domingo, 22 de novembro de 2020

A Oposição de Roma à Bíblia

Mas, como sempre, os grandes inimigos da verdade, da luz e da liberdade se alarmaram. O arcebispo de Mainz colocou as prensas daquela cidade sob estrita censura. O Papa Alexandre VI emitiu uma bula proibindo os impressores de Mainz, Colônia, Tréveris e Magdeburgo de publicar quaisquer livros sem a licença expressa de seus arcebispos. Descobrindo que a leitura da Bíblia estava se estendendo, os sacerdotes começaram a pregar contra ela de seus púlpitos. "Eles descobriram", disse um monge francês, "uma nova língua chamada grego: devemos nos proteger cuidadosamente contra ela. Essa língua será a mãe de todos os tipos de heresias. Vejo nas mãos de um grande número de pessoas um livro escrito nesta linguagem chamado de 'O Novo Testamento'; é um livro cheio de amoreiras, com víboras nelas. Quanto ao hebraico, quem aprende isso se torna judeu imediatamente." Bíblias e Testamentos eram apreendidos onde quer que fossem encontrados e queimados; mas mais Bíblias e Testamentos pareciam erguer-se como que por mágica de suas cinzas. As prensas também foram apreendidas e queimadas. "Devemos erradicar a impressão, ou a impressão nos erradicará", disse o vigário de Croydon em um sermão pregado na St Paul's Cross. E a Universidade de Paris, em pânico, declarou perante o parlamento: "A religião acaba se o estudo do grego e do hebraico for permitido."

O grande sucesso das novas traduções espalhou o alarme por toda a igreja romana, e ela tremia pela supremacia de sua própria favorita Vulgata. Os temores dos sacerdotes e monges aumentaram quando viram as pessoas lendo as Escrituras em sua própria língua materna e observaram uma disposição crescente de colocar em dúvida o valor de assistir à missa e da autoridade do sacerdócio. Em vez de fazerem suas orações por meio dos padres em latim, eles começaram a orar a Deus diretamente em sua língua nativa. O clero, percebendo que seus rendimentos estavam diminuindo, apelou para a Sorbonne, a escola teológica mais renomada da Europa. A Sorbonne pediu ao parlamento que interferisse com uma mão forte. A guerra foi imediatamente proclamada contra os livros e os impressores deles. Impressores que foram condenados por imprimir Bíblias foram queimados. No ano de 1534, cerca de vinte homens e uma mulher foram queimados vivos em Paris. Em 1535, a Sorbonne obteve uma ordenança do rei para a supressão da impressão. "Mas era tarde demais", como observa um escritor competente; "a arte então nascia plenamente e não poderia ser suprimida mais do que a luz, o ar ou a vida. Os livros se tornaram uma necessidade pública e supriram uma grande necessidade do público: e a cada ano os viam se multiplicando mais abundantemente."*

{* History of the Huguenots, por Samuel Smiles, pp. 1-23.}

Enquanto Roma trovejava assim suas terríveis proibições contra a liberdade de pensamento e estendia seu braço para perseguir onde quer que a Bíblia tivesse penetrado e encontrado seguidores, pelo menos em toda a França Deus estava apressando, por meio de Sua própria Palavra e da imprensa, aquela poderosa revolução que em breve mudaria os destinos da Igreja e do Estado. Mas se os católicos tivessem tido sucesso em seus desígnios perversos, ainda estaríamos tateando nosso caminho em meio à densa escuridão da Idade Média. Roma sempre foi hostil a novas invenções e melhoria, especialmente se tendiam à difusão do conhecimento, à promoção da civilização, à diminuição da distância entre o clero e os leigos, ou de alguma forma ao enfraquecimento do poder do sacerdócio. Ignorância, escravidão, superstição e sujeição cega ao sacerdócio são os principais elementos de sua existência. De todas as invenções, nenhuma exerceu maior influência na sociedade do que a prensa; e não somente isso: é a preservadora de todas as outras invenções. Assim, nenhum agradecimento é devido aos católicos por nossa civilização moderna e pelos privilégios de nossas liberdades civis e religiosas. Mas o Deus vivo está acima de toda a hostilidade de Roma, e cumprirá todos os propósitos de Sua graça. 

