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domingo, 6 de setembro de 2020

A Origem e Caráter dos Dominicanos

Como pensamos ser mais satisfatório conhecer o início das coisas, vamos agora descrever brevemente a origem e o caráter desses dois grandes pilares do orgulhoso templo de Roma. Até esta época -- o início do século XIII -- os esforços dos papas foram quase inteiramente confinados à construção deste templo -- o estabelecimento de sua própria supremacia na Igreja e de sua autoridade secular sobre o Estado. Mas a crescente luz dos séculos XI e XII e a crescente depravação da igreja trouxeram ao campo do testemunho muitas nobres testemunhas de Cristo e de Seu evangelho. O templo começou a se abalar. O clero havia alienado os corações das pessoas comuns por seu poder opressor e ganancioso; e sua indolência, indulgência e imoralidades contrastavam desfavoravelmente com a laboriosidade, humildade, abnegação e consistência dos acusados ​​de heresia. Todo o tecido do catolicismo romano estava em perigo, pois esses heresiarcas estavam espalhados por todas as províncias e entre todas as classes da sociedade, até mesmo na própria Roma. O inimigo, percebendo as necessidades do momento, apressou-se em resgatar a hierarquia ameaçada. Os dois homens da época adaptados a essas exigências eram Domingos e Francisco.

Domingos nasceu em 1170, na aldeia de Calaroga, na Velha Castela. Seus pais eram de nome nobre, o de Gusmão, se não de sangue nobre. De acordo com alguns escritores, o efeito de sua ardente eloquência como pregador foi previsto por sua mãe em um sonho, no qual ela dera à luz um filhote carregando um tição de fogo na boca, com o qual ele incendiou o mundo. Mas quer tenha sido sua mãe ou seu monge historiador que teve tal visão, ele respondeu fielmente à semelhança. O aviso de "Cuidado com os cachorros" nunca teve uma aplicação tão verdadeira quanto em Domingos; e o fogo literal, não apenas o fogo de sua eloquência, foi seu agente de destruição escolhido e favorito desde o início de sua carreira. As chamas do inferno, como assim chamava Domingos e seus seguidores, eram reservadas para todos os hereges, e eles consideravam ser uma boa obra iniciar as queimadas eternas ainda aqui neste mundo. Desde a infância, sua vida foi rigidamente ascética (voltada ao monasticismo). Sua natureza, em um período inicial, mostrou sinais de ternura e compaixão, mas seu zelo religioso, com o passar do tempo, fortaleceu-o contra todo impulso bondoso da natureza. Suas noites eram, em sua maior parte, passadas em severos exercícios penitenciais; ele se açoitava todas as noites com uma corrente de ferro, uma vez por seus próprios pecados, uma vez pelos pecadores deste mundo e uma vez pelos do purgatório.

Domingos tornou-se cônego na rigorosa casa de Osma e logo superou os demais em austeridades. Por causa de sua reputação, o bispo espanhol de Osma -- prelado de grande habilidade e forte entusiasmo religioso -- convidou Domingos a acompanhá-lo em uma missão na Dinamarca. Ele então havia atingido os trinta anos de idade e, embora fosse considerado brando para com os judeus e infiéis, ardia em ódio implacável pelos hereges. Tendo cruzado os Pirineus, o zeloso bispo e seu companheiro se encontraram no meio da heresia albigense; não conseguiam fechar os olhos para o estado vergonhoso do clero romano, para o desprezo em que haviam caído e para a prosperidade dos sectários. A missa não era celebrada em alguns lugares havia trinta anos. Também a comissão papal, que havia sido nomeada por Inocêncio III, por volta do ano 1200, foi encontrada em um estado muito abatido. Essa missão, deve-se lembrar, consistia em homens como Reinerius, Gui, Castelnau e o infame Arnaldo, todos monges cistercienses, a descendência espiritual de São Bernardo. Eles lamentaram amargamente sua falta de sucesso: a heresia era surda às suas advertências e ameaças; não respeitavam a autoridade do papa.

