domingo, 13 de setembro de 2020

O Papado como um Sistema

A Palavra de Deus, que pode tornar os homens sábios para a salvação, foi tirada do povo. Nem mesmo os bispos se envergonhavam de confessar que nunca haviam lido nenhuma parte das Escrituras Sagradas, exceto as que encontravam em seus missais. O serviço religioso era murmurado em uma língua morta, que muitos dos padres não entendiam, e alguns deles mal podiam ler; e o maior cuidado foi tomado para evitar que até mesmo catecismos, compostos e aprovados pelo clero, caíssem nas mãos dos leigos. O sacrifício da missa era representado como a obtenção do perdão dos pecados aos vivos e aos mortos; e as consciências dos homens foram privadas do precioso sacrifício, a obra consumada do Senhor Jesus Cristo. E em vez disso foi colocada uma confiança ilusória nas absolvições sacerdotais, perdões papais e penitências voluntárias.

"Eles eram ensinados", disse o eminente historiador de John Knox, "que se regularmente dissessem suas aves e credos, se confessassem a um sacerdote, pagassem pontualmente seus dízimos e ofertas à igreja, comprassem uma missa, fossem em peregrinação ao santuário de algum santo célebre, se abstivessem de carne às sextas-feiras, ou realizassem algum outro ato prescrito de mortificação corporal, a salvação deles estaria infalivelmente garantida em seu devido tempo; enquanto aqueles que eram tão ricos e tão piedosos a ponto de construir uma capela ou um altar e doá-lo para o sustento de um sacerdote, para realizar missas, obituários e hinos fúnebres, proporcionava uma amenização das dores do purgatório para eles ou para seus parentes na proporção da extensão de sua generosidade. É difícil para nós conceber o quão vazios, ridículos e miseráveis ​​eram os discursos que os monges faziam em seus sermões. Contos lendários sobre o fundador de alguma ordem religiosa, sua maravilhosa santidade, os milagres que ele realizou, seus combates com o diabo, suas penitências, jejuns, flagelações; as virtudes da água benta, crisma, sinal da cruz e exorcismo; os horrores do purgatório, e os números daqueles liberados disso por meio da intercessão de algum santo poderoso; isso tudo, com gracejos baixos, discursos de vanglória e escândalos constituíam os tópicos favoritos dos pregadores e eram servidos ao povo no lugar das doutrinas puras, salutares e sublimes da Bíblia.

"Os leitos dos moribundos eram sitiados, e seus últimos momentos perturbados, por padres avarentos que labutavam para extorquir heranças para si próprios ou para a igreja. Não satisfeitos com a cobrança do dízimo dos vivos, uma exigência foi feita aos mortos: mal o pobre lavrador tivesse dado o último suspiro, o vigário voraz logo vinha e levava consigo seu corpo presente – isto é, um presente do cadáver para o vigário, o que ele fazia sempre que a morte visitava a família.* As censuras eclesiásticas eram fulminadas contra aqueles relutantes em fazer esses pagamentos, ou que se mostrassem desobedientes ao clero. O serviço divino era negligenciado; e, exceto em dias de festas, as igrejas, em muitas partes do país, não eram mais utilizadas para fins sagrados, mas serviam como santuários para malfeitores, locais de tráfico ou resorts para passatempos.

{* O corpo presente era o privilégio do vigário em caso de morte. Nas paróquias rurais, consistia na melhor vaca que pertencia ao falecido e na cobertura superior de sua cama, ou nas melhores roupas da pessoa morta. E esta exigência, que era feita com grande rigor na Escócia e em outros lugares, era separada das taxas comuns exigidas para o enterro do corpo e para a libertação da alma do purgatório. N. do. T.: Esse costume não deve ser confundido com a “missa de corpo presente” adotada pela Igreja Católica no Brasil.}

"A perseguição e a supressão do livre questionamento foram as únicas armas pelas quais seus partidários interessados ​​foram capazes de defender esse sistema de corrupção e impostura. Todas as vias pelas quais a verdade pudesse entrar foram cuidadosamente guardadas. O aprendizado foi rotulado como o pai da heresia. Se qualquer pessoa que tivesse atingido um certo grau de iluminação em meio à escuridão geral começasse a sugerir insatisfação com a conduta dos religiosos e a propor a correção dos abusos, era imediatamente estigmatizado como herege e, se não garantisse sua segurança por meio da fuga, era aprisionado em uma masmorra, ou entregue às chamas. E quando finalmente, apesar de todas as suas precauções, a luz que brilhava ao redor irrompeu e se espalhou por toda a nação, o clero preparou-se para adotar as mais desesperadas medidas sangrentas para sua extinção."

