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domingo, 1 de novembro de 2020

A Guerra da Boêmia

O martírio dos doutores boêmios havia despertado um sentimento geral de indignação tanto nacional quanto religiosa. O imperador, o papa e os prelados muito em breve teriam que pagar amargamente por sua flagrante injustiça e as queimadas de hereges em Constança. A retribuição se seguiu rapidamente. Quatrocentos e cinquenta e dois nobres e cavaleiros da Boêmia e Morávia anexaram seus selos a uma carta dirigida ao concílio, protestando contra os procedimentos da assembleia e as imputações que haviam sido lançadas sobre a ortodoxia da Boêmia, queimando os mais ilustres de seus professores. Mas o conselho se recusou a ouvir essas objeções razoáveis ​​e decidiu não fazer concessões. Os santos padres, como são profanamente chamados, preocupavam-se muito mais com seus próprios prazeres pecaminosos do que com o bem-estar das pessoas. Embora professamente reunidos para a reforma da igreja, o efeito real de sua estada de quatro anos em Constança foi a desmoralização de toda a cidade e seus subúrbios. Nunca foi visto nada igual à licenciosidade e devassidão desse concílio. 

No ano de 1418, pouco antes da dissolução do concílio, Martinho V, agora o único e indiscutível papa, emitiu uma bula de cruzada contra os hereges contumazes, exigindo que todas as autoridades, eclesiásticas e civis, trabalhassem pela supressão das heresias de Wycliffe, Hus e Jerônimo. A questão agora estava bastante comprometida com a decisão pelo uso da espada. O cardeal João, de Ragusa, foi enviado como legado à Boêmia. Ele era um homem violento e falava em reduzir o país pelo fogo e pela espada. Em seu caráter de legado, ele queimou várias pessoas que se opunham à sua autoridade. Os boêmios, por causa dessas atrocidades, ficaram furiosos. Os seguidores de Hus se uniram e se tornaram um partido forte. Eles se comprometeram solenemente a cumprir os princípios de reforma de seu chefe martirizado. Hus havia condenado veementemente a prática da igreja em reter o cálice dos leigos: por isso o adotaram como o símbolo de sua comunidade, exibindo o cálice eucarístico em suas bandeiras. Chefiados por Žižka, o caolho, um cavaleiro de grande gênio militar, eles se moviam pelo país, em todos os lugares obrigando a administração do sacramento em ambos os tipos -- o vinho e também o pão. 

Tendo as igrejas de Praga sido recusadas ao clero que seguia as doutrinas de Hus, eles começaram a procurar lugares onde pudessem desfrutar da liberdade de culto. Uma grande reunião dos hussitas foi convocada no mês de julho de 1419, em uma colina alta, ao sul de Praga, onde foram formalmente unidos pela celebração da comunhão ao ar livre. Deve ter sido uma visão imponente, mas, infelizmente, a sequência de sua história desenha uma sombra escura sobre ela. No cume espaçoso dessa colina, trezentas mesas foram espalhadas e quarenta e duas mil pessoas, consistindo de homens, mulheres e crianças, tomaram o sacramento em ambos os tipos. Uma festa de amor seguiu a comunhão, na qual os ricos compartilharam com os pobres, mas não era permitido beber, dançar, jogar ou ouvir música. Lá o povo acampou em tendas e, gostando do uso de nomes das escrituras, chamou-o de Monte Tabor, do qual obtiveram o nome de taboritas. Eles falavam de si mesmos como o povo escolhido de Deus e estigmatizavam seus inimigos, os católicos romanos, como amalequitas, moabitas e filisteus. 

O luxo, o orgulho, a avareza, a simonia e outros vícios do clero foram denunciados na colina de Tabor, e Žižka e seus seguidores exortaram os comungantes a se engajarem na obra de reforma da igreja. Esta grande assembleia, sob Žižka, marchou primeiro para Praga, onde chegaram à noite. No dia seguinte, um clérigo hussita, caminhando à frente de uma procissão com um cálice na mão, foi atingido por uma pedra ao passar pela prefeitura, onde os magistrados estavam sentados. Assim insultados, muitos deles correram furiosamente para o salão; seguiu-se uma luta feroz: os magistrados foram derrotados, alguns foram mortos, alguns fugiram e alguns foram atirados pelas janelas. O alarme se espalhou, o povo da velha religião se levantou em armas, os reformadores lutaram contra eles como inimigos da verdadeira fé. Žižka e seus seguidores proclamaram-se servos de Deus e sua missão era a reforma de Sua igreja. Mas, infelizmente, eles começaram uma obra de destruição em vez de reforma. Conventos foram atacados e saqueados, monges foram massacrados, igrejas e mosteiros foram reduzidos a ruínas; imagens, órgãos, quadros e todos os instrumentos de idolatria, como eles chamavam, foram quebrados em pedaços. O movimento se espalhou para outros lugares, e uma guerra desoladora, que continuou por muitos e muitos anos, se seguiu.

A Detenção e Prisão de Jerônimo

A notícia da prisão de Hus afetou muito seu amigo e colega de trabalho, Jerônimo de Praga. Ele o seguiu até o concílio; mas sendo avisado por Hus de que corria perigo, e descobrindo que um salvo-conduto não poderia ser obtido, ele partiu para a Boêmia; mas ele foi preso e trazido de volta para Constança acorrentado. Imediatamente após sua prisão, e carregado com muitas correntes, ele foi examinado perante uma congregação geral do concílio. Havia muitos para acusá-lo e insultá-lo; entre eles estava o famoso Gerson de Paris. Mas o prisioneiro declarou firmemente que estava disposto a dar sua vida em defesa do evangelho que pregara. No final do dia, ele foi detido até que o caso de Hus fosse resolvido e entregue aos cuidados do arcebispo de Rigo. Este monstro cruel de um sacerdote o tratou com grande barbárie. Jerônimo era um mestre em teologia, embora um leigo, no sentido de não ser clérigo, e um homem de reconhecida piedade, erudição e eloquência. O corpo deste cavalheiro cristão católico, que ocupava uma posição de destaque nos círculos mais elevados da Boêmia, foi preso a uma viga alta e vertical, com os braços amarrados atrás da cabeça curvada e os pés amarrados. Vários meses de confinamento fatigado, acorrentado nas trevas com uma dieta pobre, e ninguém para confortá-lo ou fortalecê-lo! -- sua mente e espírito falharam sob seus sofrimentos. Ele foi persuadido a retratar totalmente todos os erros contra a fé católica, especialmente os de Wycliffe e Jan Hus.

Pobre Jerônimo! Tendo renunciado às opiniões que lhe foram imputadas, tinha direito à liberdade, mas não havia sentimento, fé, honra ou justiça na assembleia. Ele foi jogado de volta na prisão sob alegadas suspeitas quanto à sinceridade de suas retratações. Isso abriu os olhos de Jerônimo. Deus usou isso para restaurar sua alma. Ele se arrependeu amargamente de sua retratação; a comunhão com Deus foi novamente desfrutada: ele se alegrou mais uma vez à luz de Seu semblante. Novas acusações foram feitas contra ele, para que pudesse ser seduzido a uma humilhação ainda mais profunda. Mas os cabelos do nazireu haviam crescido em sua detestável prisão. Em seu exame final, tendo permissão para falar por si mesmo, ele surpreendeu seus inimigos ao afirmar que a condenação que havia feito de Wycliffe e Hus foi um pecado do qual se arrependeu profundamente. Ele começou pedindo a Deus que governasse seu coração por Sua graça, para que seus lábios nada avançassem senão o que conduzisse à bênção de sua alma. “Não ignoro”, exclamou, “que muitos homens excelentes foram derrubados por falsas testemunhas e injustamente condenados”. Ele então percorreu a longa lista das Escrituras, observando casos como José, Isaías, Daniel, os profetas, João Batista, o próprio bendito Senhor, Seus apóstolos e Estevão. Ele então falou sobre todos os grandes homens da antiguidade que haviam sido vítimas de falsas acusações e que haviam dado suas vidas pela verdade.