 Os legados papais, de acordo com o bom e velho estilo, marchavam por terra, de cidade em cidade, na mais hierárquica pompa, em ricos trajes, com seu séquito e uma vasta cavalgada. "Como esperar sucesso com essa pompa secular?", questionavam os espanhóis, que eram mais severos. "Semeai a boa semente como os hereges semeiam o mal. Jogai fora essas vestes suntuosas, renunciai àqueles palafréns ricamente adornados, andai descalços, sem bolsa e alforje, como os apóstolos; trabalhai duro, rápido, disciplinai esses falsos mestres." O bispo de Osma e seu fiel Domingos enviaram de volta seus próprios cavalos, vestiram-se com as roupas mais rudes de monge, e, assim, lideraram o exército espiritual.

Essa foi a profunda sutileza de Satanás. O poder do Espírito Santo era manifestado pelos homens dos vales e pelos Pobres Homens de Lyon, que se espalharam pelas províncias; e agora vem uma grande demonstração de falsa humildade e falso zelo, uma vil imitação dos dons e graças do Espírito Santo. Era apenas por meio de tais mentiras e hipocrisia que a autoridade de Roma poderia ser mantida, ou que o inimigo poderia esperar manter as nações da Europa no cativeiro.

Já falamos sobre os trabalhos de Domingos no território albigense. Lá ele passou dez anos se esforçando para erradicar a heresia. Formou-se então uma pequena fraternidade, cujos membros saíam de dois em dois, imitando a comissão do Senhor para os setenta. (Lucas 10; Mateus 10) As queimadas em Languedoque então começaram. Como cães de olfato agudo, os dominicanos iam de casa em casa em busca de presas para alimentar a espada de Monforte e as fogueiras que haviam acendido. As grandes realizações de Domingos garantiram-lhe o favor dos pontífices, Inocêncio III e Honório III, que o estabeleceu nos privilégios de um "Fundador". Ele morreu em 1221; mas, antes de abandonar o cenário de suas crueldades, não menos que sessenta mosteiros de sua ordem surgiram em várias regiões da cristandade. Ele foi canonizado por Gregório IX em 1233. O temível tribunal da Inquisição, direta ou indiretamente, sem dúvida, deve sua origem a Domingos, e os mais numerosos e impiedosos de seus oficiais pertenciam a sua irmandade. Mais alguns detalhes poderão ser mencionados ao falarmos sobre os franciscanos, pois tinham coisas em comum.

As Novas Ordens -- São Domingos e São Francisco

Frequentemente, tem sido observado que, onde o Espírito de Deus está operando por meio do evangelho, e onde há resultados manifestos na conversão de almas a Cristo, aí também o inimigo certamente estará ativo. Ele não vai permitir em silêncio que seu reino seja invadido. Pode ser impedindo o trabalho pela perseguição, ou corrompendo-o, induzindo à autocondescendência, ou imitando-o de maneira iníqua e perversa. Temos muitos exemplos tristes de tais coisas na história de Israel e da Igreja -- casos numerosos demais para serem mencionados aqui; mas veremos agora, neste período de nossa história das instituições monásticas, o que explicará o que queremos dizer.

O objetivo especial das novas ordens que surgiram no início do século XIII era contrabalançar a influência que os pregadores albigenses adquiriram sobre as classes mais pobres do povo ao se familiarizarem com elas e constantemente pregarem o evangelho a elas. Pregar o evangelho de Cristo adequadamente para as classes mais humildes foi completamente negligenciado durante séculos pelo clero da igreja romana. Vez ou outra, um pregador fervoroso surgia, tais como Cláudio de Turin, Arnaldo de Bréscia, Fulco de Neuilly, Henrique, o diácono, ou Pedro Valdo, que se dedicaram à obra do evangelho e à salvação de almas; mas esses casos foram poucos e distantes entre si. Mais comumente, as pregações tinham algum objetivo puramente papista, como as Cruzadas, quando o clero tentava despertar o povo com sua eloquência.

