domingo, 27 de setembro de 2020

As Perseguições Valdenses

No ano de 1380, um monge inquisidor chamado Francisco Borelli foi nomeado por Clemente VII para procurar os hereges nos vales do Piemonte. Armadas com esta bula papal, as comunas de Fraissinières e Argentière foram saqueadas em busca de hereges. No espaço de treze anos, cento e cinquenta valdenses foram queimados em Grenoble, e oitenta em torno de Fraissinières. Havia agora um motivo duplo para a perseguição: uma lei foi feita para que metade dos bens dos condenados fossem para o tribunal dos inquisidores e a outra metade para seus senhores seculares. Assim, a avareza, a malícia e a superstição foram unidas contra os inofensivos camponeses. Mas essas queimadas foram muito poucas e distantes entre si para satisfazer a sede de Roma pelo sangue dos santos de Deus.

No inverno de 1400, o massacre estendeu-se de Delfinado até o vale italiano de Pragela. Os pobres, vendo suas cavernas nas montanhas possuídas por seus inimigos, fugiram pelos Alpes. Mas a severidade da estação e o tempo frio das altas altitudes foram fatais para quase todos os que escaparam das mãos da matança. Muitas mães carregavam seus filhos e conduziam pela mão as crianças que já andavam. Mas o frio e a fome rapidamente trouxeram seu alívio. Diz-se que cento e oitenta bebês morreram nos braços de suas mães, e logo foram seguidos, com outras crianças, por suas mães com o coração partido. Nenhuma estimativa pode ser feita do número que pereceu pelas tiranias e crueldades de Roma. Mas o céu não adivinha seu número, nem mesmo seus nomes. Os pais e filhos martirizados têm seu registro e recompensa eterna nos céus, enquanto seus perseguidores tiveram tempo para avaliar sua culpa e sentir sua punição nestes últimos séculos, no lugar de uma desgraça sem esperança. Em alusão a tais cenas, o mais nobre de nossos poetas compôs o seguinte soneto:

"Vinga, ó Senhor, teus santos massacrados, cujos ossos

Jazem espalhados no frio das montanhas alpinas;

Mesmo aqueles que mantiveram a Tua verdade tão pura no passado,

Quando todos os nossos pais adoravam troncos e pedras,

Não te esqueças; em Teu livro registra seus gemidos,

Quem eram as Tuas ovelhas, e em seu antigo redil,

Mortos pelo sangrento piemontês, que rolou

Mãe com filho para as rochas abaixo. Seus gemidos

Os vales redobraram para as colinas, e eles

Ao céu. Seu sangue martirizado e cinzas semeiam

Sobre todos os campos italianos, onde ainda prevalece

O triplo tirano; que destes possa crescer

Centenas, que, tendo aprendido o Teu caminho,

Logo possam fugir da desgraça babilônica." – MILTON (Tradução livre)

Os fogos da perseguição foram novamente acesos no vale de Fraissinières, no ano de 1460, por um monge da ordem dos Frades Menores, armado com a autoridade do Arcebispo de Embrun. Privados das relações sociais, expulsos de seus locais de culto, cercados de inimigos, eles não tinham recursos, nem refúgio, mas viviam em uma boa consciência para com o Deus vivo. Os inquisidores fizeram seu trabalho cruel.

Em Piemonte, o arcebispo de Turim trabalhou incessantemente para promover as perseguições aos valdenses. A acusação contra eles era que não faziam oferendas pelos mortos, não davam valor a missas e absolvições, e não tomavam o cuidado de redimir seus parentes das dores do purgatório. Mas os príncipes de Piemonte, que eram duques de Saboia, não estavam dispostos a perturbar seus súditos, de cuja lealdade, paz e diligência haviam recebido tão bons relatos. No entanto, todo método que a fraude e a calúnia poderiam inventar foi praticado contra eles. Os padres finalmente prevaleceram, e o poder civil permitiu que a hoste do dragão satisfizesse sua sede de sangue.