A eloquência brilhante de Jerônimo excitou o espanto e a admiração de seus inimigos, especialmente quando consideraram que por trezentos e quarenta dias ele estivera preso em uma masmorra. Toda a sua serena intrepidez havia voltado, ou melhor, ele agora falava na força do Espírito Santo. Ele declarou que nenhum ato de sua vida lhe causou tanto remorso quanto sua covarde abjuração. "Desta retração pecaminosa", ele exclamou, "eu agora me retiro totalmente e estou decidido a manter os princípios de Wycliffe e Hus até a morte, acreditando que sejam as verdadeiras e puras doutrinas do evangelho, assim como suas vidas foram irrepreensíveis e santas." Nenhuma prova adicional de sua heresia foi exigida -- ele foi condenado como um herege reincidente. O bispo de Lodi foi novamente chamado para pregar o sermão fúnebre. Seu texto era: "Lançou-lhes em rosto a sua incredulidade e dureza de coração”, aplicando-o especialmente ao herege incorrigível antes dele (Marcos 16:14). Em resposta, Jerônimo se dirigiu ao conselho e disse: "Condenastes-me sem me terdes declarado culpado de crime algum; uma ferroada será deixada em vossas consciências, um verme que nunca morrerá. Apelo ao Supremo Juiz, perante o qual deveis comparecer comigo para responder por este dia. " Poggio, um escritor católico romano presente na época, declara: "Todos os ouvidos foram cativados e todos os corações tocados; mas a assembleia era muito indisciplinada e indecente." Como Paulo perante Agripa, Jerônimo era sem dúvida o homem mais feliz naquela vasta assembleia. Ele estava desfrutando da presença prometida de Seu bendito Senhor e Mestre.


A Condenação de Hus

Na manhã de 6 de julho de 1415, o concílio se reuniu na catedral. Hus, como herege, foi detido no pórtico durante a celebração da missa. O bispo de Lodi pregou com base no texto: “Para que o corpo do pecado seja desfeito” (Romanos 6:6). Seria difícil dizer se foi por grosseira ignorância ou malícia que ele perverteu a Palavra de Deus para o propósito do concílio. Foi uma declamação feroz contra heresias e erros, mas principalmente contra Hus, que foi considerado tão mau quanto Ário e pior do que Sabélio. Ele encerrou com elogios aduladores ao imperador. “É teu glorioso ofício destruir heresias e cismas, especialmente este herege obstinado”, apontando para o prisioneiro, que estava ajoelhado em um lugar elevado e em oração fervorosa. Cerca de trinta artigos de acusação foram lidos. Hus frequentemente tentava falar, mas não era permitido. A sentença foi então proferida: “Que por vários anos Jan Hus seduziu e escandalizou o povo pela disseminação de muitas doutrinas manifestamente heréticas e condenadas pela igreja, especialmente as de John Wycliffe. Que ele obstinadamente pisoteou as chaves da igreja e as censuras eclesiásticas, que apelou a Jesus Cristo como juiz soberano, ao desprezo dos juízes ordinários da igreja; e que tal apelo foi injurioso, escandaloso e feito em escárnio da autoridade eclesiástica. Que persistiu até o fim em seus erros, e até os manteve em pleno concílio. Portanto, é ordenado que seja publicamente deposto e degradado das ordens sagradas como um herege obstinado e incorrigível." Hus orou para que Deus perdoasse seus inimigos, o que provocou escárnio de alguns membros do conselho; mas no meio de tudo isso ele ergueu as mãos e exclamou: "Eis, gracioso Salvador, como o conselho condena como um erro o que tens prescrito e praticado, quando, vencido pelos inimigos, confiaste a tua causa a Deus teu Pai, deixando-nos este exemplo, para que, quando somos oprimidos, possamos recorrer ao julgamento de Deus." Em suas observações finais, ele se virou e olhou fixamente para Sigismundo, e disse: "Vim a este conselho sob a fé pública do Imperador." Um profundo rubor passou por seu rosto com essa repreensão repentina e inesperada.


domingo, 18 de outubro de 2020

O Exame de Jan Hus

No primeiro movimento contra Hus, o arcebispo de Praga instituiu uma busca vigilante pelas traduções dos escritos de Wycliffe; e, tendo coletado cerca de duzentos volumes, muitos deles ricamente encadernados e decorados com preciosos ornamentos, fez com que fossem queimados publicamente no mercado de Praga. Tanto foi dito quanto à identidade das doutrinas de Hus com as de Wycliffe, que o concílio condenou como heréticos sob quarenta e cinco proposições; e decretou que os ossos de Wycliffe deveriam ser tirados de sua sepultura e queimados. Hus também foi acusado de estar "infectado com a lepra dos valdenses". Sob esses dois nomes, o do wycliffismo e do valdensianismo, um vasto número de acusações especiais, grosseiramente ofensivas à hierarquia, foram contidas. 

O concílio, embora empenhado na destruição de Hus, teria evitado de bom grado o escândalo de um exame público. Certas passagens que seus inimigos extraíram de seus escritos foram consideradas suficientes para sua condenação sem uma audiência pública. Consequentemente, ele foi continuamente assediado e perseguido em sua cela por visitas privadas, incitando-o a se retratar ou confessar; e não raramente foi escarnecido e insultado. Ele protestou contra esta inquisição secreta e exigiu para sua defesa uma audiência de todo o concílio. Seu fiel amigo, John de Chlum, com outros nobres da Boêmia, pediram ao imperador que interferisse, e com sua ajuda o objetivo dos padres foi derrotado e um julgamento público foi obtido. 

Em 5 de junho de 1415, Jan Hus foi levado acorrentado ao grande senado da Cristandade. As acusações contra ele foram lidas. Mas quando ele propôs manter suas doutrinas pela autoridade das Escrituras e do testemunho dos Pais, sua voz foi afogada em um tumulto de desprezo e escárnio. A assembleia foi obrigada a encerrar seus trabalhos. Dois dias depois, ele foi trazido novamente, e o próprio Sigismundo compareceu para preservar a ordem. 

Os acusadores de Hus eram numerosos, embora menos clamorosos do que no dia anterior. Com exceção de dois ou três nobres boêmios, o reformador ficou sozinho. Ele estava grandemente exausto pela doença e enfraquecido pelo longo confinamento, mas seu nobre espírito recusou-se a se curvar diante da violência de seus perseguidores. Ele respondeu com grande calma e dignidade: "Não me retratarei, a menos que você prove o que eu disse ser contrário à Palavra de Deus", foi sua resposta usual. Quando acusado de ter pregado as doutrinas wycliffitas, ele admitiu ter dito que "Wycliffe era um verdadeiro crente, que sua alma agora estava no céu, que ele não poderia desejar que sua própria alma estivesse mais segura do que a de Wycliffe." Essa confissão provocou uma explosão de risos desdenhosos dos reverendos padres; e, após algumas horas de discussão turbulenta, Hus foi retirado e a assembleia se desfez; ele voltou para sua prisão, e eles, ou pelo menos muitos deles, para suas cenas da mais grosseira devassidão.

A Disseminação da Verdade

O casamento de Ana da Boêmia com Ricardo II da Inglaterra havia colocado os dois países em estreita conexão, exatamente no momento em que as doutrinas de Wycliffe estavam fazendo seu mais rápido progresso. "Eruditos boêmios", diz Milman, "sentaram-se aos pés do ousado professor de teologia de Oxford; estudantes ingleses foram encontrados em Praga. Os escritos de Wycliffe foram trazidos para a Alemanha em grande número, alguns em latim, alguns traduzidos para a língua boêmia, e disseminado por admiradores partidários." A princesa, cujos exercícios piedosos e estudo das Escrituras foram comemorados por pregadores e historiadores, foi afetada pela primeira vez pelo movimento de Reforma em sua própria terra. Ela trouxe consigo para a Inglaterra versões dos Evangelhos nas línguas alemã e boêmia, bem como em latim. Esses eram então tesouros preciosos para alguém de sua piedade e amor pela pura Palavra de Deus; mas também nos mostram, embora indiretamente, o progresso que as novas doutrinas estavam fazendo na Alemanha naquele período inicial.

