sábado, 28 de dezembro de 2019

A Ruína de Raimundo é Determinada

A submissão do conde Raimundo aos termos papais de reconciliação parece ter sido completa. Ele tinha rendido seus castelos, sofrido a maior humilhação pessoal e acompanhado as cruzadas -- apesar de seus ombros estarem sangrando pelos flagelos -- contra seu próprio parente, Roger. Certamente, como seria de se pensar, a Igreja ficaria satisfeita, expressaria sua aprovação e o receberia de volta em seu seio. Mas, infelizmente, foi exatamente o oposto. Verdadeiramente, o papa, da maneira mais traiçoeira possível, professou abraçá-lo como um filho obediente, absolveu-o de sua alegada culpa pelo assassinato de Castelnau, e deu-lhe uma capa e um anel. Com esses presentes valiosos, o conde retornou à sua região, na esperança de que as concessões do papa seriam confirmadas por seus legados. Mas aqui, a história levantou o véu e revelou a mais deliberada e declarada traição que jamais enegreceu a política de qualquer governante. Em uma carta escrita por esse pontífice aos seus legados em Toulouse, ele faz referência às palavras do apóstolo Paulo, justificando sua conduta enganosa: "mas, sendo astuto, vos tomei com dolo" (2 Coríntios 12:16, Almeida Atualizada). Assim ele escreve: "Aconselhamos-vos, juntamente com o apóstolo Paulo, que tomai com dolo a esse conde, pois nesse caso deve ser tomada prudência. Devemos atacar separadamente aqueles que estão separados da unidade. Deixai por um tempo esse conde de Toulouse, empregando para com ele uma conduta de dissimulação, para que os outros hereges possam ser mais facilmente derrotados, e para que depois possamos esmagá-lo quando for deixado só." A correspondência confidencial, mas condenatória, sendo matéria de conduta, exigia o cumprimento do decreto do papa. Mas os astutos legados, Teodósio e Arnaldo, que estavam com segredos para com seu mestre, o papa, tinham outras intenções. Eles planejaram atrasos, fizeram exigências, até que o conde percebesse que seu caso estava perdido nas mãos deles. Ao saber que ele não havia se limpado dos crimes de heresia e assassinato, e que eles não podiam absolvê-lo, ele explodiu em lágrimas enquanto os clérigos, de coração de ferro, zombavam de seu desapontamento, citando o texto: "Até no transbordar de muitas águas, estas não lhe chegarão" (Salmos 32:6); e assim pronunciaram novamente sua excomunhão.

O Cerco de Carcassona

De Béziers, de onde nada então restava além de uma pilha de corpos em chamas, os cruzados seguiram em direção a Carcassona. Enquanto avançavam, encontraram os campos desolados. O terrível exemplo de Béziers encheu de terror todos os corações. Os habitantes dos vilarejos indefesos fugiram ao verem as ruínas fumegantes da forte cidade de Béziers. Inúmeros lamentos acompanharam os passos imundos dessas hostes de Satanás. Eles se puseram diante das muralhas de Carcassona: Roger comandava pessoalmente a cidade, suportando um longo cerco com grande coragem. Simão de Monforte era o chefe do lado atacante. Do outro lado, Roger era visto se expondo em todo o lugar como chefe dos defensores, e animava a coragem deles por palavras e por exemplo. Durante quarenta dias o cerco perdurou, e os sitiadores foram repelidos com grandes perdas; e, se não fosse uma traição do abade Arnaldo, Raimundo-Roger teria triunfado. Foi assim que as coisas aconteceram:

Os soldados da cruz eram obrigados a servir por apenas quarenta dias, tanto pela lei feudal quanto como requisito para ganhar todos os privilégios dos cruzados. No final desse período, muitos dos líderes e da grande massa das tropas voltaram para casa desapontados e insatisfeitos. O calor excessivo, a escassez de água, a atmosfera infectada com os mortos não enterrados, a astúcia, crueldade e perfídia dos padres, tudo isso levou muitos a saudar o fim do mandato feudal. Nessas condições extremas e cercado de tropas desordenadas, o abade recorreu à astúcia -- os ardis de Satanás. O nobre e corajoso visconde foi levado a uma conferência. Sob o juramento do legado e dos barões do exército de que a boa fé seria mantida, Roger saiu com trezentos de seus seguidores. Mas uma fé herética tão formidável não deveria ser mantida na mente dos perseguidores, e logo que ele começou a propor termos, o legado exclamou que nenhuma fé deveria ser mantida com alguém que tinha sido tão infiel ao seu Deus, e ordenou que acorrentassem o visconde e prendessem seus seguidores. Mas ele logo foi aliviado de sua humilhação e sofrimento pela morte, que foi popularmente atribuída à mão de Simão. O povo, consternado com a perda de seu chefe, abandonou a cidade e escapou por meio de uma passagem subterrânea, mas os padres se consolaram apreendendo cerca de quatrocentos desses cidadãos, que foram enforcados e queimados pelo crime comum de heresia.

A cidade de Carcassona e a herança nobre de Raimundo-Roger estavam agora nas mãos do partido papal, e, de acordo com a lei da conquista, inteiramente a sua disposição. O legado e seu clero apresentaram essas terras ricas a Simão de Monforte como as primícias de uma vitória gloriosa sobre os hereges, e assim ele foi aclamado como Visconde de Béziers e Carcassona, prometendo manter suas dignidades e territórios, sob a condição de pagar um tributo anual ao papa como suserano dos territórios conquistados.

A eleição de Simão foi confirmada pelo papa, apesar dos grandes princípios de justiça e de fé dos tratados terem sido violados de maneira tão clara e descarada; mas o rei de Aragão, como suserano da região, recusou investir Simão em suas novas posses. A conquista parecia estar completa, mas não foi realmente assim. O duque de Borgonha, o conde de Nevers e outros nobres franceses retiraram-se da cruzada, ficando grandemente ofendidos com a arrogância dos mercenários do papa. Simão de Monforte, sendo assim deixado com uma força comparativamente pequena, foi incapaz de manter sua posição. Muitas cidades e castelos que tinham sido tomados pelo partido papal perderam-se novamente, e uma guerra incessante foi continuada, agora marcada pela feroz exasperação do povo e pelas crueldades mais implacáveis de ambos os lados. De Monforte escreveu desesperado aos prelados da Cristandade pedindo um novo exército.

A trombeta de Roma soou novamente: uma nova cruzada foi anunciada. "Enxames de monges", diz Greenwood, "saídos de inúmeros claustros e mosteiros da ordem cisterciense, pregando perdição aos hereges e perdões ilimitados a todos os que derramassem sangue -- mesmo que fosse de apenas uma pessoa -- da ninhada amaldiçoada. Não havia crime tão terrível, nenhum vício tão enraizado no coração, que uma campanha de quarenta dias contra esses marginalizados não limpasse, até mesmo o último vestígio de culpa, nem deixasse para trás o menor senso de remorso." Atraídos pela promessa de grandes espólios terrenos no sul ensolarado e da eterna felicidade no céu, inumeráveis tropas de fanáticos reuniram-se ao estandarte de De Monforte. Na primavera de 1210, ele recebeu um grande reforço sob o comando de sua esposa, e a guerra recomeçou com nova fúria. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

A Chacina e Queimada de Béziers

Raimundo-Roger, um galante jovem de vinte e quatro anos, exibiu um espírito mais corajoso do que seu tio e resolveu defender seu povo contra os cruzados. Suas duas grandes cidades, Béziers e Carcassona, eram sua principal força. Ele se colocou na última, o lugar mais forte. "Os soldados da cruz, os sacerdotes do Senhor", como se denominavam a si mesmos, apareceram diante de Béziers, que tinha sido bem provida e guarnecida pelo visconde. O bispo do lugar também estava no exército, e foi-lhe permitido, por Arnaldo, que oferecesse seu conselho e recomendasse uma rendição à cidade. "Renunciai a vossas opiniões e salvai vossas vidas", foi o conselho do bispo, mas os albigenses firmemente responderam que não renunciariam a uma fé que lhes tinha concedido o reino de Deus e Sua justiça. Os católicos se juntaram aos hereges declarando que, em vez de se renderem, sofreriam a morte em sua pior forma. "Então", disse Arnaldo, "não ficará pedra sobre pedra; o fogo e a espada devorarão os homens, as mulheres e as crianças." A cidade caiu nas mãos dos cruzados, e terrivelmente a ameaça foi cumprida. Os cavaleiros, parando nos portões, perguntaram ao abade como os soldados deveriam distinguir os católicos dos hereges; "Mate todos eles", ele respondeu, "o Senhor conhece os que são Seus." A chacina começou: homens, mulheres, crianças, clérigos, todos foram massacrados indiscriminadamente enquanto os sinos da catedral tocavam até que a matança estivesse completa. Multidões trêmulas fugiram para as igrejas, na esperança de encontrar um santuário dentro das paredes sagradas; mas nenhum ser humano foi deixado vivo. A vasta população de Béziers, que até recentemente se aglomerava nas ruas e mercados, agora jazia em corpos amontoados. Estima-se que o número de mortos foi de vinte a cem mil. Tantos que moravam no campo fugiam para as cidades em busca de refúgio nessas situações que não se pode estimar precisamente os números. A cidade foi entregue aos saqueadores e depois incendiada.

Nunca o "abade dragão" disse uma palavra tão verdadeira quanto "O Senhor conhece os que são Seus", embora ele o tenha dito com terrível escárnio, e era ele próprio totalmente estranho à parte restante do versículo: "e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade" (2 Timóteo 2:19). O Senhor certamente conhece a todos os que creem nEle, e infinitamente precioso para Ele é o mais fraco de Seus santos. Arnaldo, um dia, verá, na mesma glória juntamente com o Senhor, aqueles a quem ele denunciou como hereges e a quem matou ao fio da espada. Que dia será quando o perseguidor e o perseguido, o acusador e o acusado, estiverem face a face na presença daquEle que julga com retidão! Até lá, que possamos andar pela fé, buscando apenas agradar ao Senhor.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Raimundo -- Um Bandido Espiritual

Inocêncio tinha então obtido o que desejava -- um pretexto decente para o derramamento total dos frascos de sua ira. As honras do martírio foram decretadas à vítima, Raimundo foi denunciado como o autor do crime e proclamado um bandido espiritual; e os fiéis foram chamados a ajudar em sua destruição. "Para cima, soldados de Cristo", escreveu ele a Filipe Augusto da França, "Para cima, ó grande rei cristão! Ouça o clamor de sangue; ajude-nos a cumprir vingança sobre esses malfeitores. Para cima, ó, nobres, cavaleiros da França, as terras ricas e ensolaradas do sul serão a recompensa de vossa coragem." A pregação dessa cruzada foi confiada à ordem cisterciense, comandada pelo fanático abade Arnaldo, "um homem", como diz Milman, "cujo coração estava embainhado com o triplo ferro do orgulho, da crueldade e da intolerância". Justamente nessa época, muitos missionários caíram na conversa do notável espanhol Domingos, que sempre foi famoso por ter sido o fundador da Inquisição e dos frades dominicanos. Seu coração não era nem um pouco mais suave que o de Arnaldo, e foi mais bem-sucedido como pregador. Nenhum momento foi perdido em denunciar o crime de seus perpetradores. Todo coração e toda mão estava engajada em executar vingança pelo insulto a Deus na pessoa de "Seu servo". As mesmas indulgências que sempre tinham sido concedidas aos campeões do santo sepulcro (das primeiras cruzadas a Jerusalém) foram asseguradas àqueles que deveriam entrar na nova cruzada contra Raimundo e os albigenses. O clero, em todo lugar, pregava com zelo incansável sobre essa nova maneira de se obter o perdão dos pecados e a vida eterna.

