domingo, 18 de setembro de 2022

A Situação da Igreja no Início do Século XVI

Tal, como descrevemos na seção anterior, era o poder ilimitado do sacerdócio romano no início deste século. Nenhum homem era independente do padre. Ele era o senhor da consciência humana. Seu poder era absoluto tanto sobre o corpo quanto sobre a alma, sobre o tempo e a eternidade. Ninguém podia se dar ao luxo de incorrer em seu desagrado ou de cair sob sua censura. A excomunhão separava o homem, qualquer que fosse sua classe ou posição, da igreja, além de cujas fronteiras não havia possibilidade de salvação. 

Não é pouco notável que até este ponto em que estamos estudando a História da Igreja nenhum perigo parecia ameaçar esse sistema monstruoso e imponente de iniquidade. Do Vaticano até a menor congregação, a soberania e a tranquilidade da Igreja pareciam estar completamente asseguradas. As várias heresias e comoções que a perturbaram durante séculos foram suprimidas a fogo e espada, as queixas e petições de seus filhos mais fiéis foram rejeitadas com impunidade insolente; e as advertências de seus amigos mais sinceros foram negligenciadas ou desprezadas. Onde estavam agora os valdenses, os albigenses, os begardos, os lolardos, os boêmios e os vários sectários? Eles foram silenciados ou extintos pela administração papal. É verdade que houve muitos murmúrios particulares contra a injustiça, as fraudes, a violência e a tirania da corte de Roma; também contra os crimes, ignorância e licenciosidade de todo o seu sacerdócio; mas os pontífices se acostumaram a esses murmúrios e podiam ou conciliar com seus favores ou desafiar com suas censuras, conforme melhor convinha à sua política. 

Podemos imaginar a falsa mulher, segundo a linguagem do Apóstolo João, examinando com exultação os pilares e baluartes de sua força. "Estou assentada como rainha, e não sou viúva, e não verei o pranto." Ela não deu atenção à voz que havia dito: "Porque já os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela". (Ap 18:7,5

O tempo de Deus havia chegado para pelo menos um cumprimento parcial desta profecia. O mandado de prisão foi proclamado. Justo quando pensava que tudo estava seguro e resolvido para sempre, o fim de sua dominação descontrolada estava próximo. Mas como isso ocorreria? Uma reforma da igreja em sua cabeça e membros havia sido o clamor geral por eras; mas todas essas exigências e reclamações ela desafiava. O que agora deveria ser feito? Será que algum anjo poderoso deveria descer do céu para derrubar o despotismo de Roma e quebrar o jugo do papado que há tanto tempo prendeu em grilhões os corpos e almas dos homens? Não! Tais meios não foram necessários e não foram utilizados, para que Deus seja glorificado. Naquilo que os soberanos mais poderosos com suas legiões armadas falharam completamente, Deus realizou plena e gloriosamente por meio de um desconhecido monge na Saxônia, sozinho. 

Este foi Martinho Lutero de Eisleben. Ele foi a voz de Deus que despertou a Europa para esta grande obra e chamou os trabalhadores para o campo. Mas se quisermos formar uma estimativa justa do principal instrumento de Deus nesta obra poderosa, e da graça que o qualificou, devemos olhar para o que é importante no início da vida do grande reformador. D'Aubigné, em seu amor por Lutero, fala dele como tendo experimentado em sua própria alma as diferentes fases da Reforma antes de serem realizadas no mundo, e exorta seu leitor a estudar sua vida antes de prosseguir para os eventos que mudaram o rosto da Cristandade. 

O Papado e a Humanidade

Comparativamente, poucos em nossos tempos de paz têm alguma ideia da verdadeira natureza e uma compreensão abrangente do papado. Durante o longo período da Idade Média, desenvolveu-se plenamente; mas sua natureza permanece inalterada até a presente hora. Os tempos e as circunstâncias mudaram, mas não o papado. O clero, incluindo os monges e frades, era uma classe distinta e estava inteiramente à parte do resto da humanidade. Uma linha ampla, profunda e intransponível separava as duas comunidades – o clero e os leigos. As vidas, as leis, a propriedade, os direitos e os deveres sociais de um não eram apenas diferentes dos do outro, mas muitas vezes antagônicos. 

