção da imprensa ainda não havia fornecido livros ao estudante, de modo que ele praticamente dependia em tudo da voz e da energia viva do professor público. Centenas de pessoas que o ouviam, por sua vez, tornar-se-iam também professores públicos, levando adiante a mesma semente preciosa.

Wycliffe e os Frades

Por volta do ano de 1349, quando Wycliffe completou 24 anos de idade e estava alcançando certa fama na faculdade, a Inglaterra foi visitada por uma terrível peste, chamada de Peste Negra. Supõe-se que ela tenha aparecido pela primeira vez na Tartária e, depois de devastar vários países da Ásia, prosseguiu pelas margens do Nilo até as ilhas da Grécia, levando devastação para quase todas as nações da Europa. Tão imensa foi a perda de vidas humanas que alguns dizem que um quarto da população foi eliminada, e outros, que metade da raça humana, além do gado, foi levada em certas partes. Essa visitação alarmante encheu a mente piedosa de Wycliffe com as mais sombrias apreensões e temerosos pressentimentos quanto ao futuro. Foi como o som da última trombeta em seu coração. Ele concluiu que o dia do julgamento estava próximo. Solenizado com os pensamentos sobre a eternidade, ele passou dias e noites em seu quarto, e sem dúvida em fervorosa oração por orientação divina. Ele se apresentou como defensor da verdade; encontrou sua armadura na Palavra de Deus.

Por seu zelo e fidelidade na pregação do evangelho, principalmente ao povo comum aos domingos, adquiriu e mereceu o título de “doutor evangélico”. Mas o que lhe trouxe tanta fama e popularidade em Oxford foi sua defesa da universidade contra as invasões dos frades mendicantes. Ele corajosa e impiedosamente atacou essas ordens, que ele declarava serem o grande mal da Cristandade. Elas eram, então, quatro em número -- Dominicanos, Minoritas ou Franciscanos, Agostinianos e Carmelitas – e se enxameavam nas melhores partes da Europa. Eles se esforçaram muito em Oxford, como até então em Paris, para ali se elevarem. Eles aproveitaram todas as oportunidades para atrair os alunos para seus conventos, os quais, sem o consentimento de seus pais, se alistavam para as ordens mendicantes. Esse sistema de lavagem cerebral prosseguiu a tal ponto que os pais evitavam enviar seus filhos às universidades. Em certa época, trinta mil jovens estudavam em Oxford, mas, por causa desses frades, o número foi reduzido para seis mil. Bispos, padres e teólogos em quase todos os países e universidades da Europa lutavam contra esses enganadores, mas com pouco efeito, pois os pontífices os defendiam vigorosamente como seus melhores amigos e conferiam-lhes grandes privilégios.

Wycliffe atacou ousadamente, e, cremos, fatalmente, a raiz desse grande mal universal. Próximo ao declínio do poder papal, do qual já tomamos nota, podemos começar a notar o das ordens mendicantes. Ele publicou alguns artigos espirituais intitulados "Contra o mendigo saudável", "Contra o mendigo ocioso" e "A pobreza de Cristo". "Ele denunciou a mendicância em si, e todos os outros como mendigos saudáveis, que não deveriam ser autorizados a infestar a terra. Ele os acusou de cinquenta erros de doutrina e prática. Ele os denunciou por interceptarem as esmolas que deveriam pertencer aos pobres; por seu sistema inescrupuloso de proselitismo; por sua invasão de direitos paroquiais; por seu hábito de iludir as pessoas comuns com fábulas e lendas; por suas pretensões hipócritas de santidade; por sua lisonja para com os grandes e ricos, a quem deveriam na verdade reprovar por seus pecados; por seu apego ao dinheiro por todos os meios, pelo esplendor desnecessário de seus edifícios, enquanto as igrejas paroquiais eram largadas à decadência. "*

{* J.C. Robertson, vol. 4, pág. 201.}

Wycliffe tornara-se então o líder reconhecido de um grande partido na universidade e na Igreja, e dignidades e honras foram-lhe conferidas. Mas se ele tinha ganhado muitos amigos, tinha também muitos inimigos cuja ira era perigoso provocar. Seus problemas e mudanças então começaram. Os frades forneceram ao papa informações sobre tudo o que estava acontecendo. Em 1361, ele foi promovido a mestre do Balliol College e à reitoria de Fillingham. Quatro anos depois foi escolhido guardião do Canterbury Hall. Seu conhecimento das escrituras, a pureza de sua vida, sua coragem inflexível, sua eloquência como pregador, seu domínio da linguagem das pessoas comuns, tornavam-no objeto de admiração geral. Ele afirmava que a salvação era pela fé, por meio da graça, sem mérito humano de forma alguma. Isso foi impactante, não apenas contra os males externos, mas contra os próprios fundamentos de todo o sistema papal. Guiado pela sabedoria divina, ele começou sua grande obra no lugar certo e da maneira certa. Ele pregou o evangelho e explicou a Palavra de Deus ao povo em inglês vernáculo. Desta forma, ele plantou profundamente na mente popular aquelas grandes verdades e princípios que eventualmente levaram à emancipação da Inglaterra do jugo e da tirania de Roma.

