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domingo, 6 de setembro de 2020

A Apostasia dos Mendicantes

 As duas ordens rivais, os dominicanos e franciscanos, não se contentando em envolver toda a Europa em discórdia e lutas furiosas, começaram, logo após o falecimento de seus respectivos fundadores, a disputar entre si pela precedência. E embora os pontífices deste e dos séculos seguintes terem usado vários meios para encerrar essas disputas inconvenientes, suas tentativas foram infrutíferas, pois essas duas grandes ordens continuaram por muitos anos a acalentar essa rivalidade acirrada e a lançar uma contra a outra as mais amargas recriminações. Eles lutaram muito pelo domínio em todas as cadeiras de ensino da cristandade, mas a disputa mais notável foi a dos dominicanos com a Universidade de Paris. Outro ponto proeminente de grande controvérsia que durou muito tempo foi a doutrina da imaculada conceição da Virgem Maria. Era a doutrina favorita dos franciscanos e sempre foi violentamente atacada pelos dominicanos. O famoso Tomás de Aquino argumentou a favor da visão dominicana da questão, e João Duns Escoto, o dialético, assumindo a visão franciscana da doutrina, entrou na arena do debate, que continua até hoje; pois, embora o atual papa Pio IX* tenha declarado o dogma da imaculada concepção da Virgem Maria, a fraternidade dominicana não está disposta a admiti-lo. No entanto, agora isso se tornou um artigo de fé na igreja romana.

{*Este livro foi escrito no século XIX.}

Já em 1256, quando Boaventura se tornou o general dos franciscanos, ele descobriu que eles haviam começado a se tornar infiéis para com sua noiva, a pobreza, e estavam lutando pelo divórcio. As afeições de Francisco não sobreviveram em seus seguidores. Mas, sob a gestão prudente de seu novo general, relativa tranquilidade foi mantida durante sua vida; mas, depois de sua morte, ocorrida em 1274, as dissensões eclodiram com a maior violência, como de costume. Na verdade, essas ordens mendicantes, ou melhor, satânicas, causaram as mais violentas contendas em quase todos os países da Europa até o período da Reforma. Mas todas as classes, tanto na Igreja quanto no Estado, tiveram que suportar seu orgulho e arrogância, pois eram os mais fiéis servos e satélites da Sé Romana.

O breve esboço a seguir, de Mateus de Paris, um beneditino de St. Albans, que escreveu por volta de 1249, apresentará ao leitor o verdadeiro caráter dos caminhos dessas terríveis pragas da sociedade. O quadro não está, de forma alguma, exagerado, embora Mateus pertencesse à velha ordem aristocrática e pudesse desprezar seus novos irmãos democráticos. Solidão, reclusão, a cela solitária, a capela privada, a comunicação com o mundo exterior severamente cortada, era a velha ordem; o que se segue é uma amostra do novo e do que prevalecia na Inglaterra no século XIII.

“É um terrível – é um horrível – presságio que em trezentos anos, em quatrocentos anos, e até mais, as antigas ordens monásticas não se degeneraram tão completamente como estas fraternidades. Os frades, que foram fundados há apenas quarenta anos, construíram, e ainda constroem até hoje, na Inglaterra, residências tão elevadas quanto os palácios de nossos reis. São eles que, ampliando dia a dia seus suntuosos edifícios, circundando-os com paredes elevadas, acumulam dentro deles tesouros incalculáveis, transgredindo imprudentemente os limites da pobreza e violando, segundo a profecia da alemã Hildegarda, as próprias regras fundamentais da sua confissão. São eles que, impelidos pelo amor ao ganho, se impõem às últimas horas dos senhores e dos os ricos que eles sabem estar transbordando de riquezas; e estes, desprezando todos os direitos, suplantando os pastores comuns, extorquem confissões e testamentos secretos, gabando-se de si mesmos e de sua ordem, e afirmando sua vasta superioridade sobre todos os outros. Tanto é assim que nenhum dos fiéis agora acredita que pode ser salvo a menos que seja guiado e dirigido pelos pregadores ou pelos frades menores. Ansiosos por obter privilégios, eles servem nas cortes de reis e nobres, como conselheiros, camareiros, tesoureiros, padrinhos ou tabeliães de casamentos; eles são os executores das extorsões papais. Em sua pregação, às vezes tomam o tom de lisonja, às vezes de censura mordaz; eles não têm escrúpulos em revelar confissões ou apresentar as acusações mais precipitadas. Eles desprezam as ordens legítimas, aquelas fundadas pelos santos padres, por São Bento ou Santo Agostinho, com todos os outro. Eles colocam sua própria ordem acima de tudo; consideram os cistercienses rudes e simples, meio leigos, ou melhor, camponeses; tratam os frades negros (os dominicanos) como epicuristas arrogantes."*