"Para aquela geração ignorante e supersticiosa", diz Sir James Stephens, "nenhuma convocação poderia ser mais bem-vinda. Perigo, privações e fadiga, em suas formas mais severas, haviam assolado os caminhos acidentados pelos quais os cruzados do Oriente tinham lutado pelo paraíso prometido. Mas, nessa guerra contra os albigenses, a mesma recompensa inestimável seria ganha, não por abnegação, mas por autoindulgência. Todo débito que se devia aos homens seria anulado, toda ofensa já cometida contra a lei de Deus seria perdoada, e uma eternidade de bênção seria ganha, não por uma vida de santidade futura, mas sim por uma vida de crimes futuros; não por meio de restrições, mas por meio das gratificações de suas mais imundas paixões; pelo saciamento de sua crueldade, avareza e luxúria, às custas de um povo cuja riqueza excitava sua cobiça, e cuja superioridade provocava seu ressentimento." O avanço para essa colheita misturada de sangue e pilhagem, de absolvição sacerdotal e fama militar, impeliu todo espírito selvagem da época. A Europa inteira ressoava com os preparativos para a guerra santa.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Inocêncio e a Perseguição Albigense

Tal era o estado das coisas naquela região ensolarada, pacífica e próspera, quando uma nuvem escura de trovões apareceu no horizonte. Inocêncio ouviu com consternação sobre o progresso das novas opiniões, e resolveu esmagá-las. Com esse objetivo em vista, ele primeiramente dirigiu uma carta aos clérigos e príncipes do sul da França, exortando-os a tomarem medidas vigorosas para a supressão da heresia: todos os hereges deveriam ser anatemizados e banidos. Mas para Raimundo e outros, tal requisição tão impiedosa parecia tão arbitrária que recebeu pouca atenção. "Fomos criados com essas pessoas", respondeu Raimundo, "temos relações entre eles, sabemos que a vida deles é honesta; como perseguiremos aqueles a quem respeitamos como os mais pacíficos e leais de nosso povo?" Era óbvio que em tal sacrifício da população estavam envolvidos os interesses e as receitas dos príncipes, o que equivaleria a um processo de extermínio; mas a esse terrível processo o alegado supremo pastor do rebanho de Cristo não hesitou em recorrer, por mais que os soberanos seculares se opusessem. Os albigenses foram excomungados e colocados sob anátema, o que se estendia também a todos aqueles que os abrigassem, negociassem com eles ou se unissem a eles em relações sociais. Mas o desobediente Raimundo ainda mostrava favor para com seus súditos hereges, e o papa, enraivecido, consequentemente, enviou, em seguida, dois legados -- Reinerius e Guido -- para investigarem as causas da falha, armados com a total autoridade de extirpar os hereges. Muitas dessas pessoas inofensivas foram presas, condenadas e queimadas na fogueira; mesmo assim, Raimundo permaneceu inativo, e a heresia crescia e ganhava força.

O que deveria ser feito? Novos poderes foram exigidos; agentes mais severos e mais ativos foram requeridos. Raimundo, um soberano independente, conhecendo o caráter irrepreensível de seus súditos perseguidos, recusou-se a executar as demandas de Roma. São Bernardo, antigo defensor do papado, estava morto, mas o papa voltou-se para seus descendentes espirituais. Pedro de Castelnau, um monge cisterciense, foi enviado a Raimundo como um legado apostólico no ano de 1207 para exigir que exterminasse seus súditos hereges com fogo e espada. Mas o tolerante príncipe, que parece ter sido um homem muito mundano e apaixonado pelo prazer, sem força de caráter para ser herege ou fanático, não pôde ser despertado a obedecer ao mandato papal. Duas vezes ele recusou, e duas vezes ele foi excomungado, e seus domínios submetidos a um solene interdito. Inocêncio sancionou o que seu legado tinha feito e escreveu uma carta a Raimundo com uma linguagem de arrogância e insolência sem igual. "Homem pestilente! Tirano imperioso, cruel e desagradável; que orgulho tomou o teu coração, e que loucura a tua recusar a paz com seus vizinhos e enfrentar as leis divinas ao proteger os inimigos da fé? Se você não teme as chamas eternas, não deveria pelo menos temer os castigos temporais que mereces por tantos crimes? Pois verdadeiramente a igreja não pode ter paz com o capitão dos piratas e ladrões -- o patrono dos hereges -- o desprezador das coisas sagradas -- o amigo dos judeus e dos agiotas -- o inimigo dos clérigos, e um perseguidor de Jesus Cristo e de Sua igreja. O braço do Senhor ainda estará estendido contra ti, até que sejas esmagado até o pó. Verdadeiramente, Ele te fará sentir quão difícil te será retirar-te da ira que invocaste sobre tua própria cabeça."

Esse é um exemplo da espécie de veemência do injurioso papa nos tempos medievais. E por que motivo? pode o leitor perguntar. Não por causa de imoralidade, por pior que fosse; mas porque o conde se recusava a ser o carrasco do papa e derramar o sangue de seus próprios súditos pacíficos, trabalhadores e fiéis. Mas tal era o poder desses demônios encarnados do papa que Raimundo acabou se submetendo, temeroso. Ele assinou um tratado, muito relutantemente, pelo extermínio de todos os hereges em seus domínios. Ele foi vagaroso, no entanto, em prosseguir com a ordem de perseguição. O legado, percebendo isso, não pôde esconder sua raiva, rompendo na mais reprovadora linguagem contra o príncipe -- chamou-o de covarde, acusou-o de perjúrio, e renovou a excomunhão em toda a sua plenitude. Será que precisamos nos perguntar se um príncipe feudal como Raimundo ficaria irritado em indignação colérica pela ousada impudência do monge? Dizem que ele exclamou, em um momento infeliz, que faria Castelnau responder por sua insolência com sua vida. Supõe-se que a ameaça tenha sido ouvida por um de seus súditos que, no dia seguinte, após um debate enfurecido,  covardemente bateu no legado, matando-o. A disputa, como pode ser observado, assumiu um aspecto semelhante ao que se desenrolou pouco tempo antes entre Henrique II da Inglaterra e Thomas Backet.

A Região de Albi

O nome de Languedoque foi dado a essas províncias remotas do reino por causa da linguagem rica, melodiosa e flexível que era então comum ali. No que diz respeito ao refinamento, à riqueza e à liberdade, tanto política quanto religiosa, eles ultrapassavam todo o resto da França. A antiga civilização romana ainda prevalecia nos vales de Languedoque e Provença. Os chefes feudais, especialmente os condes de Toulouse e de Foix, embora tivessem o rei como senhor supremo, possuíam e exercitavam autoridade soberana em seus próprios domínios. Pelo favor de Raimundo e pela indiferença dos outros chefes, essa bela região tinha avançado muito mais rapidamente em direção à civilização do que qualquer outra parte da Europa, mas essa civilização, como observa Milman, era inteiramente independente, ou até mesmo hostil, à influência eclesiástica. A maldição do papado, como vimos muitas vezes, não é apenas ruinosa às almas dos homens, como também é destrutiva para todo o progresso nas artes da vida e na civilização em geral. Até mesmo a face de um país católico parece ter sido atingida por sua influência devastadora. As mentes teriam se mantido ignorantes, supersticiosas e escravizadas se o papado tivesse florescido ali. Mas, por um longo tempo, os habitantes de Languedoque tinham sido deixados sem serem molestados pela hierarquia de Roma, e, como consequência natural, suas cidades estavam cheias de uma comunidade pacífica, trabalhadora e rica.

Mas, por outro lado, como era tão natural, na mesma proporção em que a Palavra de Deus e as opiniões liberais prevaleciam, a igreja de Roma e o clero afundavam em grande desonra. Nobres e cavaleiros não mais permitiam que seus filhos fossem educados pela igreja, e nem mesmo os filhos de seus servos. Igualmente odiados pela nobreza e pelo povo comum por sua conduta gananciosa e sem princípios, os padres não conseguiam oferecer resistência ao progresso das novas opiniões. Eles não mais temiam o alegado poder espiritual dos padres, e estes eram desprezados por sua sensualidade. Eles se tornaram o canto e chacota dos trovadores. O abuso que faziam dos órfãos, a trapaça que faziam para com as viúvas, a desonestidade deles, a glutonaria e a embriaguez, eram proverbiais e inegáveis. "Tanto eram eles conscientes de sua rejeição", diz Robertson, "que chegavam a esconder sua tonsura, puxando o cabelo da nuca por cima dela." O mais simples mendigo, ao ouvir sobre alguma ação escandalosa, tinha o hábito de dizer: "Prefiro ser padre do que ser culpado de tal ato". Tão numerosos eram os que se apartavam de Roma que constituíam a maior parte da população. Os judeus também eram numerosos e ricos; e, é claro, havia também um bom número de indivíduos que não eram propriamente de nenhuma seita, e que povoavam as cidades florescentes de Languedoque; mas nos referiremos a todos eles, de agora em diante, sob o nome comum de albigenses.

domingo, 1 de dezembro de 2019

A Dispersão dos Seguidores de Valdo

Quando Valdo fugiu, seus discípulos o seguiram. A dispersão aconteceu de modo similar à que surgiu por ocasião da perseguição de Estêvão. Os efeitos também foram similares: o bendito evangelho acabou sendo ainda mais amplamente disseminado por toda a Europa. O maior poder deles era a posse das Escrituras Sagradas em sua própria língua. Eles liam os Evangelhos; eles pregavam e oravam na língua popular. Muitos deles, sem dúvida, chegaram aos vales de Piemonte e às cidades de Languedoque. Uma nova tradução da Bíblia era, sem dúvida, uma rica adesão aos tesouros espirituais daquele interessante povo.

A cena estava então pronta para o papa Inocêncio III: as ameaças papais, tendo sido transmitidas por sua vigorosa mão, foram executadas com uma mente disposta e implacável. Ele, que tinha humilhado os grandes reis da Alemanha, França e Inglaterra, e que tinha recebido submissão implícita de quase todas as partes da Cristandade, ainda era renegado como o supremo chefe da igreja pelos valdenses, onde quer que fossem achados. Dificilmente um espírito como o de Inocêncio continuaria a suportar com calma essa resistência a sua vangloriada supremacia universal. Mas qual era o crime deles? Onde eles poderiam ser encontrados? E como eles deveriam ser tratados?

1. Eles tinham a mais alta reputação em todos os lugares, até mesmo por parte de seus piores inimigos, por sua modéstia, simplicidade, honestidade, castidade e temperança. "Em nenhum caso", diz uma alta autoridade que não era muito favorável aos que ele chamava de anti-sacerdotalistas, "a moral e os costumes de Pedro Valdo e dos Cristão Bíblicos Alpinos podiam ser arranhados por seus mais amargos inimigos". O "pecado mortal" deles vinha do apelo que faziam às Escrituras, e somente às Escrituras, em todos os assuntos de fé e adoração. Eles rejeitavam o vasto sistema da tradição-religião mantido pela igreja de Roma. Tanto em vida quanto em doutrina eles eram nobres testemunhas de Cristo e da simplicidade do evangelho; mas isso acabava se constituindo como um poderoso protesto contra a riqueza, o poder e as superstições da religião dominante. Eles rejeitavam os quase inumeráveis sacramentos de Roma, e mantinham a posição de que havia só dois deles no Novo Testamento -- o batismo e a ceia do Senhor. Em geral, podemos dizer que eles anteciparam e defenderam as mesmas doutrinas que, após um lapso de três séculos, seriam promulgados pelos reformadores da Alemanha e da Inglaterra, e que constituem o credo dos protestantes na atualidade.