A Inglaterra e o Papado

A submissão do rei João a Inocêncio III foi o ponto de virada na história do papado na Inglaterra. Na humilhação do soberano, toda a nação se sentiu degradada. Inocêncio foi longe demais, foi um abuso de poder presumido, mas que se voltou contra si mesmo em seu devido tempo. A Inglaterra jamais poderia esquecer tamanha prostração abjeta de seu rei aos pés de um sacerdote estrangeiro. A partir daquele momento, um espírito de descontentamento com Roma cresceu na mente do povo inglês. As usurpações, as reivindicações exorbitantes do papado, sua interferência na disposição dos bispados ingleses, frequentemente colocando o governo e a igreja em colisão e ampliando a brecha. Mas exatamente quando a paciência dos homens estava quase exaurida pelas muitas queixas práticas contra o papado, foi do agrado de Deus levantar um poderoso adversário para todo o sistema hierárquico -- o primeiro homem que abalou o domínio papal na Inglaterra desde sua fundação, e além disso um homem que amava sinceramente a verdade e pregava-a tanto aos eruditos como às classes mais baixas. Este homem era John Wycliffe, justamente denominado o precursor, ou Estrela da Manhã, da Reforma.

A parte inicial da vida de Wycliffe é envolvida em muita obscuridade; mas a opinião geral é de que tenha nascido de uma linhagem humilde nas redondezas de Richmond, em Yorkshire, por volta do ano de 1324. Seu destino era o de se tornar um estudioso, o que, como somos informados, até os mais humildes daqueles dias podiam aspirar. A Inglaterra era praticamente uma terra de escolas; cada catedral, e praticamente cada mosteiro, tinha a sua; mas jovens com mais ambição, autoconfiança, suposta capacidade e melhores oportunidades aglomeravam-se em Oxford e Cambridge. Na Inglaterra, assim como em toda a cristandade, aquela maravilhosa corrida de uma vasta parte da população em direção ao conhecimento lotou as universidades com milhares de alunos.*

{* Milman, vol. 6, pág. 100.}

John Wycliffe encontrou seu caminho para Oxford. Ele foi admitido como aluno do Queen's College, mas logo foi transferido para o Merton College, a mais antiga, a mais rica e a mais famosa das fundações de Oxford. Supõe-se que ele teve o privilégio de assistir às palestras do muito piedoso e profundo Thomas Bradwardine, e que de suas obras ele derivou suas primeiras visões da liberdade da graça e da absoluta inutilidade de todo mérito humano, no que diz respeito à salvação. Dos escritos de Grosseteste, ele captou pela primeira vez a ideia de que o papa era um anticristo.

Wycliffe, de acordo com seus biógrafos, logo se tornou mestre nas leis civil, canônica e municipal; mas seus maiores esforços foram voltados para o estudo da teologia, não como meramente era aquela arte estéril que era ensinada nas escolas, mas como aquela ciência divina que é derivada do espírito, bem como da letra das Escrituras. No processo de tais investigações, ele teve numerosas e formidáveis ​​dificuldades contra as quais lutar. Foi um estudo que a Igreja não aprovou e não previu. O texto sagrado era então negligenciado, os escolásticos ocupavam o lugar da autoridade das Escrituras; a língua original do Novo, assim como do Antigo Testamento, era quase desconhecida no reino. Mas, apesar de todas essas desvantagens e desencorajamentos, Wycliffe seguiu seu caminho com grande perseverança. "Sua lógica", diz alguém, "sua sutileza escolástica, sua arte retórica, seu poder de ler as escrituras latinas, sua erudição variada, podem ser devidos a Oxford; mas o vigor e a energia de seu gênio, a força de sua linguagem, seu domínio sobre o inglês vernáculo, a alta supremacia que ele reivindicou para as Escrituras, que por imenso trabalho ele publicou na língua vulgar – isto vinha dele próprio, estas coisas não podiam ser aprendidas em nenhuma escola, e nem alcançadas por nenhum dos cursos ordinários de estudo. "*

{* Latin Christianity, vol. 6, pág. 103.}

domingo, 27 de setembro de 2020

As Primeiras Grandes Escolas de Erudição

O surgimento de escolas públicas ou academias no século XII e o aumento da atividade intelectual, sem dúvida, contribuíram muito para o enfraquecimento do papado e da aristocracia feudal. Isso abriu caminho para o surgimento e o estabelecimento do terceiro estado no reino -- as classes médias -- e para o empreendimento comercial. O iluminismo e as liberdades da Europa avançaram continuamente a partir desse período. Escolas foram erguidas em quase todos os lugares, a sede de conhecimento aumentou. "Os reis e príncipes da Europa, vendo as vantagens que uma nação pode tirar do cultivo da literatura e das artes úteis, convidaram homens eruditos para seus territórios, estimularam o gosto pela informação e recompensaram-nos com honras e emolumentos." Mas com tal aumento da atividade mental, muitas doutrinas e opiniões loucas e perigosas foram ensinadas. A teologia escolástica, a filosofia aristotélica e o direito civil e sagrado tiveram seu lugar e reputação. Foi por volta dessa época, meados do século XII, que as grandes universidades de Oxford, Cambridge e Paris foram fundadas, além de muitas outras no continente. Grego e hebraico foram estudados e palestras dadas na forma de exposições e comentários sobre as Sagradas Escrituras, que o Senhor poderia usar para abençoar os estudantes e, por meio deles, a outros.