{* Milman, vol. 4, pág. 276; Mosheim, vol. 2, pág. 523.}

As Primeiras Ordens Monásticas e as Posteriores

Temos plena consciência de que todos os sistemas humanos devem ser examinados pela Palavra de Deus se quisermos compreender corretamente seu verdadeiro caráter. Não é contrastando o último com o anterior que podemos descobrir o quão longe eles podem ter se distanciado da mente do Senhor. A Palavra do Deus vivo, pela qual todos serão finalmente julgados, deve ser nosso único padrão agora. Pouco importa quais melhorias podem ser encontradas em um sistema em comparação com outro, se ambos são o resultado de invenção humana. Isso é verdade para todas as pessoas e também para todos os sistemas. A Palavra de Deus deve ser a única regra do cristão, e o próprio Cristo a única cabeça e centro, poder e autoridade, no sistema que Ele possui -- a igreja, a assembleia de Deus*. Mas, como em diferentes ocasiões examinamos as escrituras sobre esses pontos, iremos agora, em poucas palavras, falar sobre a diferença entre os sistemas monásticos anteriores e posteriores. **

{*N. do T.: a expressão “assembleia de Deus” aqui não se refere a uma denominação cristã que adotou este nome (tal denominação nem mesmo existia à época do autor), mas sim à igreja de Deus, a universal assembleia (Hebreus 12:23), composta por todos aqueles que pela graça foram salvos e acrescentados a essa igreja (Atos 2:47) ao crerem em Jesus como Salvador.}

{** Ver "Reflexões sobre os Princípios da Asceticismo", Cap. 12.}

O principal, senão o objetivo exclusivo dos primeiros eremitas, anacoretas e ascetas de todos os nomes, era sua própria perfeição religiosa. A instrução ou salvação de outros não fazia parte de seu credo. O isolamento do mundo perigoso e a reclusão em alguma cela solitária, com todas as suas privações, eram considerados necessários para esse fim. À medida que o halo da santidade deles atraía e seduzia outras pessoas, foram construídas casas e cultivadas grandes extensões de terra para as necessidades desta vida. Esses pequenos começos muitas vezes se tornaram os assentamentos mais imponentes de um país. E durante a longa e escura noite da Idade Média, com sua barbárie e feudalismo, os mosteiros frequentemente se mostravam uma grande misericórdia para os doentes, os pobres e os viajantes. Todos devem reconhecer este fato com gratidão. Durante os cinco ou seis séculos que se seguiram à subversão do império ocidental, o sistema monástico tornou-se um poderoso instrumento para corrigir os vícios da sociedade e proteger as classes mais baixas da opressão sem lei do senhor feudal. Hospitalidade, ou o entretenimento de estrangeiros e peregrinos, era um dos usos importantes dos mosteiros naquele tempo. As estalagens para a recepção de viajantes parecem não ter existido antes do século XI. Praticamente os dois únicos edifícios imponentes que chamavam a atenção do viajante naquela época eram o castelo do poderoso barão e a abadia dos monges em oração. Um era guerra, e o outro paz. A religião, o aprendizado e a ciência encontraram um refúgio atrás das paredes do mosteiro, e a verdadeira piedade podia trabalhar pacificamente ali, escrevendo, transcrevendo, coletando e preservando informações úteis.