A escuridão da Idade Média está passando rapidamente. O sol nascente da Reforma em breve dissipará a escuridão do longo reinado de mil anos de Jezabel. Sua ostentada supremacia universal não existe mais e nunca mais retornará. Os pilares de sua força já estão abalados e muitas causas estão se combinando para apressar sua derrubada completa. Com essas causas logo ficaremos mais familiarizados.

A Primeira Bíblia Impressa

Todos os historiadores parecem concordar que Gutenberg, tendo passado quase dez anos levando seus experimentos à perfeição, empobreceu tanto que achou necessário convidar algum capitalista para se juntar a ele. Johann Faust, o rico ourives de Mainz, a quem revelou seu segredo, concordou em fazer parceria com ele e fornecer os meios para a execução do projeto. Mas não parece que Gutenberg e seus associados, Schoeffer e Faust, foram movidos por qualquer motivo mais elevado na execução desta obra gloriosa do que o de realizar uma grande soma de dinheiro por meio da empresa. As letras eram uma imitação tão exata dos melhores copistas que pretendiam fazê-las passar por excelentes cópias manuscritas e, assim, obter os altos preços usuais. Os empregados na obra estavam sujeitos ao mais estrito sigilo. A primeira edição parece ter sido vendida a preços de manuscrito sem que o segredo tivesse sido revelado. Uma segunda edição foi lançada por volta de 1462, quando Johann Faust foi a Paris com várias cópias. Ele vendeu uma ao rei por setecentas coroas e outra ao arcebispo por quatrocentas coroas. O prelado, encantado com uma cópia tão bela e a um preço tão baixo, havia a mostrado ao rei. Sua majestade então comprou a sua, pelo qual pagou quase o dobro do dinheiro; mas qual foi seu espanto ao descobrir que eram idênticos, mesmo nos traços e pontos mais minuciosos? Eles ficaram alarmados e concluíram que deviam ser produzidos por magia, e estando as letras maiúsculas em tinta vermelha, eles supuseram que era sangue, e não duvidaram mais que ele estava aliado ao diabo e auxiliado por ele em sua arte mágica.

A informação foi imediatamente fornecida à polícia contra Johann Faust; seus aposentos foram revistados e suas Bíblias apreendidas, e outras cópias que ele havia vendido foram coletadas e comparadas. Descobrindo eles que eram exatamente iguais, ele foi declarado um mágico. O rei ordenou que fosse lançado na prisão e logo teria sido lançado nas chamas, mas ele se salvou confessando o engano e revelando completamente o segredo de sua arte. O mistério foi então revelado, os operários não estavam mais vinculados ao sigilo, os impressores se dispersaram, levando o segredo de sua arte aonde quer que fossem bem-vindos, e o som das prensas logo foi ouvido em muitos países. Por volta de 1474, a arte foi introduzida na Inglaterra por William Caxton; e em 1508 foi introduzido na Escócia por Walter Chepman.

Antes da época da impressão, muitos livros valiosos existiam em manuscrito, e seminários de aprendizagem floresceram em todos os países civilizados, mas o conhecimento era necessariamente confinado a um número comparativamente pequeno de pessoas. Os manuscritos eram tão raros e caros que só podiam ser comprados por reis e nobres, por instituições colegiadas e eclesiásticas. "Uma cópia da Bíblia custava de quarenta a cinquenta libras apenas para ser escrita, pois um copista experiente precisava de cerca de dez meses de trabalho para fazer uma." Embora vários outros livros tenham saído das novas prensas, a Bíblia latina era o livro favorito. Eles geralmente iniciavam as operações, onde quer que fossem, publicando uma edição da Bíblia em latim. Eram os mais procurados e saíam a preços altos. Desta forma, as Bíblias em latim se multiplicaram rapidamente. Os tradutores começaram então seu trabalho; e por reformadores individuais em diferentes países, a palavra de Deus foi traduzida em várias línguas no decorrer de alguns anos. "Assim, uma versão italiana apareceu em 1474, uma boêmia em 1475, uma holandesa em 1477, uma francesa em 1477 e uma espanhola em 1478; como se anunciassem a aproximação da Reforma vindoura."


