domingo, 29 de julho de 2018

O Culto a Maria

A adoração à Virgem Maria originalmente nasceu do espírito ascético que tornou-se prevalente no século IV. Antes desse período, não há registros de adoração a Maria. Por volta da mesma época -- o final do século IV -- foi descoberto e circulava a ideia de que havia, no templo em Jerusalém, virgens consagradas a Deus, dentre as quais Maria cresceu e fez votos de virgindade perpétua. Essa nova doutrina levou à veneração de Maria como o próprio ideal do estado celibatário, e sancionou a profissão da castidade religiosa. Pouco tempo depois, tornou-se costume aplicar à virgem a designação de "Mãe de Deus", o que deu origem à controvérsia nestoriana. Mas, apesar da toda a oposição, a adoração a Maria prevaleceu; e, no século V, imagens e belas pinturas da virgem segurando o menino Jesus em seus braços foram colocadas em todas as igrejas. Assim introduzidas, elas rapidamente tornaram-se um objeto de adoração direta, e a mariolatria tornou-se a paixão governante da igreja romana. O serviço diário de devoção a Maria, e os dias e festivais que foram dedicados a sua honra, foram confirmados por Urbano II no Concílio de Clermont, em 1095.

A reverência pela bendita virgem tornou-se, então, uma doutrina e prática estabelecida na igreja de Roma, e assim continua até os dias atuais. Os romanistas podem negar que honram Maria com a adoração devida somente a Deus, mas em seus livros de devoção, orações à virgem ocupam um lugar de proeminência. Nenhuma oração, cremos, é de uso tão constante quanto o "Ave Maria", na qual, após a citação de uma passagem da saudação do anjo Gabriel à virgem, acrescentam-se as palavras: "Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós os pecadores, agora e na hora de nossa morte, Amém". Novamente, em outra oração, a virgem é assim invocada: "À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita". Outra diz assim: "Salve-Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, Salve! A vós bradamos, os degredados filhos de Eva; a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Ela, pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei", e assim por diante. Ela também é chamada de "Arca da Aliança", "Porta do Céu", "Estrela da Manhã", "Refúgio dos Pecadores", e muitos outros termos semelhantes, que mostram claramente o lugar de idolatria que Maria ocupa nas devoções da igreja católica.*

{* Para detalhes, veja "Mariolatry" em Faiths of the World, de Gardner, vol. 2, p. 372. E Vidas dos Santos, de Butler -- o grande livro católico romano sobre esse assunto. }

O Rosário, isto é, uma série de orações acompanhadas de um colar de contas (pequenas esferas) pelas quais as orações são contadas, consiste em quinze dezenas. Cada dezena contém dez Ave Marias, marcadas pelas contas pequenas, precedidas por um Pai Nosso, marcado por uma conta maior, e concluída por um Glória ao Pai. Também no Breviário Romano, o grande livro universal de devoção, o qual todo padre deve ler em privado uma porção a cada dia, sob pena de pecado mortal se não o fizer, usa a seguinte forte linguagem no que diz respeito à virgem: "Se o vento das tentações se levanta, se o escolho das tribulações se interpõe em teu caminho, olha a estrela, invoca Maria. Se és balouçado pelas vagas do orgulho, da ambição, da maledicência, da inveja, olha a estrela, invoca Maria. Se a cólera, a avareza, os desejos impuros sacodem a frágil embarcação de tua alma, levanta os olhos para Maria. Se, perturbado pela lembrança da enormidade de teus crimes, confuso à vista das torpezas de tua consciência, aterrorizado pelo medo do juízo, começas a te deixar arrastar pelo turbilhão da tristeza, a despencar no abismo do desespero, pensa em Maria. Nos perigos, nas angústias, nas dúvidas, pensa em Maria, invoca Maria". Assim a adoração a Maria tornou-se, completamente, a adoração da Cristandade, e toda catedral, e quase todas as igrejas espaçosas, tinha sua "Capela de Nossa Senhora".

É certamente mais que evidente, a partir dessas citações, que Maria é invocada não apenas como uma intercessora com seu Filho, mas como o primeiro e mais elevado objeto de adoração. E essas citações são exemplos calmos e sóbrios comparados à linguagem bravia de uma adoração ardente, que pode ser encontrada em hinos, saltérios e breviários. Os atributos de Deus são atribuídos a ela, que é representada como a Rainha do Céu, sentada entre querubins e serafins. O dogma da Imaculada Conceição (ou "Imaculada Concepção") foi o resultado natural dessa crescente adoração a Maria, e tem sido reafirmado como um artigo de fé na igreja católica pelos papas atuais, e aceito pelos fiéis em geral.