"Os beneditinos", diz Travers Hill, "eram os depositários do saber e das artes; eles reuniam livros e os reproduziam no silêncio de suas celas, e preservavam dessa forma não apenas os volumes das escrituras sagradas, mas muitas das obras de tradição clássica. Eles começaram a arquitetura gótica; só eles tinham os segredos da química e da ciência médica; eles inventaram muitas cores; foram os primeiros arquitetos, artistas, pintores de vidro, entalhadores e trabalhadores de mosaico nos tempos medievais. Foi um sistema poderoso e fez um bom trabalho no mundo, mas seguiu o caminho de coisas e instituições humanas, ficou intoxicado com seu poder, cegado por seu próprio esplendor e corrompido por sua própria riqueza; seus abades tornaram-se avarentos , seus monges voluptuosos; eles perderam sua simplicidade original; o governo de seu fundador não existia mais na atividade de seus lavradores, seus estudiosos e seus artistas, mas só era encontrado nas palavras mecanicamente lidas na capela. O [HH1] monasticismo engendrou sua própria corrupção, e dessa corrupção veio a morte."

A magnífica abadia de Glastonbury já chegou a cobriu sessenta acres. Antes da queda dos mosteiros na Inglaterra, os comissários reais relatam a esse respeito; que eles nunca tinham visto uma casa tão grande, boa e principesca, com quatro parques contíguos, um grande pesqueiro de cinco milhas, bem abastecido com lúcios, percas, douradas e leuciscos; quatro solares, além da capela, hospital, tribunal, escolas e a grande portaria. Muitas das casas de Glastonbury foram construídas com materiais desta outrora soberba abadia.*

{*Gazetteer, de Johnston.}

Os hábitos dos monges modernos contrastavam perfeitamente com os anteriores. Em lugar de morar dentro das paredes de uma abadia soberba, toda a cristandade em um curto período de tempo foi inundada por hostes de dominicanos e franciscanos. Eles vinham de todos os países e falavam, portanto, todas as línguas e dialetos. Eles pregaram a velha fé em seu mais completo rigor inflexível medieval, em quase todas as cidades e vilas. Lealdade inabalável ao papa e a extirpação da heresia eram seus grandes temas. E os pontífices em troca os protegiam e conferiam a eles os mais altos privilégios e vantagens. Antes de encerrar o século, os mosteiros e conventos da ordem minorita atingiram o surpreendente número de oito mil e eram habitados por pelo menos duzentos mil internos.

O Zelo Missionário dos Beneditinos

Os beneditinos, com o passar do tempo, conforme seu número aumentava, enviaram missionários para pregar o evangelho entre as nações, que ainda mergulhavam nas profundezas do paganismo. Estima-se que foram o meio de converter mais de trinta países e províncias à fé cristã ou, como seria melhor dizer, à igreja de Roma. Ainda assim, o Senhor, em Sua misericórdia, poderia, e sem dúvida o fez, usar a cruz de Cristo, mesmo da forma que era pregada, para a salvação. Um pouquinho da verdade sobre a cruz ou sobre o sangue de Cristo é capaz de converter a alma quando o Senhor a usa. Uma mudança notável ocorreu na história da Igreja, ou do Cristianismo, por meio da pregação dos beneditinos e da ordem de São Bento, que apenas mencionaremos e deixaremos para a reflexão dos mais pensativos.

Durante os primeiros três séculos da era cristã, os imperadores e todos os grandes da Terra perseguiram os fiéis seguidores de Cristo; mas, durante os séculos VI, VII, VIII e IX, muitos imperadores e reis renunciaram às suas coroas e tornaram-se monges da ordem beneditina; e também imperatrizes e rainhas se tornaram freiras da mesma ordem. *

{* Para uma lista dos nomes e países desses convertidos, com muitos detalhes, consulte English Monasticism, de O'Dell Travers Hill, p. 101. Consulte também a Encyclopedia Britannica, vol. 4, pág. 562. Os números não concordam em ambos, mas, como o English Monasticism foi publicado somente em 1867 (uma data contemporânea ao autor deste livro, que viveu no século XIX), aceitamos os números dados ali.}

Da reclusão das celas beneditinas, quarenta e oito papas foram levantados para ocupar a cátedra de São Pedro; duzentos cardeais, sete mil arcebispos, quinze mil bispos, quinze mil abades, quatro mil santos e mais de trinta e sete mil estabelecimentos religiosos, incluindo mosteiros, conventos, priorados, hospitais, etc. A ordem também produziu um vasto número de escritores eminentes e outros homens eruditos. Rábano estabeleceu a primeira escola na Alemanha, Alcuíno fundou a Universidade de Paris, Guido inventou a escala musical, Silvestre o órgão, e Dionísio Exíguo aperfeiçoou o cálculo de datas eclesiástico.