Um de seus primeiros atos na Inglaterra mostra o poder da graça de Cristo em seu coração e apresenta um contraste notável com o espírito perseguidor de Jezabel. "Alguns dias após o casamento do casal real", diz a Srta. Strickland, "eles voltaram a Londres, e a coroação da Rainha foi realizada de forma magnífica. A pedido sincero da jovem Rainha, um perdão geral foi concedido pelo Rei em sua consagração. As pessoas aflitas precisavam dessa trégua, pois as execuções, desde a insurreição de Wat Tyler, tinham sido sangrentas e bárbaras como nunca antes. A terra estava fedendo com o sangue dos infelizes camponeses quando a intercessão humana da gentil Ana de Boêmia pôs fim às execuções. Essa mediação obteve para a noiva de Ricardo o título de ‘A boa Rainha Ana'; e os anos, em vez de prejudicar a popularidade, geralmente tão evanescente na Inglaterra, apenas aumentaram a estima sentida por seus súditos por esta princesa benéfica."

Como é verdadeiramente revigorante encontrar tal exemplo de piedade consistente em tal período, e em tal condição de vida! Mas havia muitos assim naquela época na Boêmia e em outras terras. Após a morte de Ana, seus assistentes boêmios voltaram ao seu próprio país e levaram consigo os valiosos escritos de John Wycliffe. Eles tinham sido estudados por muitos estrangeiros em Oxford e agora eram lidos diligentemente pelos membros da Universidade de Praga.

O mais famoso desses doutores estudiosos foi Jan Hus, ou Jan de Hassinetz, um vilarejo próximo à fronteira da Bavária. Ele nasceu por volta do ano de 1369, de modo que devia ter cerca de quinze anos de idade quando seu admirado e reconhecido professor, o venerável Wycliffe, morreu. É interessante olhar para trás e contemplar os caminhos de nosso Deus em Seu cuidado para a manutenção e difusão da verdade. Quem então poderia ter pensado, que em um vilarejo obscuro da Boêmia, Ele estava levantando e qualificando uma nobre testemunha, que deveria levar, por sua vez, "a tocha da verdade, e transmiti-la com mão de mártir a um longo sucessão de testemunhas -- seria ele digno do ofício celestial?"* Ele logo se distinguiu, como somos informados, pela força e sutileza de seu entendimento, pela modéstia e gravidade de seu comportamento e pela austeridade irrepreensível de sua vida. Ele era alto, esguio, com um semblante pensativo; gentil, amigável e acessível a todos. Sendo seus talentos de tão alto nível, foi enviado para a Universidade de Praga, com o objetivo de estudar para a igreja. Ali ele se distinguiu por suas extensas realizações como estudioso. Ele avançou rapidamente nas preferências religiosas e universitárias e foi feito confessor da Rainha Sofia. Ele também foi nomeado pregador na capela da universidade, chamada Belém -- a casa do pão -- por conta do alimento espiritual que estava ali para ser distribuído em língua vernácula.

{* Waddington, vol. 3, pág. 175.}

Isso deu ao corajoso e eloquente pregador uma excelente oportunidade para revelar a Palavra de Deus ao povo em sua língua materna; e não temos dúvidas de que fez isso, pois era um cristão sincero e uma verdadeira testemunha de Cristo. Mas como a maioria dos reformadores -- senão todos -- ele talvez tenha estado mais ansioso, no início, em pregar contra os abusos prevalecentes do que instruir o povo na pura verdade de Deus. Estamos convencidos de que geralmente tem sido esse o caso, e em todos os tipos de reforma, e que possa ser essa atitude a responsável pelas muitas cenas de violência na melhor das causas. Se o povo fosse conduzido, antes de tudo, pela bênção de Deus, a receber a verdade, especialmente a verdade como a encontramos em Jesus, o fim seria alcançado sem que a mente se inflamasse por ouvir denúncias em linguagem forte sobre os vícios de seus opressores sacerdotais. O orgulho, luxo e licenciosidade de todo o sistema clerical tornaram-se intoleráveis para a humanidade; de modo que condenar os abusos sem tocar nas doutrinas da igreja era o caminho principal para a popularidade.

Deus é mais sábio do que os homens; e se formos guiados por Sua palavra, devemos procurar levar os ignorantes a amar a verdade e segui-la, em vez de criar em suas mentes um ódio pelo erro que, sem o conhecimento de Cristo, certamente terminará em excitação revolucionária e desastre. Este princípio divino é aplicável tanto às menores quanto às maiores disputas entre os homens. É sempre melhor iluminar do que agitar. "Ao servo do Senhor não convém contender, mas sim, ser manso para com todos, apto para ensinar, sofredor; instruindo com mansidão os que resistem, a ver se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade, e  tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do diabo, em que à vontade dele estão presos.” (2 Timóteo 2:24-26)

O Concílio de Constança

Constança, uma cidade imperial no lado alemão dos Alpes, foi considerada um local adequado para a reunião de tal assembleia. Era acessível de todas as partes do mundo ocidental da época e as provisões podiam ser obtidas mais facilmente por meio de seu amplo lago. Tão grande foi o afluxo de pessoas, que se calculou que não menos de trinta mil cavalos foram trazidos para Constança, o que pode nos dar uma ideia da enorme multidão de pessoas e das cargas dos navios das provisões que seriam necessárias. Além de dignitários eclesiásticos de todos os inumeráveis nomes, havia mais de cem príncipes; cento e oito condes; duzentos barões; e vinte e sete cavaleiros. Torneios, festas e várias diversões eram organizados para aliviar suas ocupações espirituais; quinhentos menestréis compareceram para divertir as horas vagas desses “santos” padres e nobres, e para acalmar suas mentes ansiosas; eles haviam se reunido com o propósito declarado de curar a ferida quase mortal do papado; mas quais são os fatos da história? Pelo espaço de três anos e meio -- começando em 5 de novembro de 1414 -- esses homens dissolutos encheram a pacata cidade antiga de Constança com sua impiedade descarada. Descrever aquilo que então era claro como o dia contaminaria as páginas da nossa história. O coração estremece quando pensamos na impureza, na impiedade ousada e hipocrisia desses chamados santos padres, para não falar de sua crueldade implacável ao queimarem na fogueira Hus e Jerônimo. 

O objetivo deste grande concílio era duplo. Primeiro, era para pôr fim ao cisma que afligiu a igreja por tantos anos. E segundo, era para a supressão das heresias de Wycliffe e Hus. O primeiro desses objetivos fora até então realizado de forma satisfatória. Tendo estabelecido que um pontífice está sujeito a um concílio de toda a igreja, João XXIII foi deposto devido às irregularidades de sua vida e à violação de seu juramento ao imperador. Gregório e Bento foram novamente depostos, e Otão de Colonna foi eleito pontífice, assumindo o nome de Martinho V

As doutrinas de Wycliffe, que Jan Hus e seus seguidores foram acusados ​​de propagar nas cidades e vilas da Boêmia, e até mesmo na Universidade de Praga, eram ofensivas demais para os membros do concílio, e agora ocupavam a atenção deles.

O Movimento de Reforma na Boêmia

Capítulo 31: Boêmia (1409-1471 d.C.)

É verdadeiramente satisfatório saber que as benditas verdades do evangelho, que salvam almas e que foram ensinadas por Wycliffe e seus seguidores, já estavam produzindo resultados de uma importância ampla e duradoura: que, apesar de todos as execuções na fogueira e assassinatos de Roma, essas verdades estavam permeando profundamente nos corações de milhares e centenas de milhares, e se espalhando por quase todas as partes da Europa. O bispo de Lodi no concílio de Constança, em 1416 -- um ano antes do martírio de Cobham e 36 anos após a tradução da Bíblia -- declarou que as heresias de Wycliffe e Hus se espalharam pela Inglaterra, França, Itália, Hungria, Rússia, Lituânia, Polônia, Alemanha e por toda a Boêmia. Assim, um amargo inimigo é inconscientemente -- ou não intencionalmente -- a testemunha da influência e da inextinguível vitalidade da boa semente da Palavra de Deus. 