Será agora desnecessário rastrear a origem e o progresso do papado em outras terras. O esboço acima da condição das coisas na Escócia, do século XIII ao século XVI, pode ser suficiente para ilustrar o estado de toda a Europa, e para o propósito da história. Como sistema, é o mesmo em todas as eras e em todos os países. Seu grande dogma sempre foi: a Unidade da Igreja Católica Romana. Seja nas vizinhanças imediatas de Roma ou nas regiões distantes do norte, seu espírito é o mesmo, e deve ser assim até que chegue ao seu fim pelo julgamento direto do próprio Senhor do céu. “Quanto ela se glorificou, e em delícias esteve, foi-lhe outro tanto de tormento e pranto; porque diz em seu coração: Estou assentada como rainha, e não sou viúva, e não verei o pranto. Portanto, num dia virão as suas pragas, a morte, e o pranto, e a fome; e será queimada no fogo; porque é forte o Senhor Deus que a julga.” (Apocalipse 18: 7-8)

Os Efeitos da Riqueza no Clero

Antes da Reforma, de acordo com os relatos mais confiáveis, mais da metade da riqueza da Escócia pertencia ao clero, e a maior parte dela estava nas mãos de alguns indivíduos. O efeito de tal estado de coisas, como sempre foi em todas as épocas e países, foi a corrupção de toda a ordem do clero e de todo o sistema religioso. "Avareza, ambição e amor à pompa secular reinavam entre as ordens superiores. Bispos e abades rivalizavam com a primeira nobreza em magnificência e os precediam em honras; eles eram conselheiros particulares e senhores de sessão, bem como do parlamento, e há muito ocupavam os principais cargos do estado. Um bispado ou abadado vago atraía competidores poderosos, que disputavam por ele como por um principado ou pequeno reino. Benefícios inferiores eram postos à venda abertamente ou concedidos a lacaios analfabetos e indignos da corte, a jogadores de dados, bardos ambulantes e filhos naturais de bispos. Os bispos nunca, em nenhuma ocasião, condescendiam em pregar; desde o estabelecimento do Episcopado Escocês regular até a era da Reforma, a história menciona apenas um exemplo de bispo pregando, e esse foi Dunbar, arcebispo de Glasgow, com o propósito de excluir o reformador, George Wishart."

A vida do clero, corrompida pela riqueza e pela ignorância, tornou-se um tal escândalo para a religião, e um tal ultraje à decência, que não podemos transferir para nossas páginas a descrição do historiador mais meticuloso. Mas todos os historiadores concordam, tanto católicos quanto protestantes, que os mosteiros e todas as casas religiosas se tornaram berçários de superstição e ociosidade e, em última análise, locais de lascívia e perversidade. Ainda assim, era considerado ímpio e sacrílego falar em reduzir seu número ou alienar seus fundos. "O reino fervilhava de monges ignorantes, ociosos e luxuriosos, que, como gafanhotos, devoravam os frutos da terra e enchiam o ar de infecções pestilentas; com frades, brancos, negros e cinzentos; cônegos regulares, carmelitas, cartuxos, cordeliers, dominicanos, conventuais franciscanos e observantes, jacobinos, premonstratenses, monges de Tyrone e de Vallis Caulium, e hospitalários ou Cavaleiros Sagrados de São João de Jerusalém, freiras de São Austin, Santa Clara, Santa Escolástica e Santa Catarina de Siena, com canonisas de vários clãs."*

{* Veja uma descrição gráfica do estado da religião na Escócia antes da Reforma, em Life of John Knox do Dr. McCrie, pp. 7 - 13.}