"Os abades eram frequentemente pouco inferiores aos príncipes soberanos: seu esplendor era maior na Alemanha, onde o abade de Angia, apelidado ‘o Rico’, tinha uma receita anual de sessenta mil coroas de ouro, e em seu mosteiro ninguém era recebido, exceto os filhos dos príncipes, condes e barões. Os abades de Weissenburg, de Fulda e de São Galo eram príncipes do império. O abade de São Galo entrou certa vez em Estrasburgo com um séquito de mil cavalos."* Por seiscentos anos todas as regras e as sociedades cederam ante a prevalência universal da ordem beneditina. Muitas outras seitas surgiram durante aquele período e, embora diferissem umas das outras em alguns pontos de disciplina ou vestuário, todas reconheciam a Regra de Bento. Os cartuxos, os cistercienses e outros inumeráveis ​​eram apenas ramos que cresciam a partir do tronco original.

{*Christian Sects, de Marsden.}

Esses celebrados resultados da regra do eremita solitário de Monte Cassino se estendem por um período de pelo menos setecentos anos, durante os quais os beneditinos, como todas as outras instituições humanas, experimentaram muitos reveses e muitos avivamentos, os quais não precisamos enumerar exaustivamente. Para complementar este assunto, é interessante notar ainda, que, de acordo com a história frequentemente contada, assim que os monges de São Bento se tornaram ricos e luxuosos, eles começaram a se afastar dos princípios de seu fundador e se entregaram à indolência e a todo tipo de vício. Eles se envolveram em assuntos civis e nas intrigas dos tribunais, buscando apenas promover a autoridade e o poder dos pontífices romanos.

Os Beneditinos

Antes da morte de Bento, que ocorreu em 543, sua ordem havia sido estabelecida na França, na Espanha e na Sicília. Ela se espalhou rapidamente por toda parte. Para onde quer que os monges viajassem, eles convertiam o deserto em um país cultivado; eles derrubaram florestas, drenaram pântanos, criaram abadias majestosas com suas próprias mãos, civilizaram populações rudes, e buscaram a criação de gado e os trabalhos agrícolas de todas as formas. Eles também cultivavam o aprendizado e tinham escolas para os jovens. Mas embora os beneditinos logo se tornassem uma grande comunidade e se espalhassem por vários países, todos estavam sujeitos a uma mesma regra. A época em que essa ordem entrou na Inglaterra é bem conhecida. Santo Agostinho e seus monges eram beneditinos, além de Gregório, que os enviou. Mas embora geralmente seja atribuído a eles o crédito de reduzirem os resíduos utilizando-os na fertilização no cultivo, eles também têm o crédito de escolherem, quando tiveram a oportunidade, os melhores locais da terra para seus assentamentos. "Em cada vale rico", diz Milman, falando da Inglaterra, "ao lado de cada córrego claro e profundo, erguia-se uma abadia beneditina. O trabalho dos monges de plantar, cultivar, projetar jardins ensolarados ou encher as colinas de árvores podem ter adicionado muito à graça pitoresca desses cenários; mas, em geral, se for realizada uma pesquisa sobre algum distrito na Inglaterra, é bem provável que se descubra que o local mais conveniente, mais fértil e mais pacífico fora o local de um abadia beneditina."*

{*Latin Christianity, vol. 1, p. 426. English Monasticism, de Hill, p. 71. Faiths of the World, de Gardner, vol. 1, p. 318. Neander, vol. 3, p. 351.}

