Na manhã de 6 de julho de 1415, o concílio se reuniu na catedral. Hus, como herege, foi detido no pórtico durante a celebração da missa. O bispo de Lodi pregou com base no texto: “Para que o corpo do pecado seja desfeito” (Romanos 6:6). Seria difícil dizer se foi por grosseira ignorância ou malícia que ele perverteu a Palavra de Deus para o propósito do concílio. Foi uma declamação feroz contra heresias e erros, mas principalmente contra Hus, que foi considerado tão mau quanto Ário e pior do que Sabélio. Ele encerrou com elogios aduladores ao imperador. “É teu glorioso ofício destruir heresias e cismas, especialmente este herege obstinado”, apontando para o prisioneiro, que estava ajoelhado em um lugar elevado e em oração fervorosa. Cerca de trinta artigos de acusação foram lidos. Hus frequentemente tentava falar, mas não era permitido. A sentença foi então proferida: “Que por vários anos Jan Hus seduziu e escandalizou o povo pela disseminação de muitas doutrinas manifestamente heréticas e condenadas pela igreja, especialmente as de John Wycliffe. Que ele obstinadamente pisoteou as chaves da igreja e as censuras eclesiásticas, que apelou a Jesus Cristo como juiz soberano, ao desprezo dos juízes ordinários da igreja; e que tal apelo foi injurioso, escandaloso e feito em escárnio da autoridade eclesiástica. Que persistiu até o fim em seus erros, e até os manteve em pleno concílio. Portanto, é ordenado que seja publicamente deposto e degradado das ordens sagradas como um herege obstinado e incorrigível." Hus orou para que Deus perdoasse seus inimigos, o que provocou escárnio de alguns membros do conselho; mas no meio de tudo isso ele ergueu as mãos e exclamou: "Eis, gracioso Salvador, como o conselho condena como um erro o que tens prescrito e praticado, quando, vencido pelos inimigos, confiaste a tua causa a Deus teu Pai, deixando-nos este exemplo, para que, quando somos oprimidos, possamos recorrer ao julgamento de Deus." Em suas observações finais, ele se virou e olhou fixamente para Sigismundo, e disse: "Vim a este conselho sob a fé pública do Imperador." Um profundo rubor passou por seu rosto com essa repreensão repentina e inesperada.
domingo, 1 de novembro de 2020
O Julgamento de Sigismundo
Tendo o tribunal ouvido o prisioneiro, o imperador levantou-se e disse: "Ouvistes as acusações contra Hus, algumas confessadas por ele mesmo, algumas provadas por testemunhas de confiança. Em minha opinião, cada um desses crimes merece a morte. Se ele não renunciar a todos os seus erros, ele deve ser queimado... o mal deve ser extirpado raiz e ramo, e se algum de seus partidários estiver em Constança, eles devem ser julgados com a maior severidade, especialmente seu discípulo Jerônimo de Praga." Quando Hus foi informado do julgamento do imperador, ele simplesmente respondeu: "Fui alertado a não confiar em seu salvo-conduto. Tenho estado sob uma triste ilusão; ele me condenou antes mesmo de meus inimigos."
Depois desse arremedo de julgamento e audiência final, ele foi deixado na prisão por quase um mês. Durante esse tempo, pessoas do mais alto escalão o visitaram e imploraram para que abjurasse os erros que lhe foram imputados. Esperava-se que, por meio do aumento da enfermidade corporal e da importunação privada, ele acabasse cedendo. Mas não foi o caso. Aquele que o capacitou a permanecer firme diante das ameaças e insultos públicos ainda estava com ele. "Se eu abjurar os erros", disse ele, "que foram falsamente atribuídos a mim, isso seria nada menos do que perjúrio." Ele considerou seu destino selado, embora durante todo o seu julgamento e prisão ele professasse estar disposto a renunciar a qualquer opinião que pudesse ser provada falsa pelas Escrituras. O verdadeiro objetivo dessas solicitações privadas por parte dos prelados era abalar sua constância e induzi-lo a se retratar. Com a visão tão belamente expressa por Waddington, concordamos inteiramente: "Muitos indivíduos de diferentes caracteres, mas igualmente ansiosos por salvá-lo da última inflicção, visitaram sua prisão e pressionaram-no com uma variedade de motivos e argumentos; mas todos foram embotados pela retidão de sua consciência e a singeleza de seu propósito. Um de seus mais ferrenhos inimigos, chamado Paletz, estava entre esses; mas, embora seus conselhos tivessem sido bem-sucedidos em degradar a pessoa do reformador, eles falharam em seduzi-lo à infâmia."