A Transubstanciação

Tentar enumerar todas as adições feitas às observâncias externas da religião seria de pouco proveito. Muitos novos ritos, cerimônias, usos, feriados e festivais foram acrescentados de tempos em tempos, tanto publicamente pelos pontífices quanto privativamente pelos padres. Mas nenhuma invenção sacerdotal jamais abriu tal caminho, ou produziu tamanho efeito sobre a mente popular, como a transubstanciação. O dogma não aparece em lugar algum dos escritos dos Pais da igreja, nem dos gregos ortodoxos nem dos latinos católicos. O primeiro traço disso é encontrado no século VIII. No século IX, um período de grandes trevas, o monge Pascásio parece ter dado forma e definição à monstruosa superstição. No século XI, foi fortemente contestada por Berengário de Tours, a habilmente defendida por Anselmo da Cantuária. Continuou sendo um assunto de contenda entre os doutores da igreja até o quarto Concílio de Latrão, que aconteceu no ano de 1215. Foi então colocada entre as doutrinas estabelecidas da igreja de Roma. Por meio de um cânon daquele concílio, foi afirmado que, quando o padre profere as palavras da consagração, os elementos sacramentais do pão e do vinho são convertidos na substância do corpo e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. "O corpo e o sangue de Cristo", dizem, "estão realmente contidos no sacramento do altar sob os elementos do pão e do vinho; o pão sendo transubstanciado no corpo de Jesus Cristo, e o vinho em Seu sangue, pelo poder de Deus, através do padre. A mudança assim efetuada é declarada como tão perfeita e completa que os elementos contêm a totalidade de Cristo -- a divindade, a humanidade, a alma, o corpo e o sangue, com todas as suas partes componentes"*.

{* Faiths of the World, de Gardner, vol. 2, p. 905. Veja também um interessante ensaio sobre o assunto em Variations of Popery, de Edgar, pp. 347-388.}

Desde esse período, o pão consagrado da Eucaristia passou a receber honras divinas. Importantes mudanças também foram introduzidas, por volta da mesma época, no modo de se administrar o sacramento. O vinho consagrado, dizia-se, corria o risco de ser profanado pela barba de quem tomava do cálice, pelos doentes que não fossem capazes de engoli-lo, e pelas crianças sendo propensas a derramá-lo. Assim, a taça foi retirada dos leigos e dos doentes, e a comunhão infantil foi completamente interrompida, pelo menos pelos latinos (católicos): os gregos (ortodoxos) a retiveram e até hoje a praticam.

As mais terríveis superstições naturalmente seguiram-se ao estabelecimento da doutrina da transubstanciação. Em determinado momento da missa, o padre eleva a hóstia consagrada -- um pequeno biscoito feito de farinha e água -- e no mesmo instante o povo cai prostrado diante dela. Em algumas ocasiões, a hóstia é colocada em um belo recipiente e carregada em solene procissão através das ruas, e cada indivíduo, enquanto o recipiente passa por ele(a), curva o joelho em sinal de adoração. Na Espanha, quando o padre leva a hóstia consagrada até uma pessoa que supõe-se estar morrendo, ele é acompanhado por um homem que toca um pequeno sino; e, ao som do sino, todos os que o ouvirem são obrigados a cair de joelhos e permanecerem nessa postura enquanto ouvirem seu barulho. Os padres fazem o povo crer que o Deus vivo, na forma do pão, reside naquele recipiente, e que assim Deus pode ser levado de um lado para o outro. Certamente, esta é a consumação de toda a iniquidade, idolatria e blasfêmia, e a exposição de tudo o que é sagrado ao ridículo do profano. Tais coisas foram concebidas e embaladas em um tempo de grande ignorância, depravação e superstição.

Tal era, e ainda é, a ousada iniquidade do sacerdócio papista; tal é a miserável cegueira da igreja romana! Ainda assim, Deus já suportou isso por mais de mil anos; mas um dia de julgamento virá em que Ele há de julgar os segredos dos corações dos homens, não pelo padrão de um ritual romano, mas pelo evangelho de Jesus Cristo, nosso Senhor. "Porque está escrito: Como eu vivo, diz o Senhor, que todo o joelho se dobrará a mim, e toda a língua confessará a Deus. De maneira que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus." (Romanos 14:11,12)

