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domingo, 18 de outubro de 2020

A Prisão de Jan Hus

A agitação gerada por esses acontecimentos não foi dissipada quando o Concílio de Constança se reuniu. O imperador Sigismundo, que havia convocado o concílio, pediu a seu irmão, o rei Venceslau, que enviasse Hus a Constança, e prometeu-lhe um salvo-conduto. Os termos deste passaporte eram muito explícitos: exigia que todos os súditos do imperador permitissem que o doutor entrasse e saísse em plena segurança. Hus obedeceu prontamente à convocação do imperador, pois sempre desejara a oportunidade de apelar a um concílio geral. Ele chegou a Constança antes do imperador e foi imediatamente levado perante o papa João XXIII para exame. Suas doutrinas eram bem conhecidas, uma longa lista de acusações foi feita contra ele; e como se recusou a retratá-las, foi lançado na prisão sob a acusação de heresia, apesar do salvo-conduto do imperador. E para justificar sua flagrante violação de honra e pacificar Sigismundo, eles aprovaram um decreto de que nenhuma fé deveria ser mantida com um herege. 

Queixas ruidosas vindas da Boêmia foram enviadas ao imperador. Ele recebeu a primeira intimação sobre a prisão de Hus com indignação, e ameaçou escancarar a prisão. Mas, ao chegar a Constança, ele foi confrontado com argumentos da lei canônica, insistindo que o poder civil não se estendia à proteção de um herege, e os padres traiçoeiros absolveram o imperador de toda responsabilidade, que então permitiu que os inimigos de Hus seguissem seu curso. Na escuridão de uma masmorra repugnante, sem um sopro de ar fresco e assediado por padres e monges, o reformador ficou muito doente. Mas o iludido imperador não se importou com nenhuma dessas coisas. No entanto, não faltaram historiadores que condenam totalmente a conduta infiel do imperador e o acusam de ter violado a verdade, a honra e a humanidade, ao entregar Hus à vontade dos padres. "A violação de fé", diz Milman, "não admite desculpa; e a perfídia é duas vezes pérfida em um imperador." Outros afirmam que, ao sacrificar Hus dessa maneira, ele acumulou para si muitos problemas que surgiram durante o resto de seu reinado. Mas o que devemos dizer do futuro -- do futuro sombrio sob a sombra terrível daquele abandono sem coração de um verdadeiro servo de Cristo aos impiedosos padres de Roma? O Mestre não se esquecerá de reconhecer naquele dia Sua identificação com Seu servo, e da maneira mais comovente. "Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes."* Mas se essa foi a culpa do imperador, imagine qual deve ser a culpa do papa e dos prelados? Devemos deixar a resposta para o grande trono branco**. 

{* N. do T.: Mateus 25:40. Embora a passagem citada se refira especificamente ao remanescente judeu no final da grande tribulação, pode ser aplicada também à igreja, como vemos em exemplos no livro de Atos (vide o caso de Herodes em Atos 12:23) e no decorrer da história da igreja.} 

{** N. do T.: Apocalipse 20:11-15.} 

Os pressentimentos mais sombrios já estavam se formando em torno do papa. Na primeira sessão do concílio, foi proposto que os três papas deveriam renunciar antes da eleição de um novo pontífice. João, o único dos três presentes, prometeu renunciar pela paz da igreja e ler sua própria abdicação no dia seguinte. Mas promessas, juramentos ou honra não significavam nada para o papa João. Com a ajuda de alguns amigos, ele escapou de Constança disfarçado de um postilhão*. O imperador se sentiu traído e indignado. Houve uma grande perseguição atrás de João; ele foi pego na Suíça e trazido de volta como prisioneiro; mas, ao contrário de sua vítima, Hus, ele estava com a consciência pesada, sem honra, sem dignidade, sem coragem. Ele foi compelido a desistir da insígnia do poder espiritual universal, o selo papal e o anel de pescador. Robert Hallam, bispo de Salisbury, à frente dos ingleses, em uma explosão de justa indignação, declarou que um papa tão coberto de crimes merecia ser queimado na fogueira. Ele foi levado para o castelo de Gotleben, onde o bom Jan Hus vinha sofrendo a ferros por alguns meses. Lá o papa João adoeceu até o encerramento do concílio, que durou quase quatro anos; mas, depois de se humilhar aos pés do pontífice reinante, foi elevado à categoria de cardeal e teve permissão para encerrar seus dias em paz. Mas nenhuma leniência foi exercida para com o reformador justo e irrepreensível, cujo exame e execução iremos agora rapidamente relatar. 