2. O progresso dos "homens pobres de Lyon", após a perseguição deles, parece ter sido rápido e amplamente estendido. Dizem que eles se espalharam pelo sul da França, para a Lombardia e Aragon. "Em Lombardia e Provença", diz Robertson, "os valdenses tinham mais escolas do que os católicos; seus pregadores disputavam e ensinavam publicamente, enquanto o número e a importância dos patronos que os protegiam fizeram com que fosse perigoso interferir no trabalho deles. Na Alemanha, eles tinham quarenta e uma escolas na diocese de Passau, e eram numerosos nas dioceses de Metz e Toul. Da Inglaterra ao sul da Itália, desde Helesponto até o Ebro, suas opiniões eram amplamente difundidas."*

{* J.C. Robertson, vol. 3, pp. 179-202. Waddington, vol. 2, p. 187. History of France de Sir. J. Stephen, vol. 1, p. 218.}

3. Tal era o estado de coisas quando o papa Inocente III subiu ao trono papal. Com pressentimentos ansiosos e um olho de águia, ele observava esse espírito de independência religiosa, mas a questão era como ele poderia efetivamente esmagá-lo. Além disso, nessa época, como o leitor se lembrará, suas mãos estavam cheias. Ele estivera buscando destruir o equilíbrio de poder na Alemanha e na Itália, contendia com os reis da França e da Inglaterra, dirigia a marcha dos cruzados, e derrubava, por meio deles, o império grego em Constantinopla; mesmo assim ele ficou observando, e se determinou a punir cada dissidência dos dogmas da igreja de Roma e cada exercício da faculdade de pensamento de seus súditos religiosos. Havia altos rumores, por volta dessa época, de que os dois principais focos de desafeto em relação a Roma vinham dos vales de Piemonte e do sul da França. Os cristãos piemonteses floresceram na obscuridade, enquanto os albigenses se tornaram mais notórios, assim como mais perigosos, por causa da proteção que conseguiram nas ricas cidades de Languedoque. Raimundo VI, conde de Toulouse, não apenas favorecia aqueles que eram do credo valdense, considerando-os seus melhores súditos, como também os empregava em sua família, embora declaradamente fosse católico romano. O conde de Foix casou-se com uma valdense e, de suas duas irmãs, uma dizia ser valdense, e a outra catarista, ou puritana.

Pedro Valdo

Por uma semelhança de nomes, Pedro Valdo, o reformador de Lyon, tem sido frequentemente mencionado como o fundador da seita valdense. Pensamos ser este um erro, embora um erro facilmente cometido, e um que os romanistas avidamente aumentaram como um argumento contra a antiguidade dos valdenses, e que, portanto, foi adotado pela maioria dos registros históricos gerais. Mas o Sr. Elliot, em seu livro "Horae Apocalypticae", e aqueles mencionados na nota acima (seção anterior), examinaram a questão com grande paciência e pesquisa e, cremos, claramente estabeleceram uma conclusão sobre a ortodoxia e antiguidade dos "homens dos vales"*.

{* Veja no Dicionário de Marsden o artigo sobre os "Albigenses". Veja também: Milner, vol. 3, p. 92; e Scenery of the Waldenses, de Bartlett, Introduction.}

Ao mesmo tempo, Pedro Valdo é digno de todo elogio por seus serviços abnegados pela causa da verdade e contra o erro. Sua piedade, zelo e coragem foram muito notáveis em um período em que a hierarquia papal começava a perseguir todos aqueles que questionavam sua autoridade e infalibilidade. Ele foi, sem dúvida, levantado por Deus justamente naquela época para dar maior distinção ao testemunho dos camponeses alpinos. A simplicidade da adoração deles e a cena de sua tranquilidade parecem não ter excitado a inveja de seus vizinhos ou a suspeita da igreja católica até a época em que Pedro Valdo entrou em cena. Aconteceu, sob a mão de Deus, da seguinte maneira:

Por volta do ano 1160, as práticas de idolatria que acompanhavam a doutrina da transubstanciação impressionaram Pedro profundamente com um senso alarmante da iniquidade daquela época e das perigosas corrupções do papado. Isso levou à verdadeira conversão de sua alma a Deus. Desde aquele momento, ele passou a se dedicar a servir a Deus e à Sua glória. Ele abandonou suas ocupações mercantis e distribuiu suas riquezas aos pobres, em imitação aos primeiros discípulos. Muitos se reuniram em torno dele, e ele sentiu a necessidade de instrução nas coisas de Deus; perguntou-se, então, onde a encontraria. Ele ficou profundamente desejoso de compreender os Evangelhos que estava acostumado a ouvir na igreja. Ele, então, empregou dois eclesiásticos para traduzi-los para a sua língua nativa, assim como outros livros das Escrituras, e algumas passagens dos pais apostólicos. Essa foi a maior obra de Valdo, pela qual ele merece os melhores agradecimentos da posteridade. As Escrituras, naquela época, eram em grande medida um livro selado na Cristandade, estando disponíveis somente em Latim. Os seguidores de Valdo, estando assim providos com cópias das Escrituras em sua própria língua, eram capazes de explicar às pessoas que eles não estavam promovendo doutrinas próprias, mas uma fé pura conforme realmente existia na Bíblia. Seguindo o exemplo dos setenta, ele enviou seus discípulos, dois a dois, às aldeias vizinhas para pregar o evangelho.

Isso despertou os trovões do Vaticano. Enquanto Valdo e seus amigos se limitavam a protestar contra as inovações, a hierarquia não os molestava seriamente; mas assim que eles empregaram o temido motor -- as Escrituras na língua popular -- eles foram imediatamente amaldiçoados e excomungados. Até esse momento, os valdenses não contemplavam qualquer secessão da igreja, mas apenas sua reforma. Eles persistiram em pregar o glorioso evangelho da graça de Deus aos pecadores perdidos: e então um interdito foi emitido contra eles pelo arcebispo de Lyon. Valdo respondeu resolutamente: "Devemos obedecer a Deus, e não ao homem". A partir de então, "os homens pobres de Lyon", como eram chamados, foram rotulados pelo clero com descrédito e desprezo como hereges. Por três anos após essa primeira condenação, que ocorreu em 1172, Valdo conseguiu permanecer escondido na cidade de Lyon ou nas cidades próximas, mas o papa Alexandre III fulminou suas ameaças e terrores tão efetivamente, não apenas contra Valdo, mas contra todos que ousassem manter a menor comunicação com o reformador que, por amor de seus amigos, Valdo fugiu de Lyon e tornou-se um andarilho pelo resto de sua vida. Após buscar abrigo em vários lugares, mas não encontrando descanso em nenhum lugar, ele passou, enquanto andava entre os alpinistas boêmios, os ancestrais de Huss e Jerônimo, para seu descanso eterno por volta do ano de 1179.

Os Valdenses e os Albigenses

4. A origem dos assim chamados sectários ocidentais sob o nome dos valdenses é assunto de muita controvérsia. Uma classe de escritores, favoráveis ao catolicismo, visando envolvê-los na acusação comum de maniqueísmo, se esforçaram em provar que suas opiniões eram de origem oriental, ou pauliciana, enquanto que os escritores opositores ao catolicismo afirmam que eles eram livres do erro maniqueísta, e que foram os herdeiros e mantenedores, sendo algo passado de pai para filho, de um cristianismo puro e bíblico, desde os tempos de Constantino, se não desde os dias dos apóstolos.*

{* Na primeira edição deste livro, ocorre a seguinte frase: "Parece também ser muito certo que os albigenses das províncias do sul da França devem sua origem aos paulicianos." A maioria dos registros históricos gerais dão essa impressão; mas após consultar os registros históricos específicos e pesquisas trabalhosas de Peter Allix, D.D., W.S. Gilly, M.A., W. Beattie, M.D, e outros, estamos plenamente persuadidos da maior antiguidade dos albigenses, da pureza de sua fé e de sua localização alpina -- de que existiam como um povo cristão distinto muito antes dos paulicianos, ou até mesmo do papado.}

Mas, como atualmente não é tanto nosso objetivo traçar a história desse povo cristão antigo, simples e devoto, mas sim trazer à tona mais uma característica do papado sob a direção de Inocêncio em sua mais plenamente expressa blasfêmia e crueldade, satisfaremos o leitor apenas quanto a quem eram essas pessoas e quanto à cena de seu extermínio. "Os termos", diz o Dr. Gilly, "Vaudois em Francês, Vallenses em Latim, Valdisi em Italiano, e Waldenses na história eclesiástica inglesa, significava mais ou menos a ideia de 'homens dos vales'; e como os vales de Piemonte tiveram a honra de produzir um grupo de pessoas que tinham permanecido verdadeiras à fé introduzida pelos primeiros missionários que pregaram o Cristianismo naquelas regiões, esses sinônimos foram adotados como o nome distintivo de uma comunidade religiosa, fiel ao credo primitivo, e livre das corrupções da igreja de Roma."

Os albigenses, embora fossem essencialmente idênticos aos valdenses em matéria de fé, eram assim chamados porque a maior parte da Gália Narbonense, onde habitavam, era chamada de Albigésio, ou de Albi, uma vila em Languedoque. Os Alpes separavam as duas comunidades. Deus encontrou um refúgio para os valdenses nos vales do lado ocidental daquela grande cordilheira, onde foram preservados e fortificados por muitos séculos.  

domingo, 24 de novembro de 2019

Os Henricianos

3. O fogo que queimou Pedro de Bruys nunca desencorajou nem silenciou seus seguidores. Um deles, chamado Henrique, um monge de Cluny, que também era diácono, tornou-se um pregador mais ousado e mais poderoso do que Pedro. Ao retirar-se do monastério, dedicou-se ao estudo do Novo Testamento, e, tendo ganhado um conhecimento do cristianismo direto da Palavra de Deus pura, desejava ir ao mundo proclamar a verdade aos seus semelhantes. Sua aparência pessoal e sua educação se combinavam para tornar sua pregação ainda mais poderosa e despertadora. A rápida mudança em seu semblante é comparada a um mar tempestuoso; sua estatura era elevada, seus olhos estavam revirados e inquietos; sua poderosa voz, seus pés descalços e aparência negligenciada atraíam a atenção, e eram marcadas pela fama de sua erudição e santidade.

Durante anos ele era apenas um jovem, mas seus tons profundos, sua eloquência maravilhosa, com sua aparência notável, horrorizavam o clero e encantavam o povo. Em um espírito similar ao de João Batista, ele chamava o povo ao arrependimento para que se convertessem ao Senhor, e não poucas vezes atacava os vícios já impopulares do clero.

Mas a oposição do clero que Henrique enfrentava apenas atraía mais o povo para si. Multidões, tanto das classes mais pobres quanto das mais ricas, o recebiam como guia espiritual em todas as coisas. A primeira vez que se ouviu falar dele, historicamente, foi em Lausana, mas atravessou o sul da França desde Lausana até Bordéus; e, como observa Neander, "ele atraía o povo para si, e os enchia de desprezo e ódio contra o alto clero -- dizendo que não deveriam ter nada a ver com eles. Eles deixavam de participar do serviço religioso, e o clero se achou exposto a insultos por parte da população, tendo que solicitar a proteção ao poder civil". O prudente bispo de Le Mans, vendo a influência que ele tinha conquistado sobre o povo, contentou-se em simplesmente direcionar Henrique a outro campo de trabalho. O zeloso monge retirou-se silenciosamente e apareceu em Provença, onde Pedro de Bruys tinha trabalhado antes dele. Ali ele desenvolveu ainda mais claramente sua oposição aos erros da igreja de Roma, e atraiu para si a mais amarga hostilidade da hierarquia clerical.

Henrique foi preso pelo arcebispo de Arles, sendo condenado como herege pelo Concílio de Pisa, que ocorreu em 1134, e sentenciado ao confinamento em uma cela. Em pouco tempo, ele escapou e retornou a Languedoque. Conta-se que deserções de igrejas e um total desprezo para com o clero seguiam o eloquente heresiarca por onde passava. Um legado chamado Alberico foi enviado pelo papa Eugênio III para subjugar a revolta, mas não foi proveitoso. "Henrique é um antagonista", disse ele, "que só pode ser derrubado pelo conquistador de Abelardo e de Arnaldo de Bréscia."