domingo, 15 de julho de 2018

Os Sete Sacramentos

No Novo Testamento, onde tudo é claro e simples, lemos apenas de dois sacramentos, ou instituições divinas conectadas a um povo já salvo -- o batismo e a ceia do Senhor. Mas tanto na igreja grega (Ortodoxa Grega) quanto latina (Católica Romana) o número de sacramentos tinha sido grandemente aumentado e colocado de formas variadas por diferentes teólogos. Não era mais uma questão de revelação divina, mas da imaginação humana. Alguns falam de doze sacramentos; mas na igreja ocidental, no final, o místico número de sete foi estabelecido, como se correspondesse à ideia dos sete dons do Espírito Santo. E esses eram: o batismo, a confirmação, a eucaristia, a penitência, a extrema unção, a ordenação e o matrimônio.*

{* Veja J.C. Robertson, vol. 3, pp. 259-272.}

Assim foi a armadilha posta diante dos pés dos verdadeiros seguidores de Cristo. Não importava quão sinceramente um homem cria e obedecia à Palavra de Deus: se desconsiderasse os sacramentos da igreja e suas numerosas cerimônias, expunha-se à acusação e às consequências da heresia. Por outro lado, de nada importava também se a Palavra de Deus fosse totalmente desprezada, desde que a obediência à igreja fosse professada. Mas para todos que seguiam o Senhor de acordo com Sua palavra, era impossível escapar: a rede se estendia por todos os cantos.

A Teologia da Igreja de Roma

Capítulo 23: A Teologia de Roma


Estamos agora cruzando o limiar do século XIII. As grandes personagens e os tempos agitados do século XII ficaram para trás. A reflexão disso tudo é solene. Além da linha que separa as dois períodos, não há como ultrapassá-la de volta. E se a agitação do século XII não estivesse verdadeiramente, embora remotamente, conectada à grande Reforma do século XVI, seria de pouco interesse para nós no século XIX*. Mas nesses homens e em suas épocas vemos as grandes correntes do pensamento e do sentimento humano que tiveram sua ascensão nos mosteiros, e seus resultados na liberdade civil e religiosa que agora desfrutamos sob a boa providência de Deus.

{*N. do T.: O autor viveu no século XIX}

Uma nova geração, uma outra classe de homens, agora ocupa o terreno. Os papas, os primazes, os imperadores, os monges, os filósofos e os demagogos com quem nos familiarizamos abriram espaço para outros. Mas para onde eles foram? Onde estão agora? Apenas fazemos a pergunta para que possamos ser levados a melhorarmos nossos próprios dias e nossas próprias preciosas oportunidades -- para que não precisemos lamentar como o profeta da antiguidade: "Passou a sega, findou o verão, e nós não estamos salvos" (Jeremias 8:20).

Chegou o momento, creio, para que as testemunhas de Deus e de Sua verdade tenham um lugar especial em nossa história. Elas têm aparecido proeminentemente, pouco a pouco, diante de nós desde o fim do século XII. Mas, primeiramente, pode ser interessante colocar diante de nossos leitores certas definições e usos teológicos e usos da igreja romana (Igreja Católica Apostólica Romana) nessa época, pois descobriremos que por elas as testemunhas foram julgadas e o papado ganhou seu poder sobre as vidas e liberdades dos santos de Deus. 

domingo, 8 de julho de 2018

Reflexões Sobre o Fim da Grande Luta

Para ajudar o leitor a formar um julgamento justo sobre essa longa e amarga disputa, oferecemos algumas reflexões. Nada, cremos, pode dar ao leitor uma estimativa tão justa do verdadeiro espírito do papado quanto uma história de seus ambiciosos desígnios e de seus meios inescrupulosos de alcançá-los.

