domingo, 24 de novembro de 2019

Inocêncio e o Sul da França

Capítulo 25: França (814-1229 d.C.)

Um novo campo de sangue e um caráter inteiramente novo de guerra foram trazidos diante da mente do voraz papa de Roma. Era uma guerra não contra os inimigos de uma fé estrangeira, ou contra os reis domésticos insubmissos, mas do exército da igreja romana guerreando contra os seguidores confessos do Senhor Jesus Cristo. Isso era algo novo nos anais da Cristandade.

Pelo favor dos príncipes e pela indiferença do clero, os albigenses tinham sido permitidos, por séculos, a pregar o evangelho e disseminar a verdade sem serem molestados. O catolicismo romano quase perecera nas províncias do conde Raimundo VI. O povo desses locais, em geral, era muito inclinado a quebrar sua conexão com a igreja de Roma definitivamente. Quando esse estado de coisas chegou aos ouvidos de Inocêncio, ele convocou uma cruzada contra os hereges de Languedoque, e não descansou até ter varrido toda essa população do solo da França.

Mas devemos, antes de tudo, retroceder alguns passos de modo a ligarmos a isso a linha de testemunhas de Cristo e de Seu evangelho.

domingo, 10 de novembro de 2019

A Ira de Inocêncio

Dentre as testemunhas da assinatura da Magna Carta estava Pandolfo, o legado arrogante do papa. Ele viu aquilo como um golpe mortal contra o poder papal na Inglaterra. Inocêncio logo ficou informado da surpreendente notícia. Sua infalibilidade estremeceu com alarme; se enfureceu e jurou, como era de seu costume; franziu a testa, como diz o historiador, e irrompeu em palavras de perplexidade. "O que! Esses barões da Inglaterra presumem destronar o rei que tomou a cruz e  que colocou-se sob a proteção da Sé apostólica? Como podem eles transferir a outros aquilo que é patrimônio da Igreja de Roma? Por São Pedro, não podemos deixar tal crime impune." A grande carta foi declarada pelo papa nula e sem efeito, o rei foi proibido, sob pena de excomunhão, de respeitar o juramento que tinha feito ou as liberdades que tinha confirmado. Mas as censuras espirituais e os editos anulatórios foram recebidos pelos barões com total desconsideração.

A guerra eclodiu; e para a desgraça ainda mais profunda de João, que não tinha exército próprio, ele trouxe do continente bandos de aventureiros e piratas, prometendo-lhes as propriedades dos barões ingleses como recompensas pela bravura. À frente dessas tropas mercenárias, com o auxílio de dois bispos sedentos por guerra, Worcester e Norwich, ele atravessou o país inteiro, desde o canal até o rio Forth. Ele soltou suas hordas ferozes como bestas selvagens em seu reino infeliz. Os barões não tinham feito qualquer preparo para a guerra, e nem suspeitavam da introdução de um exército estrangeiro. Aqui, novamente, vemos as profundezas de Satanás; ele está sempre pronto a dar a outro o poder que ele tiver sobre as nações, desde que aquele a quem ele o dá se submeta inteiramente a sua vontade. "Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares" (Mateus 4:8,9). Foi exatamente o mesmo que ele fez a João, seja tornando-se vassalo do papa, de Maomé ou de Satanás. Por um  curto período de tempo ele foi um mestre imbatível no campo de batalha. Toda a terra foi devastada com fogo e espada. Pilhagem, assassinato e tortura se enfureciam descontroladamente. Nada era tido por sagrado, nada era seguro. Nobres e pedintes fugiam com suas esposas e famílias quando era possível. Os assassinos manchados de sangue do rei e do papa passaram por todo o país com a espada em uma mão e a tocha na outra, enquanto um clamor subia ao céu: "Oh, infeliz Inglaterra! Oh, infeliz país! Que Deus tenha misericórdia de nós, e que Seus juízos caiam sobre o rei e o papa."