A educação, tal como era, tornara-se privilégio exclusivo do clero. Quem tivesse qualquer desejo de conhecimento, não poderia obtê-lo nem o empregar senão em conexão com o clérigo ou o mosteiro. Os filhos mais novos da nobreza, e até mesmo da realeza, à medida que a igreja se tornava rica e poderosa, juntavam-se à comunidade clerical. Por este meio, os nomes mais famosos da terra foram encontrados entre o clero, e a Igreja e o Estado foram assim unidos. As universidades, as escolas, todos os domínios do intelecto humano, estavam em seu poder. A outra grande divisão da humanidade – os leigos – eram mantidos em total escuridão e ignorância. E ai do homem que se aventurasse a apontar um novo caminho para a inteligência, a liberdade e o poder. O mais leve vislumbre de luz era instantaneamente extinto, e a descoberta era denunciada como mágica e proibida. 

Só os padres podiam ler, escrever, redigir documentos do Estado ou tratados, e elaborar leis. Pela sacralidade de seu caráter e sua superioridade intelectual, eram admitidos nas cortes e nos conselhos dos reis, eram os negociadores e os embaixadores dos soberanos. Mas os segredos e pactos reais não eram tudo o que eles conheciam: o confessionário abria todo o coração de cada um, do mais alto ao mais baixo, diante dos olhos do sacerdócio. Nenhum ato estava além de seu conhecimento, quase nenhum pensamento ou intenção era secreto. Poderia haver murmúrios abafados sobre a avareza, orgulho e licenciosidade do padre, mas ainda assim ele era um padre, um bispo, um papa; seus sacramentos não perdiam sua eficácia, seu veredicto de condenação ou absolvição continuava igualmente válido. Aqueles que duvidavam abertamente do poder do clero em tais assuntos eram hereges, párias, proscritos, apenas combustível adequado para as chamas agora e sempre. 

O papa, como se acreditava universalmente, combinava em sua própria pessoa todos os atributos do poder supremo em matéria de religião e de governo. O poder dos imperadores e reis era derivado, o seu era original. Ele estava armado com autoridade divina para depor monarcas, para absolver os súditos de sua lealdade e de qualquer outra obrigação; e, se necessário, dissolver todos os laços da sociedade. Mas, acima de tudo, ele era autorizado a manter a integridade da fé transmitida a ele por seus predecessores ou definida por ele mesmo como chefe da igreja, para reprimir a dissidência em todas as formas; perseguir até o extermínio todos os que ousassem disputar essa suprema prerrogativa, como rebeldes e traidores de Deus e de Sua igreja; e, a qualquer momento, apelar ao governo secular, sem compensação, para esbanjar vida e dinheiro, trabalho e sentimento, para capacitá-lo a manter a integridade de seu “império espiritual”.* 

 {*Survey, Latin Christianity, de Milman, vol. 6, pág. 357; Resumo de Greenwood, livro 14, cap. 1.} 

A Reforma na Alemanha

O domínio exclusivo da igreja latina (ou católica romana) estava chegando ao fim. Desde o pontificado de Gregório, o Grande, isto é, por quase mil anos, ela reinara suprema. Mas o teutão oprimido agora levantava o braço da rebelião contra a tirania do romano. A guerra terminou com uma grande secessão dos teutões, arrancando do papado uma grande parte de seus domínios, e com a Cristandade partindo-se em pedaços, como o navio em que Paulo navegou para Roma.

