domingo, 18 de outubro de 2020

A Disseminação da Verdade

O casamento de Ana da Boêmia com Ricardo II da Inglaterra havia colocado os dois países em estreita conexão, exatamente no momento em que as doutrinas de Wycliffe estavam fazendo seu mais rápido progresso. "Eruditos boêmios", diz Milman, "sentaram-se aos pés do ousado professor de teologia de Oxford; estudantes ingleses foram encontrados em Praga. Os escritos de Wycliffe foram trazidos para a Alemanha em grande número, alguns em latim, alguns traduzidos para a língua boêmia, e disseminado por admiradores partidários." A princesa, cujos exercícios piedosos e estudo das Escrituras foram comemorados por pregadores e historiadores, foi afetada pela primeira vez pelo movimento de Reforma em sua própria terra. Ela trouxe consigo para a Inglaterra versões dos Evangelhos nas línguas alemã e boêmia, bem como em latim. Esses eram então tesouros preciosos para alguém de sua piedade e amor pela pura Palavra de Deus; mas também nos mostram, embora indiretamente, o progresso que as novas doutrinas estavam fazendo na Alemanha naquele período inicial.

Um de seus primeiros atos na Inglaterra mostra o poder da graça de Cristo em seu coração e apresenta um contraste notável com o espírito perseguidor de Jezabel. "Alguns dias após o casamento do casal real", diz a Srta. Strickland, "eles voltaram a Londres, e a coroação da Rainha foi realizada de forma magnífica. A pedido sincero da jovem Rainha, um perdão geral foi concedido pelo Rei em sua consagração. As pessoas aflitas precisavam dessa trégua, pois as execuções, desde a insurreição de Wat Tyler, tinham sido sangrentas e bárbaras como nunca antes. A terra estava fedendo com o sangue dos infelizes camponeses quando a intercessão humana da gentil Ana de Boêmia pôs fim às execuções. Essa mediação obteve para a noiva de Ricardo o título de ‘A boa Rainha Ana'; e os anos, em vez de prejudicar a popularidade, geralmente tão evanescente na Inglaterra, apenas aumentaram a estima sentida por seus súditos por esta princesa benéfica."

Como é verdadeiramente revigorante encontrar tal exemplo de piedade consistente em tal período, e em tal condição de vida! Mas havia muitos assim naquela época na Boêmia e em outras terras. Após a morte de Ana, seus assistentes boêmios voltaram ao seu próprio país e levaram consigo os valiosos escritos de John Wycliffe. Eles tinham sido estudados por muitos estrangeiros em Oxford e agora eram lidos diligentemente pelos membros da Universidade de Praga.

O mais famoso desses doutores estudiosos foi Jan Hus, ou Jan de Hassinetz, um vilarejo próximo à fronteira da Bavária. Ele nasceu por volta do ano de 1369, de modo que devia ter cerca de quinze anos de idade quando seu admirado e reconhecido professor, o venerável Wycliffe, morreu. É interessante olhar para trás e contemplar os caminhos de nosso Deus em Seu cuidado para a manutenção e difusão da verdade. Quem então poderia ter pensado, que em um vilarejo obscuro da Boêmia, Ele estava levantando e qualificando uma nobre testemunha, que deveria levar, por sua vez, "a tocha da verdade, e transmiti-la com mão de mártir a um longo sucessão de testemunhas -- seria ele digno do ofício celestial?"* Ele logo se distinguiu, como somos informados, pela força e sutileza de seu entendimento, pela modéstia e gravidade de seu comportamento e pela austeridade irrepreensível de sua vida. Ele era alto, esguio, com um semblante pensativo; gentil, amigável e acessível a todos. Sendo seus talentos de tão alto nível, foi enviado para a Universidade de Praga, com o objetivo de estudar para a igreja. Ali ele se distinguiu por suas extensas realizações como estudioso. Ele avançou rapidamente nas preferências religiosas e universitárias e foi feito confessor da Rainha Sofia. Ele também foi nomeado pregador na capela da universidade, chamada Belém -- a casa do pão -- por conta do alimento espiritual que estava ali para ser distribuído em língua vernácula.