"Em teoria", diz o historiador eclesiástico, "era um privilégio especial dos bispos pregar, mas havia poucos entre eles que tinham o dom, a inclinação, o tempo livre de suas ocupações seculares, judiciais ou bélicas, para pregar até mesmo nas catedrais de suas cidades; no restante de suas dioceses, sua presença era apenas ocasional, um progresso, ou uma visitação de pompa e forma, em vez algum tipo de instrução popular. Praticamente o único meio de instrução religiosa era o Ritual, que, no que diz respeito à linguagem utilizada, há muito havia deixado de ser inteligível; e os padres eram quase tão ignorantes quanto o povo; eles apenas aprendiam a passar pelas observâncias da maneira mais mecânica possível. Os casados, ou clérigos seculares, como eram chamados, embora fossem de longe os mais morais e respeitáveis, agiam em oposição às leis da Igreja, e eram até mesmo sujeitos à acusação de viver em concubinato; portanto, seus ministérios tinham muito pouco peso para o povo. O clero regular obedecia à regra externa, mas, segundo todos os relatos, eles violavam tão flagrantemente os princípios mais severos da Igreja, que seu ensino, se tentassem ministrar um ensino verdadeiro, cairia em descrédito na mente do povo."*

{*Dean Milman, vol. 4, pág. 243. J.C. Robertson, vol. 3, pág. 363.}

Tal estado de coisas na Igreja Estabelecida deixou o caminho aberto para os assim chamados hereges. Eles aproveitaram a oportunidade, entraram em cena e trabalharam diligentemente para divulgar suas doutrinas ao povo. Pregar em público e em privado era o segredo, sob a permissão de Deus, do grande sucesso dos valdenses e albigenses. Esta foi desde os primeiros tempos, e ainda é, a maneira divina de disseminar a verdade e reunir almas para Jesus. Quanto mais pública a pregação, melhor. Em todas as épocas agradou a Deus aquilo que o mundo chama de "loucura da pregação, para salvar os crentes". Pregação ao ar livre, visitas e ensino de casa em casa, testemunho público dentro e fora de casa, são maneiras e meios que Deus sempre abençoará. E esses meios parecem ter sido usados ​​diligentemente por aqueles acusados ​​de heresia em Languedoque (os albigenses).

O inimigo atento, observando o efeito desse modo de ação, muda então sua tática. Em vez de calar todos os membros sinceros, fervorosos e piedosos da igreja de Roma nos mosteiros, para pensarem apenas em si mesmos, instruírem-se, orarem e pregarem apenas para si mesmos, ele agora os envia como pregadores ao ar livre e para invadir os próprios campos que haviam sido ocupados por séculos pelos verdadeiros seguidores de Cristo. Seus emissários tinham ordens estritas, não apenas para imitar os hereges, mas para superá-los, na simplicidade de vestir, humildade, pobreza e familiaridade com o povo. Uma mudança completa ocorre então na história das ordens monásticas; no lugar de monges enclausurados, isolados dos olhos do mundo, fazendo suas orações, trabalhando nos campos ou colhendo os frutos de seus jardins, temos frades pregadores nas esquinas de todas as ruas e em todas as cidades da Europa, sim, implorando de porta em porta. Mas isto não foi tudo; sendo favoritos dos pontífices, eles tomaram a direção de quase tudo na Igreja e no Estado por três séculos. “Eles ocupavam os mais altos cargos, tanto civis quanto eclesiásticos”, diz Mosheim, “ensinavam com autoridade quase absoluta em todas as escolas e igrejas, e defendiam a majestade dos pontífices romanos contra os reis, bispos e hereges, com incrível zelo e sucesso. O que os jesuítas foram depois da Reforma, os mesmos foram os dominicanos e franciscanos do século XIII até os tempos de Lutero. Eles eram a alma de toda a Igreja e do Estado, e os projetores e executores de todos tipo de empreendimento no decorrer de toda essa época."