O poderoso abade de Claraval escreveu ao príncipe de Provença para que se preparasse para sua chegada, já adiantando o objetivo de sua vinda. "As igrejas", ele escreveu, "estão sem povo; o povo sem padres; os padres sem honra; e os cristãos sem Cristo. As igrejas não são mais tidas como santas, nem os sacramentos, nem as festas são celebradas. Os homens morrem em seus pecados -- almas são levadas às pressas ao terrível tribunal -- sem penitência ou comunhão; o batismo é recusado aos bebês, que são assim impedidos da salvação." O abade fez milagres, como se acreditava; o povo se maravilhava e se admirava; Henrique fugiu; Bernardo o perseguiu, purificando os lugares infectados pela pestilência da heresia. Por fim, o herege foi preso e levado acorrentado ao bispo de Toulouse, que o condenou à prisão, onde logo depois morreu repentinamente. Ele foi, então, libertado de todos os seus perseguidores no ano de 1148 e entrou em seu descanso.

Os Petrobrussianos

2. Por volta do ano de 1110, um pregador chamado Pedro de Bruys começou a declamar contra as corrupções da igreja dominante e os vícios do clero. Como missionário, ele trabalhou principalmente no sul da França, em Provença e Languedoque. E, o que pode nos parecer estranho, foi-lhe permitido disseminar suas novas doutrinas com impunidade por cerca de vinte anos. O inimigo não o podia silenciar nem matar a testemunha até que seu testemunho estivesse terminado. Mas, como quase tudo o que sabemos sobre tais homens chegou até nós através dos escritos de seus adversários, apenas ouvimos sobre o que eles chamavam de suas heresias. O venerável abade de Cluny escreveu um tratado contra os seguidores de Pedro de Bruys -- os assim chamados petrobrussianos: eles foram acusados de muitas ofensas, mas que podem ser resumidas da seguinte forma -- oposição ao batismo de crianças, à missa, ao celibato, aos crucifixos, à transubstanciação e à eficácia das orações pela salvação dos mortos. Mas nada que o fundador dessa seita fizesse ou dissesse parecia despertar o sentimento público contra ele até que ele queimou várias cruzes com a imagem de Cristo. Os padres então conseguiram, por meio de um tumulto popular, e ele foi queimado vivo em St. Gilles, em Languedoque. Mas seu protesto não foi tão facilmente consumido. A luz divina pode ser ofuscada por um tempo, mas nunca extinta.

A Cadeia de Testemunhas

Quando comentamos sobre os paulicianos -- as testemunhas de Deus e de Sua verdade no Oriente -- falamos que os encontraríamos novamente no Ocidente. Afirma-se que, em seu zelo missionário, eles se espalharam por toda a Europa; mas se eles continuaram sendo uma seita distinta e característica ou se misturaram-se com outros sectários do Ocidente, esta é uma questão em que não há consenso por parte dos historiadores. Dentre as várias formas de heresia que eram denunciadas pela igreja dominante, dificilmente alguma delas escapou da acusação de maniqueísmo -- o rótulo que era afixado sobre os emigrantes do Oriente. Mas não seria correto dizer, como faziam, que todas as seitas ocidentais eram fruto da missão deles, apesar de serem taxados com o mesmo nome. É mais do que provável, no entanto, que eles tenham encontrado muitos com espírito separatista em relação à igreja católica, embora não o demonstrassem abertamente, e que em tais casos os paulicianos podem ter se tornado seus mestres, podendo, desse modo, perpetuar seus princípios.

As testemunhas ocidentais, sem dúvida, foram o resultado do mesmo espírito de graça e verdade que tinham os paulicianos, através da fidelidade de Deus, que nunca permitiu-Se ficar sem um testemunho na terra, mas não vemos fundamento para falar deles como descendentes dos mal-representados paulicianos. É mais provável que eles fossem uma mistura desses dissidentes da igreja estabelecida.

Procuraremos agora traçar a linha prateada da graça de Deus, que estava trabalhando ativamente, embora sob diferentes formas e nomes, durante o período mais sombrio da opressão papal. Não há dificuldade em identificar as testemunhas de Deus, desde o início da igreja até a Reforma, ou em traçar a cadeia ininterrupta de testemunhas que eram contra a iniquidade de Roma e a favor do verdadeiro evangelho da graça de Deus. Já vimos essa cadeia de testemunhas desde a história dos paulicianos até o século X; veremos agora as seitas mais proeminentes que surgiram no Ocidente antes de e desde esse período.

1. Cláudio de Turim, nascido espanhol, foi um famoso comentarista das Escrituras na corte de Luís, na Aquitânia. Seu patrono, o imperador, o promoveu ao bispado de Turim no ano de 814. Ele é tido na história como o Wycliffe do século IX e um vigoroso defensor do cristianismo primitivo. Ao chegar à diocese, ele encontrou as igrejas cheias de imagens e embelezamentos com flores e guirlandas. Imediatamente e sem cerimônia, ordenou que todos esses ornamentos fossem removidos. Nenhuma distinção deveria ser feita em favor de qualquer imagem, relíquia ou crucifixo; todos deveriam ser retirados para destruição. Ele denunciou a adoração a tais coisas como uma renovação da adoração aos demônios sob outros nomes, o que estava substituindo a pregação da gloriosa ressurreição do Senhor Jesus. Ele declarava também que o ofício apostólico de São Pedro tinha cessado com o fim da vida do apóstolo. Ele, portanto, desprezava as censuras papais e o alegado poder das chaves de São Pedro. Dizem que ele separou sua igreja da comunhão romana.

Mas, como muitos outros reformadores, Cláudio era duro e intemperante em seu zelo. As terríveis corrupções do clero e as idolatrias do povo o levaram a falar e escrever em termos fortes e cheios de paixão, o que não é de se admirar. Mas o Senhor cuidou dele do modo mais maravilhoso possível. Embora fosse um ousado reformador e um destemido iconoclasta em uma cidade italiana, a invisível mão da providência divina permitiu que terminasse seus labores permanecendo ainda nos plenos privilégios de um bispo, apesar de não ter sido livre de oposições.

Como um elo na cadeia de testemunhas, Cláudio ocupa um lugar muito distinto. Sua influência foi grande e amplamente difundida. Teodomiro, abade de um monastério perto de Nismes, ingenuamente confessou, de acordo com Milman, que a maioria dos grandes clérigos transalpinos* pensavam como Cláudio. Assim, a hostilidade contra a igreja católica e seus muitos sacramentos, que mais tarde prevaleceu nos vales alpinos, tem sido geralmente traçada desde esse reformador, Cláudio. Ele morreu no ano de 839. 

{*Transalpino: que se situa além dos Alpes}

Inocêncio e o Sul da França

Capítulo 25: França (814-1229 d.C.)

Um novo campo de sangue e um caráter inteiramente novo de guerra foram trazidos diante da mente do voraz papa de Roma. Era uma guerra não contra os inimigos de uma fé estrangeira, ou contra os reis domésticos insubmissos, mas do exército da igreja romana guerreando contra os seguidores confessos do Senhor Jesus Cristo. Isso era algo novo nos anais da Cristandade.

Pelo favor dos príncipes e pela indiferença do clero, os albigenses tinham sido permitidos, por séculos, a pregar o evangelho e disseminar a verdade sem serem molestados. O catolicismo romano quase perecera nas províncias do conde Raimundo VI. O povo desses locais, em geral, era muito inclinado a quebrar sua conexão com a igreja de Roma definitivamente. Quando esse estado de coisas chegou aos ouvidos de Inocêncio, ele convocou uma cruzada contra os hereges de Languedoque, e não descansou até ter varrido toda essa população do solo da França.

Mas devemos, antes de tudo, retroceder alguns passos de modo a ligarmos a isso a linha de testemunhas de Cristo e de Seu evangelho.

domingo, 10 de novembro de 2019

A Ira de Inocêncio

Dentre as testemunhas da assinatura da Magna Carta estava Pandolfo, o legado arrogante do papa. Ele viu aquilo como um golpe mortal contra o poder papal na Inglaterra. Inocêncio logo ficou informado da surpreendente notícia. Sua infalibilidade estremeceu com alarme; se enfureceu e jurou, como era de seu costume; franziu a testa, como diz o historiador, e irrompeu em palavras de perplexidade. "O que! Esses barões da Inglaterra presumem destronar o rei que tomou a cruz e  que colocou-se sob a proteção da Sé apostólica? Como podem eles transferir a outros aquilo que é patrimônio da Igreja de Roma? Por São Pedro, não podemos deixar tal crime impune." A grande carta foi declarada pelo papa nula e sem efeito, o rei foi proibido, sob pena de excomunhão, de respeitar o juramento que tinha feito ou as liberdades que tinha confirmado. Mas as censuras espirituais e os editos anulatórios foram recebidos pelos barões com total desconsideração.

A guerra eclodiu; e para a desgraça ainda mais profunda de João, que não tinha exército próprio, ele trouxe do continente bandos de aventureiros e piratas, prometendo-lhes as propriedades dos barões ingleses como recompensas pela bravura. À frente dessas tropas mercenárias, com o auxílio de dois bispos sedentos por guerra, Worcester e Norwich, ele atravessou o país inteiro, desde o canal até o rio Forth. Ele soltou suas hordas ferozes como bestas selvagens em seu reino infeliz. Os barões não tinham feito qualquer preparo para a guerra, e nem suspeitavam da introdução de um exército estrangeiro. Aqui, novamente, vemos as profundezas de Satanás; ele está sempre pronto a dar a outro o poder que ele tiver sobre as nações, desde que aquele a quem ele o dá se submeta inteiramente a sua vontade. "Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares" (Mateus 4:8,9). Foi exatamente o mesmo que ele fez a João, seja tornando-se vassalo do papa, de Maomé ou de Satanás. Por um  curto período de tempo ele foi um mestre imbatível no campo de batalha. Toda a terra foi devastada com fogo e espada. Pilhagem, assassinato e tortura se enfureciam descontroladamente. Nada era tido por sagrado, nada era seguro. Nobres e pedintes fugiam com suas esposas e famílias quando era possível. Os assassinos manchados de sangue do rei e do papa passaram por todo o país com a espada em uma mão e a tocha na outra, enquanto um clamor subia ao céu: "Oh, infeliz Inglaterra! Oh, infeliz país! Que Deus tenha misericórdia de nós, e que Seus juízos caiam sobre o rei e o papa."

O juízo não demorou muito. Nem o céu nem a terra podiam mais tolerar suas crueldades e tiranias. O papa morreu em 16 de julho de 1216, aos 55 anos de idade; apenas um ano, um mês e um dia após a assinatura da Magna Carta. João viveu apenas alguns meses a mais que o papa. Morreu em 12 de outubro de 1216, aos 49 anos de idade, e no décimo sétimo ano de seu reinado. Supõe-se que tenha morrido com o pavor acompanhado pela embriaguez. Enquanto retornava de uma de suas cenas de matança, os vagões reais estavam cruzando as areias de Wash, desde Norfolk até Lincolnshire, quando a maré subiu repentinamente e todos se afundaram no abismo. O acidente encheu o rei de terror; ele sentiu que a terra estava à beira de se abrir e engoli-lo vivo. Ele bebeu copiosas doses de cidra, as quais, juntamente com o medo e o remorso, encerraram os dias do tirano mais cruel e desprezível que já se sentou no trono da Inglaterra. Os nomes dos demais reis cujos vícios são tenebrosos o suficiente para provocar execrações da posteridade são muitas vezes cercados por uma auréola de talento, seja no senado ou no campo de batalha, de modo a mitigar a severidade da sentença. Mas o rei João morre: seu caráter permanece diante de nós de forma não redimida por uma virtude solitária.*

{*Enciclopedia Britânica, vol. 8, p. 721; D'Aubigné, vol. 5, p. 98; Eighteen Christian Centuries, de James White, p. 290.}

A Magna Carta

João, tendo assim triunfado sobre seu amargo inimigo, e assegurado a aliança com a Santa Sé, continuou com as mesmas medidas cruéis e tirânicas que até então o tinham colocado em uma posição odiosa perante seus súditos. Seu longo e inadequado governo e suas imprudentes indulgências em excessos de todos os tipos de hábitos viciosos tinham exaurido a paciência de todas as classes de pessoas, tanto na Igreja quanto no Estado. Começou-se a expressar um desejo geral por privilégios e pelo controle resultantes de uma lei estabelecida.