Na véspera do dia destinado à sua execução, foi visitado pelo seu verdadeiro e fiel amigo, John de Chlum -- nome que merece ser registado com toda a honra em toda a parte -- um nome que representa quase que exclusivamente o sentimento cristão e a virtude naquela vasta assembleia de supostos mestres cristãos, e que redime nossa humanidade comum da traição e da crueldade. "Meu caro mestre", disse o nobre discípulo, "sou analfabeto e, consequentemente, incapaz de aconselhar alguém tão iluminado como você. No entanto, se você está secretamente consciente de qualquer um dos erros que te foram publicamente imputados, eu rogo-te que não sintas vergonha de o retratar; mas se, pelo contrário, estás convencido da tua inocência, estou tão longe de te aconselhar a dizer algo contra a tua consciência, que te exorto, antes, a suportar toda forma de tortura do que renunciar a qualquer coisa que consideras ser verdadeira." Hus ficou muito impressionado com o conselho sábio e afetuoso de seu amigo fiel, e respondeu com lágrimas, "que Deus era sua testemunha de quão pronto ele sempre esteve, e ainda estava, a retirar um juramento, e de todo o coração, no exato momento em que fosse convencido de qualquer erro por evidências da Sagrada Escritura. "
É perfeitamente evidente, em toda a história, que nos sofrimentos e na fortaleza de Hus não há vestígios de orgulho ou teimosia. Ele era firme, mas era humilde; ele esperava a morte, ele se preparou para enfrentá-la, mas nunca planejou escapar dela. "Eu apelei", disse ele, "a Jesus Cristo, o Único Juiz todo-poderoso e justo; a Ele entrego minha causa, que julgará a cada homem, não de acordo com falsos testemunhos e concílios errôneos, mas de acordo com a verdade e o deserto do homem." Este foi o ato culminante de sua suposta iniquidade; a hora fatal havia chegado.
domingo, 18 de outubro de 2020
O Concílio Envergonhado
O Exame de Jan Hus
A Prisão de Jan Hus
Comoções Civis
Mesmo sendo um homem bom, Jan Hus havia negligenciado o conselho benéfico do apóstolo. Ele primeiro se envolveu em uma disputa universitária quanto aos privilégios dos alunos; e novamente sua oposição a Gregório XII ofendeu profundamente o arcebispo da Boêmia, que se aliou ao antipapa*. Decretos proibitivos foram emitidos contra Hus, mas, sendo um grande favorito na corte e com o povo, nada foi feito. Ele obteve permissão para continuar sua pregação na língua vernácula. Mas em poucos meses surgiram circunstâncias que reacenderam as chamas das contendas religiosas na Boêmia.
{* N. do T.: Isso ocorreu durante a grande cisma papal, conforme já relatado em seções anteriores deste mesmo capítulo, durante o qual Gregório XII era um dos papas (ou antipapas) que contendiam entre si pelo trono pontifício.}
Um dos primeiros atos de João XXIII ao tomar posse da cátedra papal foi enviar seus emissários para pregar uma cruzada contra Ladislau, rei de Nápoles, e oferecer as indulgências usuais. Os vendedores dessas indulgências, enquanto discursavam ao povo sobre o valor de suas mercadorias*, foram interrompidos e expostos ao insulto e à indignação. Os magistrados interferiram; alguns dos manifestantes foram apreendidos e executados em particular; mas o sangue que correu da prisão para a rua traiu o destino dos prisioneiros. As mulheres mergulhavam seus lenços no sangue para guardá-los como uma relíquia preciosa; as paixões da multidão foram estimuladas ao máximo; a prefeitura foi invadida, os corpos sem cabeça desses jovens foram carregados pelo povo em procissão solene pelas várias igrejas, entoando hinos sacros. Por fim, foram enterrados na capela de Belém, com as ofertas aromáticas que eram frequentemente depositadas nos túmulos dos mártires. Os três jovens eram agora mencionados em sermões e escritos como santos e mártires, e assim o movimento aumentou ainda mais.
{* N. do T.: as mercadorias são as indulgências, isto é, os perdões de pecados que eram oferecidos pela Igreja Católica em troca de dinheiro ou bens.}
Jan Hus, sabendo que era suspeito e acusado de ser o principal motor por trás disso tudo, sabiamente retirou-se da cidade por um tempo. Ele foi convocado, mas sem efeito, para comparecer perante o tribunal do Vaticano. Hus foi então declarado como estando sob o banimento da excomunhão, e o local de sua residência sob interdito papal. Apesar das censuras da igreja, ele continuou pregando por todo o país. As mentes das pessoas, já bastante agitadas, eram facilmente suscitadas à maior indignação contra o clero. Quase todo o reino estava do seu lado, pelo menos contra os abusos da hierarquia.
A Disseminação da Verdade
O casamento de Ana da Boêmia com Ricardo II da Inglaterra havia colocado os dois países em estreita conexão, exatamente no momento em que as doutrinas de Wycliffe estavam fazendo seu mais rápido progresso. "Eruditos boêmios", diz Milman, "sentaram-se aos pés do ousado professor de teologia de Oxford; estudantes ingleses foram encontrados em Praga. Os escritos de Wycliffe foram trazidos para a Alemanha em grande número, alguns em latim, alguns traduzidos para a língua boêmia, e disseminado por admiradores partidários." A princesa, cujos exercícios piedosos e estudo das Escrituras foram comemorados por pregadores e historiadores, foi afetada pela primeira vez pelo movimento de Reforma em sua própria terra. Ela trouxe consigo para a Inglaterra versões dos Evangelhos nas línguas alemã e boêmia, bem como em latim. Esses eram então tesouros preciosos para alguém de sua piedade e amor pela pura Palavra de Deus; mas também nos mostram, embora indiretamente, o progresso que as novas doutrinas estavam fazendo na Alemanha naquele período inicial.