Mas aqui será necessário preparar nosso caminho dizendo algumas palavras sobre o grande cisma papal, antes de traçarmos a ampla linha prateada da graça de Deus no testemunho e martírio de Hus e Jerônimo.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O Julgamento de Lorde Cobham

As vítimas sob este novo surto de perseguição eram de todas as classes; mas o mais distinto por caráter e posição foi Sir John Oldcastle, que, pelo direito hereditário de sua esposa, sentou-se no parlamento como Lorde Cobham. Ele é conhecido como um cavaleiro da mais alta reputação militar e que serviu com grande distinção nas guerras francesas. Todo o ardor de sua alma estava agora lançado em sua religião. Ele era um wycliffita -- um crente na palavra de Deus, um leitor dos livros de Wycliffe e um violento opositor do papado. Ele havia feito várias cópias dos escritos do reformador e encorajado os padres pobres a distribuí-los e a pregar o evangelho por todo o país. E enquanto Henrique IV viveu, não foi molestado: o rei não permitiria que o clero colocasse as mãos em seu antigo favorito. Mas o jovem rei Henrique V não tinha o mesmo apreço por Sir John, embora soubesse algo sobre seu valor como soldado valente e general habilidoso, e desejasse salvá-lo.

O primaz Arundel observava de perto os movimentos de seu antagonista, e resolveu esmagá-lo. Ele foi acusado de ter muitas opiniões heréticas e, com base nesses crimes, foi denunciado ao rei. Ele foi convocado a comparecer e responder perante Henrique. Cobham alegou a mais submissa lealdade. "Eu estou muito pronto e disposto a obedecer: és um rei cristão, o ministro de Deus que não empunha a espada em vão, para o castigo dos malfeitores e a recompensa dos justos. A ti, sob a autoridade de Deus, eu devo toda a minha obediência. Tudo o que me ordenares em nome do Senhor estou pronto para cumprir. Ao papa não devo obediência nem serviço, ele é o grande anticristo, o filho da perdição, a abominação da desolação no lugar sagrado." Henrique afastou a mão de Cobham enquanto apresentava sua confissão de fé: "Não vou receber este documento: apresentem-no aos seus juízes." Cobham retirou-se para seu forte castelo de Cowling, perto de Rochester. Ele tratou com total desprezo as convocações e excomunhões do arcebispo. O rei foi influenciado a enviar um de seus oficiais para prendê-lo. A lealdade do velho barão reverenciou o oficial real. Se fosse qualquer um dos agentes do papa, ele teria resolvido a questão com sua espada, de acordo com o espírito militar da época, ao invés de ter obedecido. Ele foi levado para a Torre: uma viagem de mau agouro para quase todos os que já passaram por ali!

O tribunal eclesiástico, tal como foi com John Badby, estava sentado na Catedral de São Paulo. O prisioneiro apareceu. "Devemos acreditar", disse Arundel, "no que a santa igreja de Roma ensina, sem exigir a autoridade de Cristo." Ele foi chamado a confessar seus erros. "Acredite!" gritaram os padres, "acredite!" "Estou disposto a acreditar em tudo o que Deus deseja", disse Sir John; "Mas que o papa deve ter autoridade para ensinar o que é contrário às Escrituras, nisto eu nunca vou acreditar." Ele foi levado de volta à Torre. Dois dias depois, foi julgado novamente no convento dominicano. Uma multidão de padres, cônegos, frades, escrivães e vendedores de indulgências lotou o grande salão do convento e atacou o prisioneiro com linguagem abusiva. A indignação reprimida do velho veterano finalmente explodiu em uma denúncia profética e selvagem contra o papa e os prelados. "Vossa riqueza é o veneno da igreja", gritou ele em alta voz. "O que você quer dizer", disse Arundel, "com veneno?" "Vossos bens e vossos senhorios... Considerai isto, todos os homens. Cristo era manso e misericordioso; o papa é altivo e um tirano. Roma é o ninho do anticristo; desse ninho saem seus discípulos." Ele foi então considerado herege e condenado.

Retomando sua calma coragem, ele caiu de joelhos e, erguendo as mãos ao céu, exclamou: "Eu te confesso, ó Deus! E reconheço que em minha frágil juventude eu Te ofendi seriamente com meu orgulho, raiva, intemperança e impureza: por essas ofensas eu imploro Tua misericórdia!" Com uma linguagem branda, mas com um propósito severo e inflexível, o astuto padre se esforçou para reduzir o espírito elevado do barão, mas em vão. "Eu não vou acreditar de outra forma além da que eu já vos disse. Fazei comigo o que quiserdes. Por quebrar os mandamentos de Deus, o homem nunca me amaldiçoou, mas por quebrar vossas tradições eu e outros somos assim cruelmente tratados." Ele foi lembrado de que o dia estava terminando, e que ele deveria se submeter à igreja ou a lei deveria seguir seu curso. "Não peço a vossa absolvição: a única coisa que preciso é de Deus", disse o honesto cavaleiro, com o rosto ainda encharcado de lágrimas. A sentença de morte foi então lida por Arundel com uma voz clara e alta, todos os sacerdotes e pessoas de pé com suas cabeças descobertas. "Está bem", respondeu o intrépido Cobham, "embora condenais meu corpo, não tendes poder sobre minha alma." Ele novamente se ajoelhou e orou por seus inimigos. Ele foi conduzido de volta à Torre; mas antes do dia marcado para sua execução ele escapou.

Rumores de conspirações, de um levante geral dos lolardos, agora circulavam pelos padres e frades. O rei ficou alarmado; cerca de quarenta pessoas foram imediatamente julgadas e executadas; uma nova e violenta lei foi aprovada para a supressão dos lolardos; o governo temia que um homem como Cobham liderasse a insurreição; mil marcos foram oferecidos por sua prisão. Não parece que tenha havido qualquer fundamento para esses alarmes, exceto as mentiras dos padres -- seus falsos rumores. Por cerca de três anos, Lorde Cobham esteve escondido no País de Gales. Ele foi trazido de volta em dezembro de 1417 e sofreu sem demora.

Os Lolardos

Wycliffe não organizou nenhuma seita durante sua vida, mas o poder de seu ensino se manifestou no número e zelo de seus discípulos após sua morte. Da cabana do camponês ao palácio da realeza, eles podiam ser encontrados em todos os lugares sob o vago nome de "Lolardos". Multidões se reuniam em torno de seus pregadores. Eles negavam a autoridade de Roma e mantinham a supremacia absoluta da Palavra de Deus somente. Eles sustentavam que os ministros de Cristo deveriam ser pobres, simples e levar uma vida espiritual; e eles pregaram publicamente contra os vícios do clero. Por um tempo, eles encontraram tanta simpatia e sucesso que, sem dúvida, pensaram que a Reforma estava prestes a triunfar na Inglaterra.

No ano de 1395, os seguidores de Wycliffe corajosamente peticionaram ao Parlamento para que "abolissem o celibato, a transubstanciação, as orações pelos mortos, as oferendas a imagens, a confissão auricular" e muitos outros abusos papistas, e então pregaram sua petição nos portões da Catedral de São Paulo e da Abadia de Westminster. Mas esses murmúrios de um povo sobrecarregado e oprimido foram perdidos de vista naquele momento com o destronamento e a morte do rei Ricardo II, filho do favorito Príncipe Negro, e a ascensão de Henrique IV, o primeiro da dinastia Lancastriana.

Quando Henrique, filho do famoso duque de Lancaster, o amigo e patrono de Wycliffe, subiu ao trono, os lolardos naturalmente esperavam no novo rei um defensor caloroso de seus princípios. Mas nisso eles ficaram amargamente desapontados. O arcebispo Arundel, o implacável inimigo dos lolardos, teve grande influência sobre Henrique. Ele contribuiu mais do que todos os outros adeptos para a derrubada de Ricardo e a usurpação de Henrique. Arundel tinha grande influência, era nobre, arrogante, inescrupuloso como partidário, hábil como político e, além disso, praticava a astúcia e a crueldade peculiares ao sacerdócio. Ele havia decidido, por influência do rei, sacrificar os lolardos. Praticamente o primeiro ato de Henrique IV foi declarar-se o defensor do clero, dos monges e dos frades contra seus perigosos inimigos.