Por volta do ano de 1486, a memorável Bula de Inocêncio VIII deu poderes ilimitados a Alberto de Capitaneis, arquidiácono de Cremona, para levar o confisco e a morte para os vales “infectados”. Um exército de dezoito mil foi levantado e precipitado sobre os retiros nas montanhas dos valdenses. Levados ao desespero, e aproveitando as vantagens naturais de sua posição geográfica, eles se defenderam com bastões de madeira e bestas -- as mulheres e crianças rezando -- e transformaram em confusão essa grande força militar.

A casa de Saboia -- que foi estabelecida como autoridade suprema em Piemonte em meados do século XIII -- agiu de maneira branda e tolerante para com o povo banido; mas, é triste dizer, a mãe-regente, assim como foi com Teodora e Irene, durante a juventude de seu filho, foi a primeira a assinar um documento oficial para sua perseguição. Ela apelou às autoridades de Pinerolo para ajudar os inquisidores a obrigar os hereges a regressar ao seio da igreja – mostrando-se uma filha digna de sua mãe Jezabel! Mas não conseguiram que nenhum dos habitantes fosse forçado a retornar aos braços de Roma. A espada foi então lançada sobre eles; e logo os riachos dos vales ficaram tingidos com o sangue dos santos. Decretos subsequentes dos filhos foram mais tolerantes. Eles começaram a falar de seus súditos valdenses, não sob a detestável denominação de hereges, mas como religiosos, homens dos vales e vassalos fiéis, a quem eles reconheceram como súditos privilegiados por causa de antigas estipulações.

Até então, Roma havia falhado completamente em realizar seu objetivo cruel e demoníaco. Ela havia decidido exterminar esses obstinados oponentes do papado, mas fiéis testemunhas da verdade, e erradicar o nome deles dos vales. Mas, é maravilhoso dizer, nem as execuções individuais nem os massacres indiscriminados, nem a traição secreta nem a violência aberta puderam prevalecer para sua extinção. Mas Jezabel continuou tramando; e a tiara e a mitra geralmente mostraram-se fortes demais frente à coroa.

Os Valdenses

Nossa história naturalmente sempre remete à cruzada fatal contra os albigenses no século XIII. Essa região outrora bela, em alguns aspectos a província mais rica e civilizada do império espiritual de São Pedro, vimos ser despovoada e desolada. Os pacíficos habitantes ousaram questionar os dogmas do Vaticano e a autoridade do sacerdócio, o que era um pecado imperdoável contra a majestade de Roma. Os decretos de Inocêncio, a espada de Monforte, as fogueiras de Arnaldo, a traição de Fouquet e a Inquisição de Domingos fizeram seu terrível trabalho. Mas os poderes combinados da Europa, com fogo e espada e masmorras sufocantes, não conseguiram tocar a raiz do que Inocêncio chamou de heresia. O princípio divino e vital do Cristianismo estava muito, muito além de seu alcance. A espada pode cortar os galhos e o fogo pode consumi-los; mas a raiz viva está na verdade e graça de Deus, que nunca pode falhar. O espírito do Cristianismo é mais forte do que a espada do perseguidor, e o braço no qual a fé se apoia é mais poderoso do que as forças combinadas da terra e do inferno. A fraqueza do papado se manifestou em seus aparentes triunfos em Languedoque. Os hereges, como Jezabel pensava, foram afogados em sangue, mas um remanescente ensanguentado foi poupado, na boa providência de nosso Deus, para dar testemunho, em todas as partes da Europa, da injustiça, das crueldades e do despotismo espiritual da Roma papal.

Os exilados do sul da França que haviam escapado da espada foram até os limites extremos da Cristandade pregando as doutrinas da cruz e testemunhando, com santa indignação, contra as falsidades e corrupções da igreja dominante. Em diferentes partes da França, na Alemanha, Hungria e regiões vizinhas, os sectários apareceram em grande número, e os papas encontraram muitos dos reis pouco inclinados a se esforçarem pela supressão dos cátaros, como os chamavam, ou das várias seitas religiosas. Também é mais do que provável que muitos dos perseguidos nessa época procurassem um lugar para descansar nos vales tranquilos do Piemonte. A mais isolada dessas regiões parece ter sido um asilo seguro para as testemunhas de Deus até o século XIV. Embora conhecidos de Cláudio, bispo de Turim, no século IX, eles parecem ter escapado da notoriedade e do conflito até por volta do século XIII, se não mais tarde. Mas à medida que a escuridão do papado se adensava ao redor deles, o brilho do exemplo deles tornou-se mais visível e sentido. Calúnias foram inventadas e os piedosos valdenses foram taxados de cismáticos réprobos. Estavam espalhados pelos vales de ambos os lados dos Alpes Cócios -- Delfinado do lado francês e Piemonte do lado italiano das montanhas.