{* Waddington, vol. 3, pág. 175.}

Isso deu ao corajoso e eloquente pregador uma excelente oportunidade para revelar a Palavra de Deus ao povo em sua língua materna; e não temos dúvidas de que fez isso, pois era um cristão sincero e uma verdadeira testemunha de Cristo. Mas como a maioria dos reformadores -- senão todos -- ele talvez tenha estado mais ansioso, no início, em pregar contra os abusos prevalecentes do que instruir o povo na pura verdade de Deus. Estamos convencidos de que geralmente tem sido esse o caso, e em todos os tipos de reforma, e que possa ser essa atitude a responsável pelas muitas cenas de violência na melhor das causas. Se o povo fosse conduzido, antes de tudo, pela bênção de Deus, a receber a verdade, especialmente a verdade como a encontramos em Jesus, o fim seria alcançado sem que a mente se inflamasse por ouvir denúncias em linguagem forte sobre os vícios de seus opressores sacerdotais. O orgulho, luxo e licenciosidade de todo o sistema clerical tornaram-se intoleráveis para a humanidade; de modo que condenar os abusos sem tocar nas doutrinas da igreja era o caminho principal para a popularidade.

Deus é mais sábio do que os homens; e se formos guiados por Sua palavra, devemos procurar levar os ignorantes a amar a verdade e segui-la, em vez de criar em suas mentes um ódio pelo erro que, sem o conhecimento de Cristo, certamente terminará em excitação revolucionária e desastre. Este princípio divino é aplicável tanto às menores quanto às maiores disputas entre os homens. É sempre melhor iluminar do que agitar. "Ao servo do Senhor não convém contender, mas sim, ser manso para com todos, apto para ensinar, sofredor; instruindo com mansidão os que resistem, a ver se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade, e  tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do diabo, em que à vontade dele estão presos.” (2 Timóteo 2:24-26)

O Concílio de Constança

Constança, uma cidade imperial no lado alemão dos Alpes, foi considerada um local adequado para a reunião de tal assembleia. Era acessível de todas as partes do mundo ocidental da época e as provisões podiam ser obtidas mais facilmente por meio de seu amplo lago. Tão grande foi o afluxo de pessoas, que se calculou que não menos de trinta mil cavalos foram trazidos para Constança, o que pode nos dar uma ideia da enorme multidão de pessoas e das cargas dos navios das provisões que seriam necessárias. Além de dignitários eclesiásticos de todos os inumeráveis nomes, havia mais de cem príncipes; cento e oito condes; duzentos barões; e vinte e sete cavaleiros. Torneios, festas e várias diversões eram organizados para aliviar suas ocupações espirituais; quinhentos menestréis compareceram para divertir as horas vagas desses “santos” padres e nobres, e para acalmar suas mentes ansiosas; eles haviam se reunido com o propósito declarado de curar a ferida quase mortal do papado; mas quais são os fatos da história? Pelo espaço de três anos e meio -- começando em 5 de novembro de 1414 -- esses homens dissolutos encheram a pacata cidade antiga de Constança com sua impiedade descarada. Descrever aquilo que então era claro como o dia contaminaria as páginas da nossa história. O coração estremece quando pensamos na impureza, na impiedade ousada e hipocrisia desses chamados santos padres, para não falar de sua crueldade implacável ao queimarem na fogueira Hus e Jerônimo. 

O objetivo deste grande concílio era duplo. Primeiro, era para pôr fim ao cisma que afligiu a igreja por tantos anos. E segundo, era para a supressão das heresias de Wycliffe e Hus. O primeiro desses objetivos fora até então realizado de forma satisfatória. Tendo estabelecido que um pontífice está sujeito a um concílio de toda a igreja, João XXIII foi deposto devido às irregularidades de sua vida e à violação de seu juramento ao imperador. Gregório e Bento foram novamente depostos, e Otão de Colonna foi eleito pontífice, assumindo o nome de Martinho V

As doutrinas de Wycliffe, que Jan Hus e seus seguidores foram acusados ​​de propagar nas cidades e vilas da Boêmia, e até mesmo na Universidade de Praga, eram ofensivas demais para os membros do concílio, e agora ocupavam a atenção deles.