A história da Magna Carta é tão verdadeiramente inglesa, tão bem conhecida e tão intimamente conectada à igreja, assim como à história civil, que devemos fornecer uma breve observação sobre ela neste livro. Além disso, dizem os historiadores que nenhum evento de igual importância ocorreu em qualquer outro país da Europa durante o século XIII, e que os resultados de qualquer outro incidente jamais foram tão duradouros ou tão sabiamente disseminados como aqueles da reunião dos barões em Runnymede e da convocação dos burgueses ao Parlamento. Enquanto a monarquia fazia rápidos avanços na França, um poder de contrapeso havia se formado na Inglaterra pela combinação da nobreza e a ascensão da Câmara dos Comuns.

O arcebispo Langton, a quem Inocêncio tinha levantado como primaz, a fim de que, por seus próprios meios, mantivesse todas as exorbitantes pretensões de Roma sobre a Inglaterra, era ele próprio inglês, e em todas as ocasiões demonstrou uma sincera preocupação pelos interesses do reino, para o total desapontamento do papa. Tendo encontrado, em meio ao lixo de um monastério obscuro, uma cópia da carta de Henrique I, ele conferenciou em privado com os barões, exortando-os a renová-la. Aqueles dentre os barões que sentiram profundamente a degradação a que João tinha infligido todo o reino por suas submissões abjetas ao papa receberam o documento com altas aclamações e fizeram um juramento solene de conquistar ou de morrer em defesa de suas liberdades. Após várias conferências e atrasos, quarenta e cinco barões, armados, bem montados em seus cavalos de guerra e cercados de seus cavaleiros, servos e soldados, apresentam ao rei uma petição, rogando-lhe que renovasse e ratificasse a carta. João a princípio se ressentiu da presunção deles em um ataque de fúria, e jurou "que jamais lhes daria liberdades que tornariam ele próprio um escravo". Mas os barões estavam firmes e unidos, e a corte de João rapidamente diminuiu. Ele eventualmente se submeteu e concordou em participar de uma conferência amigável. Os barões nomearam Runnymede como o local apropriado para a reunião. Era um prado situado entre Staines e Windsor -- o terreno é até hoje venerado como o lugar em que o padrão da liberdade inglesa foi primeiramente concebido. No dia 15 de junho de 1215, ambas as partes se encontraram ali, e o rei assinou a carta -- a grande carta das liberdades da Inglaterra.

A Inglaterra Rendida a Roma

Como se não fosse do interesse ou da intenção de "Sua Santidade" permitir que os assuntos fossem levados a extremos, o vigilante papa viu que tinha chegado sua hora de interferir. Dois legados, Pandolfo e Durando, foram enviados com as exigências finais de Inocêncio a João. Eles o asseguraram de que o rei da França estava pronto para invadir a Inglaterra com um grande exército e uma frota poderosa, e que ele viria acompanhado de arcebispos, bispos e clérigos a quem João havia banido; que eles transfeririam sua lealdade a seu rival Filipe, e que colocariam a coroa em sua cabeça. Com muitas declarações como essas, eles aterrorizaram o rei, que perdeu todas as suas posses pessoais, e lançou-se a si mesmo e ao seu reino nas mãos dos legados, sem reservas. Com uma mesquinhez de espírito e uma submissão abjeta que não conhecia limites, ele colocou sua coroa aos pés dos arrogantes legados, renunciou a Inglaterra e a Irlanda às mãos do papa, jurou homenagem a ele como seu suserano, e fez um juramento de lealdade aos seus sucessores. Os termos desse notável juramento são longos e prolixos demais, mas a substância, a essência deles, é apresentado pela Enciclopédia Britânica como segue:

"Eu, João, pela graça de Deus Rei da Inglaterra e Senhor da Irlanda, de modo a expiar meus pecados, de minha própria livre vontade e pelo conselho de meus barões, concedo à Igreja de Roma, ao Papa Inocêncio e a seus sucessores, o reino da Inglaterra e todas as demais prerrogativas de minha coroa. Irei doravante considerar-me como vassalo do papa. Serei fiel a Deus, à Igreja de Roma, ao papa, meu mestre, e aos seus sucessores legitimamente eleitos. Prometo pagar-lhe um tributo de 1000 merks*, a saber, 700 pelo reino da Inglaterra e 300 pelo reino da Irlanda." Essa memorável submissão ocorreu no dia 15 de maio de 1213, no décimo quarto ano de seu reinado, na casa dos Templários, não muito longe de Dover.

{*Merk é uma antiga moeda de prata escocesa, que valeria, nos dias de hoje, cerca de uma libra esterlina. Esse montante deveria ser pago anualmente, além do dinheiro devido à cadeira de Pedro.}

Esse juramento foi feito pelo rei ajoelhado diante de todo o povo e com suas mãos levantadas entre aqueles legados. As testemunhas que atestaram o juramento foram: um arcebispo, um bispo, nove condes e quatro barões. Tendo então concordado com a posse de Langton como primaz da Inglaterra, ele recebeu de volta a coroa que deveria ter perdido. O cauteloso e político Pandolfo, tendo recebido a lealdade do rei da Inglaterra e oitenta mil libras esterlinas como compensação pelos bispos exilados, rapidamente juntou as escrituras e os sacos de dinheiro e apressou-se a reunir os clérigos banidos na Normandia para dividir o dinheiro. Em seguida, apressou-se ao acampamento do rei Filipe Augusto e, encontrando o exército no ponto de embarque para a Inglaterra, friamente informou o rei "que não havia então mais necessidade de seus serviços; e que, na verdade, qualquer tentativa de invadir o reino, ou de perturbar o rei da Inglaterra, seria altamente ofensivo para a santa Sé, em virtude de que esse reino era agora parte e parcela do patrimônio da igreja: era, portanto, seu dever dispensar seu exército, e ele próprio retornar para casa em paz". Quando Filipe descobriu que havia sido tão estupidamente enganado, rompeu em uma tempestade de injúrias indignadas contra o papa. "Ele tinha sido arrastado para uma enorme despesa; tinha chamado para a guerra toda a força de seus domínios, sob a promessa ilusória de um reino e da remissão de seus pecados; tudo isso ele tinha feito em súplica ardente para com o papa. E então toda a cavalaria da França, em armas ao redor de seu soberano, deveria ser dispensada como servos contratados quando não havia mais uso para seu serviço?" Porém, a fúria do rei foi respondida com uma fria repetição da ordem: "Desista das hostilidades contra o vassalo da Santa Sé."*

{*Cathedra Petri, livro 13, p. 588.}

O desapontamento e mortificação de Filipe foram grandes; mas, não se atrevendo a ofender o papa e não estando disposto a se desfazer de seu exército sem ao menos tentar alguma empreitada, ele desceu a Flandres (região flamenga). Fernando, o conde, embora fosse um aliado da França, tinha entrado em uma liga secreta anti-francesa com João, o que deu  a Filipe um justo pretexto para voltar suas armas contra esse vassalo revoltado. Porém, as frotas da Inglaterra se uniram aos flamengos, e assim a tentativa de conquistar Flandres terminou em uma derrota vergonhosa. Os ingleses capturaram trezentos navios e destruíram cerca de cem outros: enquanto Filipe, vendo ser impossível impedir que o resto caísse nas mãos do inimigo, incendiou-os ele mesmo, e então abandonou a empreitada. Tal foi a pesada perda e desconforto de Filipe no decorrer da profunda trama arquitetada por Inocêncio.

A Coroa da Inglaterra Oferecida à França

Tendo sido a sentença papal de deposição contra o rei da Inglaterra pública e solenemente promulgada, Filipe da França foi delegado para executar o decreto. Os legados colocaram em suas mãos uma comissão formal o direcionando, pela autoridade apostólica, a invadir a Inglaterra, depôr o rei e tomar sua coroa. O historiador observa que os legados e prelados (clérigos) fingiram estar agindo sob o maior dos zelos e seriedade ao tratarem de todo o assunto, ao passo que não era nada além de mero artifício. Nada estava mais longe da mente de Inocêncio do que a união das duas coroas em uma só cabeça. Isso teria fortalecido a França, não a Sé Romana. Filipe não havia se esquecido da insolência do papa ao interditar seu reino e excomungá-lo; mas seu ódio por João, seu amor por empreendimentos e a traição do papa o cegaram completamente. Ele confiou no papa, mas cometeu um erro ruinoso. Nem um momento, no entanto, foi perdido por Filipe ao reunir uma frota e um exército numeroso para a invasão da Inglaterra. 

O papa, ao mesmo tempo, anunciou uma cruzada sobre toda a Cristandade contra o ímpio rei João, prometendo a todos que participassem nessa guerra santa a remissão dos pecados e os privilégios dos cruzados. Mas o rei caído não queria ceder nem com vigor nem com sutileza. Ele reuniu uma grande frota em Portomua e um exército em Barham Downs, próximo à Cantuária, assumindo uma posição agressiva: mas logo descobriu que em seu grande exército não havia muitos em quem se podia confiar. Enlouquecido, ele ameaçou se tornar muçulmano e buscou uma aliança com o califa; mas nesse momento, o espírito do rei impaciente sofreu uma repentina revolução. Da altura de sua raiva desafiadora, ele caiu até as mais baixas profundezas da prostração e do medo.

A Inglaterra sob o Banimento Papal

Em um momento, todos os ofícios divinos por todo o reino cessaram, exceto o rito do batismo e a extrema unção. "Desde Berwick até o Canal Britânico", diz um relato sobre essa terrível maldição, "desde Land's End até Dover, as igrejas foram fechadas, os sinos silenciados; os único clérigos que se viam por aí, silenciosamente, eram aqueles que deviam batizar recém-nascidos, ou que ouviam a confissão dos moribundos. Os mortos eram lançados fora das cidades, enterrados como cães em qualquer lugar não consagrado, sem orações, sem o tocar dos sinos, sem o rito funeral. Apenas podem julgar o efeito do interdito papal aqueles que consideram quão completamente toda a vida de todas as classes de pessoas era afetada pelos rituais e ordenanças diárias da igreja. Cada ato importante era feito sob o conselho dos padres e monges. Os festivais da igreja eram os únicos feriados, as procissões da igreja os únicos espetáculos, as cerimônias da igreja o único entretenimento. Não ouvir qualquer oração ou canto, supôr que o mundo estava rendido ao poder irrestrito do diabo e de seus espíritos malignos, sem santo algum para interceder, sem nenhum sacrifício para aplacar a ira de Deus; quando nenhuma imagem sequer era exposta à vista, nenhuma cruz havia que não estivesse velada: a relação entre o homem e Deus totalmente quebrada; almas deixadas a perecer, ou no máximo relutantemente permitidas à absolvição no momento da morte." E, de outras partes, aprendemos que, de modo a inspirar a mais profunda melancolia e fanatismo, não se permitia que se cortassem os cabelos ou as barbas; o consumo da carne era proibido, e até mesmo a saudação comum era proibida.

Tal foi o estado da Inglaterra por pelo menos quatro anos. A miséria pública foi grande e universal; mas nem a miséria dos indivíduos nem as privações religiosas dos cristãos moveram o coração obturado do rei nem do pontífice. O triunfo do pastor de Roma sobre um grande reino era muito mais desejado do que o bem-estar do rebanho. Os clérigos que publicaram o edito, juntamente com outros bispos ricos, fugiram do reino. "Lá viviam eles", diz o historiador, "em abundância e luxúria, em vez de permanecerem em defesa pela casa do Senhor, abandonando seus rebanhos para o lobo voraz". O tirano vingativo João parecia desafiar e tratar com insolente desdém os terríveis efeitos do edito sobre os seus sofredores súditos. Ele se regozijava em sua vingança contra os bispos e padres que obedeciam ao papa. Ele confiscou a propriedade do clero superior e dos monastérios por toda a Inglaterra e obrigou os judeus a cederem suas riquezas por meio de prisão e tortura. Esse estado de coisas durou quase dois anos quando uma nova bula pontifícia* foi emitida.