{* N. do T.: Um postilhão era o condutor de uma carruagem que distribuía correspondências.}

Comoções Civis

Mesmo sendo um homem bom, Jan Hus havia negligenciado o conselho benéfico do apóstolo. Ele primeiro se envolveu em uma disputa universitária quanto aos privilégios dos alunos; e novamente sua oposição a Gregório XII ofendeu profundamente o arcebispo da Boêmia, que se aliou ao antipapa*. Decretos proibitivos foram emitidos contra Hus, mas, sendo um grande favorito na corte e com o povo, nada foi feito. Ele obteve permissão para continuar sua pregação na língua vernácula. Mas em poucos meses surgiram circunstâncias que reacenderam as chamas das contendas religiosas na Boêmia.

{* N. do T.: Isso ocorreu durante a grande cisma papal, conforme já relatado em seções anteriores deste mesmo capítulo, durante o qual Gregório XII era um dos papas (ou antipapas) que contendiam entre si pelo trono pontifício.}

Um dos primeiros atos de João XXIII ao tomar posse da cátedra papal foi enviar seus emissários para pregar uma cruzada contra Ladislau, rei de Nápoles, e oferecer as indulgências usuais. Os vendedores dessas indulgências, enquanto discursavam ao povo sobre o valor de suas mercadorias*, foram interrompidos e expostos ao insulto e à indignação. Os magistrados interferiram; alguns dos manifestantes foram apreendidos e executados em particular; mas o sangue que correu da prisão para a rua traiu o destino dos prisioneiros. As mulheres mergulhavam seus lenços no sangue para guardá-los como uma relíquia preciosa; as paixões da multidão foram estimuladas ao máximo; a prefeitura foi invadida, os corpos sem cabeça desses jovens foram carregados pelo povo em procissão solene pelas várias igrejas, entoando hinos sacros. Por fim, foram enterrados na capela de Belém, com as ofertas aromáticas que eram frequentemente depositadas nos túmulos dos mártires. Os três jovens eram agora mencionados em sermões e escritos como santos e mártires, e assim o movimento aumentou ainda mais.

{* N. do T.: as mercadorias são as indulgências, isto é, os perdões de pecados que eram oferecidos pela Igreja Católica em troca de dinheiro ou bens.}

Jan Hus, sabendo que era suspeito e acusado de ser o principal motor por trás disso tudo, sabiamente retirou-se da cidade por um tempo. Ele foi convocado, mas sem efeito, para comparecer perante o tribunal do Vaticano. Hus foi então declarado como estando sob o banimento da excomunhão, e o local de sua residência sob interdito papal. Apesar das censuras da igreja, ele continuou pregando por todo o país. As mentes das pessoas, já bastante agitadas, eram facilmente suscitadas à maior indignação contra o clero. Quase todo o reino estava do seu lado, pelo menos contra os abusos da hierarquia.

O Concílio de Constança

Constança, uma cidade imperial no lado alemão dos Alpes, foi considerada um local adequado para a reunião de tal assembleia. Era acessível de todas as partes do mundo ocidental da época e as provisões podiam ser obtidas mais facilmente por meio de seu amplo lago. Tão grande foi o afluxo de pessoas, que se calculou que não menos de trinta mil cavalos foram trazidos para Constança, o que pode nos dar uma ideia da enorme multidão de pessoas e das cargas dos navios das provisões que seriam necessárias. Além de dignitários eclesiásticos de todos os inumeráveis nomes, havia mais de cem príncipes; cento e oito condes; duzentos barões; e vinte e sete cavaleiros. Torneios, festas e várias diversões eram organizados para aliviar suas ocupações espirituais; quinhentos menestréis compareceram para divertir as horas vagas desses “santos” padres e nobres, e para acalmar suas mentes ansiosas; eles haviam se reunido com o propósito declarado de curar a ferida quase mortal do papado; mas quais são os fatos da história? Pelo espaço de três anos e meio -- começando em 5 de novembro de 1414 -- esses homens dissolutos encheram a pacata cidade antiga de Constança com sua impiedade descarada. Descrever aquilo que então era claro como o dia contaminaria as páginas da nossa história. O coração estremece quando pensamos na impureza, na impiedade ousada e hipocrisia desses chamados santos padres, para não falar de sua crueldade implacável ao queimarem na fogueira Hus e Jerônimo. 