Reflexões Sobre a Vida de Wycliffe

O cristão humilde, a testemunha ousada, o pregador fiel, o professor competente e o grande reformador saíram de cena. Ele foi descansar e sua recompensa está nas alturas. Mas as doutrinas que ele propagou com tanto zelo nunca podem morrer. Seu nome em seus seguidores continuou formidável contra os falsos sacerdotes de Roma. "De cada dois homens que você encontra pelo caminho", disse um adversário amargurado, "um é wycliffita." Ele foi usado por Deus para dar um impulso ao questionamento cristão que foi sentido nos cantos mais distantes da Europa e que continuou através dos tempos futuros. Nenhuma pessoa expressou um senso mais justo da influência dos trabalhos bíblicos de Wycliffe do que o Dr. Lingard, o historiador católico romano. Assim ele escreve: "Ele fez uma nova tradução, multiplicou cópias com a ajuda de transcritores, e por seus padres pobres recomendou seus ouvintes à sua leitura. Nas mãos deles, tornou-se um motor de poder incrível. Os homens ficaram lisonjeados com o apelo a seu julgamento particular das Escrituras; as novas doutrinas insensivelmente adquiriram partidários e protetores nas classes mais altas, os únicos familiarizados com o uso das letras; um espírito de questionamento foi gerado; e as sementes daquela revolução religiosa, que, em pouco mais de um século, surpreendeu e convulsionou as nações da Europa, foram lançadas." Muitas das doutrinas de Wycliffe estavam muito adiantadas em relação à época em que viveu. Ele antecipou os princípios de uma futura geração mais iluminada. “Só a Escritura é a verdade”, disse ele; e sua doutrina foi formada somente sobre esse fundamento. Mas foi a tradução e circulação da Bíblia que deu eficácia duradoura às santas verdades que ele ensinou, e foi a coroa imperecível de todos os seus outros trabalhos -- o tesouro que ele legou para o futuro e para épocas melhores. *

{* Waddington, vol. 3, pág. 175.}

Enquanto Wycliffe confinasse suas veementes denúncias ao espírito anticristão da corte de Roma, à riqueza do clero e aos dogmas peculiares do papado, ele poderia contar com muitos protetores poderosos. Ele poderia varrer um a um os muitos abusos do sistema; mas assim que ele ascendeu à região mais elevada da verdade positiva e da graça gratuita de Deus, o número e entusiasmo de seus seguidores declinou rapidamente. Sua controvérsia doutrinária garantiu seu banimento de Oxford cerca de dois anos antes de sua morte. Mas isso, na providência de Deus, foi permitido para dar-lhe um período de repouso no final de uma vida laboriosa e tempestuosa. Por muitos anos ele pregou as doutrinas mais distintas dos reformadores do século XVI, especialmente as defendidas por Calvino. Mas sua oposição à doutrina romana da salvação pelas obras o levaria naturalmente a falar com veemência. "Acreditar no poder do homem na obra de regeneração", dizia ele, "é a grande heresia de Roma, e desse erro veio a ruína da igreja. A conversão procede somente da graça de Deus, e o sistema que o atribui em parte ao homem e em parte a Deus é pior do que o pelagianismo. Cristo é tudo no Cristianismo; todo aquele que abandona aquela fonte que está sempre pronta a dar vida e se volta a águas lamacentas e estagnadas, é um louco. A fé é um dom de Deus, ela põe de lado todo mérito humano, e deve banir todo o medo da mente. Que os cristãos se submetam não à palavra de um padre, mas à palavra de Deus. Na igreja primitiva havia apenas duas ordens, bispos e diáconos: o presbítero e o bispo, ou supervisor, eram a mesma pessoa. A chamada mais sublime que o homem pode alcançar na terra é a de pregar a palavra de Deus. A verdadeira igreja é a assembleia dos justos por quem Cristo derramou Seu sangue.”

Tais eram os pontos essenciais da pregação e panfletos de Wycliffe por quase quarenta anos, proclamados com grande fervor e habilidade em meio à escuridão papal, à superstição e às piores formas de mundanismo. Escrever as palavras que foram transmitidas à posteridade tão grandiosa, tão gloriosamente, uma obra do Espírito de Deus em nossa terra*, faz com que o coração se expanda e se eleve ao trono da graça em louvor e ação de graças não fingido, sem mistura, sem fim. Os papas, cardeais, arcebispos, bispos, abades e doutores que tinham sede de seu sangue, ou decaíram das páginas da história, ou estão associados em nossas mentes ao demônio da perseguição, enquanto o nome e a memória de John Wycliffe continuam a ser mantidos com veneração intacta e crescente. **

{* N. do T.: O autor deste livro viveu na Inglaterra.}

{** Ver Enciclopédia Britânica, vol. 21, pág. 949; D'Aubigné, vol. 5, pág. 137.}

Traduções Parciais

A primeira tentativa de algo parecido com uma tradução vernácula de uma parte das sagradas escrituras parece ter sido realizada no século VII. Até este período, elas estavam disponíveis apenas na língua latina na Inglaterra, e, estando principalmente nas mãos do clero, o povo em geral recebia o que sabia da revelação de Deus por meio da instrução deles. Mas, como a maioria dos padres não sabia nada mais do que o que eram obrigados a repetir no culto da igreja, as pessoas ficaram em total escuridão.

O venerável Beda menciona um poema em língua anglo-saxônica, que leva o nome de Caedmon, que fornece com fidelidade tolerável algumas das partes históricas da Bíblia; mas, devido ao seu caráter épico, não foi classificado com as versões dos escritos sagrados. Mesmo assim, foi o início desta obra abençoada, pela qual podemos ser verdadeiramente gratos. Pode ter dado a ideia a outros mais competentes e sido o precursor de traduções reais.

No século VIII, Beda traduziu o credo dos apóstolos e a oração do Senhor para o anglo-saxão, que ele frequentemente apresentava a padres analfabetos: e um de seus últimos esforços foi uma tradução do Evangelho de São João, que supõe-se ser a primeira parte do Novo Testamento que foi traduzida para a língua vernácula do país. Ele morreu em 735.

O rei Alfredo, em seu zelo pelo aprimoramento de seu reino, não negligenciou a importância das escrituras vernáculas. Com a ajuda dos sábios de sua corte, ele mandou traduzir os quatro Evangelhos. E Elfrico, no final do século X, havia traduzido alguns livros do Antigo Testamento. Por volta do início do reinado de Eduardo III, Guilherme de Shoreham traduziu o Saltério para a língua anglo-normanda; e ele foi logo seguido por Ricardo Rolle, padre da capela em Hampole. Ele não apenas traduziu o texto dos Salmos, mas acrescentou um comentário em inglês. Ele morreu em 1347. O Saltério parece ser o único livro das escrituras que foi totalmente traduzido para o inglês antes da época de Wycliffe. Mas era chegado o momento na providência de Deus para a publicação de toda a Bíblia e para sua circulação entre o povo. Cada circunstância, apesar do inimigo, foi anulada por Deus para favorecer o nobre desígnio de Seu servo.

Tendo recebido muitos avisos, muitas ameaças, e experimentado algumas fugas por um triz da masmorra repugnante e da pilha em chamas, foi permitido a Wycliffe encerrar seus dias em paz, no meio de seu rebanho e seus trabalhos pastorais em Lutterworth. Depois de quarenta e oito horas de doença devido a um ataque de paralisia, ele morreu no último dia do ano de 1384.*

{* Para maiores detalhes sobre as primeiras traduções para o inglês, consulte o prefácio da Bíblia de Wycliffe, editada pelo Rev. Josiah Forshall e Sir Frederick Madden, ambos do Museu Britânico. É um livro nobre, in-fólio de quatro volumes, impresso na University Press, Oxford, e um nobre monumento ao zelo e devoção cristã, sob a proteção da mão de Deus. Veja também o prefácio de English Hexapla, de Bagster.}

domingo, 4 de outubro de 2020

Wycliffe e a Bíblia

Sem prosseguirmos mais minuciosamente sobre os trabalhos gerais de Wycliffe, ou sobre as conspirações de seus inimigos para interrompê-lo, agora tomaremos nota do que foi a grande obra de sua vida útil -- a versão completa em inglês das Sagradas Escrituras. Nós o vimos atacando corajosamente e sem medo e expondo os incontáveis ​​abusos do papado, revelando a verdade aos estudantes e zelosamente pregando o evangelho aos pobres; mas agora o vemos empenhado em uma obra que enriquecerá mil vezes mais sua própria alma. Ele se envolveu ainda mais exclusivamente com as Escrituras Sagradas. Só depois de se familiarizar mais com a Bíblia é que ele rejeitou as falsas doutrinas da igreja de Roma. Uma coisa é ver os abusos externos da hierarquia, outra é ver a mente de Deus nas doutrinas de Sua palavra.