{* A bula pontifícia é um alvará passado pelo Papa ou Pontífice católico, com força de lei eclesiástica, pelo qual se concedem graças e indulgências aos que praticam algum acto meritório. O termo bula refere-se não ao conteúdo e à solenidade de um documento pontifício, como tal, mas à apresentação, à forma externa do documento, a saber, lacrado com pequena bola (em latim, "bulla") de cera ou metal, em geral, chumbo (sub plumbo). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bula_pontif%C3%ADcia}

O astuto papa tinha assistido de perto o efeito do primeiro edito e, vendo que João estava perdendo seus amigos e se tornando mais impopular, publicou a sentença de excomunhão contra o nome e a pessoa do soberano. Ainda assim, os hábitos desprezíveis de João eram tais que, embora desafiasse o papa e a hierarquia, ao mesmo tempo alienava as afeições de todas as classes de pessoas no país. Mais uma vez, o papa viu sua oportunidade, emitindo outra bula ainda mais assustadora. Os súditos de João foram absolvidos de sua lealdade ao rei e ordenou-se que evitassem sua presença. Mas, com aquela indiferença estoica para com o sofrimento humano que ele uniformemente manifestava, determinou que tanto ele próprio quanto a nação deveriam enfrentar completamente a vingança de Roma. Os trovões papais pareciam não causar qualquer efeito sobre o rei insensível e irreligioso, e tivesse ele tratado mais sabiamente seus nobres e seu povo, nem o maior dos papas nem os seus ataques mais pesados surtiriam qualquer efeito sobre o povo da Inglaterra. Mas agressiva avidez, as barbaridades e a conduta ultrajante do rei afastaram de si todas as classes de pessoas. O desafeto para com ele crescia de murmurações a quase revoltas. Inocêncio, observando esse fermento de descontentamento trabalhando tão eficazmente na Inglaterra, preparou-se para lançar sua última e mais perigosa rajada contra o contumaz soberano. "O interdito tinha ferido a terra, a excomunhão tinha profanado a pessoa do rei, restando apenas o ato de deposição do trono de seus pais, que foi então pronunciada: 'Que João, rei da Inglaterra, seja deposto da coroa e dignidade real; que seus súditos sejam absolvidos de seu juramento de lealdade, e estejam livres para transferi-lo a uma pessoa mais digna de preencher o trono vago.'"*

{*Cathedra Petri, de Greenwood, livro 13, p. 582; Latin Christianity, de Milman, vol. 4, p. 90; History of the Church, de  Waddington, vol. 2, p. 167.}

O trono da Inglaterra estava então pública e solenemente declarado vago pelo decreto do papa, e os domínios do rei eram os despojos, por direito, de qualquer que pudesse arrancá-los de suas mãos imorais. Tal era o poder dos papas naqueles dias, e tal o terror de seus trovões. Ele golpeava grandes nações com seus anátemas, e elas caíam diante dele mirradas e feridas; ele arrancava grandes reis de seus tronos, e os obrigava a se curvarem diante da tempestade de sua ira e a obedecerem humildemente ao mandato de sua vontade. Todos, sem exceção, na Igreja e no Estado, deviam aceitar seus próprios termos de reconciliação, ou morreriam sem salvação e seriam atormentados nas chamas do inferno para sempre. O altivo e esperto Filipe Augusto da França foi domado em poucos meses, enquanto o fraco e desprezível João desconsiderou suas fulminações por anos, apenas para receber, no final, um golpe ainda mais pesado, e acabasse se submetendo a uma profunda humilhação. Veremos agora como isso foi cumprido; e, na trama, o leitor também perceberá a profunda astúcia e sedução do papa. Não teremos dificuldade, ao tratarmos desse assunto, em enxergar nisso as profundezas de Satanás.

domingo, 5 de maio de 2019

João e o Papado

Deixemos agora a história civil, e voltemo-nos mais diretamente à história eclesiástica dos assuntos na Inglaterra nesse interessante momento.

Vimos o papa ignorando as graves imoralidades de João, por conta, supomos, dele ter sido um partidário de Otão e o aliado da Santa Sé, mas João era agora culpado de crimes que sua Santidade não podia ignorar. Suas irregularidades matrimoniais, ainda que criminosas, poderiam ser permitidos passar sem censura; mas a deposição de sés (arcebispos), a imposição de impostos sobre os mosteiros e a interferência na nomeação de um primaz o levaram a uma colisão direta com o papado, e o envolveram numa contenda feroz com seu até então aliado, o papa Inocêncio.

Imediatamente após a morte de Hubert Walter, arcebispo de Cantuária, os monges mais jovens apressadamente elegeram seu vice-prior, Reginaldo, à cadeira vazia. Mas logo percebendo que tinham agido imprudentemente, pediram ao rei para que pudessem realizar uma nova eleição. A escolha de um bispo estava realmente nas mãos do soberano, embora nominalmente estivesse nas mãos do clero. Tal era o sistema anglo-normando. O rei recomendou um de seus principais conselheiros, João de Grey, bispo de Norwich, que foi escolhido, investido com as temporalidades da Sé, e enviado a Roma para confirmação. O papa agora via sua oportunidade, e ansioso por ampliar seu poder na Inglaterra, anulou ambas as eleições, tanto de Reginaldo quanto de João de Grey, e ordenou a eleição de Stephen Langton, um inglês de nascimento, homem erudito e prudente, e de excelente caráter. Não havia pessoa mais adequada que o papa pudesse nomear; mas sua ação desafiava o privilégio reivindicado pelos monges, o direito de sufrágio dos bispos, e o próprio rei. Em vão os representantes de Cantuária e os comissários do rei insistiram na necessidade do consentimento do rei. Inocêncio decidiu em contrário. Ele os constituiu para uma comissão baseada na "autoridade de Deus e da Sé Apostólica". Os monges se encontravam então entre dois tiranos -- o espiritual e o temporal. Doze deles estavam sob juramento ao rei para não elegerem qualquer outro além do bispo de Norwich, mas o papa ordenou que eles elegessem Langton, sob pena de excomunhão e anátema. Intimidados por essa terrível ameaça, a comissão finalmente cedeu ao tirano espiritual e prosseguiu à eleição de Stephen, e em 17 de junho de 1207, o papa o consagrou Arcebispo de Cantuária.

Tal interferência com os direitos da igreja estabelecida e com a prerrogativa da coroa era algo totalmente novo na Inglaterra. Se João tivesse sido um príncipe popular cercado pela força e pela aprovação de seu povo insultado, ele poderia ter rido de desprezo da ousada presunção e ameaças de um padre estrangeiro, mas a insensatez e falta de popularidade do rei deu ao papa a oportunidade que ele desejava. Os monges de Cantuária, em seu retorno de Roma, foram acusados de alta traição, e foram consequentemente expulsos de suas residências, e suas propriedades foram confiscadas. Mas a fúria do rei não conhecia limites; ele despachou uma tropa de cavalos para expulsar os monges para fora do país e, em caso de resistência, matá-los. As ordens foram executadas da forma como foram dadas. Os soldados invadiram o mosteiro com espadas desembainhadas; o prior e os monges foram ordenados a deixar o reino, e ameaçados, se resistissem ou se demorassem, a ver seu mosteiro em chamas, e eles próprios lançados nessas chamas. Muitos deles fugiram e encontraram asilo em Flandres. O rei também se entregou à mais insultante e pungente linguagem para com o pontífice, protestando que nunca aceitaria Stephen Langton como primaz, que ele manteria o direito do bispo de Norwich, e, em caso de recusa do papa, que cortaria todas as comunicações entre seus domínios e Roma. Mas o papa prosseguiu com não menos energia que João, mas com uma dignidade mais calma.

No curso de mais algumas trocas de cartas, o papa discorreu mais ainda sobre a erudição e piedade de Langton, e exortou o rei a se abster de tomar armas contra Deus e Sua igreja; mas, como João não fez nenhuma concessão, Inocêncio ordenou que os bispos de Londres, Worcester e Eli colocassem todo o reino sob um interdito. Quando os bispos entregaram a mensagem, a ira do rei irrompeu em juramentos e blasfêmias selvagens. Ele jurou que, se o papa ou o clero colocassem o reino sob um interdito, ele expulsaria os bispos e os prelados do reino "sem olhos, orelhas ou narizes, para serem os espantalhos de todas as nações". Os prelados se retiraram, e, quando estavam a uma distância conveniente de João, publicaram o interdito. 

Inocêncio e a Inglaterra

Ricardo Coração de Leão foi o grande apoiador de Otão, o candidato papal do império. A Inglaterra, naquele tempo, estava em íntima aliança com a Sé de Roma. Após a morte de Ricardo, seu irmão João, o filho mais novo de Henrique II, foi elevado ao trono. De acordo com as leis atuais de sucessão da Inglaterra, Artur, duque da Bretanha, o filho único e herdeiro de seu irmão mais velho, Godofredo Plantageneta, teria direito ao trono. Mas as coroas naquela época eram tão eletivas quanto hereditárias.

Todo o reinado de João -- 1199-1216 -- é uma história de fraqueza e violência, de impiedade e degradação, de um dos monarcas mais cruéis, sensuais e infiéis que já existiu. Mas a mão do Senhor é muito evidente nos assuntos da Inglaterra naquela época. Nunca um príncipe tão vil usou uma coroa; mesmo assim, Deus, em Sua misericórdia, e em Seu cuidado pela Inglaterra, sobrepujou suas muitas faltas para o benefício da igreja e do povo da Inglaterra. Falamos, é claro, em termos gerais. Mas desde esse reinado pode ser datado o pavor do papado em relação à Inglaterra, e o entusiasmo desse país pela liberdade civil e religiosa. Desastroso até o último grau como foi o reinado de João; humilhante para o rei; ainda assim a voz unida da história afirma que foi então que os fundamentos foram postos do "caráter inglês, das liberdades inglesas, e da grandeza inglesa; e a partir desse reinado, da tentativa de degradar o reino ao nível de um feudo da Sé Romana, podem ser traçados os primeiros sinais dessa independência, dessa aversão às usurpações papais, que levaram eventualmente à Reforma". A mão dominadora de Deus, em Seu cuidado especial pela Inglaterra, foi manifesta em todas as suas revoluções desde então. Mal houve qualquer benefício, nem para a igreja, nem para o Estado da França, da interferência do papa no caso de Filipe, exceto pelo fato de que eles puderam sentir o horror do poder papal. Mas, ali, nenhuma Carta Magna foi assinada, e nenhuma Câmara dos Comuns foi erigida, diferentemente do que ocorreu mais tarde na Inglaterra.

Um dos primeiros e grandes escândalos de João revelam, à mais clara luz, o caráter sem princípios da política de Inocêncio. João tinha sido casado por doze anos com uma das filhas do conde de Gloucester antes de subir ao trono. Depois disso, aspirando uma conexão com a realeza, ele buscou uma dissolução, e assim o obsequioso arcebispo de Bordeaux dissolveu o vínculo matrimonial. De repente, ele ficou encantado com uma senhora que era a noiva prometida do conde de Mark, levou-a e casou-se com ela, enquanto sua própria esposa ainda era viva. Mas o que iria dizer agora o papa sobre o santo sacramento do matrimônio -- ele, cujo horror a tais conexões tinha tão inexoravelmente demonstrado no caso de Filipe e Inês? Poderíamos esperar que rápidos e carregados seus trovões voariam até o rei adúltero; mas não! Nenhuma censura foi pronunciada de Roma, nem contra o rei, nem contra o arcebispo. Ele confirma a dissolução do casamento perante a face de Deus, da igreja, e do mundo. Tal era a flagrante iniquidade da "sua santidade, sua infalibilidade". Mas por que essa demonstração de tal parcialidade para com João? Porque ele foi o apoiador de Otão, e o inimigo da casa da Suábia.