domingo, 22 de março de 2020

A História da Inquisição

Antes do reinado de Constantino, ou da união da Igreja com o Estado, as heresias e as ofensas espirituais eram punidas apenas por meio de excomunhões; mas pouco tempo depois de sua morte,  foram acrescentadas as penas de morte (também chamadas de "pena capital'). Geralmente considera-se que Teodósio tenha sido o primeiro dos imperadores romanos a declarar a heresia como um crime capital. Mas os inquisidores da época não pertenciam à ordem clerical: eram leigos nomeados pelos prefeitos romanos. Prisciliano, o herege espanhol, foi condenado à morte por volta do ano 385. Justiniano, em 529, promulgou leis penais contra os hereges, e, com o passar dos séculos, os procedimentos contra eles foram marcados por uma severidade crescente. Não foi, no entanto, como acabamos de ver, até o século XIII que o tribunal da Inquisição foi estabelecido pela lei canônica. Tornou-se, então, um tribunal criminal, encarregado da detecção, prossecução e punição de heresias, apostasias e outros crimes contra a fé estabelecida. Seja Domingos ou Inocêncio quem tenha recebido o crédito pela invenção da Inquisição, evidentemente ela teve sua origem na guerra albigense. O legado papal descobriu que o massacre aberto de hereges jamais alcançaria o completo extermínio deles. Essa dificuldade levou à criação de uma nova fraternidade, chamada de ordem da Santa Fé, cujos membros eram obrigados, por juramentos solenes, a empregar tudo o que podiam para a repressão do livre estudo e investigação em questões de religião, para manter a unidade da fé, para a destruição de todos os hereges e para a extirpação de toda heresia dos lares, dos corações e das almas dos homens. Mas foi reservado a Gregório IX, no Concílio de Toulouse, fixar o estabelecimento da Inquisição na forma de um tribunal e, ao mesmo tempo, dar-lhe leis positivas.

Esse terrível tribunal foi gradualmente introduzido nos estados italianos, na França, na Espanha e em outros países; mas nunca foi permitido que fosse introduzido, mesmo que à força, nas ilhas britânicas. Na França e na Itália, foram necessários esforços árduos e perseverantes para organizá-lo e estabelecê-lo; a Alemanha resistiu com sucesso a uma Inquisição permanente; na Espanha, no entanto, embora tenha enfrentado alguma oposição a princípio, rapidamente ganhou terreno e, com o tempo, alcançou uma magnitude que, por várias causas, ultrapassou a de qualquer outro país.

Gradualmente, a autoridade dos inquisidores foi ampliada, e eles foram chamados a pronunciar julgamento, não apenas contra palavras e ações, mas também contra os pensamentos e intenções do acusado. Durante o século XIV, seu progresso foi constante, à medida que aumentava continuamente seu rigor e energia. Mas não foi até o final do século XV, quando Isabel, esposa de Fernando II de Aragão, subiu ao trono de Castela, e quando os diferentes reinos da Espanha -- Castela, Navarra, Aragão e Portugal -- se uniram sob esses soberanos, que a Inquisição se espalhou por todo o país e assumiu a forma que manteve até o período de sua dissolução em 1808.*

{* Ver Encyclopedia Britannica, "Inquisition", vol. 12, p. 283. História da Inquisição, de Llorente. Faiths of the World, de Gardner. Milman, vol. 5, p. 16.}

domingo, 8 de março de 2020

A Inquisição Estabelecida em Languedoque

Capítulo 26: A Ordem Monástica (480-1275 d.C.)