Assim que a tradução de um trecho foi concluída, o trabalho dos copistas começou, e a Bíblia logo foi amplamente distribuída, seja no todo ou em partes. O efeito de trazer assim para casa a Palavra de Deus para os iletrados -- para os soldados cidadãos e as classes mais baixas – é algo que está além do poder humano de estimar. Mentes foram iluminadas, almas foram salvas e Deus foi glorificado. "Wycliffe", disse um de seus adversários, "tornou o evangelho algo comum e mais aberto a leigos e mulheres que sabem ler do que costuma ser para escriturários bem instruídos e de bom entendimento; de modo que a pérola do evangelho está sendo espalhada e pisada por porcos." No ano de 1330, a Bíblia em inglês estava completa. Em 1390, os bispos tentaram fazer com que a versão fosse condenada pelo Parlamento, para que não se tornasse ocasião para heresias; mas João de Gante declarou que os ingleses não se submeteriam à degradação de lhes ser negada uma Bíblia vernácula. "A Palavra de Deus é a fé de Seu povo", foi dito, "e mesmo que o papa e todos os seus membros desaparecessem da face da terra, nossa fé não falharia, pois se baseia somente em Jesus, nosso Mestre e nosso Deus." Tendo falhado a tentativa de proibição, a Bíblia inglesa se espalhou por toda parte, sendo difundida principalmente por meio dos esforços dos "padres pobres", assim como foi com "os pobres homens de Lyon" em um período anterior.

O leitor cristão não deixará de identificar a mão do Senhor nesta grande obra. O grande e divino instrumento estava agora pronto e nas mãos do povo, por meio do qual a Reforma no século XVI seria realizada. A Palavra de Deus, que vive e permanece para sempre, é resgatada dos obscuros mistérios da escolástica, das estantes empoeiradas do claustro, da obscuridade das eras e dada ao povo inglês em sua própria língua materna. Quem pode estimar tal bênção? Que as milhares de vezes e as milhares de línguas que louvarão ao Senhor para sempre deem a resposta. Mas oh, que maldade! Que maldade assassina de almas do sacerdócio romano em esconder a Palavra da vida dos leigos! Será que a gloriosa verdade do amor de Deus ao mundo no dom de Seu Filho -- da eficácia do sangue de Cristo para purificar de todo pecado -- deveria ser ocultada da multidão que perece e vista apenas por uns poucos privilegiados? Não há refinamento na crueldade na face de toda a terra que se compare a isso. É a ruína da alma e do corpo no inferno para todo o sempre.

Wycliffe e as Bulas Pontifícias

Wycliffe estava novamente em liberdade. As severidades que seus perseguidores tinham planejado contra ele não foram infligidas, e ele continuou a pregar e instruir o povo com zelo e coragem inabaláveis. Mais ou menos nessa época, havia dois papas (ou antipapas); um em Roma e um em Avignon. Esse fato é mencionado na história como "O Grande Cisma do Ocidente" e caricaturado por alguns escritores como o Anticristo fendido, ou de duas cabeças. Por qual das cabeças a alegada sucessão apostólica fluiu, deixamos para o leitor julgar por si mesmo. Wycliffe denunciou ambos os papas como anticristos e encontrou forte simpatia nos corações e mentes das pessoas. Seguiram-se as cenas mais vergonhosas. O pontífice de Roma proclama guerra contra o pontífice de Avignon. Uma cruzada é pregada em favor do primeiro. As mesmas indulgências são concedidas aos cruzados da antiguidade que foram para a Terra Santa. Orações públicas são oferecidas, por ordem do primaz, em todas as igrejas do reino, pelo sucesso do pontífice de Roma contra o pontífice de Avignon. Os bispos e o clero são chamados a impor a seus rebanhos o dever de contribuir para esse “propósito sagrado”. Sob o comando do capitão mitrado, Spencer, o jovem bispo marcial de Norwich, os cruzados avançaram. Eles tomaram Gravelines e Dunquerque, na França; mas, que terrível! Esse exército do papa, chefiado por um bispo inglês, superou a desumanidade comum da época. Homens, mulheres e crianças foram feitos em pedaços em um vasto massacre. O bispo carregava uma enorme espada de duas mãos, com a qual parece ter abatido com grande boa vontade o rebanho inflexível do papa rival em Avignon.

Essa expedição só poderia terminar em vergonha e desastre. Isso abalou o papado em seus alicerces e fortaleceu grandemente a causa do reformador. De 1305 a 1377, os papas foram pouco mais do que vassalos dos monarcas franceses em Avignon; e desde então até 1417, o próprio papado foi despedaçado pelo grande cisma. Mas os lacaios do papa continuaram ávidos e constantes em sua busca pelo herege. Dezenove artigos de acusação contra ele foram apresentados a Gregório XI. Em resposta a essas acusações, cinco bulas foram despachadas para a Inglaterra, três para o arcebispo, uma para o rei e uma para Oxford, ordenando o inquérito sobre as doutrinas errôneas de Wycliffe. As acusações contra ele não eram sobre suas opiniões contra o credo da igreja, mas contra o poder do clero. Ele foi acusado de reviver os erros de Marsílio de Pádua e John Gaudun, os defensores do monarca secular contra o papa.

Wycliffe foi citado uma segunda vez para comparecer perante os mesmos delegados papais, mas nesta ocasião não foi na Catedral de São Paulo, mas em Lambeth. Ele não tinha mais o duque de Lancaster e o conde-marechal ao seu lado. Ele confiava no Deus vivo. "As pessoas pensaram que ele seria devorado, sendo levado para a cova dos leões", e muitos dos cidadãos de Londres forçaram-se a entrar na capela. Os prelados, vendo seus olhares e gestos ameaçadores, ficaram alarmados. Mas mal os procedimentos começaram, quando uma mensagem foi recebida da mãe do jovem rei -- a viúva do Príncipe Negro -- proibindo-os de prosseguir com qualquer sentença definitiva a respeito da doutrina ou conduta de Wycliffe. "Os bispos", diz Walsingham, o advogado papal, "que se professaram determinados a cumprir seu dever apesar das ameaças ou promessas, e até mesmo com risco de vida, foram como juncos sacudidos pelo vento e ficaram tão intimidados durante o exame do apóstata, que seus discursos eram suaves como óleo, para a perda pública de sua dignidade e para o dano de toda a igreja. E quando Clifford pomposamente entregou sua mensagem, eles ficaram tão tomados de medo que qualquer um pensaria que eram como um homem que não ouve e em cuja boca não há reprovação. Assim, esse falso mestre, esse completo hipócrita, escapou da mão da justiça e não pôde mais ser convocado perante os mesmos prelados, uma vez que a comissão deles expirou com a morte do papa Gregório XI."*

{* Milner, vol. 3, pág. 251.}

A morte de Gregório e o grande cisma no papado se combinaram, na boa providência de Deus, para livrar Wycliffe das mãos cruéis da perseguição, que sem dúvida o havia marcado como sua vítima. Ele, portanto, retornou às suas ocupações anteriores e, por meio de seus discursos de púlpito, suas palestras acadêmicas e seus vários escritos, trabalhou para promover a causa da verdade e da liberdade. Ele também organizou nessa época um grupo itinerante de pregadores, que deveriam viajar pela terra pregando o evangelho de Jesus Cristo, aceitando hospitalidade pelo caminho e confiando no Senhor para suprir todas as suas necessidades. Eles eram chamados de "sacerdotes pobres" e, não raro, eram perseguidos pelo clero; mas a simplicidade e seriedade desses missionários atraíam multidões de pessoas comuns ao seu redor.

Wycliffe, um Herege

Wycliffe alcançara então grande distinção e recebera muitos sinais do favor real. No final do ano de 1375, ele foi nomeado pela coroa à reitoria de Lutterworth em Leicestershire, que foi sua casa pelo resto de sua vida, embora ele frequentemente visitasse Oxford. Mas os perigos estavam se acumulando ao seu redor de outras partes: ele incorrera no desagrado do papa e dos prelados. Em Lutterworth e nas aldeias vizinhas, ele era um pregador vernáculo simples, ousado; em Oxford, ele foi o grande mestre. Mas, seja na cidade ou no campo, ele ergueu sua voz contra a disciplina da igreja, as vidas escandalosas dos religiosos, sua ignorância, sua negligência na pregação e o abuso de seus privilégios como eclesiásticos para abrigar criminosos notórios. É natural que falar tão francamente fosse ofensivo. O professor foi acusado de heresia e intimado a comparecer perante a convocação que iniciou suas sessões em fevereiro de 1377.