Foi nosso desejo apresentar ao leitor uma visão justa do verdadeiro caráter e dos caminhos da igreja de Roma durante o longo período de seu domínio, para que julgue por si mesmo se a história está de acordo com a interpretação que demos da epístola a Tiatira*. Nossas próprias convicções são agora mil vezes mais profundas no final do que eram no início da história, de que demos uma interpretação verdadeira e fizemos uma aplicação justa das palavras do Senhor à igreja em Tiatira. Temos apenas Ele para servir e Ele para agradar ao escrever esta história. Pois por ninguém mais teríamos perscrutado tantos fatos que ocorreram durante esses mil anos. A quantidade do que escrevemos não chega nem perto da quantidade do que deve ser lido para ficarmos satisfeitos quanto à confiabilidade do que está escrito. Além disso, grande parte da história papal é totalmente imprópria para nossas páginas, ou para chegar aos olhos de pessoas civilizadas, muito menos aos olhos do cristão. É melhor deixar seus adultérios e abominações na página que foi escrita em uma época mais rude, pois certamente serão consignados a um lugar peculiarmente escuro nas regiões do inferno.


Por quase trezentos anos, por meio de escolas, novas traduções, versões, prensas e a intolerância da igreja, o Senhor vinha preparando o caminho para o cumprimento de Seu propósito; e, feito isso, o instrumento mais débil foi suficiente para colocar todas essas frentes em plena ação. "Quando o trem é colocado corretamente nos trilhos, uma faísca acidental pode fazer a locomotiva andar." Efetuar grandes resultados por pequenos meios é o caminho da providência divina, para que o poder seja visto como sendo de Deus, e não do homem. Uma ocasião foi fornecida, e Lutero foi o instrumento preparado para colher a gloriosa colheita da grande Reforma. Mas muito trabalho foi feito no campo por muitos corações e mãos nobres que não tiveram o privilégio de colher seus frutos, pelo menos neste mundo. Estes podem ter sido os agentes, mas Lutero foi o instrumento.

Durante esses mil anos, estivemos principalmente envolvidos com o papado e as testemunhas de Cristo; agora veremos o papado e o protestantismo. Mas para que o leitor entenda corretamente a diferença entre os dois, consideraremos cuidadosamente o que era o papado à época do aparecimento de Lutero.

domingo, 22 de novembro de 2020

Erasmo de Roterdã

Erasmo, que era cerca de doze anos mais novo que Reuchlin, seguiu a mesma linha de estudo, mas com poder ainda mais elevado e maior celebridade. De cerca de 1500 a 1518, quando Lutero se destacou, Erasmo foi a pessoa literária mais ilustre da Cristandade. Ele nasceu em Roterdã em 1465; ficou órfão aos treze anos; foi roubado por seus tutores, que, para encobrir sua desonestidade, o persuadiram a entrar em um mosteiro. Em 1492, ele foi ordenado sacerdote, mas sempre nutriu grande antipatia pela vida monástica e abraçou a primeira oportunidade de recuperar sua liberdade. Depois de deixar o convento agostiniano em Stein, ele foi buscar seus estudos favoritos na Universidade de Paris.

Com o mais infatigável esforço, dedicou-se inteiramente à literatura e logo adquiriu grande reputação entre os eruditos. A sociedade do estudante pobre era cortejada pelos variados talentos da época. O Lorde Mountjoy, a quem conheceu como aluno em Paris, convidou-o para ir à Inglaterra. Sua primeira visita a esse país, em 1498, foi seguida por várias outras, até o ano de 1515, durante a qual ele conheceu muitos homens eminentes, recebeu muitas honras, formou algumas amizades calorosas e passou a maior parte de seus dias mais brilhantes. Ele residiu em ambas as universidades do país (Oxford e Cambridge), e, durante sua terceira e mais longa visita, foi professor de grego em Cambridge. Todos reconheceram sua supremacia no mundo das letras e por muito tempo ele reinou sem rival. Mas nosso objetivo no momento é antes indagar: "Qual foi sua influência na Reforma?"