O juízo não demorou muito. Nem o céu nem a terra podiam mais tolerar suas crueldades e tiranias. O papa morreu em 16 de julho de 1216, aos 55 anos de idade; apenas um ano, um mês e um dia após a assinatura da Magna Carta. João viveu apenas alguns meses a mais que o papa. Morreu em 12 de outubro de 1216, aos 49 anos de idade, e no décimo sétimo ano de seu reinado. Supõe-se que tenha morrido com o pavor acompanhado pela embriaguez. Enquanto retornava de uma de suas cenas de matança, os vagões reais estavam cruzando as areias de Wash, desde Norfolk até Lincolnshire, quando a maré subiu repentinamente e todos se afundaram no abismo. O acidente encheu o rei de terror; ele sentiu que a terra estava à beira de se abrir e engoli-lo vivo. Ele bebeu copiosas doses de cidra, as quais, juntamente com o medo e o remorso, encerraram os dias do tirano mais cruel e desprezível que já se sentou no trono da Inglaterra. Os nomes dos demais reis cujos vícios são tenebrosos o suficiente para provocar execrações da posteridade são muitas vezes cercados por uma auréola de talento, seja no senado ou no campo de batalha, de modo a mitigar a severidade da sentença. Mas o rei João morre: seu caráter permanece diante de nós de forma não redimida por uma virtude solitária.*

{*Enciclopedia Britânica, vol. 8, p. 721; D'Aubigné, vol. 5, p. 98; Eighteen Christian Centuries, de James White, p. 290.}

A Magna Carta

João, tendo assim triunfado sobre seu amargo inimigo, e assegurado a aliança com a Santa Sé, continuou com as mesmas medidas cruéis e tirânicas que até então o tinham colocado em uma posição odiosa perante seus súditos. Seu longo e inadequado governo e suas imprudentes indulgências em excessos de todos os tipos de hábitos viciosos tinham exaurido a paciência de todas as classes de pessoas, tanto na Igreja quanto no Estado. Começou-se a expressar um desejo geral por privilégios e pelo controle resultantes de uma lei estabelecida.

A história da Magna Carta é tão verdadeiramente inglesa, tão bem conhecida e tão intimamente conectada à igreja, assim como à história civil, que devemos fornecer uma breve observação sobre ela neste livro. Além disso, dizem os historiadores que nenhum evento de igual importância ocorreu em qualquer outro país da Europa durante o século XIII, e que os resultados de qualquer outro incidente jamais foram tão duradouros ou tão sabiamente disseminados como aqueles da reunião dos barões em Runnymede e da convocação dos burgueses ao Parlamento. Enquanto a monarquia fazia rápidos avanços na França, um poder de contrapeso havia se formado na Inglaterra pela combinação da nobreza e a ascensão da Câmara dos Comuns.

O arcebispo Langton, a quem Inocêncio tinha levantado como primaz, a fim de que, por seus próprios meios, mantivesse todas as exorbitantes pretensões de Roma sobre a Inglaterra, era ele próprio inglês, e em todas as ocasiões demonstrou uma sincera preocupação pelos interesses do reino, para o total desapontamento do papa. Tendo encontrado, em meio ao lixo de um monastério obscuro, uma cópia da carta de Henrique I, ele conferenciou em privado com os barões, exortando-os a renová-la. Aqueles dentre os barões que sentiram profundamente a degradação a que João tinha infligido todo o reino por suas submissões abjetas ao papa receberam o documento com altas aclamações e fizeram um juramento solene de conquistar ou de morrer em defesa de suas liberdades. Após várias conferências e atrasos, quarenta e cinco barões, armados, bem montados em seus cavalos de guerra e cercados de seus cavaleiros, servos e soldados, apresentam ao rei uma petição, rogando-lhe que renovasse e ratificasse a carta. João a princípio se ressentiu da presunção deles em um ataque de fúria, e jurou "que jamais lhes daria liberdades que tornariam ele próprio um escravo". Mas os barões estavam firmes e unidos, e a corte de João rapidamente diminuiu. Ele eventualmente se submeteu e concordou em participar de uma conferência amigável. Os barões nomearam Runnymede como o local apropriado para a reunião. Era um prado situado entre Staines e Windsor -- o terreno é até hoje venerado como o lugar em que o padrão da liberdade inglesa foi primeiramente concebido. No dia 15 de junho de 1215, ambas as partes se encontraram ali, e o rei assinou a carta -- a grande carta das liberdades da Inglaterra.