Desde tempos imemoriais, essas regiões alpinas foram habitadas por uma raça de cristãos que continuou a mesma de geração em geração, que nunca reconheceu a jurisdição do pontífice romano, e que passou através de todos os períodos da história eclesiástica como um ramo puro da igreja apostólica. Mas seus retiros pacíficos, seus lares felizes, sua adoração simples e seus hábitos industriais logo seriam invadidos e desolados pelos inquisidores romanos. A tragédia começa. Do século XV ao presente, sua história é uma narrativa de lutas sanguinárias pela existência, com poucos intervalos de repouso. Muitas vezes eram levados ao desespero, mas a igreja dos vales sobreviveu a tudo isso. Como o arbusto em chamas, queimou, mas não foi consumido. Sua fortaleza não era apenas as montanhas alpinas, mas a verdade do Deus vivo.

Reflexões Sobre os Escolásticos

É o bastante – sim, dizemos o bastante – sobre os doutores escolásticos e os filósofos em divindade para o nosso propósito atual. Percorrer vários e selecionar alguns como espécimes genuínos é um trabalho árido e cansativo. Mas eles constituem um certo elo na cadeia de eventos entre os séculos XII e XVI que tem sua importância; e o leitor verá o que significa o termo geral de "os escolásticos" nesse período de nossa história. Uma lição salutar que podemos aprender, pelo menos com os exemplos que temos diante de nós, é sobre a total escuridão e perplexidade da mente, por maior que seja o aprendizado e estudo, quando a Palavra de Deus, em sua divina simplicidade, não é conhecida nem crida. Um único texto, tal como "O justo viverá pela fé", quando usado por Deus nas mãos de Lutero, foi suficiente para limpar as trevas da Idade Média, enquanto os dezessete volumes in-fólio de Tomás de Aquino e todos os outros volumes de todos os grandes escolásticos apenas aprofundaram a escuridão da ignorância e perplexidade quanto ao conhecimento de Deus e o caminho da salvação. O maior desenvolvimento das faculdades naturais da mente humana não conduz nenhum pecador culpado à cruz de Cristo – ao precioso sangue que, somente ele, purifica de todo pecado. O inimigo das almas, aproveitando a crescente fama da filosofia aristotélica, seduziu os melhores dentre os doutores a acreditarem que a obra mais importante em que poderiam se dedicar era a reconciliação do ensino de Cristo com os decretos do filósofo grego, de forma que os estudiosos não pensassem mais deste último do que do primeiro. Tal era o trabalho miserável dos melhores escolásticos da época; mas sem dúvida muitas das mentes mais simples, que não foram cegadas pelas sutilezas da lógica, encontraram o caminho da verdade e da salvação em meio às trevas, embora muito perplexas e desnorteadas.

A igreja de Cristo mal era visível na Europa nessa época, com exceção das igrejas dos vales; ali a verdadeira luz continuou a arder, e milhares encontraram "o caminho mais excelente", apesar de toda a união dos poderes da Terra, tanto seculares como eclesiásticos, para extingui-la. Mas ali estava o verdadeiro edifício de Deus, e as portas do inferno nunca poderiam prevalecer contra as obras de Suas mãos. Agora nos voltamos para renovar nosso conhecimento sobre os valdenses e outros protestantes daquela época.