Sob a mão graciosa e orientadora d’Aquele que vê o fim desde o início, Erasmo dedicou todas as suas grandes faculdades mentais e todos os seus estudos laboriosos à preparação de uma edição crítica do Novo Testamento grego. Esta obra apareceu na Basileia em 1516, um ano antes da Reforma, acompanhada de uma tradução latina, que corrigia os erros da Vulgata. Este era um trabalho ousado naquela época. Houve um grande clamor vindo de muitos quadrantes contra essa novidade perigosa. "Seu Novo Testamento foi atacado", diz Robertson; "Por que deveria a língua dos gregos cismáticos interferir com o latim sagrado e tradicional? Como poderia ser feito algum aprimoramento na tradução da Vulgata? Havia uma faculdade em Cambridge, especialmente orgulhosa de seu caráter teológico, que não admitiria uma cópia disso dentro de seus portões. Mas o editor conseguiu proteger-se sob o nome do Papa Leão, que aceitara a dedicação do volume."

Questionar a fidelidade da Vulgata era um crime da maior magnitude aos olhos da Igreja Católica Romana. A Vulgata não podia mais ser de autoridade exclusiva absoluta; o grego era seu superior não apenas na antiguidade, mas ainda mais como o texto original. Nesta época, Erasmo estava à frente dos estudiosos e homens de letras. Ele foi patrocinado pelo papa, por muitos prelados e pelos principais príncipes da Europa. Protegido por trás de um escudo tão amplo, ele estava perfeitamente seguro e, sabendo disso, continuou destemidamente com sua grande obra.*

{* Embora o Novo Testamento grego de Erasmo, publicado na Basileia em 1516, tenha sido a primeira edição em que o texto original das Sagradas Escrituras foi dado ao mundo erudito, não foi o primeiro, nem em projeto nem em impressão. O Novo Testamento Complutense foi concluído em janeiro de 1514; mas como aguardava a conclusão da Bíblia e a licença do papa, não foi publicado até 1522. Foi assim que a edição de Erasmo apareceu seis anos antes do Complutense, embora impressa dois anos depois.

Esta foi a primeira Bíblia Poliglota, e desde então conhecida como Complutense; seguiram-se os poliglotas de Paris e Londres. Esta grande obra parece ter sido concepção original do célebre cardeal Cisneros, de Toledo, e executada às suas custas. Com esse objetivo, ele havia colecionado manuscritos, empregado vários estudiosos como editores e importado tipógrafos da Alemanha. Afirma-se que o gasto tenha ultrapassado 23 mil libras -- uma grande soma naquela época --, mas a renda anual do primaz era quatro vezes maior.

A Bíblia Poliglota Complutense, em seis volumes in-fólio, foi concluída em Alcalá, na Espanha, em 1517, mas os preparativos começaram já em 1502. Esses seis nobres volumes contêm o Antigo Testamento em hebraico, latim e grego; e o Novo Testamento em grego e latim, com um dicionário hebraico e outros assuntos complementares.

John Froben, um publicador empreendedor na Basileia, tendo ouvido falar desta Bíblia que se aproximava e ansioso para evitá-la, exortou Erasmo a empreender imediatamente uma edição do Novo Testamento. Esta primeira saiu muito defeituosa, pois a pressa de Froben lhe dava pouco tempo livre para fazer seu trabalho. Passou por três edições em seis anos: na quarta e quinta edições Erasmo concedeu mais dores, tendo visto o Complutense em 1522. Veja um livro útil intitulado "A Plain Introduction to the Criticism of the New Testament" do Dr. Scrivener: George Bell and Sons, Londres. Veja também alguns detalhes interessantes em Church History de J.C. Robertson, vol. 4, pág. 664.}

Para dar ao leitor alguma ideia da popularidade desse homem singularmente grande, mas em alguns aspectos fraco, podemos apenas notar que seu livro, intitulado "O Elogio da Loucura", teve 27 edições durante sua vida, e seus "Colóquios" foram recebidos com tanto entusiasmo que, em um ano, vinte e quatro mil exemplares foram vendidos. Nesses livros, ele atacou com grande poder, e na mais amarga sátira, as inconsistências dos monges -- sua intromissão e rapacidade em relação a leitos de morte, testamentos e funerais e, assim, indiretamente serviu à causa da Reforma.*

{* J.C. Robertson, vol. 4, pág. 673.}

Erasmo recebeu muitas ofertas tentadoras quanto a pensões e promoções, mas seu amor por seus trabalhos eruditos o levou a preferir a pobreza comparativa com liberdade perfeita. Em 1516, ele fixou residência na Basileia, onde suas obras foram impressas por Froben, e trabalhou diligentemente na correção de provas e auxiliando aquele erudito editor com suas excelentes edições de obras clássicas.