Sem um conhecimento adequado do estado da Cristandade antes da Reforma, seria impossível formar uma estimativa justa da necessidade e importância dessa revolução misericordiosa. Com o tempo que se passou e com um estado de sociedade tão mudado diante de nós, é difícil acreditar que abusos tão enormes prevaleceram na igreja. Das doutrinas do Cristianismo quase nada restou além do nome. Ao mesmo tempo, acreditamos firmemente que o Senhor tinha os que são Seus ocultos -- Suas verdadeiras testemunhas, que choraram sobre os maus caminhos e a intolerância do alto e dominante partido. O próprio Senhor, em Seu discurso a Tiatira, fala de um remanescente então separado das corrupções de Jezabel, e que suas boas obras aumentaram à medida que a escuridão se adensou. "Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras" (Apocalipse 2:19). A vida, fé e obras desse remanescente foram sem dúvida reguladas pela palavra de Deus; mas esta mesma circunstância garantiu sua obscuridade e sua ausência das páginas da história. A linha prateada da graça soberana de Deus nunca poderia ser interrompida, e dezenas de milhares das eras mais tenebrosas refletirão a glória dessa graça para sempre. Em silêncio, eles cumpriram sua missão pacífica, e pacificamente saíram de cena, mas não deixaram nenhum registro de seus trabalhos de amor nas páginas do historiador. Não é assim com o orgulhoso, o ambicioso, o fanático, o hipócrita: todos esses se destacam nas páginas da história eclesiástica. Mas há outro tribunal, além do julgamento histórico pela posteridade, perante o qual ambos deverão comparecer e ser avaliados pelo próprio padrão de Deus.

Mas voltemos ao nosso tema -- o estado da religião na Escócia antes da Reforma.

A Riqueza das Abadias na Escócia

Jedburgo, uma das abadias mais nobres da Escócia, era mantida pelos frades trinitarianos. Entre as doações feitas por uma sucessão de benfeitores devotos, encontramos: o dízimo da caça do rei em Teviotdale, uma casa em Roxburgo, uma casa em Berwick, pasto para o gado dos monges junto com os do rei, madeira das florestas reais de acordo com suas necessidades, o aluguel do moinho – uma medida de milho – vindo de todos os homens de Jedburgo, uma salina perto de Stirling, isenção de qualquer cobrança em seus tonéis de vinho, um pesqueiro em Tweed, acres e arados de terra com um servo feudal para cultivar, e várias igrejas paroquiais, com seus dízimos e outras receitas. Eles seguiram a regra de Santo Agostinho, que os obrigava a dedicar a primeira parte do dia ao trabalho e o restante à leitura e devoção.

Paisley -- A Abadia de Paisley foi antigamente uma das casas religiosas mais ricas da Escócia. Foi fundada pelo o Grão-senescal Walter Fitz-Allan por volta do ano 1160, para monges cluníacas, que seguiam a ordem de São Bento. Eles primeiramente se localizavam em Renfrew, mas depois foram removidos para Paisley, e logo foram ricamente dotados pela liberalidade piedosa de sucessivos grão-senescais e por alguns dos grandes senhores de Lennox e das Ilhas. No século XIII, eles possuíam trinta igrejas paroquiais, com todas as suas receitas; e cerca de dois terços de todo o solo da extensa paróquia de Paisley haviam passado para suas mãos, com hectares e arados em quase todos os distritos do oeste da Escócia. Além disso, os administradores haviam lhes dado o dízimo de sua caça e as peles de todos os veados capturados nas florestas vizinhas, pasto para o gado, um moinho em Paisley, uma rede de salmão em Clyde em Renfrew, um pesqueiro em Lochwinnoch, a liberdade de extrair tanto pedras de construção quanto pedras de cal para queimar em Blackhall e em outros lugares, de cavar carvão para o uso em seus mosteiros, suas granjas, ferrarias e fábricas de cerveja, de fazer carvão de madeira morta e de cortar relva para cobrir no carvão, de madeira verde para seus mosteiros e granjas, e para todas as operações de agricultura e pesca.

Tais eram os monges e suas receitas naquela época. Eles podiam muito bem se alegrar com a abundância de todas as coisas boas desta vida; mas o pároco -- é estranho dizer -- ficou em estado de pobreza e dependência. As receitas da paróquia eram apropriadas pelos bispos e casas religiosas, de modo que uma renda muito escassa era reservada para o clero paroquial. Tudo era encaminhado para engordar os frades desocupados; que, quaisquer que tenham sido suas virtudes primitivas, eram agora o escândalo da Igreja. Na época da Reforma, das mil paróquias da Escócia, cerca de setecentas haviam sido destinadas a bispos e casas religiosas. A divisão mais completa e regular do país em paróquias e dioceses ocorreu por volta do início do século XII.