Os Teólogos

Roberto Grosseteste, um prelado inglês do século XII, ilustrará bem o que queremos dizer com teólogo e protestante, embora não seja, estritamente falando, um reformador. Como muitos outros em todas as épocas, seus pontos de vista sobre a reforma estendiam-se apenas à disciplina e administração da igreja, não ao desarraigamento e à demolição da coisa incuravelmente falsa, como ocorreu mais tarde no século XVI. Ele mantinha fortemente uma visão elevada do papado, embora fosse capaz de chamar alguns papas específicos de anticristos, por causa da imoralidade ou rebelião contra Cristo deles. Mas o caráter anticristão do sistema do papado ainda não era conhecido, e as grandes verdades fundamentais do Cristianismo apenas apreendidas indistintamente. Grosseteste nasceu em Stradbroke, em Suffolk, por volta do ano 1175. Depois de ter estudado em Oxford, foi para Paris, que estava na moda, pois a Universidade de Paris era a mais conhecida da Europa. Lá ele estudou grego e hebraico e dominou completamente a língua francesa. De acordo com as ideias da época, ele era considerado um teólogo e filósofo realizado.

No ano de 1235, quando tinha sessenta anos de idade, tornou-se bispo de Lincoln, e trabalhou com um zelo e seriedade quase intolerante pela reforma de sua diocese, que era uma das maiores da Inglaterra. Diz-se que ele se ocupou bastante no estudo das Sagradas Escrituras em suas línguas originais e possuía autoridade soberana no conhecimento delas. Foi um grande avanço em relação ao passado e na direção certa; ainda assim, havia inconsistências gritantes quando agora as contemplamos. A princípio ele ficou muito cativado pelas novas ordens -- os dominicanos e os franciscanos -- por causa de sua aparente santidade; mas viveu para descobrir a hipocrisia deles e denunciá-los como enganadores da humanidade. A verdadeira reforma denunciava a existência, não meramente os abusos, de ordens que se opunham totalmente à Palavra de Deus. Ao mesmo tempo, ele era um homem ousado, piedoso e enérgico. Ele ergueu sua voz contra a suposição blasfema de Inocêncio III quando ele se proclamou o vigário, não apenas de São Pedro, mas de Deus. "Seguir um papa", disse ele, "que se rebela contra a vontade de Cristo é separar-se de Cristo e de Seu corpo; e se algum dia chegar o tempo em que todos os homens seguirem um pontífice errante, então haverá a grande apostasia." A ganância agressiva da corte romana, o abuso de indulgências, e a concessão de patrocínio a pessoas indignas, estavam entre os males contra os quais ele lutou. Um bispo tão ativo, tão zeloso e tão destemido certamente criaria muitos inimigos. Ele foi acusado de magia por seus contemporâneos e de ousada presunção pelo papa. Ele por pouco escapou do martírio. Por meio da terna misericórdia do Senhor e de Seu cuidado pelo Seu servo, ele morreu em paz, no ano de 1253.*

{* Milner, vol. 3, pág. 188. J.C. Robertson, vol. 3, pág. 431. D'Aubigné, vol. 1, pág. 99.}

Roger Bacon, um homem de gênio e discernimento superior, que tinha uma percepção clara do estado de coisas, tanto nas escolas quanto na igreja, merece uma breve observação, embora não haja muitas evidências de sua genuína piedade e amor pela verdade do evangelho. Diz-se que ele foi o maior dos filósofos ingleses antes da época de seu célebre homônimo. Por volta do ano de 1214, ele nasceu perto de Ilchester, em Somersetshire.

Depois de estudar em Oxford e Paris, ele se tornou um frade franciscano aos 34 anos. Seu conhecimento de ciências físicas -- astronomia, ótica, mecânica, química -- bem como de erudição grega e oriental, o expôs à popular, porém perigosa, reputação de mágico. Suas pesquisas colocaram-no imensamente à frente de seus superiores monásticos, que encontraram um refúgio conveniente para sua ignorância ao acusar o frade de lidar com magia. Ele foi muito perseguido e passou muitos anos confinado em uma masmorra asquerosa.