Mas a grande obra para a qual ele parece ter sido especialmente habilitado por Deus foi seu Novo Testamento grego. "Erasmo", diz D'Aubigné, "assim fez pelo Novo Testamento o que Reuchlin fizera pelo Antigo. Daí em diante os teólogos foram capazes de ler a Palavra de Deus nas línguas originais e, em um período posterior, reconhecer a pureza das doutrinas reformadas. O Novo Testamento de Erasmo emitiu um clarão de luz brilhante. Suas paráfrases nas Epístolas e nos Evangelhos de São Mateus e São João; suas edições de Cipriano e Jerônimo; suas traduções de Orígenes, Atanásio e Crisóstomo, seus "Principles of True Theology" (do inglês, "Princípios da Verdadeira Teologia"), seu "Preacher" (do inglês, "Pregador") e seus comentários sobre vários salmos contribuíram poderosamente para difundir o gosto pela Palavra de Deus e pela teologia pura. O resultado de seus trabalhos foi além de suas intenções. Reuchlin e Erasmo deram a Bíblia aos eruditos; Lutero a deu ao povo."*

{* D'Aubigné, vol. 1, pág. 166.}

A cadeia de testemunhas agora estava completa. Wessel, Reuchlin, Erasmo e Lutero estavam conectados. A linha prateada da graça de Deus é, portanto, rastreável desde os dias dos apóstolos, ou pelo menos desde os dias de Constantino, até o tempo de Lutero. Não havia espaço para uma linha separada de testemunhas nem mesmo depois da união da Igreja e do Estado. A existência e o testemunho dos valdenses remontam aos primeiros tempos. Então temos testemunhas de Cristo nos paulicianos, albigenses, wycliffitas, boêmios, morávios, Savonarola e outros protestantes individuais em diferentes nações da Europa.

E agora, tendo seguido nosso caminho sombrio através da Idade das Trevas até o início do século XVI, encontramos a Bíblia nas línguas originais, e a prensa pronta para multiplicar as cópias por milhares e dezenas de milhares e divulgá-las sobre a face da Cristandade.

O caminho foi assim preparado para a grande mudança que estava por vir. A descarada impiedade de Roma, o sangue dos santos martirizados de Deus e a vasta multidão de almas que pereciam por falta de conhecimento clamavam em voz alta pela mão que encurtaria o domínio do papado e resgataria as nações da Europa daqueles mil anos de trevas e escravidão. Isso agora deveria ser feito, mas não por meio de mera erudição ou por homens letrados, mas pela fé na Palavra de Deus, pelo poder do Espírito Santo.


Ulrich von Hutten e Reuchlin

Ulrich von Hutten, um cavaleiro alemão, tendo um zelo reformista e sendo um grande admirador de Lutero, encontrou um lugar na maioria dos livros de história gerais. Descendente de uma família antiga e de talentos brilhantes, ele se destacou cedo como soldado e depois como literário aventureiro, mas com grande falta, tememos, de peso moral. Ele publicou uma crítica acrimoniosa contra Erasmo e uma sátira muito eficaz contra a corte e a tirania de Roma. "Poucos livros", diz Hallam, "foram recebidos com mais entusiasmo do que as epístolas de Hutten em sua primeira publicação em 1516." Mas ele não foi poupado por muito tempo, seja para revelar os abusos do papado, seja para defender as doutrinas da Reforma. Ele morreu em 1523 com a idade de trinta e cinco anos. “Ele forma a ligação”, diz D'Aubigné, “entre os cavaleiros e os homens de letras”. Ele esteve presente no cerco de Pádua em 1513, e seu poderoso livro contra o papado apareceu em 1516.