O Concílio de Pisa

No início do século XV, a Igreja Católica Romana tinha duas cabeças -- dois papas rivais, Bento XIII em Avignon e Gregório XII em Roma. Cada um alegava ser o representante de Cristo na terra e cada um acusava o outro de falsidade perante o mundo, perjúrio e dos mais nefastos desígnios secretos. Tão escandalosa foi a conduta desses dois velhos prelados de cabelos grisalhos, cada um com mais de setenta anos de idade, que toda a Europa contemplou com vergonha e indignação a obstinação e perversidade dos pontífices em conflito. O que deveria ser feito para que as feridas da igreja dividida fossem curadas? Reis e cardeais começaram a usar tanto a força quanto a súplica para induzir os dois papas a renunciarem às suas reivindicações para que alguém pudesse ser escolhido por unanimidade em seu lugar. Eles prometeram, sob juramento, que renunciariam voluntariamente se os interesses da igreja assim o exigissem; mas, mal haviam prometido, eles dissimularam, enganaram seus cardeais e violaram suas promessas. Descobrindo que nenhuma confiança poderia ser colocada na palavra deles, que eles eram homens sem verdade, honra ou religião, os cardeais de Bento se revoltaram e se juntaram aos cardeais de Gregório, e os dois colégios reuniram-se em Livorno a fim de considerar o que poderia ser feito para colocar um fim a este longo e vergonhoso cisma. Eles chegaram à conclusão de que, naquelas circunstâncias, eles tinham o direito indubitável de convocar um concílio que pudesse julgar entre os dois competidores pelo papado e restaurar a unidade da igreja. 

Pisa, uma cidade murada no centro da Itália, foi selecionada como o lugar mais adequado para o concílio proposto. Isso era algo totalmente novo na Cristandade. Cerca de uma dúzia de cardeais, sem a sanção do papa ou do imperador, convocou o famoso Concílio de Pisa. Sua infalibilidade estava agora sujeita a um novo tribunal, e a mais alta prerrogativa de seu trono usurpada; mas ele havia perdido tanto o respeito da humanidade que toda a igreja justificou os cardeais em assumirem o poder sobre ele. 

O concílio foi aberto em 25 de março de 1409. A assembleia foi uma das mais augustas e numerosas já vistas na história da Cristandade. Daremos alguns detalhes para mostrar ao leitor o que era um Concílio Ecumênico naqueles dias em que o Catolicismo Romano era a religião da Europa. Estavam presentes vinte e dois cardeais; os patriarcas latinos de Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Grau; doze arcebispos estiveram presentes pessoalmente e quatorze por seus procuradores; oitenta bispos e os procuradores de cento e dois; oitenta e sete abades e os procuradores de outros duzentos; além de priores; generais de ordens; o grão-mestre de Rodes, com dezesseis comandantes; o prior geral dos cavaleiros do santo sepulcro; o deputado do grão-mestre e cavaleiro da Ordem Teutônica; os deputados das Universidades de Oxford, Cambridge, Paris, Florença, Cracóvia, Viena, Praga e muitas outras; mais de trezentos doutores em teologia; e embaixadores dos reis da Inglaterra, França, Portugal, Boêmia, Sicília, Polônia e Chipre, e dos duques de Brabante da Borgonha, etc. Estradas e rios por todos os lados foram cobertos por semanas com a pompa e esplendor desses dignitários. Alguns deles entraram em Pisa com duzentos cavalos na comitiva.* 