Pelo tratado de Paris, em 1229 d.C., a guerra aberta contra o povo de Languedoque chegou ao fim, mas a Inquisição continuou sua cruzada secreta e nem um pouco menos destrutiva. Não bastava que a traição de Arnaldo e a espada de Monforte exterminassem esses hereges; medidas tinham de ser tomadas para evitar que eles reaparecessem novamente. Domingos e seus associados, embora não os tenhamos visto no cerco ou na batalha, estavam fazendo seu terrível trabalho às escondidas. Mas chegara o tempo em que a Inquisição seria canonizada. Em um Concílio realizado em Toulouse em novembro de 1229, foi ordenado que uma Inquisição permanente fosse estabelecida contra os hereges. Um dos cânones revela indiretamente a raiz dessa ira de Satanás, demonstrando a grande honra do nome dos albigenses e lançando uma profunda mancha de culpa sobre o nome de seus perseguidores. Foi descoberto, pelos missionários inquisitoriais, que a Bíblia era a principal fonte das opiniões dos albigenses; portanto, para impedir que o povo a lesse, o Concílio aprovou o seguinte decreto: "Proibimos os livros do Antigo e do Novo Testamento aos leigos; a menos que, talvez, eles desejem ter o Saltério, o Breviário ou as Horas da bem-aventurada Virgem Maria; mas proibimos expressamente que as outras partes da Bíblia sejam traduzidas para a língua vulgar". As escrituras já haviam sido escondidas dos leigos muito tempo antes, mas esta é a primeira proibição direta com a qual nos deparamos.

A interpretação papal desse cânone, ou justificativa de sua severidade, dará ao leitor uma justa amostra de como o clero citava e aplicava as escrituras naqueles dias. "Se até um animal tocar o monte será apedrejado ou passado com um dardo" (Hebreus 12:20). Essa passagem era ensinada como se as pessoas fossem como animais por causa de sua ignorância, a palavra de Deus fosse como uma montanha e, se ousassem tocá-la, seriam mortas instantaneamente. Inocêncio era familiarizado com as Escrituras e as utilizou amplamente, seguindo esse estilo em suas cartas e decretos; mas as palavras divinas, apesar de mal aplicadas, tinham um imenso poder sobre a mente ignorante. Um dos grandes objetivos da Inquisição era manter as pessoas em total escuridão quanto à mente divina sobre assuntos espirituais, para que o poder do clero -- ou melhor, o poder de Satanás, o príncipe das trevas -- pudesse permanecer inquestionável e absoluto. Não somente todo o ensino público das Escrituras foi suprimido pelo Concílio de Toulouse, como também a liberdade de pensamento em segredo era condenada sob as mais severas penalidades. Seria difícil conceber uma impiedade tão ousada: reter a palavra da vida, fazer o povo perecer e tornar a posse dela um crime capital. Isso é certamente o auge da inimizade diabólica contra Cristo e contra as almas preciosas das pessoas. E esses eram os professos pastores das ovelhas, que juraram liderá-las pelos pastos verdejantes e pelas águas tranquilas. Mas não devemos permanecer no assunto com o intuito de alimentar nossa indignação, embora seja difícil continuar sem expressar tal indignação que se eleva no coração contra esse tipo de iniquidade espiritual. Mas, sabendo que a justa sentença deles está com o Deus vivo, podemos reter a nossa.

domingo, 5 de janeiro de 2020

O Verdadeiro Objetivo dos Católicos

O leitor tem agora diante de si o verdadeiro, embora oculto, objetivo desses homens inspirados por Satanás. É a velha e cruel história de Nabote e sua vinha: Jezabel queria as regiões encantadoras do sul como sua própria vinha, e portanto o sangue de Nabote, o jizreelita, tinha que ser derramado. Verá-se pelas ordens secretas do papa a seus legados que a ruína, não somente de Raimundo, mas de todos os príncipes em Languedoque, estava determinada, e que ele tinha enganado o conde Raimundo por uma reconciliação fingida, de modo a separá-lo do resto dos nobres de Languedoque para que pudessem ser destruídos um por um com maior facilidade. Essa era a política de Inocêncio, como vemos escrita de seu próprio punho, e seus legados eram aptos discípulos de seu mestre. Mas os espólios do conde de Toulouse e de todos os seus partidários eram uma questão de necessidade para Simão e para seus aliados, os legados; nada menos do que toda a região sul da França podia satisfazer a avareza de De Monforte e o fanatismo dos ávidos padres. Foi, portanto, determinado que se envolvessem os condes de Foix, Cominges e Beam, com todas as suas dependências territoriais.