Mas enquanto o papa permanecia quieto, o mundo estava escandalizado. Tal ultraje de um grande vassalo era uma violação da primeira lei do feudalismo. Os barões de Anjou, Touraine, Poitou e Maine estavam ansiosos para vingar a indignidade oferecida a Hugo de la Mark, e desde aquele dia eles se consideraram absolvidos de sua fidelidade a João. Eles apelaram a Filipe, rei da França, por uma reparação. Filipe Augusto sentiu sua força, e convocou o rei inglês para responder, em suas cortes de Paris, pelos erros cometidos contra o conde de Mark. João não apareceu; isso levou a uma guerra ruinosa, e à perda de imensos territórios na França e na Inglaterra. Em poucos meses, Filipe arrancou de João a grande herança de Rollo -- o grande ducado anglo-normando, que nos dias de seu pai Henrique II, equivalia em extensão dos seus territórios, receitas, forças e riquezas a todos os territórios sob os quais o rei da França dominava.*

{*Para detalhes, veja as histórias civis e gerais da igreja, as quais frequentemente citamos no decorrer do texto.}

domingo, 14 de abril de 2019

A Ira do Rei

Filipe Augusto (Filipe II) foi um príncipe orgulhoso, arrogante e cheio de si, não acostumado a suportar silenciosamente uma tão grande interferência. Ele irrompeu em ataques de fúria, e jurou pela espada de Carlos Magno que preferia perder metade de seus domínios do que se separar de Inês de Merânia. Ele ameaçou o clero com medidas extremas se eles ousassem obedecer o papa. Ingeborg foi capturada, arrastada de seu claustro e aprisionada no reforçado castelo de Etampes. Mas a ira do rei não prevaleceria sobre o severo decreto do papa. Os barões, cujo poder ele tinha reduzido, não se preocuparam em apoiá-lo; o povo estava em um estado de piedosa revolta. Eles tinham se reunido ao redor das igrejas, forçavam as portas; eles estavam determinados a não ficarem privados de seus serviços religiosos. O rei ficou alarmado com os motins entre o povo, e prometeu obedecer o papa.

Uma delegação foi enviada a Roma. O rei reclamou dos duros procedimentos do legado, mas declarou-se pronto a cumprir a sentença do papa. "Que sentença?", exclamou severamente sua santidade; "ele conhece nosso decreto; faça-o repudiar sua concubina, receber sua esposa de direito, reinstaurar os bispos a quem expeliu, e que dê-lhes satisfação por suas perdas. Então retiraremos o interdito, receberemos suas garantias, examinaremos o alegado relacionamento, e pronunciaremos nosso decreto". A resposta veio ao coração de Inês, e levou o rei à loucura. "Vou me tornar muçulmano", exclamou ele. "Feliz é Saladino, que não tem um papa sobre ele". Mas o arrogante Filipe tinha que se curvar. As afeições e os sentimentos religiosos de todas as classes estavam do lado do clero. Ele convocou um parlamento em Paris, que foi assistido por todos os grandes vassalos da coroa. "O que faremos?", exigiu o rei, com sua bela Inês ao seu lado. "Obedeça o papa, dispense Inês, e receba de volta a Ingeborg", foi a esmagadora resposta. Assim, aquele que tinha dobrado a França em extensão pelo gume afiado de sua espada e pela prudência de sua política; aquele que tinha erguido a coroa a uma certa independência acima dos grandes senhores feudais; agora esse mesmo tinha que beber o chorume da humilhação na presença dos nobres da França a pedido do papa.

A cena era esmagadora. Inês declarara que nada lhe importava a coroa, que era seu marido que ela amava; uma estranha, filha de um príncipe cristão, jovem e ignorante do mundo, tinha se casado com o rei, e com ele tivera dois filhos. "Não me separem do meu marido", era seu tocante apelo. Mas o inexorável decreto foi emitido: "Obedeça o papa, dispense Inês, receba de volta a Ingeborg". O rei por fim concordou com uma reconciliação com Ingeborg. Ela foi trazida diante dele, mas a vista dela despertou tanto a aversão do rei que as negociações foram quase quebradas. Enfim, ele dominou seus instintos pelo momento e curvou-se à sentença papal. Ele jurou recebê-la e honrá-la como rainha da França. Naqueles momento, o soar dos sinos proclamaram que o interdito que pesava tanto sobre o povo por mais de sete meses tinha sido retirado. "As cortinas foram retiradas de sobre as imagens e crucifixos, as portas das igrejas se abriram, e as multidões se aglomeravam para saciar seus desejos piedosos que haviam sido suprimidos durante o período do interdito".

Roma alcançou seu objetivo; ela triunfou sobre o maior rei da cristandade, e assim cumpria-se a Palavra de Deus: "A mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra" (Ap 17:18)*. O domínio universal sobre os corpos, almas e assuntos dos homens era seu desejo insaciável, seu incessante objetivo. E além dessa demonstração de poder, não podemos supôr que Roma tivesse qualquer outro maior objetivo em vista, pois tinha sancionado, no grande predecessor de Filipe (Luís VII), uma conduta muito mais ultrajante.

{* N. do T.: Isso não significa que isso já foi cumprido e que não se cumprirá mais no futuro. Aqui temos apenas uma demonstração do espírito da Babilônia, que será levada a ainda maiores extremos no período da grande tribulação, do qual narra essa passagem de Apocalipse.}

O aflito rei então se separou de sua Inês, ambos com o coração partido. Pouco tempo depois ela morreu de dor, tendo dado à luz um filho, a quem ela deu o significativo nome de João-Tristão -- o filho de minha tristeza. Ingeborg foi recebida com honra exterior, mas viveu na realidade como uma prisioneira do Estado; nada podia jamais induzir Filipe a viver com ela como sua esposa, embora tenha consentido que vivesse no palácio. Novas disputas entre a França e Inglaterra desviaram a mente de Inocêncio da rainha negligenciada e abriram um campo mais convidativo para sua mente ativa e ambiciosa.  

O Legado Papal na França

Pedro, cardeal de Santa Maria na Via Lata, foi enviado à França como legado, com autoridade, no caso da obstinação do rei, para estabelecer seus domínios sob o banimento papal. Mas o rei tratou com desprezo e desafio a ordem de afastar sua amada Inês, e receber novamente a odiada Ingeborg. O papa foi inflexível. "Se, dentro de um mês", escreveu ele ao legado, "após sua comunicação, o rei da França não receber sua rainha com afeição conjugal, todo o seu reino deve ser interditado -- um interdito com todas as suas terríveis consequências". Um concílio ocorreu em Dijon, mensageiros do rei apareceram, protestando em seu nome contra todos os outros procedimentos, e apelando a Roma. Mas as ordens ao legado eram peremptórias. O interdito foi proclamado com todo as suas terríveis circunstâncias, sendo assim descrito: -- "À meia-noite, cada padre, levando uma tocha, cantou um salmo para o miserável, e orações para os mortos, as últimas orações que deveriam ser proferidas pelo clero da França durante o interdito. Os crucifixos foram cobertos com um tecido preto; as relíquias escondidas dentro das tumbas; a hóstia foi toda consumida. O cardeal, vestindo sua estola violeta, pronunciou os territórios do rei da França como estando sob o banimento. Todos os serviços religiosos daquela época cessaram; não havia mais acesso ao céu pela oração ou oferta. Apenas os soluços das mulheres mais velhas e crianças quebravam o silêncio. O interdito foi pronunciado em Dijon. Apenas o batismo das crianças e a extrema unção dos moribundos foram permitidos pela igreja durante o período em que o reino esteve sob a maldição do banimento papal".

Pela culpa do soberano a nação inteira deve sofrer -- assim deve ter pensado o papa -- para que seu coração possa ser amolecido, seja por piedade pela miséria de seu povo ou pelo medo de seu descontentamento; pois a morte nessa época era tida como a perdição eterna. "Ó, quão terrível", exclamou uma testemunha ocular, "quão lamentável espetáculo aquilo foi em todas as nossas cidades! Ver as portas das igrejas vigiadas, e cristãos tirados delas como cães; todos os ofícios divinos cessaram; o sacramento do corpo e do sangue para a alma não mais se oferecia; o povo não se reunia mais como de costume nos festejos aos santos; os corpos dos mortos não eram admitidos ao enterro cristão, e o fedor deles infectava o ar, e a visão repugnante deles chocava os vivos: apenas a extrema unção e o batismo eram permitidas. Houve um profundo silêncio por todo o reino, enquanto os órgãos e as vozes daqueles que cantavam os louvores de Deus foram silenciadas em todos os lugares"*.

{*Ver Latin Christianity, vol. 4, p. 67.} 

domingo, 7 de abril de 2019

Inocêncio e Filipe Augusto

Vimos a interferência de Inocêncio na elevação de três imperadores ao trono do Império Romano-Germânico, e a política que ele perseguiu de modo a obter um maior poder secular para a Sé romana, e um domínio extensivo sobre as mentes e o modo de vida de toda a humanidade. Agora o seguimos ao reino da França, para ali testemunhar uma expressão do mesmo poder pontifício, mas sobre outras bases, e por outros objetivos. Agora ele aparece como o protetor da inocência contra o erro, o pregador da moral cristã, e o mantenedor da santidade do vínculo matrimonial. Poderíamos estar dispostos a supôr que, em sua disputa com Filipe II da França, ele possa ter atuado por um motivo correto; mas sua conduta exterior é marcada pelo mesmo espírito ditatorial que até então caracterizava seu reinado. Ele assume para si a alta função da suprema direção de todos os assuntos humanos; como árbitro em última instância, seja o assunto um trono contestado ou o santo sacramento do matrimônio. Mas nosso principal objetivo, sob esse título, é dar ao leitor um exemplo de como um reino inteiro foi colocado sob o banimento papal. É difícil, em nossos dias, acreditar nas terríveis consequências disso.

Uma circunstância notável, relacionado ao segundo casamento de Filipe, forneceu a Inocêncio a oportunidade desejada de castigar e humilhar o aliado e apoiador da casa da Suábia. Em seu retorno da cruzada em 1193, ele foi atraído pela fama da beleza e virtudes de Ingeborg, ou Isemburge, irmã do rei da Dinamarca. A mão do rei da França foi prontamente aceita, e o dote fixado. Ela chegou à França sob o comando de uma nobreza dinamarquesa, e o rei apressou-se a encontrá-la em Amiens. No dia seguinte ao casamento deles, o casal real foi coroado; mas, durante a cerimônia de coroação, percebia-se que Filipe estremecia e estava pálido. Logo descobriu-se que ele tinha concebido uma inconquistável aversão por sua nova rainha. Como não se podia achar uma causa verdadeira para tal mudança no rei, o fato foi popularmente atribuído à feitiçaria, ou alguma influência diabólica. Ela é descrita como tendo modos gentis, muito bonita, e uma cristã sincera. Filipe propôs enviá-la de volta para a Dinamarca, mas seus súditos recusaram realizar tal vergonhoso ofício; e ela própria tinha se determinado a permanecer na França.

O rei se encontrava então em grande dificuldade. Ele pediu o divórcio, mas sabia que, a menos que uma dissolução do casamento pudesse ser obtida da forma devida, ele não teria paz. As genealogias das casas reais foram traçadas, e, tendo os bispos devotos ao rei descoberto que o casal real se encontrava dentro dos degraus de parentesco que impossibilitavam o casamento, o clero da França, encabeçado pelo arcebispo de Reims, pronunciou o casamento como nulo e vazio. Quando a sentença foi explicada a Ingeborg, que mal conseguia falar uma palavra sequer em Francês, seus sentimentos de indignação foram expressos ao exclamar: "Maldita França! Roma! Roma!" Seu irmão assumiu sua causa e apelou ao velho papa da época, Celestino; mas este se sentia muito fraco para disputar com o poderoso rei da França, e nenhum passo decidido foi tomado durante o restante de seu pontificado. Enquanto isso, Ingeborg foi encerrada em um convento, e Filipe casou-se com Inês, a bela filha do duque de Merânia. Sua afeição por Inês era tão intensa quanto seu ódio por Ingeborg. A primeira foi introduzida, em todas as ocasiões, para agraciar o círculo real; a último foi arrastada de convento em convento, ou melhor, de prisão em prisão.