{* Manual of Councils, de Landon.} 

A assembleia realizou suas sessões de março a agosto. Depois de muita deliberação na forma devida, os papas contestadores foram condenados por unanimidade. No dia 5 de junho foi proferida a sentença. Ambos foram declarados heréticos, perjuriosos, contumazes, proibidos de assumir o pontificado soberano e indignos de qualquer honra: o papado foi declarado vago. O próximo passo foi eleger um novo papa. Este era um assunto mais difícil. Onde estaria o homem, possuindo tais qualidades, que reconquistaria a reverência da humanidade pelo supremo pontífice? Esta era agora a grave questão. Vinte e quatro cardeais, após ficarem encerrados por dez dias, decidiram por Pedro de Candia, cardeal de Milão, com setenta anos de idade, que adotou o nome de Alexandre V. Mas os dois antigos pontífices desprezaram os decretos do concílio e continuaram a desempenhar suas funções como papas legítimos. Bento fulminou seus anátemas contra o concílio e seus rivais; Gregório fez o mesmo, tendo entrado em aliança com o ambicioso Ladislau, rei de Nápoles. Alexandre, que ainda não estava em posse da cátedra e do patrimônio de São Pedro, emitiu seus anátemas e excomunhões contra Bento, Gregório e Ladislau, que tinha tomado posse dos domínios da Sé Romana. 

Murmúrios foram ouvidos por todos os cantos de que o concílio, em vez de extinguir o cisma, havia na verdade apenas acrescentado um terceiro papa. Onde está agora a alardeada unidade da Igreja Católica Romana? podemos inquirir; e por meio de qual papa flui a sucessão apostólica? Os três papas, dos quais a Cristandade estava envergonhada e cansada, atacaram ferozmente uns aos outros com recíprocas excomunhões, reprovações e anátemas. Alexandre V viveu apenas cerca de um ano após ter sido eleito, e seu lugar foi preenchido por João XXIII, “um homem” -- diz Mosheim – “destituído de princípios e piedade”. As dificuldades foram maiores do que nunca; o reino papal assim dividido contra si mesmo não podia resistir: estava às vésperas da ruína total. Alguns aconselharam que as potências europeias deveriam se unir e varrer o nome e o poder do pontífice, ou pelo menos limitar sua autocracia. Era então evidente que os próprios papas não fariam nenhum sacrifício pessoal pela paz da Igreja; então, o que poderia ser feito a seguir para deter a guerra vergonhosa dos pontífices e curar as feridas da Igreja dividida? Esta era então a desconcertante questão. Se a igreja tivesse sido deixada sozinha, Ladislau poderia então ter tomado posse completa de Roma e de todas as províncias papais, e deixado a cátedra de São Pedro como um trono apenas no nome. Mas os príncipes da terra ainda não estavam preparados para uma derrubada tão sacrílega. Algo parecido só aconteceria séculos mais tarde nos dias de Vítor Emanuel II da Itália. 

Sigismundo, imperador da Sacro Império Romano-Germânico, o rei da França e outros reis e príncipes da Europa, que mostraram mais preocupação com o crédito e o bem-estar da Igreja do que os papas egoístas, prevaleceram sobre João XXIII para reunir um concílio geral de toda a igreja com o propósito de encerrar esta grande controvérsia.

O Movimento de Reforma na Boêmia

Capítulo 31: Boêmia (1409-1471 d.C.)

É verdadeiramente satisfatório saber que as benditas verdades do evangelho, que salvam almas e que foram ensinadas por Wycliffe e seus seguidores, já estavam produzindo resultados de uma importância ampla e duradoura: que, apesar de todos as execuções na fogueira e assassinatos de Roma, essas verdades estavam permeando profundamente nos corações de milhares e centenas de milhares, e se espalhando por quase todas as partes da Europa. O bispo de Lodi no concílio de Constança, em 1416 -- um ano antes do martírio de Cobham e 36 anos após a tradução da Bíblia -- declarou que as heresias de Wycliffe e Hus se espalharam pela Inglaterra, França, Itália, Hungria, Rússia, Lituânia, Polônia, Alemanha e por toda a Boêmia. Assim, um amargo inimigo é inconscientemente -- ou não intencionalmente -- a testemunha da influência e da inextinguível vitalidade da boa semente da Palavra de Deus. 