Alguns de nossos jovens leitores podem estar dispostos a perguntar por que foi que nos séculos XII e XIII, mais especialmente, os reis e nobres da terra lutaram entre si para enriquecer a igreja. Muitas causas se combinaram para produzir esse estado de coisas. As cartas feudais naqueles dias eram assinadas com o “+” do rei, visto que ele não conseguia escrever seu próprio nome e todos os seus súditos eram rudes, ignorantes e supersticiosos. Os monges e frades gozavam de grande reputação, como frequentemente observamos em nossa história, pela santidade superior, pelo fervor de suas devoções e pela austeridade de suas vidas. Essas coisas atraíram a atenção e ganharam a veneração de uma época crédula e supersticiosa. Além disso, o doador tinha a garantia de que suas doações garantiriam o repouso de sua alma após a morte, que então significava vida eterna. Foi por meio dessa grande impostura religiosa que o clero alcançou tal grau de opulência e poder, que os ricos se tornaram seus adoradores e construíram para eles aquelas belas casas, cujas próprias ruínas ainda atraem o viajante e despertam admiração."*

{* Cunningham, vol. 1, cap. 5.}

O Cristianismo na Escócia

Já vimos que o clero romano experimentou grande dificuldade em obter uma base permanente na Escócia.* Os Culdees -- a quem estamos dispostos a homenagear por causa de suas obras -- continuaram por séculos a resistir às invasões do papado e a manter sua posição, não obstante todos os esforços enviados pela igreja de Roma para esmagá-los e exterminá-los. Isto porque eles se apegaram à Palavra de Deus, assim como os reformadores de uma época posterior, como o único guia infalível e autoridade em todas as questões de fé e prática. Mesmo Beda, o monge historiador, admite com franqueza que "Columba e seus discípulos receberiam apenas as coisas que estão contidas nos escritos dos profetas, evangelistas e apóstolos, observando diligentemente as obras de piedade e virtude." Mas Roma finalmente triunfou: os fiéis Culdees, oprimidos por muito tempo, diminuídos em número, enfraquecidos em energia através das feitiçarias de Jezabel, desaparecem das páginas da história, e a Escócia é novamente envolta em trevas e superstição. Os mosteiros se ergueram rapidamente e logo obscureceram toda a terra; e como eles alcançaram um ápice de riqueza e poder, insuperável em qualquer outra parte da Europa, devemos fazer um breve exame sobre eles.

{* Consulte Quem Eram os Culdees? }

A grande mania de enriquecer igrejas começou com Carlos Magno: Alfredo, o Grande, imitou seu exemplo, e logo toda a cristandade foi infectada por essa superstição. Na pessoa de Margarida, a princesa saxã, viajou para o norte. A invasão e conquista da Inglaterra pelos normandos e o estabelecimento de uma nova dinastia naquele país produziram os efeitos mais importantes na história da igreja na Escócia. Muitos dos saxões fugiram para a Escócia para escapar de seus novos mestres; e entre outros Margarida, que se tornou a esposa do rei escocês Malcolm III, e a mãe de Alexandre I, um príncipe poderoso e vigoroso, e de David I, que era um defensor fanático do romanismo. A piedade, a caridade e a vida ascética de Margarida são celebradas com entusiasmo por seu confessor e biógrafo, Turgot, um monge de Durham e bispo de Santo André. Malcolm, animado pelo espírito devoto de sua amada esposa, fez algumas doações para a igreja; mas a munificência real de seu filho David na investidura de bispados e abadias foi recompensada com o elogio de todos os escritores monásticos, embora Tiago I fale dele como "um santo magoado da coroa". No entanto, sua extravagante superstição tendia não apenas a empobrecer a coroa, mas também à opressiva tributação do povo. "Ele fundou os bispados de Glasgow, Brechin, Dunkeld, Dunblane, Ross e Caithness... A mesma liberalidade piedosa deu origem a uma infinidade de abadias, priorados e conventos; e monges de todas as ordens e em todos os trajes se aglomeraram na terra."*