Um de seus primeiros atos na Inglaterra mostra o poder da graça de Cristo em seu coração e apresenta um contraste notável com o espírito perseguidor de Jezabel. "Alguns dias após o casamento do casal real", diz a Srta. Strickland, "eles voltaram a Londres, e a coroação da Rainha foi realizada de forma magnífica. A pedido sincero da jovem Rainha, um perdão geral foi concedido pelo Rei em sua consagração. As pessoas aflitas precisavam dessa trégua, pois as execuções, desde a insurreição de Wat Tyler, tinham sido sangrentas e bárbaras como nunca antes. A terra estava fedendo com o sangue dos infelizes camponeses quando a intercessão humana da gentil Ana de Boêmia pôs fim às execuções. Essa mediação obteve para a noiva de Ricardo o título de ‘A boa Rainha Ana'; e os anos, em vez de prejudicar a popularidade, geralmente tão evanescente na Inglaterra, apenas aumentaram a estima sentida por seus súditos por esta princesa benéfica."
Como é verdadeiramente revigorante encontrar tal exemplo de piedade consistente em tal período, e em tal condição de vida! Mas havia muitos assim naquela época na Boêmia e em outras terras. Após a morte de Ana, seus assistentes boêmios voltaram ao seu próprio país e levaram consigo os valiosos escritos de John Wycliffe. Eles tinham sido estudados por muitos estrangeiros em Oxford e agora eram lidos diligentemente pelos membros da Universidade de Praga.
O mais famoso desses doutores estudiosos foi Jan Hus, ou Jan de Hassinetz, um vilarejo próximo à fronteira da Bavária. Ele nasceu por volta do ano de 1369, de modo que devia ter cerca de quinze anos de idade quando seu admirado e reconhecido professor, o venerável Wycliffe, morreu. É interessante olhar para trás e contemplar os caminhos de nosso Deus em Seu cuidado para a manutenção e difusão da verdade. Quem então poderia ter pensado, que em um vilarejo obscuro da Boêmia, Ele estava levantando e qualificando uma nobre testemunha, que deveria levar, por sua vez, "a tocha da verdade, e transmiti-la com mão de mártir a um longo sucessão de testemunhas -- seria ele digno do ofício celestial?"* Ele logo se distinguiu, como somos informados, pela força e sutileza de seu entendimento, pela modéstia e gravidade de seu comportamento e pela austeridade irrepreensível de sua vida. Ele era alto, esguio, com um semblante pensativo; gentil, amigável e acessível a todos. Sendo seus talentos de tão alto nível, foi enviado para a Universidade de Praga, com o objetivo de estudar para a igreja. Ali ele se distinguiu por suas extensas realizações como estudioso. Ele avançou rapidamente nas preferências religiosas e universitárias e foi feito confessor da Rainha Sofia. Ele também foi nomeado pregador na capela da universidade, chamada Belém -- a casa do pão -- por conta do alimento espiritual que estava ali para ser distribuído em língua vernácula.
{* Waddington, vol. 3, pág. 175.}
Isso deu ao corajoso e eloquente pregador uma excelente oportunidade para revelar a Palavra de Deus ao povo em sua língua materna; e não temos dúvidas de que fez isso, pois era um cristão sincero e uma verdadeira testemunha de Cristo. Mas como a maioria dos reformadores -- senão todos -- ele talvez tenha estado mais ansioso, no início, em pregar contra os abusos prevalecentes do que instruir o povo na pura verdade de Deus. Estamos convencidos de que geralmente tem sido esse o caso, e em todos os tipos de reforma, e que possa ser essa atitude a responsável pelas muitas cenas de violência na melhor das causas. Se o povo fosse conduzido, antes de tudo, pela bênção de Deus, a receber a verdade, especialmente a verdade como a encontramos em Jesus, o fim seria alcançado sem que a mente se inflamasse por ouvir denúncias em linguagem forte sobre os vícios de seus opressores sacerdotais. O orgulho, luxo e licenciosidade de todo o sistema clerical tornaram-se intoleráveis para a humanidade; de modo que condenar os abusos sem tocar nas doutrinas da igreja era o caminho principal para a popularidade.
Deus é mais sábio do que os homens; e se formos guiados por Sua palavra, devemos procurar levar os ignorantes a amar a verdade e segui-la, em vez de criar em suas mentes um ódio pelo erro que, sem o conhecimento de Cristo, certamente terminará em excitação revolucionária e desastre. Este princípio divino é aplicável tanto às menores quanto às maiores disputas entre os homens. É sempre melhor iluminar do que agitar. "Ao servo do Senhor não convém contender, mas sim, ser manso para com todos, apto para ensinar, sofredor; instruindo com mansidão os que resistem, a ver se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade, e tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do diabo, em que à vontade dele estão presos.” (2 Timóteo 2:24-26)
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