A Inglaterra Rendida a Roma

Como se não fosse do interesse ou da intenção de "Sua Santidade" permitir que os assuntos fossem levados a extremos, o vigilante papa viu que tinha chegado sua hora de interferir. Dois legados, Pandolfo e Durando, foram enviados com as exigências finais de Inocêncio a João. Eles o asseguraram de que o rei da França estava pronto para invadir a Inglaterra com um grande exército e uma frota poderosa, e que ele viria acompanhado de arcebispos, bispos e clérigos a quem João havia banido; que eles transfeririam sua lealdade a seu rival Filipe, e que colocariam a coroa em sua cabeça. Com muitas declarações como essas, eles aterrorizaram o rei, que perdeu todas as suas posses pessoais, e lançou-se a si mesmo e ao seu reino nas mãos dos legados, sem reservas. Com uma mesquinhez de espírito e uma submissão abjeta que não conhecia limites, ele colocou sua coroa aos pés dos arrogantes legados, renunciou a Inglaterra e a Irlanda às mãos do papa, jurou homenagem a ele como seu suserano, e fez um juramento de lealdade aos seus sucessores. Os termos desse notável juramento são longos e prolixos demais, mas a substância, a essência deles, é apresentado pela Enciclopédia Britânica como segue:

"Eu, João, pela graça de Deus Rei da Inglaterra e Senhor da Irlanda, de modo a expiar meus pecados, de minha própria livre vontade e pelo conselho de meus barões, concedo à Igreja de Roma, ao Papa Inocêncio e a seus sucessores, o reino da Inglaterra e todas as demais prerrogativas de minha coroa. Irei doravante considerar-me como vassalo do papa. Serei fiel a Deus, à Igreja de Roma, ao papa, meu mestre, e aos seus sucessores legitimamente eleitos. Prometo pagar-lhe um tributo de 1000 merks*, a saber, 700 pelo reino da Inglaterra e 300 pelo reino da Irlanda." Essa memorável submissão ocorreu no dia 15 de maio de 1213, no décimo quarto ano de seu reinado, na casa dos Templários, não muito longe de Dover.

{*Merk é uma antiga moeda de prata escocesa, que valeria, nos dias de hoje, cerca de uma libra esterlina. Esse montante deveria ser pago anualmente, além do dinheiro devido à cadeira de Pedro.}

Esse juramento foi feito pelo rei ajoelhado diante de todo o povo e com suas mãos levantadas entre aqueles legados. As testemunhas que atestaram o juramento foram: um arcebispo, um bispo, nove condes e quatro barões. Tendo então concordado com a posse de Langton como primaz da Inglaterra, ele recebeu de volta a coroa que deveria ter perdido. O cauteloso e político Pandolfo, tendo recebido a lealdade do rei da Inglaterra e oitenta mil libras esterlinas como compensação pelos bispos exilados, rapidamente juntou as escrituras e os sacos de dinheiro e apressou-se a reunir os clérigos banidos na Normandia para dividir o dinheiro. Em seguida, apressou-se ao acampamento do rei Filipe Augusto e, encontrando o exército no ponto de embarque para a Inglaterra, friamente informou o rei "que não havia então mais necessidade de seus serviços; e que, na verdade, qualquer tentativa de invadir o reino, ou de perturbar o rei da Inglaterra, seria altamente ofensivo para a santa Sé, em virtude de que esse reino era agora parte e parcela do patrimônio da igreja: era, portanto, seu dever dispensar seu exército, e ele próprio retornar para casa em paz". Quando Filipe descobriu que havia sido tão estupidamente enganado, rompeu em uma tempestade de injúrias indignadas contra o papa. "Ele tinha sido arrastado para uma enorme despesa; tinha chamado para a guerra toda a força de seus domínios, sob a promessa ilusória de um reino e da remissão de seus pecados; tudo isso ele tinha feito em súplica ardente para com o papa. E então toda a cavalaria da França, em armas ao redor de seu soberano, deveria ser dispensada como servos contratados quando não havia mais uso para seu serviço?" Porém, a fúria do rei foi respondida com uma fria repetição da ordem: "Desista das hostilidades contra o vassalo da Santa Sé."*