O objetivo deste grande concílio era duplo. Primeiro, era para pôr fim ao cisma que afligiu a igreja por tantos anos. E segundo, era para a supressão das heresias de Wycliffe e Hus. O primeiro desses objetivos fora até então realizado de forma satisfatória. Tendo estabelecido que um pontífice está sujeito a um concílio de toda a igreja, João XXIII foi deposto devido às irregularidades de sua vida e à violação de seu juramento ao imperador. Gregório e Bento foram novamente depostos, e Otão de Colonna foi eleito pontífice, assumindo o nome de Martinho V

As doutrinas de Wycliffe, que Jan Hus e seus seguidores foram acusados ​​de propagar nas cidades e vilas da Boêmia, e até mesmo na Universidade de Praga, eram ofensivas demais para os membros do concílio, e agora ocupavam a atenção deles.

O Concílio de Pisa

No início do século XV, a Igreja Católica Romana tinha duas cabeças -- dois papas rivais, Bento XIII em Avignon e Gregório XII em Roma. Cada um alegava ser o representante de Cristo na terra e cada um acusava o outro de falsidade perante o mundo, perjúrio e dos mais nefastos desígnios secretos. Tão escandalosa foi a conduta desses dois velhos prelados de cabelos grisalhos, cada um com mais de setenta anos de idade, que toda a Europa contemplou com vergonha e indignação a obstinação e perversidade dos pontífices em conflito. O que deveria ser feito para que as feridas da igreja dividida fossem curadas? Reis e cardeais começaram a usar tanto a força quanto a súplica para induzir os dois papas a renunciarem às suas reivindicações para que alguém pudesse ser escolhido por unanimidade em seu lugar. Eles prometeram, sob juramento, que renunciariam voluntariamente se os interesses da igreja assim o exigissem; mas, mal haviam prometido, eles dissimularam, enganaram seus cardeais e violaram suas promessas. Descobrindo que nenhuma confiança poderia ser colocada na palavra deles, que eles eram homens sem verdade, honra ou religião, os cardeais de Bento se revoltaram e se juntaram aos cardeais de Gregório, e os dois colégios reuniram-se em Livorno a fim de considerar o que poderia ser feito para colocar um fim a este longo e vergonhoso cisma. Eles chegaram à conclusão de que, naquelas circunstâncias, eles tinham o direito indubitável de convocar um concílio que pudesse julgar entre os dois competidores pelo papado e restaurar a unidade da igreja. 

Pisa, uma cidade murada no centro da Itália, foi selecionada como o lugar mais adequado para o concílio proposto. Isso era algo totalmente novo na Cristandade. Cerca de uma dúzia de cardeais, sem a sanção do papa ou do imperador, convocou o famoso Concílio de Pisa. Sua infalibilidade estava agora sujeita a um novo tribunal, e a mais alta prerrogativa de seu trono usurpada; mas ele havia perdido tanto o respeito da humanidade que toda a igreja justificou os cardeais em assumirem o poder sobre ele. 