A Invenção da Prensa e a Melhoria do Papel

Justamente neste período, o Senhor estava fazendo "todas as coisas cooperarem para o bem" de uma forma notável. Dois agentes silenciosos de imensa influência e poder foram ordenados para preceder as vozes vivas de Seus pregadores do evangelho -- a invenção da prensa* e da manufatura de papel. Essas invenções harmoniosas foram levadas a grande perfeição durante a última metade do século XV, pelas quais podemos elevar nossos corações em louvor e gratidão a Deus.

{*N. do T.: Leia mais sobre a prensa de Gutenberg em https://pt.wikipedia.org/wiki/Prensa_m%C3%B3vel }

Chegamos agora a um ponto decisivo em nossa história; e não apenas na história da Igreja, mas da civilização, da condição social dos Estados europeus e da família humana. É bom parar em tal eminência e olhar ao nosso redor por um momento. Vemos uma mão divina para o bem de todos juntando as peças, embora estivessem aparentemente desconectadas. A queda de um império, a fuga de alguns gregos com seus tesouros literários, o despertar da mente há muito adormecida do mundo ocidental, a invenção da impressão de tipos móveis* e a descoberta da manufatura de papel branco fino com trapos de linho. Por mais incongruente que "trapos de linho" possa soar com a literatura dos gregos e com a habilidade de Guttenberg, ambos teriam se mostrado de pouca utilidade sem o papel melhorado. Os meios, os mais insignificantes na conta do homem, quando usados ​​por Deus, são todos suficientes. Por um poder milagroso, uma vara seca na mão de Moisés sacode o Egito do centro à circunferência, divide o Mar Vermelho e tira água viva da rocha dura: uma pedra lisa do riacho, ou um chifre de carneiro vazio, realiza grandes livramentos em Israel. O poder é de Deus e a fé olha apenas para Ele.

{*N. do T.: Tipos são os moldes de caracteres letras usadas em uma prensa, isto é, em uma máquina de impressão antiga. Veja mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Tipo_(tipografia). }

É um fato profundamente interessante para o cristão que o primeiro livro completo que Gutenberg imprimiu com seus tipos de metal lapidado foi uma edição in-fólio da Bíblia na vulgata latina, consistindo de seiscentos e quarenta e uma folhas. Hallam, em sua História Literária, observa belamente: "É uma circunstância muito surpreendente que os inventores da grande arte tenham tentado desde o início um voo tão ousado como imprimir uma Bíblia inteira, e o executaram com grande sucesso... Podemos ver na imaginação este volume venerável e esplêndido conduzindo as miríades de seus seguidores e implorando, por assim dizer, uma bênção sobre a nova arte, ao dedicar suas primícias ao serviço do céu."*

{* Literature of Europe, vol. 1, pág. 153.}

Embora dificilmente se enquadre no escopo de nosso livro, mesmo que brevemente, esboçaremos a história da grande descoberta para o bem de alguns de nossos leitores que podem não ter tais histórias em mãos, mencionando apenas alguns detalhes, pois foi um dos agentes mais poderosos da Reforma.

Desde antigamente, o modo de impressão a partir de blocos de madeira já era praticado. Às vezes, as gravuras ou impressões eram acompanhadas por algumas linhas de letras recortadas no bloco. Gradualmente, estes foram estendidos a algumas folhas e chamados de blocos de livros. Um ferreiro engenhoso, dizem, inventou no século XI letras separadas de madeira. O célebre Johannes Gutenberg, nascido em um vilarejo próximo a Mainz, no ano de 1397, substituiu as letras de madeira pelo metal, e seu sócio Schoeffer recortou os caracteres em uma matriz, após a qual os tipos eram fundidos, completando assim a arte da impressão como até hoje permanece*.