Tal era o estado das coisas na França quando Inocêncio defendeu a causa da repudiada princesa da Dinamarca. Ele primeiramente escreveu ao bispo de Paris, e depois ao próprio rei. Depois de defender a santidade do casamento, ele advertiu o rei para que deixasse Inês e restaurasse Ingeborg. O rei orgulhosamente declarou que os assuntos de seu casamento não eram da conta do papa. Mas Filipe logo sentiria o poder e o terror dos trovões papais, e como nunca antes tinham sido sentidos na França.

A Queda de Otão

Otão tinha ficado três anos fora da Alemanha, três anos de inesperada paz naquele país -- e assim suas mãos se tornaram fortes. Os parentes do jovem Frederico ficaram preocupados por sua segurança. Ele tinha agora dezoito anos de idade. O papa foi consultado em segredo. Ele voltou-se e viu boas razões para tomar medidas ativas contra Otão, e para assumir a mais amigável disposição para com Frederico. Havia muitas dificuldades no caminho, por causa da ocupação de Otão; mas dois bravos e leais cavaleiros suábios realizaram a perigosa expedição, conduzindo Frederico com segurança de sua ensolarada cidade de Palermo até as regiões mais frias da Alemanha, onde ele foi recebido de braços abertos para retomar o trono de seus ancestrais. Mas a causa de Frederico contra Otão foi, na verdade, vencida por Filipe Augusto (Filipe II) da França.

Entre os dois rivais pelo império não houve grandes batalhas. A França por muito tempo tinha sido uma amiga constante dos suábios, assim como a Inglaterra o tinha sido dos saxões. Filipe entrou em uma estreita aliança com Frederico. O conde de Flandres, os príncipes do baixo Reno, e o rei da Inglaterra, se associaram a Otão. À frente de um grande exército ele avançou, com o impulso de uma paixão vingativa, em direção às fronteiras da França. Ele considerava Filipe o verdadeiro autor de todos os seus infortúnios. Mas seu vigilante adversário estava pronto para recebê-lo. No dia de 27 de julho de 1214, uma grande batalha foi lutada no vilarejo de Bouvines, não longe de Lila. Filipe Augusto foi vitorioso sobre o último dos de Otão e de seus aliados. Ele sobreviveu à sua queda cerca de cinco anos, os quais lhe foi permitido passar em penitência monástica sem ter sido formalmente deposto.

No ano seguinte, Frederico II foi coroado em Aix-la-Chappele, e no entusiasmo do momento, ele, com muitos outros, fez um voto de ir pessoalmente em uma cruzada à Terra Santa. Essa promessa precipitada foi a ocasião de problemas que ele mal esperava, e que se estenderam por todo o seu longo reinado de trinta e cinco anos.

A Apostasia de Otão

A coroa imperial estava agora na cabeça de Otão. Não apenas ele foi coroado pelas mãos de Inocêncio na cadeira de São Pedro, em Roma, como também foi elevado a tal dignidade pela política astuta e cruel da Sé apostólica. Mas o enganador foi enganado; o traidor foi traído. Mal tinha acabado a cerimônia de coroação e a máscara de obediência sob a qual Otão tinha velado suas verdadeiras intenções foi jogada fora. O efeito da coroa de ferro foi irresistível. Ele sentiu-se um novo homem, em uma nova posição, e obrigado a manter as prerrogativas de sua coroa contra as usurpações do poder espiritual. A partir daquele momento, o imperador e o papa tornaram-se inimigos implacáveis. Tal foi o desapontamento, tendo sido subjugado pelo justo governo de Deus, do inescrupuloso pontífice. Satanás pode governar, mas um Deus todo-sábio tudo anula. "Não erreis", disse o apóstolo, "Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará" (Gálatas 6:7). Inocêncio tinha ensinado seu candidato a enganar, e agora ele come o amargo fruto de seu próprio ensino.

A força e os números incomuns do exército de Otão, que o acompanhava, e que então se acampavam sob as muralhas de Roma, eram vistos com grande inveja pelos habitantes. As brigas, que se tornaram costumeiras em tais ocasiões, foram renovadas com grande ferocidade. Muitos dos germânicos foram mortos, assim como muitos de seus cavalos -- assim disseram eles, pelo menos. Mas foi o suficiente. A ambição antes sufocada de Otão estava agora inflamada em uma chama de indignação. Ele retirou-se irado da cidade, exigindo compensação. Inocêncio recusou. As tropas foram distribuídas através do patrimônio de São Pedro, para grande dano ao povo e para aumentado alarme por parte do papa. Foi pedido ao imperador que retirasse seus soldados da vizinhança de Roma, mas ele declarou que eles continuariam até que as provisões do país se exaurissem. Ele se enriqueceu com a pilhagem dos peregrinos, a quem seus soldados interceptavam em seu caminho a Roma. Ele marchou até a Toscana, tomou posse de cidades na fronteira do território da condessa Matilde, sitiou cidades e fortalezas que o papa tinha antes ocupado; propriedades e dignidades reivindicadas pelo papa ele entregou ao mais formidável adversário do papa, o conde Diephold, a quem o imperador entregou o ducado de Espoleto. O sucesso infamou sua ambição, e assim ele contemplou a invasão da Sicília, prendendo o jovem Frederico, o último da casa de Hohenstaufen.

Aquele que tinha se proclamado infalível estava desesperado. Após todos os seus trabalhos, todos os seus sacrifícios, todas as suas traições, ele tinha levantado para si um antagonista mais formidável, um inimigo mais amargo do que qualquer um dos da família suábia tinham sido. Os mais fervorosos apelos à sua gratidão, as mais solenes admoestações, os mais altos trovões de excomunhão, foram igualmente desconsiderados pelo pupilo obstinado de Ricardo Coração de Leão.    

domingo, 31 de março de 2019

A Morte de Filipe

A paz então parecia ter sido assegurada de ambos os lados. Filipe tinha alcançado seu maior objetivo. Uma proposta de casamento entre Otão e Beatriz, a filha de Filipe, tinha sido sancionada pelo papa, sob a pretensão de curar a longa disputa entre as casas da Suábia e da Saxônia. Mas incerto é o mandato de toda a grandeza e glória humana. Em 21 de junho de 1208, o imperador Filipe, um dos mais hábeis e gentis de sua raça, foi assassinado pelo conde palatino de Baviera por alguma ofensa particular. O país ficou paralisado pelas notícias sobre o terrível crime. A execração da humanidade perseguiu o assassino; seu castelo foi derrubado até o chão e o assassino foi morto com muitas feridas.

Inocêncio então retraçou seus passos. O crime do bávaro o aliviou da humilhação de sua apostasia. Ele apressou-se a escrever aos príncipes germânicos, os exortando a estarem de acordo com a manifesta declaração de divina providência em favor de Otão. Ele usou todos os meios em seu poder para prevenir uma nova eleição, e para unir todos os partidos em seu apoio, e calorosamente exortou Otão à moderação e conciliação. Em ambos os lados havia um ardente desejo por paz, e Otão foi então eleito o indiscutível imperador.

No ano seguinte, 1209, ele foi para a Itália para receber a coroa imperial. Ele foi recebido por príncipes, prelados e nobres do império, com um numeroso exército de dependentes militares. A marcha deles foi uma sucessão de recepções festivas. As cidades abriram seus portões para dar as boas vindas ao defensor da igreja e imperador escolhido pelo papa. Inocêncio e Otão se encontraram em Viterbo. "Eles se abraçaram, enxugaram lágrimas de alegria, em lembrança de suas provações em comum, enquanto eram transportados ao seu triunfo em comum". Mas o papa não esqueceu a prerrogativa de seu trono pontifício. Ele exigiu, por segurança, que Otão entregasse, imediatamente após sua coroação, as terras da igreja, e entregasse toda pretensão à herança longamente disputada da condessa Matilde. Mas tão bom, tão humilde e tão submisso foi Otão, enquanto se ajoelhava para receber o diadema, que seu coração se entristeceu ante a aparente suspeita de sua lealdade por seu santo padre. "Tudo o que eu fui", exclamou ele, "tudo o que sou,  tudo o que eu serei, depois de Deus, eu devo a ti e à igreja." 

A Guerra Civil na Alemanha

Ricardo, rei da Inglaterra, e Filipe Augusto (Filipe II), rei da França -- que abraçou calorosamente a causa de Filipe -- não pouparam elogios e confissões para conquistar o papa para o partido de seus respectivos candidatos. Mas ele postergou a decisão de tomar partido, tendo em vista outros objetivos para ser tão direto. Enquanto isso, a guerra estourava ao longo do rio Reno. Filipe, no início, ganhou grandes vantagens, avançando quase até os portões de Colônia, mas um poderoso exército dos prelados do Reno e de nobres de Flandres obrigou Filipe a se retirar. A maior e mais poderosa parte do império reconhecia e apoiava a causa de Filipe; o clero e o Conde de Flandres estavam quase sozinhos ao lado de Otão.

Foi uma guerra civil feroz e bárbara. Ao final do primeiro ano, a sorte favoreceu a causa de Filipe. A morte de Ricardo, em 1199, tinha privado Otão de seu mais poderoso aliado. João, que o sucedeu, não estava disposto a investir parte de seu dinheiro em um jogo tão distante e incerto. A guerra podia então ter terminado com uma boa demonstração de honra, até mesmo para Otão; mas a vingança papal contra a odiada casa de Hohenstaufen ainda não estava completa. O papa apoiou abertamente a causa do usurpador, Otão; e por nove anos longos e sombrios, com curtos intervalos de trégua, a Alemanha foi lançada, pelo "tenro pastor" do rio Tibre, a todos os horrores de uma guerra civil. Mas a política fraudulenta de Inocêncio logo tornou-se visível a todos. Seu rebanho sofredor acusou-o e reprovou-o como o culpado por todas as suas misérias, por ter provocado, inflamado e atiçado o desastroso conflito, apenas pela gratificação de seu próprio propósito maligno de arruinar a casa real de Henrique, o Severo. Era necessária toda a sua inteligência, com a ajuda de Satanás, para que pudesse ser absolvido da acusação.

Mas a guerra tinha feito seu trabalho -- seu trabalho de dragão. "Foi uma guerra, não de batalhas decisivas, mas de saqueadores, desolação, devastação de colheitas, pilhagem, destruição de países abertos e sem defesa -- uma guerra, travada por clérigos contra clérigos, por príncipe contra príncipe; boêmios selvagens e soldados bandidos de todas as raças percorriam cada província. Por toda a terra não havia lei; as estradas eram intransitáveis por causa dos salteadores; nada era poupado, nada era tido como sagrado, nem igreja nem claustro". Tal, e daí para pior, foi a guerra civil na Alemanha. No entanto, a mente implacável daquele homem desgraçado continuava a trovejar suas anátemas contra Filipe; declarou todos os juramentos que tinham sido feitos a ele nulos e vazios, e regalou de privilégios e imunidades de todos os tipos aos bispos e sociedades monásticas que abraçavam o partido de Otão. Mas os trovões do Vaticano tornaram-se inúteis, e a força de Filipe aumentava ano após ano.*

{* J.C. Robertson, vol. 3, p. 297. Milman, vol. 4, p. 51. Neander, vol. 7, p. 236.}

Nem mesmo a mente inflexível de Inocêncio podia escapar do poder dos acontecimentos. Ele se sentia ameaçado com a humilhação de uma derrota total. Ao final de dez anos, não havia mais esperança para a causa de Otão. Mas como pode o papa esquecer seus votos de implacável inimizade contra a casa da Suábia, ou lutar por seus votos de aliança perpétua com a casa da Saxônia? Ele tinha que encontrar algum motivo santo e piedoso para abandonar a causa de Otão, e abraçar a causa de Filipe. Seu orgulho encontrou grande dificuldade em cobrir a vergonha de sua depreciada posição, mas Filipe fez tantas declarações e promessas ao papa, por meio seus embaixadores, que ele viu como dever receber de volta seu filho penitente, e absolvê-lo das censuras da igreja. O legado papal foi até Metz, e ali o proclamou como imperador vitorioso.

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