Embora ele falasse com grande respeito das Sagradas Escrituras, ele estranhamente lutava por uma aliança entre a filosofia e o Cristianismo, entra a razão e a fé. Ele denunciava o sofisma do ensino que estava na moda em seu tempo e reclamava que as línguas originais do Antigo e do Novo Testamento eram negligenciadas; que as crianças obtinham conhecimento sobre as Escrituras, não da própria Bíblia, mas sim de resumos versificados; que as palestras sobre as "Sentenças" eram preferidas às palestras sobre as Escrituras. Desta forma, ele expôs a ignorância, a superstição e a ociosidade das ordens religiosas, e assim trouxe sobre si a acusação de heresia e as censuras da igreja, embora ele tenha vivido e morrido como um verdadeiro católico romano, provavelmente por volta do ano de 1292. Sua última obra foi um compêndio de teologia.

Tomás de Aquino, o "doutor angélico", foi o mais renomado dos escolásticos do século XIII e o tipo mais verdadeiro de teólogo. Ele era descendente de uma família ilustre e nasceu nos arredores de Nápoles por volta do ano de 1225. Entrou muito jovem na ordem dominicana, contra a vontade de seus parentes mais próximos, e estudou em Colônia e Paris. Em 1257 foi professor de teologia em Paris, mas morreu com a idade de cinquenta anos e foi canonizado pelo papa. Quando seus escritos coletados foram publicados em Roma, no ano de 1570, eles se ampliaram para dezessete volumes in-fólio.

Os doutores eclesiásticos de nossos dias nos dizem -- pois não estamos familiarizados com os escritos de tais autores -- que entre as mais conhecidas de suas obras estão a "Suma Teológica", um comentário sobre os quatro Evangelhos e outros livros do Antigo e do Novo Testamento; um elaborado comentário sobre as "Sentenças" de Pedro Lombardo, o grande livro didático das escolas; suas exposições de Aristóteles; e um tratado em favor da fé católica e contra a igreja ortodoxa grega. Mas não obstante a grandeza de sua erudição e o número de seus livros, é de se temer que ele fosse um estranho à doutrina salvadora da justificação somente pela fé, sem as obras da lei; entretanto, quando em seu leito de morte, ele mostrou grandes sinais de piedade, semelhantes aos de Agostinho. Que possamos ter esperança de que ele pertencia ao remanescente salvo dos escolásticos daqueles dias. Regozijamo-nos com a convicção de que haverá um remanescente salvo no céu vindo de todas as classes -- imperadores, reis, papas e filósofos -- que manifestará a soberania e o poder da graça de Deus em todos os tempos e para todas as classes de homens. As riquezas e a glória da graça serão para o Seu louvor para todo o sempre.*

{*N. do T.: grifo do tradutor.}

Boaventura, natural da Toscana, entrou para a ordem dos franciscanos no ano de 1243, aos 21 anos. Concluiu os estudos em Paris, e com tanto sucesso que conquistou o título de "doutor seráfico". Ele morreu em 1274, como cardeal-bispo de Albano. Suas obras eram menos volumosas do que seu contemporâneo, Tomás de Aquino, e menos intelectuais, mas mais devocionais. "Suas obras", diz-se, "superam em utilidade todas as de sua época, quanto ao espírito do amor de Deus e da devoção cristã que fala nele, sendo profundo sem ser prolixo, sutil sem ser curioso, eloquente sem vaidade, ardente sem pompa; sua devoção é instrutiva e sua doutrina inspira devoção”. Ao ser questionado, em seu leito de morte, de quais livros ele havia tirado seu aprendizado, ele respondeu apontando para o crucifixo, e tinha o hábito de se referir às Escrituras em vez de a São Francisco, o fundador de sua ordem. Mas teremos de esperar um pouco mais antes de encontrarmos a importante doutrina da justificação por meio da fé simples no Senhor Jesus Cristo sendo ensinada pelos eruditos. Boaventura, como teólogo, representa os místicos. Ele pode ter sido o verdadeiro autor da "Imitação de Cristo", que dizem ter sido escrito nessa época por Tomás de Kempis. Mas nunca um livro foi tão mal intitulado. Começa com o “eu” e termina com o “eu”. As emoções internas da alma são o que absorve o místico. Esse é o cristianismo monástico. O amor de Cristo, por outro lado, é puramente altruísta: Ele deu Sua vida para salvar Seus inimigos. "Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores.” E a fé pode dizer: “o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim.” (Romanos 5; Gálatas 2)