Reuchlin e Erasmo -- esses nomes famosos -- podem ser convenientemente e apropriadamente introduzidos aqui. Embora não fossem reformadores, eles contribuíram muito para o sucesso da Reforma. Eles foram chamados de "humanistas" -- homens eminentes pelo aprendizado humano. O renascimento da literatura, mas especialmente o estudo crítico das línguas em que as Sagradas Escrituras foram escritas -- hebraico, grego e latim -- prestou um grande serviço aos primeiros reformadores. Como nos dias de Josias, Esdras e Neemias, a grande Reforma estava em conexão imediata com a recuperação e o estudo da Palavra escrita de Deus. A Bíblia, que por tanto tempo permanecera silenciosa em manuscritos sob o pó de velhas bibliotecas, estava sendo então impressa e exposta ao povo em sua própria língua. Esta foi a luz de Deus, e aquilo que armou os reformadores com poder invencível. Até os dias de Reuchlin e Erasmo, a Vulgata era o texto recebido. Grego e hebraico eram quase desconhecidos no Ocidente.

Reuchlin estudou na Universidade de Paris. Felizmente para ele, o célebre Wessel ensinava hebraico naquela renomada escola de teologia. Lá ele recebeu, não apenas os primeiros rudimentos da linguagem, mas o conhecimento do evangelho da graça de Deus. Ele também estudou grego e aprendeu a falar latim com grande pureza. Com a idade de vinte anos, ele começou a ensinar filosofia, grego e latim na Basiléia; "e", diz D'Aubigné, "o que então se passou como um milagre: um alemão foi ouvido falando grego." Mais tarde, ele se estabeleceu em Vitemberga -- o berço da Reforma -- instruiu o jovem Melâncton em hebraico e preparou para publicação a primeira gramática e léxico hebraico e alemão. Quem pode avaliar tudo o que a Reforma deve a Reuchlin, embora ele tenha permanecido na comunhão da igreja romana?

João de Wessália e Wessel Gansfort

João de Wessália, um doutor em divindade em Erfurt, era conhecido por sua ousadia, energia e oposição a Roma. Ele incorreu na indignação das ordens monásticas ao pregar que os homens são salvos pela graça por meio da fé, e não por uma vida monástica; que aquele que crê em Cristo está eternamente seguro, mesmo que todos os sacerdotes do mundo o condenem e excomunguem. Ele declarou que as indulgências, o óleo sagrado e as peregrinações eram inúteis; que o papa, bispos e padres não eram instrumentos de salvação. Ele era o que agora seria chamado de estritamente calvinista em sua visão da graça. O arcebispo de Mainz ordenou sua prisão; ele foi levado a julgamento perante um concílio de sacerdotes no ano de 1479 e, apesar de sua idade, problemas de saúde e fraqueza, foi submetido a um intrigante exame de suas opiniões, que durou cinco dias consecutivos. Algumas coisas ele explicou, algumas ele rejeitou e algumas ele retirou; mas seus juízes não tiveram misericórdia, mesmo que estivesse se curvando sob o peso dos anos; ele foi condenado à penitência perpétua pela Santa Inquisição e logo pereceu em suas masmorras.

Wessel Gansfort, algumas vezes chamado de John Wesselus, natural de Groninga, na Holanda, foi sem dúvida o mais notável dos precursores imediatos da Reforma. Ele foi um dos homens mais eruditos do século XV. Mas, felizmente para o próprio Wessel, e para outros milhares, sua luz não era apenas a do aprendizado humano -- ele foi ensinado por Deus. A luz do glorioso evangelho da graça de Deus brilhava intensamente em seu coração, em suas palavras, em sua vida. Ele foi doutor em divindade sucessivamente em Colônia, Lovaina, Heidelberg e Groninga; e ele corajosamente expôs muitas das doutrinas malignas e abusos flagrantes da igreja de Roma. Ele também foi por alguns anos professor de hebraico na Universidade de Paris, e mesmo lá falava com ousadia. "Toda satisfação pelo pecado", declarou ele, "feita pelos homens é blasfêmia contra Cristo." Mas o seguinte testemunho de Lutero sobre os escritos de Wessel torna desnecessário particularizar suas opiniões.