A primeira intenção de São Bento não era fundar uma ordem monástica, mas simplesmente prescrever regras para os monges italianos, de acordo com a prática dos anacoretas e reclusos da igreja primitiva. Mas os monges de Monte Cassino logo se tornaram famosos por sua inteligência superior, vida pacífica, hábitos corretos e zelo fervoroso. Em um país e em uma época em que a contenda, a rapina, a ignorância e os costumes dissolutos eram universais, o tranquilo e sagrado mosteiro representava um convidativo refúgio, onde, durante o breve período da vida, o homem poderia cumprir seus deveres religiosos e encerrar seus dias em paz com o céu e com a humanidade. O jovem espírito ardente que entrava no mundo tinha poucas opções de vida; praticamente se resumia a uma escolha entre uma vida de guerra, violência e maldade -- uma vida de alegrias e tristezas ferozes -- ou de reclusão, humildade, obediência e trabalho abnegado. As naturezas mais pensativas e tímidas deram as boas-vindas ao novo refúgio de descanso. Homens de todas as classes deixaram seu luxo ou pobreza e se juntaram à nova comunidade; e assim foi aumentando, até que sua riqueza e poder fossem incríveis. As estatísticas a seguir darão ao leitor uma idéia melhor da opulência dessas antigas abadias beneditinas do que meras descrições.

"A propriedade pertencente ao mosteiro pai de Monte Cassino, com o tempo, passou a incluir quatro bispados, dois ducados, trinta e seis cidades, duzentos castelos, trezentos territórios, trinta e três ilhas e mil seiscentos e sessenta e duas igrejas. O abade assumiu os seguintes títulos: Patriarca da Santa Fé; Abade do Santo Mosteiro de Cassino; Chefe e Príncipe de todos os Abades e Casas Religiosas; Vice-chanceler das Sicílias, de Jerusalém e da Hungria; Conde e Governador da Campânia e Savona e das Províncias Marítimas; Vice-Imperador; e Príncipe da Paz."*

{*Dictionary of Christian Churches and Sects, de Marsden, p. 635.}

A Regra de São Bento

A sabedoria deste grande monge como legislador, e a superioridade de sua disciplina sobre tudo o que existia anteriormente, encontram-se principalmente no lugar que ele dá ao trabalho manual. Essa era a característica distintiva da nova ordem -- trabalho físico árduo e saudável. O monasticismo tinha sido até então quase que inteiramente uma vida de mera reclusão e contemplação, apoiada pela caridade do público ou pelos impressionáveis camponeses das vizinhanças do mosteiro. Bento viu os efeitos perversos desse estado de existência ocioso e sonhador, e tomou amplas providências para a ocupação dos monges. Ele rotulou a ociosidade como inimiga da alma e do corpo. Deviam não somente trabalhar na oração, adoração, leitura e educação dos mais jovens, como também trabalhar com as mãos, como com o machado na floresta, a pá nos campos e a espátula nas paredes. As vantagens desse novo sistema eram grandes. As abadias beneditinas tornaram-se assentamentos agrícolas industriosos. A agricultura e as artes da vida civilizada foram introduzidas nas regiões mais bárbaras, e o deserto, sob as mãos dos monges, floresceu com fertilidade.

Embora a ordem de São Bento fosse em todos os sentidos contrária à letra e ao espírito da Palavra de Deus, ela tinha mais razão e bom senso do que os sistemas ociosos e lânguidos do Oriente. "Ele era um daqueles que sustentavam", diz Travers Hill, "que para viver neste mundo um homem deve fazer algo -- que aquela vida que consome, mas não produz, é uma vida mórbida, e na verdade uma vida impossível -- uma vida que tenderá à decadência -- e, portanto, imbuído da importância desse fato, ele fez do trabalho, trabalho contínuo e diário, o grande fundamento de sua regra." Sua penetração na sociedade também é vista em sua consideração pelo clima hostil do Ocidente e pelas constituições europeias. Suas leis eram mais brandas e praticáveis ​​do que as que haviam sido tentadas nos países orientais; a dieta era bem mais generosa, e ele não propunha nenhuma mortificação extrema, mas permitia que seus seguidores vivessem de acordo com os hábitos comuns de seus respectivos países. Nessas considerações sábias e razoáveis ​​está todo o segredo do maravilhoso sucesso da ordem beneditina.

Mas, com nossas noções modernas de qualidade de vida e de estarmos acostumados com relativamente poucos serviços religiosos no decorrer da semana, o leitor pode estar disposto a questionar o que dissemos sobre a brandura das regras monásticas e a natureza generosa da dieta. Falamos nesse sentido em comparação com o Oriente, de onde se originou o monasticismo.

