Traçamos, embora brevemente, a origem, o progresso e a
altura mais elevada que alcançou o sistema papal. Isso foi alcançado pelas
grandes habilidades de Inocêncio III. Mas quão variada e repleta de
contrariedades e contradições é essa história pitoresca e misteriosa! Façamos
uma pausa por um momento para refletir sobre as hipocrisias e tiranias, a presumida
piedade e a crueldade daquela mulher Jezabel. Foi ela quem enviou os mais devotos
de seus filhos nos primeiros tempos para habitar nas solitárias cavernas das
montanhas ou no claustro secreto, sob o pretexto de ali contemplarem
pacificamente a glória de Deus e serem transformados à Sua imagem. Mas
novamente a ouvimos com voz alterada reunindo as miríades de hostes da Europa
para sair e resgatar a Terra Santa das garras infames dos filisteus
incircuncisos, e defender a bandeira da cruz no santo sepulcro. Ela se torna então
insensível aos sentimentos comuns da natureza, insensível às misérias da
humanidade e manchada com o sangue de milhões. Durante duzentos anos, ela
empregou todo o seu poder na promoção da destruição da vida humana pelas
ruinosas expedições à Terra Santa. E como cada Cruzada sucessiva se mostrava
mais desesperadora e desastrosa do que a anterior, ela redobrava seus esforços
para renovar e perpetuar aquelas cenas de insensatez, sofrimento e derramamento
de sangue inigualáveis.
Mas volte-se novamente e veja o duplo aspecto de seu caráter
ao mesmo tempo. Quando os cruzados avistaram Jerusalém, eles desceram dos
cavalos e descobriram os pés para que pudessem se aproximar das paredes
sagradas como verdadeiros peregrinos. Gritos altos foram levantados: “Ó Jerusalém!
Jerusalém!”, como se um temor sagrado movesse seus corações. Mas quando o
governador se ofereceu para admiti-los como peregrinos pacíficos, eles
recusaram. Não, eles estavam decididos a abrir o caminho com suas espadas e
arrancar, por meio do ardor militar, a cidade sagrada das mãos dos incrédulos.
Mal haviam escalado as paredes e se precipitaram para o massacre indiscriminado
de muçulmanos e judeus, enchendo de sangue os lugares sagrados. E então, por um
breve momento, a obra de carnificina e pilhagem foi suspensa, para que os
peregrinos devotos pudessem realizar suas devoções; mas os lugares onde eles se
ajoelhavam em adoração estavam cobertos de montes massacrados. Esta é uma
verdadeira imagem do espírito e caráter de Jezabel, manifestado em todas as eras
e países. Quando o próprio Domingos ficou com vergonha dos missionários
ensanguentados de Inocêncio em Languedoque, tendo visto milhares de camponeses
pacíficos assassinados a sangue frio, ele se retirou para uma igreja e orou
pelo sucesso da boa causa, e assim as vitórias de Monforte e seus rufiões foram
atribuídas às orações do espanhol de “mente santa”. Esta foi uma cruzada, não
contra turcos e infiéis, mas contra os santos do Senhor porque eles ousaram
falar de certos abusos na “santa mãe igreja”. E, para castigar com mais
eficácia seus filhos, ela inventou a Inquisição, esse aparato de perseguição
doméstica, tortura e morte.
E, por mais estranho que possa parecer hoje em dia, e cruel
além de qualquer comparação, a destruição em massa da vida e da propriedade
humana era a própria energia vital do papado. Ela enriqueceu apropriando-se das
contribuições levantadas para o propósito das Cruzadas; e ela se fortaleceu
enfraquecendo os monarcas da Europa, exaurindo seus tesouros e despovoando seus
países. Assim foi o zelo papal inflamado a uma paixão ardente pelos cruzados e
assim passou de Urbano II e do Concílio de Clermont até seus sucessores. Cada
pensamento da mente papal, cada sentimento do coração papal, cada mandato
emitido do Vaticano, tinha apenas um objetivo em vista: o enriquecimento e
fortalecimento da Sé Romana. Não importa o quão subversiva de toda a paz, quão
perniciosa para toda a sociedade, ela perseguia seus próprios interesses com
uma obstinação inflexível e insensível. As excomunhões eram usadas para os
mesmos fins de engrandecimento papal. "O herege perdia não apenas todas as
dignidades, direitos, privilégios, imunidades, e até mesmo todas as
propriedades, toda a proteção da lei; ele deveria ser perseguido, roubado e
condenado à morte, seja pelo curso normal da justiça -- a autoridade secular era
obrigada a executar, mesmo com sangue, a sentença do tribunal eclesiástico – ou,
se ele se atrevesse a resistir por qualquer meio, por mais pacífico que fosse, era
considerado um insurgente, contra quem toda a cristandade poderia, ou melhor,
estava obrigada, à convocação do poder espiritual, para declarar guerra; suas
propriedades, e mesmo seus domínios, se um soberano, não eram meramente
passíveis de confisco, mas a igreja assumia o poder de conceder a outro os bens
e propriedades como lhe parecesse melhor.