{* Para detalhes cuidadosamente coletados, veja Cunningham, vol. 1, pág. 106.}

A civilização superior dos refugiados anglo-saxões e seu apego à hierarquia inglesa tenderam grandemente ao seu estabelecimento na Escócia. Os missionários celtas estava decaindo, enquanto a corte assumia um tom e caráter ingleses. A partir desse período, somos informados que um fluxo de colonos saxões e normandos inundou a Escócia. Eles logo adquiriram os distritos mais férteis desde Tweed até Pentland Firth; e quase todas as famílias nobres da Escócia agora traçam deles sua descendência. Esses novos proprietários, seguindo o exemplo do monarca, esbanjaram suas riquezas na igreja. A paixão por fundar e endossar mosteiros tornou-se tão grande que, muito antes da Reforma, havia mais de cem mosteiros espalhados por todo o país e mais de vinte conventos para a recepção de freiras.

Um breve esboço de duas ou três dessas casas religiosas pode não ser desinteressante para o leitor; isso também mostrará o estado de coisas introduzido pela hierarquia romana naquele país outrora simples e primitivo. As estatísticas são tiradas da história do Sr. Cunningham.

O Cristianismo na Irlanda

Séculos se passaram desde que vimos pela última vez o estado de coisas nessa ilha. São Patrício deixou para trás, quando morreu em 492, um grupo de homens bem educados e devotos, que veneravam muito seu mestre e procuravam seguir seus passos. A fama da Irlanda por seus mosteiros, escolas missionárias e como sede do ensino puro das Escrituras cresceu tanto que recebeu o honroso título de "Ilha dos Santos". No testemunho de Beda, aprendemos que, por volta da metade do século VII, muitos dos nobres e clérigos anglo-saxões se dirigiram à Irlanda, seja para receber instrução ou para ter a oportunidade de viver em mosteiros de disciplina mais rígida.

Já observamos o trabalho do clero irlandês como missionário*. Os Culdees de Iona devem sua origem como comunidade cristã à pregação do apóstolo irlandês Columba. A Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, os países baixos e diferentes partes do continente europeu ficaram em dívida principalmente com os missionários irlandeses por seu primeiro contato com a verdade divina. Carlos Magno, ele próprio um homem de letras, convidou para sua corte vários estudiosos eminentes de diferentes países, mas especialmente da Irlanda. Por muitas eras, ela manteve sua independência de Roma, rejeitou todo controle estrangeiro e reconheceu a Cristo somente como Cabeça da igreja. Mas a invasão dos dinamarqueses no início do século IX e a ocupação do país apagaram a luz e mudaram o caráter da "ilha dos santos". Essas hordas piráticas e predatórias devastaram seus campos, mataram seus filhos ou os despojaram de sua herança, demoliram seus colégios e se mantiveram no país com a crueldade e arrogância de usurpadores. Escuridão moral, espiritual e literária se seguiram e prepararam o caminho para o romanismo. Até então, as instituições religiosas e os trabalhos dos eclesiásticos constituíam os principais temas de sua história; mas desde então, guerras internas, turbulência, crime e desolação.

{* Veja Os Primeiros Pregadores do Cristianismo na Irlanda}

Várias tentativas foram feitas por pontífices romanos para sujeitar a Igreja Irlandesa à Sé de Roma, mas sem sucesso até o reinado do Papa Adriano IV. Ele era um inglês, conhecido pelo nome de Nicolas Breakspear; nascido na pobreza e na obscuridade, tornou-se um monge de Santo Albano, e depois elevou-se nos assuntos humanos até à dignidade pontifícia. Embora subitamente elevado da indigência à opulência, seu orgulho e arrogância eram extremos. Ele ficou muito ofendido com o imperador Frederico Barbarossa por não o apoiar e recusou-se a dar-lhe o beijo da paz. Frederico declarou que sua omissão era fruto da ignorância e, submetendo-se ao serviço como escudeiro de Sua Santidade, foi perdoado e recebeu o beijo.