Duns Escoto era um doutor de grande celebridade; mas seu local de nascimento e infância estão envoltos na obscuridade. Dean Waddington diz, sem dúvida: "Este doutor morreu no ano de 1308. Ele era natural de Dunse, na Escócia, e franciscano." Ele era um dialético e definiu o estilo de "doutor sutil". Ele ousadamente se aventurou a impugnar algumas das posições do grande São Tomás, o que deu origem a uma polêmica entre os dominicanos e os franciscanos que durou centenas de anos, e chamou a atenção de papas e concílios, tanto que até hoje ainda divide as escolas dos latinos. Os principais pontos de diferença teológica entre esses grandes doutores eram "a natureza da cooperação divina e a medida da graça divina necessária para a salvação de um homem", além do que é chamado de “imaculada conceição da Virgem Maria”. Os dominicanos afirmavam que a santa virgem não estava isenta da mancha do pecado original; os franciscanos apoiavam a concepção imaculada.*

{* Mosheim, cent. 4, cap. 3.}

Guilherme de Ockham, assim chamado em sua terra natal no condado de Surrey, estudou em Paris, com Duns Escoto, e se tornou um famoso doutor dos franciscanos. Segundo o costume das escolas, distinguia-se por títulos altivos, tal como o de "doutor singular e invencível". Mas ele era mais um metafísico do que um teólogo. Ele corajosamente atacou as pretensões papais em muitos pontos, mas especialmente quanto ao seu domínio secular e sua alegada "plenitude do poder". Ele negou a infalibilidade do papa e dos concílios gerais, e sustentou que o imperador não dependia do papa, mas que o imperador tem o direito de escolhê-lo. Essas opiniões antipapais logo se espalharam em todas as direções, e chegaram a todas as classes por meio dos frades mendicantes. Quando ameaçado com as mais altas censuras da igreja, ele encontrou um abrigo na corte de São Luís, que favorecia grandemente os franciscanos. "Defenda-me com sua espada", disse Guilherme ao rei, "e eu o defenderei com a Palavra de Deus." Ele morreu sob a sentença de excomunhão em Munique, em 1347. *

{* J.C. Robertson, vol. 4, pág. 77. Para relatos extensos de tais homens e seus escritos, consulte Knight's Biographical Dictionary.}

Os Homens da Literatura

Os principais dessa classe eram homens como Dante, Petrarca, Boccaccio e Chaucer. Logo após a fundação de faculdades e a grande revolta da mente humana, essas quatro “estrelas da literatura” surgiram quase simultaneamente. Aprouve a Deus, em Sua infinita sabedoria, usar os escritos desses homens, e de muitos outros, para expor os males do sistema romanista e para enfraquecer seu poder. E enquanto muitos de menor nota, e por crimes menores, sofreram cadeias, prisão e morte, foi permitido a esses escritores não apenas escapar da vingança da igreja, como também seguir seu próprio rumo. Suas atraentes produções literárias davam-lhes tamanho favor, em geral, que os padres temiam molestá-los. Assim, na providência de Deus, a até então semioculta corrupção da moral que prevalecia entre o clero, monges e todas as ordens do sistema, foi trazida à luz do dia; sob o véu de poemas populares, contos agradáveis ​​e sátiras, o estado corrupto de todo o sistema eclesiástico foi exposto. As paixões desenfreadas e as imoralidades descaradas da corte de Avignon, e os vícios do clero em geral, tornaram-se o principal tema de canções e gracejos em quase todos os países da Europa. Mas nem a poesia nem a prosa de tais escritores convêm ser repetidas nas páginas deste livro.

Dante, considerado o pai da poesia italiana e célebre principalmente por sua descrição imaginativa do purgatório, do inferno e do céu, morreu em 1321 d.C. Petrarca, que era alguns anos mais jovem, tinha uma reputação ainda maior pela prosa; menos se diz de Boccaccio, sendo seus escritos de caráter mais grosseiro. Chaucer é bem conhecido na Inglaterra como o autor de "Contos de Cantuária". Ele nasceu em 1328 e morreu em 1400. Mas não precisamos nos delongar mais sobre essa classe de pessoas, e nos voltaremos agora para os teólogos.