Mas aqui será necessário preparar nosso caminho dizendo algumas palavras sobre o grande cisma papal, antes de traçarmos a ampla linha prateada da graça de Deus no testemunho e martírio de Hus e Jerônimo.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O Martírio de Lorde Cobham

O outrora valente cavaleiro, o homem a quem o rei honrava, foi então ignominiosamente arrastado por um obstáculo para a igreja de St. Giles-in-the-Fields, e ali sofreu uma dupla execução. Ele foi suspenso em uma forca sobre fogo lento e depois queimado até a morte. Muitas pessoas de posição e distinção estavam presentes. Antes de sua execução, ele caiu de joelhos e implorou a Deus perdão por seus inimigos. Ele então se dirigiu à multidão, exortando-os a seguirem as instruções que Deus lhes havia dado em Sua santa Palavra e a rejeitarem aqueles falsos mestres, cujas vidas e conversações eram tão contrárias a Cristo e a Seu exemplo. Ele recusou os serviços religiosos finais de um padre: "Só a Deus, agora como sempre presente, confesso e imploro o perdão d’Ele", foi a sua resposta imediata. O povo chorou e orou com ele e por ele. Em vão os sacerdotes afirmavam que ele estava sofrendo como herege e como inimigo de Deus. As pessoas acreditaram nele. Suas últimas palavras, abafadas pelo crepitar das chamas, foram "Louvado seja Deus"; e, em sua carruagem de fogo, rodeado pelos anjos de Deus, ele se juntou ao nobre exército de mártires.

Quão doce é a canção da vitória

Que acaba com o rugido da batalha;

E doce o descanso do guerreiro cansado

Quando todas as suas labutas terminarem.

As prisões de Londres nesta época estavam cheias de wycliffitas, aguardando a vingança do clero perseguidor. “Eles deveriam ser enforcados por conta do Rei e queimados por conta de Deus”, era o clamor dos falsos sacerdotes de Roma. Dessa época até a Reforma, seus sofrimentos foram severos. Aqueles que escaparam da prisão e da morte foram obrigados a realizar suas reuniões religiosas em segredo. Mas a influência papal diminuiu gradualmente e preparou o caminho para a Reforma no século seguinte.

Henry Chichele, que sucedeu a Arundel como arcebispo de Cantuária, não apenas seguiu seus passos, como também o superou em suas guerras de extermínio contra os lolardos. Ele é chamado por Milner de "o incendiário de sua época". Ele incitou Henrique em sua disputa com a França, o que causou uma enorme perda de vidas humanas e as mais terríveis misérias para ambos os reinos. Arundel parece ter morrido pelas mãos do Senhor. Logo depois de ler a sentença de morte de Lorde Cobham, ele foi atacado por uma doença na garganta, da qual morreu. Mas aqui nós os deixamos e seguimos o Espírito de Deus que estava também trabalhando em outras terras e preparando o caminho para uma gloriosa Reforma na Europa.*

{* D'Aubigné, vol. 5 p. 147; Milner, vol. 3, pág. 242, Milman, vol. 6, página 154; Acts and Monuments, de Fox.}

O Julgamento de Lorde Cobham

As vítimas sob este novo surto de perseguição eram de todas as classes; mas o mais distinto por caráter e posição foi Sir John Oldcastle, que, pelo direito hereditário de sua esposa, sentou-se no parlamento como Lorde Cobham. Ele é conhecido como um cavaleiro da mais alta reputação militar e que serviu com grande distinção nas guerras francesas. Todo o ardor de sua alma estava agora lançado em sua religião. Ele era um wycliffita -- um crente na palavra de Deus, um leitor dos livros de Wycliffe e um violento opositor do papado. Ele havia feito várias cópias dos escritos do reformador e encorajado os padres pobres a distribuí-los e a pregar o evangelho por todo o país. E enquanto Henrique IV viveu, não foi molestado: o rei não permitiria que o clero colocasse as mãos em seu antigo favorito. Mas o jovem rei Henrique V não tinha o mesmo apreço por Sir John, embora soubesse algo sobre seu valor como soldado valente e general habilidoso, e desejasse salvá-lo.