Cerca de trinta anos após a morte de Wessel, Lutero estava pregando as mesmas doutrinas que seu precursor havia se comprometido a escrever, embora ele não tivesse visto nenhum de seus trabalhos. Eles foram guiados e ensinados pelo mesmo Espírito Santo, e instruídos no mesmo livro sagrado, e capacitados para a mesma obra. O grande reformador ficou tão surpreso e encantado quando se encontrou pela primeira vez com alguns dos escritos de Wessel, que escreveu um prefácio para uma edição impressa de suas obras em 1522, no qual diz: "Pela maravilhosa providência de Deus eu fui compelido a me tornar um homem público, e a travar batalhas com aqueles monstros de indulgências e decretos papais. O tempo todo eu me supus estar sozinho; ainda assim, preservei tanta animação na disputa, a ponto de ser acusado de calor e violência em toda parte, e de bater forte. No entanto, a verdade é que eu desejava sinceramente terminar com esses seguidores de Baal, entre os quais minha sorte está lançada, e viver em silêncio em algum canto, pois desesperei totalmente de causar qualquer impressão nessas testas descarados e pescoços de ferro da impiedade. Mas eis que, neste estado de espírito, soube que mesmo nestes dias há em segredo um remanescente do povo de Deus. Não, não apenas me disseram isso, mas me regozijo em ver uma prova disso. Aqui está uma nova publicação de Wessel, de Groningen, um homem de um gênio admirável e de uma mente incomumente ampliada. É muito claro que ele foi ensinado por Deus, como Isaías profetizou que os cristãos deveriam ser: e como no meu próprio caso, assim com ele, não se pode supor que ele recebeu suas doutrinas dos homens. Se eu tivesse lido suas obras antes, meus inimigos poderiam supor que eu havia aprendido tudo com Wessel, pela coincidência perfeita em nossas opiniões. Quanto a mim, obtenho não apenas prazer, mas também força e coragem com esta publicação. Agora é impossível para mim duvidar se estou certo nos pontos que inculquei, quando vejo uma concordância tão completa de sentimento, e quase as mesmas palavras usadas por esta pessoa eminente, que viveu em uma época diferente, em um país distante, e em circunstâncias muito diferentes do meu. Estou surpreso que este excelente escritor cristão seja tão pouco conhecido; a razão pode ser que ele viveu sem sangue e contendas, pois isso é a única coisa em que ele difere de mim. "

Contaremos apenas mais uma anedota a respeito de Wessel, que prova quão completamente o espírito do evangelho havia satisfeito e enchido seu coração, e o erguido acima da mais poderosa tentação.

Quando Sisto IV foi elevado ao trono pontifício, não se esquecendo de que conhecera Wessel na França, ofereceu-se para conceder-lhe qualquer pedido que fizesse. O piedoso holandês respondeu gravemente: “Que aquele que é considerado o pastor supremo da igreja na terra aja de tal modo que, quando o Sumo Pastor aparecer, ele possa ouvi-Lo dizer: ‘Muito bem, servo bom e fiel.’” “Isso deve ser meu cuidado”, respondeu Sisto, “mas peças algo para ti mesmo.” “Dá-me, então”, disse Wessel, “da Biblioteca do Vaticano uma Bíblia em grego e uma em hebraico.” “Tu os terás”, respondeu o papa, “mas isso não é loucura? Por que não pedes um bispado, ou algo assim?” “Porque”, disse o professor pouco ambicioso, “não desejo essas coisas.”