Os Verdadeiros Dignos da História Eclesiástica

Os verdadeiros pioneiros da Reforma e os verdadeiros dignos da história eclesiástica são difíceis de descobrir. Com humildade de espírito, e não buscando o louvor dos homens, eles caminharam perante o Senhor, silenciosamente fazendo Sua vontade. Suas ministrações empáticas, seus atos de caridade, seu desejo de conduzir almas ao Salvador, seus esforços para difundir o conhecimento de Sua palavra, são características da personalidade deles, porém pouco observadas pelos olhos do historiador. E quanto mais profunda a piedade deles, menos se sabe sobre eles. Mas eles têm sua recompensa; o registro sobre eles se encontra nas alturas. Multidões de santos de Deus durante a longa noite escura da Idade Média cumpriram assim sua missão e saíram de cena sem deixar vestígios de sua utilidade nos anais do tempo. Não é assim com o clérigo pomposo, o santo que faz maravilhas, o cardeal intrigante e voraz, as polêmicas barulhentas e toda a hoste de entusiastas orgulhosos e ambiciosos; as páginas dos historiadores são principalmente consagradas a eles. *

{* Waddington, vol. 3, pág. 363.}

Depois de um exame cuidadoso das personagens proeminentes que aparecem nas páginas da história desde o século XII até a Reforma, eles parecem se dividir em três classes distintas: 1. Homens da literatura; 2. Teólogos; 3. Reformadores, ou protestantes. Ao tomarmos nota desses em ordem, teremos diante de nós os precursores da Reforma.

As Primeiras Grandes Escolas de Erudição

O surgimento de escolas públicas ou academias no século XII e o aumento da atividade intelectual, sem dúvida, contribuíram muito para o enfraquecimento do papado e da aristocracia feudal. Isso abriu caminho para o surgimento e o estabelecimento do terceiro estado no reino -- as classes médias -- e para o empreendimento comercial. O iluminismo e as liberdades da Europa avançaram continuamente a partir desse período. Escolas foram erguidas em quase todos os lugares, a sede de conhecimento aumentou. "Os reis e príncipes da Europa, vendo as vantagens que uma nação pode tirar do cultivo da literatura e das artes úteis, convidaram homens eruditos para seus territórios, estimularam o gosto pela informação e recompensaram-nos com honras e emolumentos." Mas com tal aumento da atividade mental, muitas doutrinas e opiniões loucas e perigosas foram ensinadas. A teologia escolástica, a filosofia aristotélica e o direito civil e sagrado tiveram seu lugar e reputação. Foi por volta dessa época, meados do século XII, que as grandes universidades de Oxford, Cambridge e Paris foram fundadas, além de muitas outras no continente. Grego e hebraico foram estudados e palestras dadas na forma de exposições e comentários sobre as Sagradas Escrituras, que o Senhor poderia usar para abençoar os estudantes e, por meio deles, a outros.

“Para impor alguma restrição”, diz Waddington, “a essa grande licenciosidade intelectual -- para reavivar algum respeito pelas autoridades antigas -- para erguer alguma barreira, ou pelo menos algum marco, para a orientação de seus contemporâneos, Pedro Lombardo publicou seu célebre ‘Livro das Sentenças’”. Tendo estudado por algum tempo na famosa escola de Bolonha, ele seguiu para Paris com o propósito de prosseguir seus estudos em divindade. O Livro das Sentenças é uma coleção de passagens dos Pais apostólicos, especialmente de Santo Hilário, Santo Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho -- uma triste mistura, sem dúvida, de verdade e erro; mas o Senhor estava acima de tudo e poderia usar sua própria Palavra, embora misturada com sutilezas da moda, para a conversão e bênção das almas. Por muito tempo, isso manteve uma indiscutível supremacia nas escolas de teologia, e seu autor foi elevado a grandes honras.

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