Wycliffe respondeu à citação e seguiu para a Catedral de São Paulo, em Londres, mas não foi sozinho. Ele estava acompanhado por João de Gante, duque de Lancaster, e o conde Percy, marechal da Inglaterra. Os motivos desses grandes personagens eram sem dúvida políticos e não acrescentavam nenhuma honra real ao nome ou à causa de Wycliffe. Mas encontramos uma estranha colisão e confusão entre religião e política na história de todos os reformadores. William Courtenay, filho do conde de Devon, era então bispo de Londres e nomeado presidente da assembleia pelo arcebispo Sudbury. O orgulhoso e arrogante bispo ficou com grande desgosto ao ver o herege apoiado pelos dois nobres mais poderosos da Inglaterra. Tão grande foi a multidão de pessoas para testemunhar esse emocionante julgamento, que o conde-marechal assumiu a autoridade de seu cargo para abrir caminho até a presença dos juízes. O indignado bispo se ressentiu com o exercício do poder do marechal dentro da catedral.

"Se eu soubesse, meu senhor", disse Courtenay a Percy bruscamente, "que afirmarias ser mestre nesta igreja, eu teria tomado medidas para impedir tua entrada." Lancaster, que na época administrava o reino, respondeu friamente "que o marechal usaria a autoridade necessária para manter a ordem, apesar dos bispos." Quando chegaram ao tribunal na Capela Lady, Percy exigiu um assento para Wycliffe. Courtenay cedeu à sua raiva e exclamou em voz alta: "Ele não deve se sentar, os criminosos devem permanecer em pé diante de seus juízes". Palavras ferozes se seguiram de ambos os lados. O duque ameaçou humilhar o orgulho, não só de Courtenay, mas de toda o clero da Inglaterra. O bispo respondeu com uma humildade provocadora e falsa que sua confiança estava somente em Deus. Seguiu-se uma cena de grande violência; e, em vez do inquérito proposto, a assembleia se desfez em confusão. Os partidários do bispo teriam caído sobre o duque e o marechal; mas eles tinham força suficiente para sua proteção. Wycliffe, que permanecera em silêncio, escapou sob a proteção deles.

Embora todas as pessoas fossem então católicas romanas, muitos eram a favor de uma reforma; estes eram chamados de wycliffitas e prudentemente permaneceram em suas próprias casas durante essa agitação. O partido clerical que havia lotado a catedral enchia as ruas com seu clamor. A população se levantou -- um tumulto selvagem começou. Os desordeiros primeiro atacaram a casa de Percy; mas depois de abrirem todas as portas e vasculharem todos os cômodos, sem encontrá-lo, imaginaram que ele deveria estar escondido no palácio de Lancaster. Eles correram para o Savoy, na época o edifício mais magnífico do reino. Um clérigo que teve a infelicidade de ser confundido com Lord Percy foi morto. Os braços do duque foram torcidos como os de um traidor; o palácio foi saqueado, e outros ultrajes poderiam ter sido cometidos, não fosse a interposição do bispo, que tinha motivos para temer as consequências de tais procedimentos ilegais.

Wycliffe em Avignon

Embora fosse então bem conhecido que Wycliffe mantinha muitas opiniões antipapais, ele ainda não se comprometera a manter oposição direta a Roma. Mas no ano de 1374 ele foi comissionado a uma embaixada do papa Gregório XI, cuja residência era em Avignon. O objetivo desta missão era representar e remover os abusos flagrantes da reserva papal de benefícios na Igreja inglesa. Mas não temos dúvidas de que o Senhor permitiu isso, para que Wycliffe pudesse ver o que os estrangeiros demoravam a acreditar, a saber, que a corte papal era a fonte de toda iniquidade. Em seu retorno dessa missão, ele se tornou o antagonista aberto, direto e temido de Roma. A experiência de Avignon e Bruges acrescentou aos resultados de seu pensamento e investigação anteriores, e satisfez seu pensamento de que as pretensões do papado não tinham qualquer fundamento na verdade. Ele incansavelmente tornou públicas as convicções profundas de sua alma em conferências eruditas e disputas em Oxford, em discursos pastorais em sua paróquia e em tratados espirituosos escritos em clara prosa inglesa, de tal modo que alcançaram as classes mais humildes e menos educadas. Ele denunciou com indignação ardente e acalentada todo o sistema papal. "O evangelho de Jesus Cristo", disse ele, "é a única fonte da verdadeira religião. O papa é anticristo, o orgulhoso sacerdote mundano de Roma e o mais amaldiçoado dos batedores de carteira." O orgulho, a pompa, o luxo e a moral frouxa dos clérigos caíram sob sua fulminante repreensão. E sendo ele próprio um homem de moral incontestável, de profunda devoção, sinceridade indubitável e eloquência original, muitos se reuniram em torno do destemido professor.*

{* J.C. Robertson, vol. 4, pág. 203; Latin Christianity, vol. 4, pág. 94; Encyclopedia Britannica, artigo WYCLIFFE.}


Wycliffe e o Governo

A fama de Wycliffe como defensor da verdade e da liberdade não estava mais confinada à Universidade de Oxford. O papa e os cardeais o temiam e observaram minuciosamente seus procedimentos. Mas, por outro lado, o rei e o parlamento nutriam uma opinião tão elevada de sua integridade e julgamento a ponto de consultá-lo sobre um assunto de grande importância para a Igreja e o Estado.

Por volta do ano 1366, surgiu uma controvérsia entre o papa Urbano V e o rei Eduardo III como consequência da renovação da exigência de um tributo anual de mil marcos, que o rei João se comprometera a pagar à Sé Romana como um reconhecimento da superioridade feudal do pontífice romano sobre os reinos da Inglaterra e da Irlanda. O pagamento desse tributo humilhante nunca foi regular, tendo sido totalmente interrompido por trinta e três anos. Urbano exigiu o pagamento integral das dívidas. Eduardo recusou, declarando-se decidido a manter seu reino em liberdade e independência. O parlamento e o povo simpatizaram com o rei. A arrogância do papa causou grande agitação na Inglaterra; ambas as casas do parlamento foram consultadas; a resolução da questão interessava a todas as classes, e até mesmo a toda a Cristandade. Wycliffe, que já era um dos capelães do rei, foi nomeado para responder aos argumentos papais, e assim efetivamente provou que o cânon, ou lei papal, não tem força quando se opõe à Palavra de Deus, e que o papado daquele dia em diante cessava de reivindicar a soberania da Inglaterra. Os argumentos de Wycliffe foram usados ​​pelos senhores no parlamento, que resolveram unanimemente manter a independência da coroa contra as pretensões de Roma. Os discursos curtos, enérgicos e simples dos barões nesta ocasião são curiosos e característicos da época.

No ano de 1372, Wycliffe foi elevado à cadeira teológica na Universidade de Oxford. Este foi um passo importante na causa da verdade e usado pelo Senhor. Sendo um Doutor em Divindade, ele tinha o direito de ministrar palestras sobre teologia. Ele falava como um mestre aos jovens teólogos de Oxford, e, tendo tal autoridade nas escolas, tudo o que ele dizia era recebido como um oráculo. Seria impossível avaliar a influência benéfica que exerceu sobre a mente dos alunos, que compareciam em grande número naquela época. A invenção da imprensa ainda não havia fornecido livros ao estudante, de modo que ele praticamente dependia em tudo da voz e da energia viva do professor público. Centenas de pessoas que o ouviam, por sua vez, tornar-se-iam também professores públicos, levando adiante a mesma semente preciosa.

Wycliffe e os Frades

Por volta do ano de 1349, quando Wycliffe completou 24 anos de idade e estava alcançando certa fama na faculdade, a Inglaterra foi visitada por uma terrível peste, chamada de Peste Negra. Supõe-se que ela tenha aparecido pela primeira vez na Tartária e, depois de devastar vários países da Ásia, prosseguiu pelas margens do Nilo até as ilhas da Grécia, levando devastação para quase todas as nações da Europa. Tão imensa foi a perda de vidas humanas que alguns dizem que um quarto da população foi eliminada, e outros, que metade da raça humana, além do gado, foi levada em certas partes. Essa visitação alarmante encheu a mente piedosa de Wycliffe com as mais sombrias apreensões e temerosos pressentimentos quanto ao futuro. Foi como o som da última trombeta em seu coração. Ele concluiu que o dia do julgamento estava próximo. Solenizado com os pensamentos sobre a eternidade, ele passou dias e noites em seu quarto, e sem dúvida em fervorosa oração por orientação divina. Ele se apresentou como defensor da verdade; encontrou sua armadura na Palavra de Deus.