O conde de Toulouse era suserano de cinco grandes feudos subordinados. As cortes desses soberanos mesquinhos disputavam umas com as outras em esplendor e bravura. Conta-se que a vida era, para eles, um banquete ou torneio perpétuo. Alguns deles estavam entre os mais distintos dos cruzados no Oriente e tinham trazido para casa muitos costumes de luxo oriental. Não se tratava de hereges, valdenses ou albigenses. Eles eram bons católicos por fora; mas a religião deles não passava de música de trovador. Ainda havia algumas exceções honrosas; podemos traçar a linha prateada da rica graça soberana de Deus nas cortes desses príncipes sensuais. Lemos sobre sobre Almerico, senhor de Montreuil, e sua irmã, dona Geralda de Vetville, que eram albigenses, e que defendiam suas próprias cidades contra os católicos, mas que foram subjugados; e esses senhores e senhoras com muitos outros foram rapidamente destruídos. Almerico, com oitenta nobres, foi trazido perante De Monforte. Ele ordenou que todos eles fossem enforcados, mas a armação de madeira da forca se quebrou, e então eles foram esquartejados. A senhora Geralda foi lançada em um poço e jogaram grandes pedras encima dela. Apenas alguns escaparam do massacre generalizado de Vetville para contar a história. Mas toda aquela região teve um destino similar. O verdadeiro cristão, o cortesão gentil, o cavaleiro galante, a multidão amante dos prazeres que estava tão envolvida com os hábitos luxuosos da região para serem hereges ou fanáticos -- todos tinham de se submeter aos termos papais, ou então deveriam enfrentar a forca, a fogueira ou a espada do carrasco.

Toda a região do sul da França ficou então carregada com a culpa de proteger os hereges; e Raimundo, como senhor suserano, foi convocado a aparecer perante o concílio de Arles. A máscara que até então ocultava a iniquidade selvagem do papa foi tirada. O conde foi ao concílio acompanhado de seu amigo Pedro, rei de Aragão, um católico bom e devoto, que defendeu sua causa e se ofereceu para ser fiador dele. Mas os termos de reconciliação fixados pelos clérigos foram os seguintes -- deixaremos o leitor observá-los cuidadosamente como uma amostra da arrogância e audácia papal naqueles dias: "Que o conde Raimundo deveria dissolver seu exército; que ele deveria demolir todos os seus castelos, despedir todos os comandantes de suas cidades muradas e fortalezas; que ele deveria renunciar a todos os impostos e taxas das quais deriva a principal parte de suas receitas, que ele deveria compelir toda a nobreza e comunidade em seus domínios a vestirem o manto penitencial; que ele deveria entregar todos os seus súditos suspeitos de heresia para serem convertidos ou queimados, conforme o caso; que ele deveria se manter pessoalmente pronto para ir para a Palestina servir sob a irmandade de São João de Jerusalém até que fosse dispensado pelo papa; que cada cabeça de cada família deveria pagar o equivalente a quarenta centavos anualmente ao legado; que ele deveria ser obediente à igreja, pagar todas as despesas que lhe foram cobradas, e durante toda sua vida se submetesse sem contradições. Se todos esses termos forem devidamente satisfeitos, então o legado e o Conde de Monforte lhe restaurará todas as suas terras."*

{* Greenwood, livro 3, cap. 7, p. 546; Milman, vol. 4, p. 218; Sir James Stephen`s Lectures, vol. 1, p. 225. }