{* Este livro foi escrito no século XIX, quando não havia ainda outros métodos de impressão, como o offset e a impressão digital, que são mais comuns hoje. Leia mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Impress%C3%A3o. }

O pergaminho, as preparações de palha, casca de árvore, papiro e algodão foram suficientes para o impressor e o transcritor até o século XIV. Mas esses preparativos teriam sido totalmente inadequados para suprir a demanda do novo processo. Felizmente, no entanto, a descoberta do papel feito com trapos coincidiu com a descoberta da impressão por meio da prensa. A primeira fábrica de papel da Inglaterra foi erguida em Dartmouth por um alemão chamado Spielmann, em 1588, que acabou sendo nomeado cavaleiro pela Rainha Isabel.

A Captura de Constantinopla

Capítulo 32: A Palavra de Deus Impressa (1397-1516 d.C.)

No ano de 1453, após um cerco fechado de 53 dias, a capital da Cristandade oriental caiu nas mãos dos vitoriosos turcos. O imperador, que tinha o nome do fundador de Constantinopla, demonstrou grande bravura durante o cerco; ele jogou fora sua púrpura e lutou na brecha, até que ele, com os nobres que o cercavam, caiu entre os mortos. Este foi o último dos Constantinos e o último imperador cristão de Constantinopla. A maioria dos habitantes que restaram foi vendida como escravos ou massacrada, e cinco mil famílias turcas foram trazidas para a cidade como colonos. Seguiram-se destruição, violência e palavrões, excedendo em muito nossa capacidade de descrevê-los. A antiga igreja de Santa Sofia foi despojada de todas as valiosas oferendas de séculos, as imagens foram quebradas em pedaços e, depois de ter sido palco de grosseiras profanações, foi transformada em uma mesquita. Os tesouros da erudição grega – que alguns dizem terem chegado a cento e vinte mil livros manuscritos – foram destruídos ou dispersos. A conquista estava completa, e Maomé II imediatamente transferiu a sede de seu governo para Constantinopla.

Mas a ambição ilimitada do feroz otomano estava longe de ser satisfeita: ele contemplava nada menos do que a conquista de toda a Cristandade. E de suas vitórias rápidas e fáceis sobre muitos dos principados cristãos menores no Oriente, pareceria que, se a morte não tivesse livrado o mundo de tal tirano, ele poderia ter seguido seu caminho de conquista através do coração da Europa. Que cidade, que reino, que poder, iria prender o invasor feroz? Toda a Europa estremeceu, especialmente a Itália. Dizem que a morte de Nicolau V foi antecipada pela notícia da captura de Constantinopla. A tristeza e o medo partiram o coração do velho. Mas depois de derrubar impérios, reinos e cidades sem número, Maomé II morreu, aos cinquenta anos, de dores internas, supostamente efeitos de veneno.

As notícias sobre essas pesadas calamidades no Oriente espalharam uma profunda escuridão sobre todo o Ocidente. Mas aquilo que ameaçava deter o progresso da civilização e a propagação do Cristianismo foi sobrepujado por uma Providência sábia e boa para o avanço de ambos de uma maneira maravilhosa. A queda de Constantinopla nas mãos dos infiéis levou muitos gregos eruditos para a Itália, e da Itália para muitos outros países da Europa. Aconteceu, justamente nessa época, que o papa reinante, Nicolau V, se distinguiu por seu amor pela literatura, o que ele muito promoveu por sua posição e riqueza. Os refugiados trouxeram os livros que conseguiram resgatar das ruínas de seu império caído. O estudo do grego foi revivido por esses meios e se tornou extremamente popular. Entre esses alunos, aprouve a Deus suscitar homens de mente altamente cultivada e coração devoto, que muito fizeram no preparo do caminho para a grande Reforma.