Ele teve permissão de terminar seus dias em paz no ano de 1489, tendo atingido a idade de setenta anos. Suas últimas palavras foram “Louvado seja Deus! Tudo o que conheço é Jesus Cristo e Ele crucificado.”*

{* Milner, vol. 3, pág. 421.}

Reflexões Sobre a Vida de Savonarola

O prior de São Marcos é citado na história como a mais fiel testemunha pública de Cristo que já apareceu na Itália; mas havia muitas coisas em sua conduta que eram contrárias ao espírito e à vocação de um verdadeiro cristão, especialmente por misturar política com religião. Diz-se que ele pensou em combinar os personagens de Jeremias e Demóstenes -- chorar pelo pecado e denunciar os julgamentos de Deus como um, e incitar o povo a lutar por suas liberdades como o outro. Este foi o seu erro, devido à sua ignorância sobre ensino do Novo Testamento; e o que levou à sua desonra e queda. Mas grande consideração deve ser feita por sua educação, circunstâncias e espírito de sua época. Muitos dos reformadores posteriores caíram na mesma armadilha. Eles não tinham aprendido, naqueles tempos revolucionários, que a vocação do cristão é celestial -- que enquanto o judeu foi abençoado com todas as misericórdias temporais em uma terra agradável, o cristão é abençoado com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo. Eles não viram que o propósito de Deus no período atual é reunir dentre as nações um povo para o Seu nome pela pregação do evangelho (Atos 15). Mas quão poucos, mesmo nos dias atuais, veem que a igreja de Deus é um chamado para fora e, portanto, deve andar em separação do mundo!

O maior bem que o pregador pode realizar por seus semelhantes é reuni-los para fora do mundo ao rejeitado Salvador. Mas tais pregadores não são populares nem compreendidos, mesmo no último quarto do século XIX*. De fato, podemos levantar a questão: O estado das "igrejas" em geral, no que diz respeito à política, está à frente das ideias de Savonarola? Ele interferiu na direção dos negócios públicos para que a república de Florença fosse para a honra de seu Senhor e Mestre. Seus motivos eram sem dúvida bons, mas ele estava totalmente enganado ao pensar que poderia unir as coisas celestiais e terrenas. Sua grande ideia é vista no fato de que uma das moedas cunhadas enquanto Florença estava sob sua influência trazia a inscrição: "Cristo nosso rei". Mas não apenas este homem notável desejava ver uma grande Reforma tanto na Igreja quanto no Estado, ele também ansiava pela salvação de almas, enquanto seu próprio coração se regozijava na gloriosa doutrina da justificação somente pela fé. 

{*N. do T.: Este livro foi escrito no século XIX.}

O seguinte trecho de suas meditações sobre o Salmo 31 durante sua prisão dará ao leitor uma ideia de seus pensamentos mais íntimos guiados pelo Espírito Santo de Deus. “Ninguém pode se gabar de si mesmo; e se na presença de Deus, a pergunta fosse feita a todo pecador justificado: ‘Você foi salvo por sua própria força?’ todos a uma só voz exclamariam: ‘Não a nós, Senhor, mas a Teu nome seja a glória!’ Portanto, ó Deus, procuro a Tua misericórdia e não trago a Ti a minha própria justiça: no momento em que me justificas pela Tua graça, a Tua justiça me pertence; pois a graça é a justiça de Deus. Até quando, ó homem, como tu não crês, tu estás, por causa do pecado, privado da graça. Ó Deus, salva-me pela Tua justiça, isto é, por Teu Filho, o único que foi achado justo diante de Ti.” Conforme ensinado por Deus, com que pensamentos santos e elevados sua mente deve ter sido preenchida com o estudo, na prisão, daquele tão lindo salmo de tristeza e louvor triunfante!* 

{* J.C. Robertson, vol. 4, pág. 548. Waddington, vol. 3, pág. 383. Universal History, Bagster and Sons, Londres, vol. 6, pág. 173.} 

Ah! mais bela cidade, que viste expirar 
Três mártires escolhidos no fogo devorador, 
Que, unidos, em meio ao desprezo e à dor, 
Ao morrer sorriu, e provou que "morrer é ganho:" - 
Teu rico e honrado rio, em cujo seio largo 
Aquelas benditas cinzas, como seu tesouro se escondem, 
Verão o chefe tirano finalmente expirar. 
E todo infiel destruído pelo fogo; 
Verá todos os vícios e males virem a nada, 
E saudarem nova luz trazida das regiões celestiais.

Postagens populares