Às duas horas da manhã, os monges eram despertados para as vigílias, ocasião em que doze salmos eram cantados e certas lições das escrituras lidas ou recitadas. Eles se reuniam novamente ao amanhecer para as matinas; este serviço era quase igual ao primeiro, de modo que em suas vigílias e matinas vinte e quatro salmos deviam ser cantados todos os dias, para que o saltério pudesse ser completado a cada semana. O tempo para suas devoções internas e seu trabalho externo era planejado, no verão e no inverno, conforme o superior achasse conveniente. Mas eles eram obrigados a comparecer a pelo menos sete serviços religiosos distintos a cada vinte e quatro horas, além de sete horas por dia de trabalho. Eles tomavam o café da manhã por volta do meio-dia e jantavam à noite. Sua alimentação habitual consistia em vegetais, grãos e frutas; meio quilo de pão por dia para cada monge e uma pequena quantidade de vinho. Na mesa pública nenhuma carne era permitida; somente aos enfermos era dada comida de origem animal, que, às vezes, comiam ovos ou peixe à noite. Mas todos os dias na Quaresma jejuavam até as seis da tarde e tinham menos tempo para dormir.

A roupa dos monges devia ser rústica e simples, mas variável, de acordo com as circunstâncias. Foi-lhes permitido ter o luxo das botas. A vestimenta externa deles era um vestido preto solto, com mangas largas, e um capuz na cabeça com uma parte pontuda atrás. Cada monge tinha dois casacos, dois capuzes, um livro de mesa, uma faca, uma agulha e um lenço. A mobília de suas celas era uma esteira, um cobertor, um tapete e um travesseiro. Cada um tinha um leito separado e dormiam vestidos. Um reitor deveria presidir cada dormitório e uma luz deveria ser mantida acesa em cada um. Nenhuma conversa era permitida após se retirarem aos seus aposentos. Por pequenas faltas eram excluídos das refeições da irmandade, e por maiores eram excluídos da capela; infratores incorrigíveis eram excluídos do mosteiro.

Assim se passava o longo e tedioso dia do monge que condenava a si mesmo a essa vida; desde as vigílias da meia-noite até as vésperas da noite, todas as suas observâncias eram meramente mecânicas. Ao entrar no mosteiro, ele renunciava totalmente a todas as espécies de liberdade pessoal. Seu voto de obediência implícita a seus superiores em tudo era irrevogável. Ninguém podia receber um presente de qualquer espécie, nem mesmo de seus pais, nem manter correspondência com pessoas de fora do mosteiro, a não ser que passasse pela inspeção do abade. Um porteiro sempre se sentava ao portão, que era mantido trancado dia e noite, e nenhum estranho era admitido sem a permissão do abade, e nenhum monge podia sair a menos que tivesse a permissão de seu superior.

O jardim, o moinho, o poço, o forno de pão, ficavam todos dentro dos muros, de modo que não houvesse necessidade de sair do mosteiro. A ocupação de cada monge seria determinada pelo abade. Um monge que antes era rico e de nascimento nobre estaria então sem um tostão e podia ser nomeado cozinheiro ou servente, alfaiate, carpinteiro ou poceiro, de acordo com o desejo do superior absoluto; a qualidade e a quantidade de sua comida eram prescritas e limitadas como se fosse a menor criança. Ele não tinha permissão para falar, salvo em determinados momentos. Todas as conversas eram estritamente proibidas durante as refeições; alguém lia em voz alta o tempo todo.

Assim estava o homem -- o homem social -- isolado da sociedade. A mulher, que Deus deu ao homem, devia ser considerada não apenas uma estranha aos seus pensamentos, mas a inimiga natural de sua perfeição solitária. Pela sutileza de Satanás, o ego era o objetivo supremo de todos os monges -- e de todos os sistemas de monastério. Com que força as palavras do apóstolo vêm à mente quando meditava sobre a liberdade de Cristo e a escravidão de Satanás: "Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo". Observe estas palavras verdadeiramente cristãs, "o que para mim era ganho -- ganho para mim!" Se é apenas ganho para mim, qual é o bem dessas coisas? Eu quero Cristo. Eu vi Cristo em glória. Eu quero ser como ele. Tudo de que aquela carne religiosa podia se gabar, o que era ganho para ele, ele jogou para trás como a mais simples escória. "E, na verdade", continua ele, "tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor". Que cegueira, que perversidade, para quem prefere a ordem de São Bento a Filipenses 3 -- ao amor e à liberdade de Cristo! Mas tamanho era o poder enganador de Satanás que fazia o homem pensar que o caminho certo, senão o único, para o céu, era se tornando um monge.