Se inquirirmos "Qual foi o verdadeiro objetivo dessa grande e trágica disputa? Que resposta pode ser dada? Foi pelas liberdades espirituais da igreja de Deus, para que ela pudesse ter o privilégio de adorá-Lo e servi-Lo de acordo com o ensino de Sua santa Palavra? Será que o primaz do papa tinha em vista as liberdades civis e religiosas de indivíduos cristãos, ou o bem-estar da humanidade em geral? Ou será que eles ergueram a voz de protesto contra o rei ou sua corte por sua aberta e flagrante violação das leis de Deus, para avisá-los dos juízos vindouros?" Todos os que se esforçaram em examinar os detalhes da controvérsia devem admitir, por mais triste que seja, que nenhum desses dignos objetivos tinha lugar nos pensamentos deles. O objetivo deles era um só, e um só poder sacerdotal! Todas as coisas dignas -- a verdade, o cristianismo, a paz da igreja, a paz da nação, para não falar da glória de Cristo ou das realidades da eternidade -- foram todas sacrificadas sobre o altar das reivindicações idólatras do clero. Becket foi o representante dessas reivindicações. Ele exigiu, para as pessoas e propriedades do clero, que fossem todos considerados de uma santidade absoluta e inviolável. "Do início ao fim", diz Milman, "foi uma luta pela autoridade, pelas imunidades e pelas posses do clero. A liberdade da igreja era a isenção do clero perante a lei, e a reivindicação de sua existência separada, exclusiva e distintiva do resto da humanidade. Deve ser reconhecido por todos que, se o rei tivesse consentido em permitir que os eclesiásticos desprezassem toda a lei -- se ele não tivesse insistido em tomar padres como culpados de homicídios da mesma forma como fazia para com leigos -- ele poderia ter continuado sem reprovação sua carreira de ambição; ele poderia, sem repreensão, ter vivido em direta violação contra cada preceito cristão de justiça, humanidade, fidelidade conjugal, e cometido extorsões sem qualquer contestação do clero, se ele apenas tivesse mantido suas mãos longe dos tesouros da igreja."

Tal é o solene e pesado julgamento de um dignatário da igreja (o historiador e decano Milman), que não pode ser acusado de preconceito contra sua própria classe, mas cujas críticas são consideradas muito valiosas e justas, assim como sua história é, em outros aspectos, muito confiável.

Nós não apenas concordamos com tudo o que o decano diz, mas acrescentaríamos que nenhuma linguagem, por mais pesada e solene que seja, poderia expressar adequadamente as profundezas do mal que foram abrigadas e propagadas pelo sistema papal. Não falamos assim, que seja observado, da igreja católica, ou da igreja eclesiasticamente considerada como algo distinto do papado, mas da ambição secular e das políticas inescrupulosas dos papas, especialmente daqueles desde o tempo de Hildebrando (Gregório VII). Mas houve, não obstante, durante o período mais tenebroso de sua história, muitos queridos santos de Deus em sua comunhão, e que não sabiam nada sobre os caminhos malignos do bispo de Roma e de seu conselho. Isso o próprio Senhor sugere em Sua carta a Tiatira: "Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás" (Apocalipse 2:24). Aqui encontramos um remanescente crente conectado a um sistema que é caracterizado pelas "profundezas de Satanás".

Antes de deixarmos essa já longa história, acrescentamos que a trágica morte de Becket foi imediata e diligentemente embelezada pelos discípulos de sua escola. Biografias e memórias do mártir, como sabemos, foram multiplicadas e espalhadas por todos os cantos com surpreendente esforço. O forte elemento de idolatria, que sempre esteve presente na igreja de Roma, tornou-se então manifesto na Inglaterra. Peregrinações à tumba do mártir para a remissão de pecados viraram moda, e o próprio santo tornou-se um objeto de devoção popular. Peregrinos de todas as partes se reuniram em seu santuário e o enriqueceram com os mais caros presentes e ofertas. Um grande comércio foi feito com artigos que diziam terem sido usados por sua pessoa, e que agora seriam investidos de poderes miraculosos. Tem-se registros de que cerca de cem mil peregrinos de uma vez estiveram em um mesmo dia em Cantuária. Até mesmo Luís VII da França fez uma peregrinação à tumba miraculosa, e doou ao santuário uma joia que foi considerada a mais rica na Cristandade. Mas Henrique VIII ousou saquear o rico santuário, ordenou que o santo fosse desenterrado, que seus ossos fossem queimados, e que suas cinzas fossem lançadas aos ventos.

(Fim do Capítulo 22)

A Penitência de Henrique na Tumba de Becket (1174 d.C.)

Por volta de três anos após a morte de Becket, o rei visitou sua tumba em Cantuária. Quando avistou a igreja onde o arcebispo foi enterrado, ele desceu de seu cavalo e andou por três milhas no hábito de um peregrino de pés descalços e ensanguentados ao longo da estrada áspera. Ele se lançou prostrado perante a tumba do então canonizado santo. Após permanecer naquela posição por um tempo considerável, ele orou para que fosse açoitado pelos monges: uma operação que eles estavam bem dispostos a realizar. Então, de um lado a outro da igreja, o orgulho dos monges foi gratificado por cada um infligindo algumas chicotadas nas costas do altivo normando. Ele passou, então, todo aquele dia e noite sem qualquer descanso, ajoelhado sobre as pedras nuas.