Por seu zelo e fidelidade na pregação do evangelho, principalmente ao povo comum aos domingos, adquiriu e mereceu o título de “doutor evangélico”. Mas o que lhe trouxe tanta fama e popularidade em Oxford foi sua defesa da universidade contra as invasões dos frades mendicantes. Ele corajosa e impiedosamente atacou essas ordens, que ele declarava serem o grande mal da Cristandade. Elas eram, então, quatro em número -- Dominicanos, Minoritas ou Franciscanos, Agostinianos e Carmelitas – e se enxameavam nas melhores partes da Europa. Eles se esforçaram muito em Oxford, como até então em Paris, para ali se elevarem. Eles aproveitaram todas as oportunidades para atrair os alunos para seus conventos, os quais, sem o consentimento de seus pais, se alistavam para as ordens mendicantes. Esse sistema de lavagem cerebral prosseguiu a tal ponto que os pais evitavam enviar seus filhos às universidades. Em certa época, trinta mil jovens estudavam em Oxford, mas, por causa desses frades, o número foi reduzido para seis mil. Bispos, padres e teólogos em quase todos os países e universidades da Europa lutavam contra esses enganadores, mas com pouco efeito, pois os pontífices os defendiam vigorosamente como seus melhores amigos e conferiam-lhes grandes privilégios.

Wycliffe atacou ousadamente, e, cremos, fatalmente, a raiz desse grande mal universal. Próximo ao declínio do poder papal, do qual já tomamos nota, podemos começar a notar o das ordens mendicantes. Ele publicou alguns artigos espirituais intitulados "Contra o mendigo saudável", "Contra o mendigo ocioso" e "A pobreza de Cristo". "Ele denunciou a mendicância em si, e todos os outros como mendigos saudáveis, que não deveriam ser autorizados a infestar a terra. Ele os acusou de cinquenta erros de doutrina e prática. Ele os denunciou por interceptarem as esmolas que deveriam pertencer aos pobres; por seu sistema inescrupuloso de proselitismo; por sua invasão de direitos paroquiais; por seu hábito de iludir as pessoas comuns com fábulas e lendas; por suas pretensões hipócritas de santidade; por sua lisonja para com os grandes e ricos, a quem deveriam na verdade reprovar por seus pecados; por seu apego ao dinheiro por todos os meios, pelo esplendor desnecessário de seus edifícios, enquanto as igrejas paroquiais eram largadas à decadência. "*

{* J.C. Robertson, vol. 4, pág. 201.}

Wycliffe tornara-se então o líder reconhecido de um grande partido na universidade e na Igreja, e dignidades e honras foram-lhe conferidas. Mas se ele tinha ganhado muitos amigos, tinha também muitos inimigos cuja ira era perigoso provocar. Seus problemas e mudanças então começaram. Os frades forneceram ao papa informações sobre tudo o que estava acontecendo. Em 1361, ele foi promovido a mestre do Balliol College e à reitoria de Fillingham. Quatro anos depois foi escolhido guardião do Canterbury Hall. Seu conhecimento das escrituras, a pureza de sua vida, sua coragem inflexível, sua eloquência como pregador, seu domínio da linguagem das pessoas comuns, tornavam-no objeto de admiração geral. Ele afirmava que a salvação era pela fé, por meio da graça, sem mérito humano de forma alguma. Isso foi impactante, não apenas contra os males externos, mas contra os próprios fundamentos de todo o sistema papal. Guiado pela sabedoria divina, ele começou sua grande obra no lugar certo e da maneira certa. Ele pregou o evangelho e explicou a Palavra de Deus ao povo em inglês vernáculo. Desta forma, ele plantou profundamente na mente popular aquelas grandes verdades e princípios que eventualmente levaram à emancipação da Inglaterra do jugo e da tirania de Roma.

A Inglaterra e o Papado

A submissão do rei João a Inocêncio III foi o ponto de virada na história do papado na Inglaterra. Na humilhação do soberano, toda a nação se sentiu degradada. Inocêncio foi longe demais, foi um abuso de poder presumido, mas que se voltou contra si mesmo em seu devido tempo. A Inglaterra jamais poderia esquecer tamanha prostração abjeta de seu rei aos pés de um sacerdote estrangeiro. A partir daquele momento, um espírito de descontentamento com Roma cresceu na mente do povo inglês. As usurpações, as reivindicações exorbitantes do papado, sua interferência na disposição dos bispados ingleses, frequentemente colocando o governo e a igreja em colisão e ampliando a brecha. Mas exatamente quando a paciência dos homens estava quase exaurida pelas muitas queixas práticas contra o papado, foi do agrado de Deus levantar um poderoso adversário para todo o sistema hierárquico -- o primeiro homem que abalou o domínio papal na Inglaterra desde sua fundação, e além disso um homem que amava sinceramente a verdade e pregava-a tanto aos eruditos como às classes mais baixas. Este homem era John Wycliffe, justamente denominado o precursor, ou Estrela da Manhã, da Reforma.

A parte inicial da vida de Wycliffe é envolvida em muita obscuridade; mas a opinião geral é de que tenha nascido de uma linhagem humilde nas redondezas de Richmond, em Yorkshire, por volta do ano de 1324. Seu destino era o de se tornar um estudioso, o que, como somos informados, até os mais humildes daqueles dias podiam aspirar. A Inglaterra era praticamente uma terra de escolas; cada catedral, e praticamente cada mosteiro, tinha a sua; mas jovens com mais ambição, autoconfiança, suposta capacidade e melhores oportunidades aglomeravam-se em Oxford e Cambridge. Na Inglaterra, assim como em toda a cristandade, aquela maravilhosa corrida de uma vasta parte da população em direção ao conhecimento lotou as universidades com milhares de alunos.*

{* Milman, vol. 6, pág. 100.}

John Wycliffe encontrou seu caminho para Oxford. Ele foi admitido como aluno do Queen's College, mas logo foi transferido para o Merton College, a mais antiga, a mais rica e a mais famosa das fundações de Oxford. Supõe-se que ele teve o privilégio de assistir às palestras do muito piedoso e profundo Thomas Bradwardine, e que de suas obras ele derivou suas primeiras visões da liberdade da graça e da absoluta inutilidade de todo mérito humano, no que diz respeito à salvação. Dos escritos de Grosseteste, ele captou pela primeira vez a ideia de que o papa era um anticristo.

Wycliffe, de acordo com seus biógrafos, logo se tornou mestre nas leis civil, canônica e municipal; mas seus maiores esforços foram voltados para o estudo da teologia, não como meramente era aquela arte estéril que era ensinada nas escolas, mas como aquela ciência divina que é derivada do espírito, bem como da letra das Escrituras. No processo de tais investigações, ele teve numerosas e formidáveis ​​dificuldades contra as quais lutar. Foi um estudo que a Igreja não aprovou e não previu. O texto sagrado era então negligenciado, os escolásticos ocupavam o lugar da autoridade das Escrituras; a língua original do Novo, assim como do Antigo Testamento, era quase desconhecida no reino. Mas, apesar de todas essas desvantagens e desencorajamentos, Wycliffe seguiu seu caminho com grande perseverança. "Sua lógica", diz alguém, "sua sutileza escolástica, sua arte retórica, seu poder de ler as escrituras latinas, sua erudição variada, podem ser devidos a Oxford; mas o vigor e a energia de seu gênio, a força de sua linguagem, seu domínio sobre o inglês vernáculo, a alta supremacia que ele reivindicou para as Escrituras, que por imenso trabalho ele publicou na língua vulgar – isto vinha dele próprio, estas coisas não podiam ser aprendidas em nenhuma escola, e nem alcançadas por nenhum dos cursos ordinários de estudo. "*

{* Latin Christianity, vol. 6, pág. 103.}

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