{*Cathedra Petri, livro 13, p. 588.}

O desapontamento e mortificação de Filipe foram grandes; mas, não se atrevendo a ofender o papa e não estando disposto a se desfazer de seu exército sem ao menos tentar alguma empreitada, ele desceu a Flandres (região flamenga). Fernando, o conde, embora fosse um aliado da França, tinha entrado em uma liga secreta anti-francesa com João, o que deu  a Filipe um justo pretexto para voltar suas armas contra esse vassalo revoltado. Porém, as frotas da Inglaterra se uniram aos flamengos, e assim a tentativa de conquistar Flandres terminou em uma derrota vergonhosa. Os ingleses capturaram trezentos navios e destruíram cerca de cem outros: enquanto Filipe, vendo ser impossível impedir que o resto caísse nas mãos do inimigo, incendiou-os ele mesmo, e então abandonou a empreitada. Tal foi a pesada perda e desconforto de Filipe no decorrer da profunda trama arquitetada por Inocêncio.

A Coroa da Inglaterra Oferecida à França

Tendo sido a sentença papal de deposição contra o rei da Inglaterra pública e solenemente promulgada, Filipe da França foi delegado para executar o decreto. Os legados colocaram em suas mãos uma comissão formal o direcionando, pela autoridade apostólica, a invadir a Inglaterra, depôr o rei e tomar sua coroa. O historiador observa que os legados e prelados (clérigos) fingiram estar agindo sob o maior dos zelos e seriedade ao tratarem de todo o assunto, ao passo que não era nada além de mero artifício. Nada estava mais longe da mente de Inocêncio do que a união das duas coroas em uma só cabeça. Isso teria fortalecido a França, não a Sé Romana. Filipe não havia se esquecido da insolência do papa ao interditar seu reino e excomungá-lo; mas seu ódio por João, seu amor por empreendimentos e a traição do papa o cegaram completamente. Ele confiou no papa, mas cometeu um erro ruinoso. Nem um momento, no entanto, foi perdido por Filipe ao reunir uma frota e um exército numeroso para a invasão da Inglaterra. 

O papa, ao mesmo tempo, anunciou uma cruzada sobre toda a Cristandade contra o ímpio rei João, prometendo a todos que participassem nessa guerra santa a remissão dos pecados e os privilégios dos cruzados. Mas o rei caído não queria ceder nem com vigor nem com sutileza. Ele reuniu uma grande frota em Portomua e um exército em Barham Downs, próximo à Cantuária, assumindo uma posição agressiva: mas logo descobriu que em seu grande exército não havia muitos em quem se podia confiar. Enlouquecido, ele ameaçou se tornar muçulmano e buscou uma aliança com o califa; mas nesse momento, o espírito do rei impaciente sofreu uma repentina revolução. Da altura de sua raiva desafiadora, ele caiu até as mais baixas profundezas da prostração e do medo.