Entre os primeiros atos desse “modesto” pontífice, estava a presunção de autoridade sobre a Irlanda e sua concessão a Henrique II, rei da Inglaterra. O fundamento sobre o qual o papa baseou seu direito de fazer esta concessão foi assim expresso: "Porque é inegável, e Vossa Majestade o reconhece, que todas as ilhas nas quais brilhou Cristo, o sol da justiça, e que receberam a fé cristã, pertencem de direito a São Pedro e à santíssima igreja romana." Em virtude desse “direito”, ele autoriza Henrique a invadir a Irlanda com o objetivo de ampliar a igreja, aumentar a religião e a virtude e erradicar o joio do vício do jardim do Senhor; com a condição de que um centavo seja pago anualmente de cada casa à Sé de Roma.

A partir desse período, em 1155, a igreja irlandesa passou a ser essencialmente romanista em suas doutrinas, constituição e disciplina. Muito antes da Reforma, "quase seiscentos estabelecimentos monásticos, pertencentes a dezoito ordens diferentes, estavam espalhados por toda a face do país. Frades fantasmagóricos, negros, brancos e cinzas, aglomeravam-se em incontáveis ​​multidões, praticando sua religião sobre um povo ignorante e iludido". Em 1172, Henrique completou sua conquista do país; uma assembleia do clero irlandês reunida em Waterford submeteu-se ao ditado papal, proclamou o título de Henrique ao domínio soberano da Irlanda e fez o juramento de fidelidade a ele e a seus sucessores. O rápido declínio agora marcava a igreja na Irlanda. Sua famosa espiritualidade e inteligência se foram. Antes ela tinha cerca de trezentos bispos; no alvorecer da Reforma, acreditamos que o número era inferior a trinta. Os ciúmes, contendas e rebeliões mancharam quase todas as páginas de sua história, tanto civil quanto eclesiástica, desde o século IX até o presente.*

{* Ver History of Ireland, de Froude; Faiths of the World, de Gardner, vol. 2, pág. 150; Variations of Popery, de Edgar, p. 153 e 192.}

O Alvorecer da Reforma se Aproxima

Capítulo 27: O Amanhecer da Reforma (1155-1386 d.C.)

Séculos antes de Lutero pregar suas teses na porta da igreja em Wittemburg, o Senhor estava preparando nações e indivíduos para a realização desta grande obra. O enfraquecimento do poder papal e a ousadia crescente das testemunhas predisseram o que se aproximava.

Em nossas contemplações de Roma, devemos sempre distinguir entre a igreja católica e o papado, ou o poder eclesiástico e o temporal. A igreja, embora caída e escravizada, ainda era a igreja; protestante de coração e fiel em medida a Cristo; mas aventurar-se em seus serviços piedosos além dos limites definidos pela ortodoxia romana sujeitava-a a sua severa disciplina. O papado jurou destruição a todos os invasores. A imoralidade e a irreligião podem até ser deixadas de lado, pelo menos com uma leve censura; mas a heresia ou a cisma -- em outras palavras, qualquer forma de dissidência da igreja romana, deve ser extirpada com fogo e espada, e todos os hereges condenados por sentença pontifícia à morte eterna.

Durante o longo reinado de terror papal, os verdadeiros santos de Deus testemunharam e profetizaram vestidos de saco. Mas a linha prateada da graça soberana foi preservada ininterruptamente desde os dias dos apóstolos, sob a proteção das asas do Deus vivo. Ele preservou Suas testemunhas do dragão devorador nos lugares secretos da Terra; em montanhas, vales e cavernas; e em muitos conventos tranquilos nas regiões remotas da cristandade.

Mas pode ser interessante, em primeiro lugar, renovar nosso conhecimento sobre o estado do cristianismo em alguns dos países que já observamos. Desta forma, iremos naturalmente entrar no assunto da nossa longa linha de testemunhas, que vai até os dias de Lutero. E, primeiro na ordem, vamos notar o estado do cristianismo na Irlanda.