domingo, 16 de agosto de 2020

São Bento

Uma vez que quase todas as instituições monásticas em toda a Europa, por mais de seiscentos anos, foram regulamentadas pela Regra de São Bento, basta apenas darmos algum relato sobre essa célebre ordem para conhecermos a constituição e o caráter de todas elas. E, como o nome delas é legião, pouparemos o leitor de demasiada repetição.

Esse homem notável era filho de um senador romano nascido em Núrsia, na Itália, tendo nascido em 480 d.C. Aos 12 anos, foi enviado para estudar em Roma. Ele provavelmente tinha ouvido e lido sobre a vida dos santos anacoretas e eremitas do Oriente. Com esses exemplos diante de sua mente e as irregularidades de seus colegas estudantes ao seu redor, ele ansiava pela solidão. Por volta dos quinze anos de idade, incapaz de suportar por mais tempo o estado corrupto da sociedade romana, ele se separou até mesmo de sua fiel babá, Cirila, que havia sido enviada com ele a Roma por seus pais, e a deixou lamentando sua perturbação mental. Os ferozes hunos e vândalos haviam transformado até o coração da Itália em um deserto, de modo que o jovem eremita encontrou um local isolado não muito longe de Roma. Por anos ele viveu em uma caverna solitária; a única pessoa que conhecia o segredo de seu retiro era um monge chamado Romano, que lhe fornecia pão da economia de uma parte de sua própria mesada diária. Mas, como uma rocha íngreme ficava entre o claustro de Romano e a gruta de Bento, o pão era descido por um barbante até a boca da caverna. Com o tempo, ele foi descoberto por alguns pastores, que ficaram encantados ao ouvir suas instruções e testemunhar seus milagres. À medida que a fama de sua piedade aumentava, ele foi persuadido a se tornar abade de um mosteiro das redondezas; mas a rigidez de sua disciplina desagradou seus internos, e eles concordaram em se livrar do severo recluso misturando veneno em seu vinho. Mas, ao fazer o sinal-da-cruz, o que geralmente fazia com sua comida e bebida, o copo se despedaçou; então ele repreendeu suavemente os monges e voltou para sua caverna na montanha.

Bento tornara-se então de maior interesse do que nunca. Sua fama se espalhou, grandes multidões se lhe aglomeravam, homens ricos e influentes se lhe juntaram, e grandes somas de dinheiro foram colocadas à sua disposição. Ele estava então em condições de construir doze mosteiros, cada um deles consistindo de doze monges, sob um superior. Tendo conseguido até então cumprir o objetivo de sua residência no distrito, e inquieto com a invejosa interferência de Florêncio, um padre vizinho, deixou o vilarejo de Subiaco com alguns seguidores no ano de 528. Após algumas andanças, chegou ao Monte Cassino, onde Apolo ainda era adorado pelos rústicos. Com grande habilidade e energia ele desenraizou os restos da idolatria pagã entre os camponeses. Ele cortou o bosque sagrado, destruiu o ídolo de Apolo que havia ali, e no local do altar foi erguido um oratório, que ele dedicou a São João Evangelista e a São Martinho. Essa foi a semente do grande e renomado mosteiro que se tornou a raiz mãe de inúmeros ramos que em pouco tempo cobriram a face da Europa. Aqui, Bento redigiu sua famosa Regra, por volta do ano 529. Ela consiste em setenta e três capítulos que contêm um código de leis que regulamenta os deveres dos monges entre si e entre o abade e seus monges. Ele provê regras para a administração de uma instituição, composta de toda variedade de caráter, engajada em toda variedade de ocupação, mas tudo estando perfeitamente sujeito a um governante absoluto. A abrangência de seu sistema é surpreendente por ser o resultado de uma única mente e sem exemplos ou precedentes. A Regra de São Bento é considerada pelos eruditos como o monumento mais célebre da antiguidade eclesiástica e foi, em suas operações, a própria força e palavra de ordem da dominação de Roma sobre o continente europeu.

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