Se o mero raciocínio humano fosse permitido nessa controvérsia, ela seria interminável. Mas se a autoridade da Palavra de Deus é respeitada, ela logo se resolve. Que há algo bom na natureza humana caída, e que o homem, como tal, tem poder para escolher o que é bom e rejeitar o que é mal, são coisas que estão na raiz do pelagianismo em suas numerosas formas. A total ruína do homem é negada, e todas as ideias de graça divina que parecem inconsistentes com o livre arbítrio do homem são excluídas desse sistema. Mas o que diz as Escrituras? Uma única linha da Palavra de Deus satisfaz o homem da fé. E isto deveria ser o único argumento do mestre, do evangelista e do cristão em particular. Devemos sempre tomar o terreno da fé contra todos os adversários.
Em Gênesis 6, Deus expõe Sua opinião sobre a natureza humana caída. "E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente". Deus não podia encontrar nada no homem além do mal, e mal sem cessar. Novamente, no mesmo capítulo, lemos: "E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra". Não alguma carne, observemos, mas toda a carne tinha corrompido seu caminho sobre a terra. Aqui temos o juízo de Deus sobre a natureza corrupta; mas, ao mesmo tempo, Ele revela Sua graça soberana para redimir a condição do homem assim julgado. Deus provê uma arca de salvação, e então anuncia o convite: "Entra tu e toda a tua casa na arca" (Gênesis 7:1). A cruz é o testemunho, e a grande expressão, das grandes verdades figuradas pela arca. Ali temos de um modo, como em nenhum outro lugar, o juízo de Deus sobre a natureza humana com todo o seu mal; e, ao mesmo tempo, a revelação de Seu amor e graça em toda sua plenitude de poder salvífico.*
{* Para detalhes, veja Notas sobre o Livro de Gênesis.}
Mas todas as Escrituras são consistentes com Gênesis 6 e a cruz de Cristo. Tome, por exemplo, Romanos 5 e Efésios 2. No primeiro é dito estarmos "fracos"; mas no último, que estamos "mortos", mortos em delitos e pecados. O apóstolo, mais no início da Epístola aos Romanos, com muito cuidado prova a ruína do homem e a justiça de Deus, e aqui temos Seu amor demonstrado no grande fato da morte de Cristo por nós. "Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios". Mas por que é dito "a seu tempo"? Porque o homem tinha sido plenamente provado ser não apenas "ímpio", mas "fraco" demais para fazer qualquer coisa boa para Deus, ou para se mover um passo sequer em sua direção. Sob a lei, Deus mostrou ao homem o caminho, apontou meios, e deu-lhe uma longa prova; mas o homem não tinha poder algum para sair de sua triste condição de pecador. Quão humilhante, mas quão saudável, é a verdade de Deus! É bom conhecermos nossa condição de perdidos. Quão diferente é isso da falsa teologia e da orgulhosa filosofia dos homens! Mas da parte de Deus, bendito seja Seu nome, o estado do homem (assim demonstrado) foi apenas a oportunidade para a manifestação de Sua graça salvadora; e por isso Jesus morreu. "Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores". Agora o homem deve se deparar, ou com o juízo de Deus em incredulidade, ou com Sua salvação pela fé. Não há algo como estar "encima do muro". A prova mais completa de nossa condição perdida e do amor gracioso de Deus é "que Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores" (Romanos 5:6-10).
Em Efésios 2 não se trata meramente de uma questão de fraqueza moral do homem, mas de sua morte. "E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados". Em Romanos o homem é visto como impotente, ímpio, um pecador, e um inimigo; aqui, como moralmente morto: e este é o pior tipo de morte, pois é a própria fonte da mais ativa impiedade. "Em que noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência". Que golpe para o orgulhoso poder que o homem pensa ter de escolher entre o bem e o mal! Aqui, ao contrário, ele é visto como estando sob o governo de demônios -- como escravo de Satanás. O homem admite muito mais facilmente ser ímpio do que impotente. Ele se orgulhará de ter sua opinião própria -- de ser independente e muito capaz de julgar e escolher por si próprio nas coisas espirituais.
Um dos dogmas favoritos de Pelágio, se não o fundamento de seu sistema, era que "como o homem tem a capacidade de pecar, assim também ele não apenas tem a capacidade de discernir o que é bom, mas do mesmo modo tem poder para desejá-lo e realizá-lo. E esta é a liberdade do arbítrio, que é tão essencial para o homem que ele não pode perdê-la". Nos referimos a esta falsa noção simplesmente porque ela é muito aceita pela mente natural, e é tão difícil de se livrar dela mesmo após sermos convertidos, sendo sempre um grande obstáculo à obra da graça de Deus na alma. Uma vez que o homem está morto em seus pecados, Deus e Sua própria obra devem ser tudo. É claro que há uma grande variedade entre os homens naturalmente, quando estão "fazendo a vontade da carne e dos pensamentos". Alguns são benevolentes e morais, alguns vivem em grosseira e aberta impiedade, e alguns podem ter um gratificante tipo de coração sensível: mas por que motivo? Para fazer a vontade de Deus? Certamente não! Deus não está em todos os seus pensamentos. Eles são energizados pelo espírito de Satanás, e guiados por ele de acordo com o curso deste mundo. "Nenhum servo pode servir dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom." (Lucas 16:13)