domingo, 15 de novembro de 2020

A Conexão entre as Testemunhas

Antes de deixar os morávios, podemos lembrar à mente do leitor o fato interessante de uma conexão antiga entre eles e os valdenses, se não também entre eles e os paulicianos. A Boêmia e a Morávia continuaram no paganismo até o século IX, quando receberam o evangelho dos missionários orientais; provavelmente também dos paulicianos. Pedro Valdo, no século XII, expulso de Lyon pela perseguição, encontrou refúgio na Boêmia, onde trabalhou por vinte anos com grande sucesso. No século XIV, seus seguidores na Boêmia e Passau somavam oitenta mil e, em toda a Europa, cerca de oitocentos mil. A corte de Roma, irritada com o zelo e ofendida pelas práticas dos unidos paulicianos, valdenses, boêmios e morávios, resolveu que deveriam ser submetidos ao jugo romano. O celibato foi ordenado, o cálice foi proibido aos leigos e o serviço religioso realizado em latim. Uma luta começou, os boêmios protestaram, Roma perseguiu e, embora muitos continuassem firmes, outros gradualmente declinaram e perderam muito de sua pureza original de doutrina e simplicidade de adoração. Assim, as coisas continuaram por cerca de trezentos anos, quando Jan Hus e Jerônimo de Praga levantaram novamente o estandarte da verdade, testemunharam contra as corrupções de Roma e acenderam, pelas chamas de seu martírio, uma luz que logo se espalhou por toda a Europa, e que continua a brilhar em nossos dias, pela boa providência de Deus. Rastrearemos em seguida o caminho misterioso pelo qual essa luz viajou.* 

{* Ver "Moravians" em Dictionary of Sects, de Marsden; Waddington, vol. 3, pág. 196; Latin Christianity, vol. 6, pág. 200; Milner, vol. 3, pág. 336; J.C. Robertson, vol. 3, pág. 284; Mosheim, vol. 3, pág. 17; Variations of Popery, de Edgar, pp. 202, 533.}

A Unidade dos Irmãos

A primeira migração para a Morávia foi em 1451. Muitos dos cidadãos de Praga, com alguns da nobreza e homens eruditos, e até mesmo alguns dos mais piedosos dos calixtinos, juntaram-se a eles. Eles então assumiram o nome de Unitas Fratrum, ou Unidade dos Irmãos. Esta foi a origem de uma comunidade que continua até os nossos dias. Pelo espaço de três anos, eles desfrutaram de paz e liberdade de consciência. O espírito missionário, pelo qual os morávios sempre se destacaram, manifestou-se naquele período inicial de sua história. Agora, a linha prateada do amor do Salvador e o zelo cristão deles brilha intensamente. Não pudemos ver nenhum traço disso quando eles estavam usando armas carnais para a defesa da verdade de Deus. Mas assim que a graça brilhou e seu número aumentou, os sacerdotes romanos os olharam com suspeita. Muitas almas foram convertidas por meio de sua pregação, e congregações foram formadas em diferentes partes do país. 

Falsas acusações foram divulgadas pelos monges e frades, obra maligna que sempre convinha às suas línguas mentirosas. “Sedição!”, foi o clamor. “Os morávios estão reunindo números”, disseram os monges, “para que possam renovar as guerras taboritas e tomar o governo”. O rei ficou alarmado; o sem princípios Rokyzan, com medo de perder sua dignidade na igreja, aliou-se aos católicos e influenciou os calixtinos a se voltarem contra seus irmãos. Eles foram denunciados como hereges incorrigíveis. Uma perseguição amarga irrompeu em toda a sua fúria sobre os irmãos missionários. Mas o joio parece ter sido separado do trigo, pois, ao contrário dos dias de Žižka, a nova geração dos antigos hussitas decidiu não usar nenhuma arma carnal em defesa de si mesmos ou de sua religião. Mas a coragem destemida, que caracterizava seus antepassados ​​no campo de batalha, era agora exibida em sua perseverança paciente de sofrimento por amor de Cristo. Sob suas mais pesadas aflições, a energia deles nunca falhou. Eles foram declarados como tendo perdido os direitos comuns de súditos do rei; suas propriedades foram confiscadas; eles foram até mesmo expulsos de suas casas no auge do inverno, e compelidos a vagar pelos campos abertos, onde muitos morreram de frio e fome. Todas as prisões na Boêmia, especialmente em Praga, estavam lotadas com os irmãos. Vários tipos de tortura foram infligidos aos prisioneiros: alguns tiveram suas mãos e pés decepados; outros foram rasgados no cavalete*, queimados vivos ou assassinados barbaramente. Esses ultrajes continuaram por quase vinte anos com pouca redução, mas a morte do rei em 1471 e o remorso de Rokyzan, o arcebispo, trouxeram um certo alívio. Eles não foram mais expostos à tortura, mas foram expulsos do país. 