O concílio foi aberto em 25 de março de 1409. A assembleia foi uma das mais augustas e numerosas já vistas na história da Cristandade. Daremos alguns detalhes para mostrar ao leitor o que era um Concílio Ecumênico naqueles dias em que o Catolicismo Romano era a religião da Europa. Estavam presentes vinte e dois cardeais; os patriarcas latinos de Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Grau; doze arcebispos estiveram presentes pessoalmente e quatorze por seus procuradores; oitenta bispos e os procuradores de cento e dois; oitenta e sete abades e os procuradores de outros duzentos; além de priores; generais de ordens; o grão-mestre de Rodes, com dezesseis comandantes; o prior geral dos cavaleiros do santo sepulcro; o deputado do grão-mestre e cavaleiro da Ordem Teutônica; os deputados das Universidades de Oxford, Cambridge, Paris, Florença, Cracóvia, Viena, Praga e muitas outras; mais de trezentos doutores em teologia; e embaixadores dos reis da Inglaterra, França, Portugal, Boêmia, Sicília, Polônia e Chipre, e dos duques de Brabante da Borgonha, etc. Estradas e rios por todos os lados foram cobertos por semanas com a pompa e esplendor desses dignitários. Alguns deles entraram em Pisa com duzentos cavalos na comitiva.* 

{* Manual of Councils, de Landon.} 

A assembleia realizou suas sessões de março a agosto. Depois de muita deliberação na forma devida, os papas contestadores foram condenados por unanimidade. No dia 5 de junho foi proferida a sentença. Ambos foram declarados heréticos, perjuriosos, contumazes, proibidos de assumir o pontificado soberano e indignos de qualquer honra: o papado foi declarado vago. O próximo passo foi eleger um novo papa. Este era um assunto mais difícil. Onde estaria o homem, possuindo tais qualidades, que reconquistaria a reverência da humanidade pelo supremo pontífice? Esta era agora a grave questão. Vinte e quatro cardeais, após ficarem encerrados por dez dias, decidiram por Pedro de Candia, cardeal de Milão, com setenta anos de idade, que adotou o nome de Alexandre V. Mas os dois antigos pontífices desprezaram os decretos do concílio e continuaram a desempenhar suas funções como papas legítimos. Bento fulminou seus anátemas contra o concílio e seus rivais; Gregório fez o mesmo, tendo entrado em aliança com o ambicioso Ladislau, rei de Nápoles. Alexandre, que ainda não estava em posse da cátedra e do patrimônio de São Pedro, emitiu seus anátemas e excomunhões contra Bento, Gregório e Ladislau, que tinha tomado posse dos domínios da Sé Romana. 

Murmúrios foram ouvidos por todos os cantos de que o concílio, em vez de extinguir o cisma, havia na verdade apenas acrescentado um terceiro papa. Onde está agora a alardeada unidade da Igreja Católica Romana? podemos inquirir; e por meio de qual papa flui a sucessão apostólica? Os três papas, dos quais a Cristandade estava envergonhada e cansada, atacaram ferozmente uns aos outros com recíprocas excomunhões, reprovações e anátemas. Alexandre V viveu apenas cerca de um ano após ter sido eleito, e seu lugar foi preenchido por João XXIII, “um homem” -- diz Mosheim – “destituído de princípios e piedade”. As dificuldades foram maiores do que nunca; o reino papal assim dividido contra si mesmo não podia resistir: estava às vésperas da ruína total. Alguns aconselharam que as potências europeias deveriam se unir e varrer o nome e o poder do pontífice, ou pelo menos limitar sua autocracia. Era então evidente que os próprios papas não fariam nenhum sacrifício pessoal pela paz da Igreja; então, o que poderia ser feito a seguir para deter a guerra vergonhosa dos pontífices e curar as feridas da Igreja dividida? Esta era então a desconcertante questão. Se a igreja tivesse sido deixada sozinha, Ladislau poderia então ter tomado posse completa de Roma e de todas as províncias papais, e deixado a cátedra de São Pedro como um trono apenas no nome. Mas os príncipes da terra ainda não estavam preparados para uma derrubada tão sacrílega. Algo parecido só aconteceria séculos mais tarde nos dias de Vítor Emanuel II da Itália. 

Sigismundo, imperador da Sacro Império Romano-Germânico, o rei da França e outros reis e príncipes da Europa, que mostraram mais preocupação com o crédito e o bem-estar da Igreja do que os papas egoístas, prevaleceram sobre João XXIII para reunir um concílio geral de toda a igreja com o propósito de encerrar esta grande controvérsia.

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