A intenção desse novo ultraje era inconfundível; o infeliz conde, desafiando a ordem do concílio, partiu em companhia de seu intercessor, o rei de Aragão. O julgamento foi então dado. "O Conde de Toulouse foi condenado como um herege declarado -- um inimigo da igreja e um apóstata da fé, e seus domínios e propriedades, sejam públicas ou pessoais, serão de posse dos primeiros ocupantes que delas se apropriarem." Esses termos e decretos darão ao leitor uma fraca ideia de como a igreja, usando a mais santificada linguagem e pretensões, conseguia a ruína de um nobre naqueles dias, para que obtivesse posse de suas terras e suas riquezas. Era assim em todo lugar. O príncipe e seu povo deveriam ser afogados em sangue ou consumidos com fogo se suas posses não pudessem ser obtidas por meios mais brandos. Cada Nabote tinha que entregar seu campo a Jezabel, se ela o desejar. E antes de deixar esse ponto, que o leitor tenha em mente que, exatamente nesse momento em que o papa e seus legados trabalhavam pela ruína do conde e dos seus chefes vassalos, os inquisidores Domingos e Reinerius estavam ocupados em um "reconhecimento religioso de toda a área da heresia", tendo a total autoridade do próprio papa para infligir pena de morte aos hereges. Esse terrível tribunal, que então obteve, e até hoje retém, o nome de Inquisição, foi aberto pela primeira vez nesse ano -- um ano de terrível memória, 1210 d.C., em um castelo perto de Narbona.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Raimundo -- Um Bandido Espiritual

Inocêncio tinha então obtido o que desejava -- um pretexto decente para o derramamento total dos frascos de sua ira. As honras do martírio foram decretadas à vítima, Raimundo foi denunciado como o autor do crime e proclamado um bandido espiritual; e os fiéis foram chamados a ajudar em sua destruição. "Para cima, soldados de Cristo", escreveu ele a Filipe Augusto da França, "Para cima, ó grande rei cristão! Ouça o clamor de sangue; ajude-nos a cumprir vingança sobre esses malfeitores. Para cima, ó, nobres, cavaleiros da França, as terras ricas e ensolaradas do sul serão a recompensa de vossa coragem." A pregação dessa cruzada foi confiada à ordem cisterciense, comandada pelo fanático abade Arnaldo, "um homem", como diz Milman, "cujo coração estava embainhado com o triplo ferro do orgulho, da crueldade e da intolerância". Justamente nessa época, muitos missionários caíram na conversa do notável espanhol Domingos, que sempre foi famoso por ter sido o fundador da Inquisição e dos frades dominicanos. Seu coração não era nem um pouco mais suave que o de Arnaldo, e foi mais bem-sucedido como pregador. Nenhum momento foi perdido em denunciar o crime de seus perpetradores. Todo coração e toda mão estava engajada em executar vingança pelo insulto a Deus na pessoa de "Seu servo". As mesmas indulgências que sempre tinham sido concedidas aos campeões do santo sepulcro (das primeiras cruzadas a Jerusalém) foram asseguradas àqueles que deveriam entrar na nova cruzada contra Raimundo e os albigenses. O clero, em todo lugar, pregava com zelo incansável sobre essa nova maneira de se obter o perdão dos pecados e a vida eterna.

"Para aquela geração ignorante e supersticiosa", diz Sir James Stephens, "nenhuma convocação poderia ser mais bem-vinda. Perigo, privações e fadiga, em suas formas mais severas, haviam assolado os caminhos acidentados pelos quais os cruzados do Oriente tinham lutado pelo paraíso prometido. Mas, nessa guerra contra os albigenses, a mesma recompensa inestimável seria ganha, não por abnegação, mas por autoindulgência. Todo débito que se devia aos homens seria anulado, toda ofensa já cometida contra a lei de Deus seria perdoada, e uma eternidade de bênção seria ganha, não por uma vida de santidade futura, mas sim por uma vida de crimes futuros; não por meio de restrições, mas por meio das gratificações de suas mais imundas paixões; pelo saciamento de sua crueldade, avareza e luxúria, às custas de um povo cuja riqueza excitava sua cobiça, e cuja superioridade provocava seu ressentimento." O avanço para essa colheita misturada de sangue e pilhagem, de absolvição sacerdotal e fama militar, impeliu todo espírito selvagem da época. A Europa inteira ressoava com os preparativos para a guerra santa.

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