“Para impor alguma restrição”, diz Waddington, “a essa grande licenciosidade intelectual -- para reavivar algum respeito pelas autoridades antigas -- para erguer alguma barreira, ou pelo menos algum marco, para a orientação de seus contemporâneos, Pedro Lombardo publicou seu célebre ‘Livro das Sentenças’”. Tendo estudado por algum tempo na famosa escola de Bolonha, ele seguiu para Paris com o propósito de prosseguir seus estudos em divindade. O Livro das Sentenças é uma coleção de passagens dos Pais apostólicos, especialmente de Santo Hilário, Santo Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho -- uma triste mistura, sem dúvida, de verdade e erro; mas o Senhor estava acima de tudo e poderia usar sua própria Palavra, embora misturada com sutilezas da moda, para a conversão e bênção das almas. Por muito tempo, isso manteve uma indiscutível supremacia nas escolas de teologia, e seu autor foi elevado a grandes honras.

domingo, 3 de junho de 2018

Bernardo e Abelardo

Antes da morte de Inocêncio, Bernardo foi chamado para longe de seu pacífico retiro em Claraval para fazer guerra contra um novo inimigo da igreja: Pedro Abelardo. Esse novo conflito surgiu dos movimentos intelectuais da época, e marca uma época distinta da história da igreja, da literatura e da liberdade espiritual e civil. Vamos atentar brevemente para o que levou a isso.

A maioria de nossos leitores estão cientes de que a erudição que tinha sido acumulada nas línguas latina e grega foram quase inteiramente destruídas pelos bárbaros no século V. O que é conhecida como literatura antiga foi quase completamente perdida quando as nações bárbaras se estabeleceram nas ruínas do império romano. Por completos quinhentos anos, a grosseira ignorância prevaleceu. Qualquer conhecimento que restava foi confinado aos eclesiásticos; e eles, durante esse período, eram proibidos de estudar ou copiar a erudição secular. Não obstante, alguns dos monges, especialmente os da ordem beneditina, coletaram e copiaram manuscritos antigos; e, como diz Hallam: "Nunca deve ser esquecido que, se não fosse por eles, os registros dessa literatura teriam perecido. Não podemos afirmar que, se eles tivessem sido menos tenazes em sua liturgia latina, na tradução Vulgata das Escrituras, e na autoridade dos pais da igreja, menos superstição teria crescido; mas não podemos hesitar em pronunciar que toda a erudição gramatical teria sido deixada de lado. Mas entre eles, embora os exemplos de grosseira ignorância fossem excessivamente frequentes, havia a necessidade de preservar a língua latina, na qual tinham sido escritas as Escrituras, os cânons e as outras autoridades da igreja, assim como as liturgias regulares, e em cuja língua deveriam ser escritas as correspondências dentro da hierarquia clerical. Essa atividade continuou fluindo, mesmo nas piores estações, como um fluxo fino, mas vivo."*

{* Literature of Europe in the Middle Ages, vol. 1, p. 4.}

Dentre esses monges devia haver toda variedade de mentes: algumas, sem dúvida, grosseiras, lentas e mecânicas; outras, refinadas, ativas, questionadoras, que não se deixavam confinar dentro das barreiras da doutrina católica estabelecida, nem se submetia ao poder da ordem sacerdotal. Assim foi; assim provou-se ser. O reformador, o protestante, surgiu da ordem monástica. Houve muitos Luteros prematuros. Em cada insurreição, conta-se, seja religiosa ou mais filosófica, contra o sistema dogmático dominante, um monge foi o líder, e tinha havido três ou quatro dessas inssurreições antes do tempo de Abelardo. Godescalco, no século IX, foi flagelado e aprisionado por sua teimosa confiança no que era chamado de predestinacionismo. João Escoto Erígena, um monge mais erudito da Irlanda ou das ilhas escocesas, foi convidado por Hincmaro, arcebispo de Reims, a se opôr a Godescalco; mas ele não alarmou menos a igreja do que seu antagonista, ao apelar para um novo poder acima da autoridade católica: a razão humana. Ele era um poderoso racionalista, mas especulava em grande parte na teologia escolástica. Sob a censura da igreja, ele fugiu para a Inglaterra, e encontrou um refúgio, conta-se, na nova universidade de Oxford fundada pelo rei Alfredo.

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