O primaz Arundel observava de perto os movimentos de seu antagonista, e resolveu esmagá-lo. Ele foi acusado de ter muitas opiniões heréticas e, com base nesses crimes, foi denunciado ao rei. Ele foi convocado a comparecer e responder perante Henrique. Cobham alegou a mais submissa lealdade. "Eu estou muito pronto e disposto a obedecer: és um rei cristão, o ministro de Deus que não empunha a espada em vão, para o castigo dos malfeitores e a recompensa dos justos. A ti, sob a autoridade de Deus, eu devo toda a minha obediência. Tudo o que me ordenares em nome do Senhor estou pronto para cumprir. Ao papa não devo obediência nem serviço, ele é o grande anticristo, o filho da perdição, a abominação da desolação no lugar sagrado." Henrique afastou a mão de Cobham enquanto apresentava sua confissão de fé: "Não vou receber este documento: apresentem-no aos seus juízes." Cobham retirou-se para seu forte castelo de Cowling, perto de Rochester. Ele tratou com total desprezo as convocações e excomunhões do arcebispo. O rei foi influenciado a enviar um de seus oficiais para prendê-lo. A lealdade do velho barão reverenciou o oficial real. Se fosse qualquer um dos agentes do papa, ele teria resolvido a questão com sua espada, de acordo com o espírito militar da época, ao invés de ter obedecido. Ele foi levado para a Torre: uma viagem de mau agouro para quase todos os que já passaram por ali!

O tribunal eclesiástico, tal como foi com John Badby, estava sentado na Catedral de São Paulo. O prisioneiro apareceu. "Devemos acreditar", disse Arundel, "no que a santa igreja de Roma ensina, sem exigir a autoridade de Cristo." Ele foi chamado a confessar seus erros. "Acredite!" gritaram os padres, "acredite!" "Estou disposto a acreditar em tudo o que Deus deseja", disse Sir John; "Mas que o papa deve ter autoridade para ensinar o que é contrário às Escrituras, nisto eu nunca vou acreditar." Ele foi levado de volta à Torre. Dois dias depois, foi julgado novamente no convento dominicano. Uma multidão de padres, cônegos, frades, escrivães e vendedores de indulgências lotou o grande salão do convento e atacou o prisioneiro com linguagem abusiva. A indignação reprimida do velho veterano finalmente explodiu em uma denúncia profética e selvagem contra o papa e os prelados. "Vossa riqueza é o veneno da igreja", gritou ele em alta voz. "O que você quer dizer", disse Arundel, "com veneno?" "Vossos bens e vossos senhorios... Considerai isto, todos os homens. Cristo era manso e misericordioso; o papa é altivo e um tirano. Roma é o ninho do anticristo; desse ninho saem seus discípulos." Ele foi então considerado herege e condenado.

Retomando sua calma coragem, ele caiu de joelhos e, erguendo as mãos ao céu, exclamou: "Eu te confesso, ó Deus! E reconheço que em minha frágil juventude eu Te ofendi seriamente com meu orgulho, raiva, intemperança e impureza: por essas ofensas eu imploro Tua misericórdia!" Com uma linguagem branda, mas com um propósito severo e inflexível, o astuto padre se esforçou para reduzir o espírito elevado do barão, mas em vão. "Eu não vou acreditar de outra forma além da que eu já vos disse. Fazei comigo o que quiserdes. Por quebrar os mandamentos de Deus, o homem nunca me amaldiçoou, mas por quebrar vossas tradições eu e outros somos assim cruelmente tratados." Ele foi lembrado de que o dia estava terminando, e que ele deveria se submeter à igreja ou a lei deveria seguir seu curso. "Não peço a vossa absolvição: a única coisa que preciso é de Deus", disse o honesto cavaleiro, com o rosto ainda encharcado de lágrimas. A sentença de morte foi então lida por Arundel com uma voz clara e alta, todos os sacerdotes e pessoas de pé com suas cabeças descobertas. "Está bem", respondeu o intrépido Cobham, "embora condenais meu corpo, não tendes poder sobre minha alma." Ele novamente se ajoelhou e orou por seus inimigos. Ele foi conduzido de volta à Torre; mas antes do dia marcado para sua execução ele escapou.