O triunfo do poder espiritual sobre o secular, na pessoa do rei e por extensão sobre a lei do país, estava completo. E assim, os ambiciosos propósitos do papado foram melhor servidos pela morte de seu campeão (Becket) do que poderiam ser por um prolongamento de sua vida.

A Humilhação de Henrique II

O rei ficou muito perturbado ao ouvir as terríveis notícias sobre o assassinato sacrílego. Um sentimento de horror correu pela Cristandade, e o rei foi marcado como um tirano irreligioso, e Becket foi adorado como um santo martirizado. Sua morte foi atribuída às ordens diretas do rei. Por três dias e noites, o infeliz monarca trancou-se em solidão, e recusou qualquer comida e conforto, até que seus criados começaram a temer por sua vida. Ao final de sua penitência, ele enviou homens ao papa para limpar-se de qualquer participação no crime. O papa Alexandre estivera tão indignado no início que não ouviria a nada, ou sequer permitiria que o nome execrável do rei da Inglaterra fosse proferido em sua presença. Ele ameaçou excomungar o rei pelo nome e pronunciar com a máxima solenidade um interdito em todos os seus domínios. "Mediadores, no entanto, sempre podiam ser encontrados", diz Greenwood, "para uma consideração adequada na corte papal. Certos cardeais foram cautelosamente contactados, e não se mostraram inacessíveis aos argumentos com os quais os enviados foram, como sempre, abundantemente supridos. Assim introduzidos, o papa permitiu-se ser propiciado." Termos de reconciliação foram discutidos, mas o papa tinha, então, seu pé sobre o pescoço do rei, e estava determinado a impôr seus próprios termos papais antes que o aliviasse. Seu triunfo pessoal sobre o teimoso rei foi tão completo quanto ele podia desejar. 

Dois cardeais foram enviados por Alexandre com poder legatino para se encontrarem com Henrique na Normandia, para inquirirem mais plenamente sobre todo o caso, e para substanciar a penitência do rei. Henrique jurou sobre os Evangelhos que ele não tinha ordenado nem desejado a morte de Becket, e que ele não havia sofrido tanto pela morte de seu pai ou de sua mãe quanto pela morte do arcebispo; ele confessou também que palavras proferidas em sua raiva contra aquele homem santo podiam possivelmente ter levado a sua morte, por cuja causa ele estaria preparado a prestar penitência de acordo com o que o pontífice achasse adequado. A Santa Sé então exigiu a Henrique: "1. Que mantivesse duzentos cavaleiros as suas próprias custas na Terra Santa. 2. Que dentro de três anos ele tomasse a cruz* em pessoa, a menos que fosse libertado dessa obrigação pela Santa Sé. 3. Que revogasse a Constituição de Clarendon e todos os maus costumes introduzidos durante seu reinado. 4. Que reinvestisse à igreja de Cantuária todos os seus direitos e posses, e que perdoasse e restaurasse às suas propriedades todos os que incorreram em sua ira na causa do primaz. 5. Que ele e seu filho Henrique, o mais novo, mantivessem e preservassem a coroa da Inglaterra fiel ao papa Alexandre e a seus sucessores, e que eles e seus sucessores não se considerassem verdadeiros reis até que eles -- o papa e seus sucessores -- os reconhecessem como tais." Tendo devidamente selado e atestado o ato formal, o rei foi reconciliado com o papa no pórtico da igreja em 22 de maio de 1172, mas não estava ainda livre das mãos dos inexoráveis padres: sua degradação não estava ainda completa.

{*N. do T.: "Tomar a cruz", na época, indicava a decisão de ir defender a Terra Santa.}

O clero pregava de seus púlpitos, e o povo era pronto o suficiente para crer, que certas provações familiares que caíram sobre o rei por volta dessa época eram os juízos de Deus pela perseguição de Seu santo. O povo foi também levado a acreditar que o santo estivera lutando as batalhas do pobre contra o rico -- especialmente dos pobres e oprimidos saxões contra os cruéis e avarentos normandos. Deprimido pelos infortúnios, acusado de cumplicidade com os assassinos, e assombrado pelos temores supersticiosos, o príncipe infeliz estava preparado para fazer uma expiação completa por seus pecados. Ele estava certo que nada menos que uma humilhação pública poderia apaziguar o céu ofendido e o santo martirizado. As cenas de Canossa deveriam ser encenadas novamente. Tal é o verdadeiro espírito do sacerdócio implacável de Roma. Se eles não podem derramar o sangue de suas vítimas, eles as forçarão a beber as mais amargas escórias da humilhação.

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