Os Irmãos Unidos, assim compelidos a deixarem suas casas em Lititz e outras cidades e vilas, foram obrigados a viver em florestas e sob o abrigo de rochas, acendendo suas fogueiras à noite. E, por mais singular que possa parecer, eles não apenas se empenharam em consolar uns aos outros, mas em aperfeiçoar o que eles chamavam de “a constituição da igreja”, esquecendo-se, como muitos outros têm feito, que Deus fez perfeita a constituição da igreja no Pentecostes, e no-la revelou em Sua santa Palavra. Cerca de setenta pessoas realizaram um sínodo na floresta. Duas resoluções foram adotadas e que marcaram o futuro caráter dos morávios: (1) que era necessário providenciar homens adequados para o ofício ministerial; e (2) que eles deveriam ser escolhidos por sorteio como Matias em Atos 1:24-26. Como princípio fundamental, os irmãos sustentavam que "as sagradas escrituras são a única regra de fé e prática". Ao mesmo tempo, foi feita uma distinção entre o essencial e o não essencial, o que deixa amplo espaço para a vontade humana e a imaginação. O essencial diz respeito à questão da salvação do homem; os não essenciais, às coisas exteriores do Cristianismo, como ritos, cerimônias, costumes e regulamentos eclesiásticos. E, além disso, eles poderiam ser alterados de acordo com o melhor julgamento humano, para que a grande obra do evangelho fosse promovida. Isso é humano, não exclusivamente morávio. É, praticamente, o ditado comum: "O fim justifica os meios". Mas certamente o que Deus revelou nunca pode deixar de ser essencial, e o que Ele não revelou nunca deveria ser introduzido em Sua assembleia. 

Os irmãos que foram banidos da Morávia foram gentilmente recebidos na Hungria e na Moldávia, e se distinguiram muito por seus trabalhos missionários e outros serviços religiosos. Por volta do ano de 1470, eles publicaram na língua boêmia uma tradução de toda a Bíblia. Esta é a segunda tradução registrada da Bíblia para uma das línguas europeias. Passou por várias edições rapidamente e, dessa maneira, essas pessoas interessantes e devotadas prepararam o caminho para Lutero, Melâncton e Calvino.

Divisões Internas

Os hussitas não eram todos de uma mesma opinião quanto a uma trégua que foi proposta; então, eles se dividiram e formaram dois partidos. Os calixtinos -- de cálix, ou taça -- o partido mais moderado, dispuseram-se a renunciar a todos os demais assuntos de reclamação, desde que o cálice na Eucaristia fosse administrada aos leigos, e que fosse dada permissão de lerem a Palavra de Deus. Os taboritas foram muito mais longe: eles aderiram às doutrinas de Hus. Além da celebração da Ceia do Senhor incluindo ambos os símbolos – o pão e o cálice –, eles lutaram por uma reforma completa da igreja: a abolição de todos os erros e cerimônias papais e o estabelecimento de um sistema de doutrina e disciplina baseada nas Escrituras. 

A traição, o recurso infalível de Roma, agora via seu caminho livre para cercar a ruína dos taboritas. No Concílio de Basileia, Rokyzan, um bispo dos moderados e um homem eloquente, foi elevado ao arcebispado de Praga, para que por sua influência os objetivos da igreja católica fossem alcançados. Quatro artigos foram pactuados, denominados Compact; os obedientes calixtinos foram recebidos de volta ao seio da igreja, mas os privilégios assim concedidos foram logo depois anulados pelo papa. Os taboritas, recusando-se a assinar o pacto, foram perseguidos tanto por seus velhos amigos, os calixtinos, quanto pelos católicos. Mas, em vez de resistirem por meio da espada carnal, como nos dias de Žižka e Procópio, foram levados a ver que a fé em Deus, a paciência, a perseverança em fazer o bem e a oração com fé eram os braços adequados a um soldado cristão. Rokyzan, que ainda tinha algum sentimento gentil por seus velhos amigos, obteve permissão do soberano para que os perseguidos taboritas se retirassem ao senhorio de Lititz, nos confins da Morávia e Silésia, e ali estabelecessem uma colônia e regulassem seu próprio culto e disciplina.

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