"O exército que deveria executar o mandato do papa era
o exército da igreja, e a bandeira desse exército era a cruz de Cristo. Então
começaram as cruzadas, não nas fronteiras contestadas da Cristandade, não em
terras muçulmanas ou pagãs na Palestina, nas margens do Nilo, entre as
florestas da Livônia ou nas areias do Báltico, mas no próprio seio da Cristandade;
não entre os partidários implacáveis de um credo antagônico, mas no solo da
França católica, entre aqueles que ainda chamavam a si mesmos pelo nome de
cristãos."*
{* Milman,
vol. 4, pág. 168; Waddington, vol. 2, pág. 270.}
Esse era, é e sempre será o espírito e o caráter da igreja
de Roma. Quão tenebrosa imagem! Quão triste é a reflexão de que aquela que se
autodenomina a verdadeira igreja de Deus, a santa mãe de Seus filhos e a
representante de Cristo na terra, tenha sido transformada, por instrumentos
satânicos, em um monstro das mais repugnantes hipocrisias, e "abomináveis idolatrias!"
Ela se tornou a mãe adotiva da mais aberta e ilimitada adoração de imagens,
santos, relíquias e pinturas, e da teoria da transubstanciação e da prática do
confessionário. Exteriormente, sua ambição inescrupulosa de glória secular, sua
intolerância em perseguir até o extermínio todos os que se aventurassem a
contestar sua autoridade, sua sede insaciável por sangue humano não têm
paralelo nas eras mais bárbaras do paganismo.
E é esta a igreja -- você pode muito bem exclamar em suas
reflexões -- é esta a igreja a que tantos estão se juntando nos dias de hoje?
Sim, infelizmente; e muitos das classes superiores e inteligentes! Certamente,
essas conversões só podem ser fruto do poder ofuscante de Satanás, o deus deste
mundo (2 Coríntios 4:3-4). Muitas jovens das melhores famílias da Inglaterra se
submeteram, em devoção cega, a ser despojadas de sua cobertura natural e
aprisionadas em um convento pelo resto da vida; e muitos da aristocracia, tanto
leigos quanto clericais, aderiram à comunhão da igreja romana. Mas ela não
mudou: a mudança é com aqueles cuja luz se tornou em trevas, de acordo com a
palavra do profeta: “Dai glória ao Senhor vosso Deus, antes que venha a
escuridão e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que,
esperando vós luz, ele a mude em sombra de morte, e a reduza à escuridão” (Jeremias
13:16). Assim como ela era nos dias de Gregório VII, de Inocêncio III, do cardeal
Pole e da Maria Sangrenta (Maria I da Inglaterra), assim é ela ainda hoje quanto ao
seu espírito, faltando-lhe apenas o poder. Mas qual será a culpa dos
convertidos atuais, tendo o Novo Testamento diante de si e vendo o contraste
entre o bendito Senhor e Seus apóstolos, e o papa e seu clero; entre a graça e
a misericórdia do evangelho e a intolerância e crueldade do papado! Em vez
disso, que meu leitor se lembre da exortação: "Sai dela, povo meu, para
que não sejas participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas
pragas… porque todas as nações foram enganadas pelas tuas feitiçarias. E nela
se achou o sangue dos profetas, e dos santos, e de todos os que foram mortos na
terra” (Apocalipse 18:4,23,24).