Rumores de conspirações, de um levante geral dos lolardos, agora circulavam pelos padres e frades. O rei ficou alarmado; cerca de quarenta pessoas foram imediatamente julgadas e executadas; uma nova e violenta lei foi aprovada para a supressão dos lolardos; o governo temia que um homem como Cobham liderasse a insurreição; mil marcos foram oferecidos por sua prisão. Não parece que tenha havido qualquer fundamento para esses alarmes, exceto as mentiras dos padres -- seus falsos rumores. Por cerca de três anos, Lorde Cobham esteve escondido no País de Gales. Ele foi trazido de volta em dezembro de 1417 e sofreu sem demora.

As Constituições de Arundel

Encorajado pelo semblante real, o clero redigiu as conhecidas Constituições de Arundel, que proibiam a leitura da Bíblia e dos livros de Wycliffe, afirmando que o caráter do papa não era meramente "de um homem puro, mas do verdadeiro Deus, aqui na Terra." A perseguição então se enraivecia na Inglaterra; uma prisão no palácio arquiepiscopal de Lambeth, que recebeu o nome de torre dos lolardos, estava lotada com os seguidores de Wycliffe. Mas havia também um prisioneiro nos recintos reais, assim como na torre dos lolardos. A morte, a mensageira do juízo divino para os não perdoados, havia chegado. No ano de 1413, Henrique IV morreu. “Como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo”. Essas duas nuvens negras e pesadas -- morte e juízo -- estavam então prontas para explodir em toda a sua fúria na alma desprotegida do monarca perseguidor. Seus últimos anos foram obscurecidos por uma doença repulsiva -- erupções em seu rosto. Mas oh! qual deve ser o seu futuro! Escurecido não apenas por uma doença temporal, que a misericórdia divina restringe dentro de certos limites, mas com a vingança total da desgraça eterna; e escureceu e se aprofundou ainda mais pelas sombras assustadoras das pilhas em chamas em Smithfield. Ó morte, ó julgamento, ó eternidade, grande, terrível e certa! Como é, por que é, que o homem, em cuja própria natureza esta verdade solene está profundamente plantada, seja tão esquecido e indiferente?

Uma coisa é certa com respeito ao juízo e retribuição futuros, que, mesmo onde tais doutrinas não sejam expressamente negadas, elas não ocupam o púlpito e a imprensa da mesma forma com que ocupam o Novo Testamento. Há uma aversão muito geral a pressionar, à maneira simples das escrituras, esses assuntos tão terríveis. Ainda assim, não se pode negar que os discursos de nosso bendito Senhor -- cuja missão era o amor, a mais terna compaixão, a mais rica graça -- estão repletos das mais solenes declarações sobre o julgamento futuro. Alguns podem dizer que o medo do castigo é um motivo comparativamente baixo: pode ser que seja, mas quantos há que têm almas imortais, e cuja inteligência é tal que não são elevados acima de tais motivos! Deus é mais sábio do que o homem, e assim encontramos, juntamente às mais completas revelações do amor divino e às mais livres proclamações de salvação, também as mais solenes advertências. Ouça um que diz: "Beijai o Filho, para que se não ire, e pereçais no caminho, quando em breve se acender a sua ira; bem-aventurados todos aqueles que nele confiam" (Salmos 2:12; Mateus 11:20-30).

Retornemos agora à nossa história.

A testemunha da execução de John Badby estava agora no trono sob o título de Henrique V. Mas é de se temer que os triunfos da graça divina naquele simples artesão não tenham causado impressão salutar em sua mente. Poucos príncipes tiveram pior caráter antes de chegar ao trono, e esperava-se que, por não ter religião, não fosse escravo da hierarquia. Mas com isso os lolardos ficaram novamente amargamente desapontados. Quando se tornou rei, ele se tornou religioso de acordo com as ideias da época; e resolveu sinalizar sua ortodoxia suprimindo a heresia. Thomas Netter, um carmelita, um dos mais ferrenhos oponentes do wycliffismo, era seu confessor. Sob sua influência, as leis contra os hereges foram então rigorosamente executadas.

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