domingo, 6 de setembro de 2020

A Apostasia dos Mendicantes

 As duas ordens rivais, os dominicanos e franciscanos, não se contentando em envolver toda a Europa em discórdia e lutas furiosas, começaram, logo após o falecimento de seus respectivos fundadores, a disputar entre si pela precedência. E embora os pontífices deste e dos séculos seguintes terem usado vários meios para encerrar essas disputas inconvenientes, suas tentativas foram infrutíferas, pois essas duas grandes ordens continuaram por muitos anos a acalentar essa rivalidade acirrada e a lançar uma contra a outra as mais amargas recriminações. Eles lutaram muito pelo domínio em todas as cadeiras de ensino da cristandade, mas a disputa mais notável foi a dos dominicanos com a Universidade de Paris. Outro ponto proeminente de grande controvérsia que durou muito tempo foi a doutrina da imaculada conceição da Virgem Maria. Era a doutrina favorita dos franciscanos e sempre foi violentamente atacada pelos dominicanos. O famoso Tomás de Aquino argumentou a favor da visão dominicana da questão, e João Duns Escoto, o dialético, assumindo a visão franciscana da doutrina, entrou na arena do debate, que continua até hoje; pois, embora o atual papa Pio IX* tenha declarado o dogma da imaculada concepção da Virgem Maria, a fraternidade dominicana não está disposta a admiti-lo. No entanto, agora isso se tornou um artigo de fé na igreja romana.

{*Este livro foi escrito no século XIX.}

Já em 1256, quando Boaventura se tornou o general dos franciscanos, ele descobriu que eles haviam começado a se tornar infiéis para com sua noiva, a pobreza, e estavam lutando pelo divórcio. As afeições de Francisco não sobreviveram em seus seguidores. Mas, sob a gestão prudente de seu novo general, relativa tranquilidade foi mantida durante sua vida; mas, depois de sua morte, ocorrida em 1274, as dissensões eclodiram com a maior violência, como de costume. Na verdade, essas ordens mendicantes, ou melhor, satânicas, causaram as mais violentas contendas em quase todos os países da Europa até o período da Reforma. Mas todas as classes, tanto na Igreja quanto no Estado, tiveram que suportar seu orgulho e arrogância, pois eram os mais fiéis servos e satélites da Sé Romana.

O breve esboço a seguir, de Mateus de Paris, um beneditino de St. Albans, que escreveu por volta de 1249, apresentará ao leitor o verdadeiro caráter dos caminhos dessas terríveis pragas da sociedade. O quadro não está, de forma alguma, exagerado, embora Mateus pertencesse à velha ordem aristocrática e pudesse desprezar seus novos irmãos democráticos. Solidão, reclusão, a cela solitária, a capela privada, a comunicação com o mundo exterior severamente cortada, era a velha ordem; o que se segue é uma amostra do novo e do que prevalecia na Inglaterra no século XIII.

“É um terrível – é um horrível – presságio que em trezentos anos, em quatrocentos anos, e até mais, as antigas ordens monásticas não se degeneraram tão completamente como estas fraternidades. Os frades, que foram fundados há apenas quarenta anos, construíram, e ainda constroem até hoje, na Inglaterra, residências tão elevadas quanto os palácios de nossos reis. São eles que, ampliando dia a dia seus suntuosos edifícios, circundando-os com paredes elevadas, acumulam dentro deles tesouros incalculáveis, transgredindo imprudentemente os limites da pobreza e violando, segundo a profecia da alemã Hildegarda, as próprias regras fundamentais da sua confissão. São eles que, impelidos pelo amor ao ganho, se impõem às últimas horas dos senhores e dos os ricos que eles sabem estar transbordando de riquezas; e estes, desprezando todos os direitos, suplantando os pastores comuns, extorquem confissões e testamentos secretos, gabando-se de si mesmos e de sua ordem, e afirmando sua vasta superioridade sobre todos os outros. Tanto é assim que nenhum dos fiéis agora acredita que pode ser salvo a menos que seja guiado e dirigido pelos pregadores ou pelos frades menores. Ansiosos por obter privilégios, eles servem nas cortes de reis e nobres, como conselheiros, camareiros, tesoureiros, padrinhos ou tabeliães de casamentos; eles são os executores das extorsões papais. Em sua pregação, às vezes tomam o tom de lisonja, às vezes de censura mordaz; eles não têm escrúpulos em revelar confissões ou apresentar as acusações mais precipitadas. Eles desprezam as ordens legítimas, aquelas fundadas pelos santos padres, por São Bento ou Santo Agostinho, com todos os outro. Eles colocam sua própria ordem acima de tudo; consideram os cistercienses rudes e simples, meio leigos, ou melhor, camponeses; tratam os frades negros (os dominicanos) como epicuristas arrogantes."*

{* Milman, vol. 4, pág. 276; Mosheim, vol. 2, pág. 523.}

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