A Inglaterra sob o Banimento Papal

Em um momento, todos os ofícios divinos por todo o reino cessaram, exceto o rito do batismo e a extrema unção. "Desde Berwick até o Canal Britânico", diz um relato sobre essa terrível maldição, "desde Land's End até Dover, as igrejas foram fechadas, os sinos silenciados; os único clérigos que se viam por aí, silenciosamente, eram aqueles que deviam batizar recém-nascidos, ou que ouviam a confissão dos moribundos. Os mortos eram lançados fora das cidades, enterrados como cães em qualquer lugar não consagrado, sem orações, sem o tocar dos sinos, sem o rito funeral. Apenas podem julgar o efeito do interdito papal aqueles que consideram quão completamente toda a vida de todas as classes de pessoas era afetada pelos rituais e ordenanças diárias da igreja. Cada ato importante era feito sob o conselho dos padres e monges. Os festivais da igreja eram os únicos feriados, as procissões da igreja os únicos espetáculos, as cerimônias da igreja o único entretenimento. Não ouvir qualquer oração ou canto, supôr que o mundo estava rendido ao poder irrestrito do diabo e de seus espíritos malignos, sem santo algum para interceder, sem nenhum sacrifício para aplacar a ira de Deus; quando nenhuma imagem sequer era exposta à vista, nenhuma cruz havia que não estivesse velada: a relação entre o homem e Deus totalmente quebrada; almas deixadas a perecer, ou no máximo relutantemente permitidas à absolvição no momento da morte." E, de outras partes, aprendemos que, de modo a inspirar a mais profunda melancolia e fanatismo, não se permitia que se cortassem os cabelos ou as barbas; o consumo da carne era proibido, e até mesmo a saudação comum era proibida.

Tal foi o estado da Inglaterra por pelo menos quatro anos. A miséria pública foi grande e universal; mas nem a miséria dos indivíduos nem as privações religiosas dos cristãos moveram o coração obturado do rei nem do pontífice. O triunfo do pastor de Roma sobre um grande reino era muito mais desejado do que o bem-estar do rebanho. Os clérigos que publicaram o edito, juntamente com outros bispos ricos, fugiram do reino. "Lá viviam eles", diz o historiador, "em abundância e luxúria, em vez de permanecerem em defesa pela casa do Senhor, abandonando seus rebanhos para o lobo voraz". O tirano vingativo João parecia desafiar e tratar com insolente desdém os terríveis efeitos do edito sobre os seus sofredores súditos. Ele se regozijava em sua vingança contra os bispos e padres que obedeciam ao papa. Ele confiscou a propriedade do clero superior e dos monastérios por toda a Inglaterra e obrigou os judeus a cederem suas riquezas por meio de prisão e tortura. Esse estado de coisas durou quase dois anos quando uma nova bula pontifícia* foi emitida.

{* A bula pontifícia é um alvará passado pelo Papa ou Pontífice católico, com força de lei eclesiástica, pelo qual se concedem graças e indulgências aos que praticam algum acto meritório. O termo bula refere-se não ao conteúdo e à solenidade de um documento pontifício, como tal, mas à apresentação, à forma externa do documento, a saber, lacrado com pequena bola (em latim, "bulla") de cera ou metal, em geral, chumbo (sub plumbo). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bula_pontif%C3%ADcia}

O astuto papa tinha assistido de perto o efeito do primeiro edito e, vendo que João estava perdendo seus amigos e se tornando mais impopular, publicou a sentença de excomunhão contra o nome e a pessoa do soberano. Ainda assim, os hábitos desprezíveis de João eram tais que, embora desafiasse o papa e a hierarquia, ao mesmo tempo alienava as afeições de todas as classes de pessoas no país. Mais uma vez, o papa viu sua oportunidade, emitindo outra bula ainda mais assustadora. Os súditos de João foram absolvidos de sua lealdade ao rei e ordenou-se que evitassem sua presença. Mas, com aquela indiferença estoica para com o sofrimento humano que ele uniformemente manifestava, determinou que tanto ele próprio quanto a nação deveriam enfrentar completamente a vingança de Roma. Os trovões papais pareciam não causar qualquer efeito sobre o rei insensível e irreligioso, e tivesse ele tratado mais sabiamente seus nobres e seu povo, nem o maior dos papas nem os seus ataques mais pesados surtiriam qualquer efeito sobre o povo da Inglaterra. Mas agressiva avidez, as barbaridades e a conduta ultrajante do rei afastaram de si todas as classes de pessoas. O desafeto para com ele crescia de murmurações a quase revoltas. Inocêncio, observando esse fermento de descontentamento trabalhando tão eficazmente na Inglaterra, preparou-se para lançar sua última e mais perigosa rajada contra o contumaz soberano. "O interdito tinha ferido a terra, a excomunhão tinha profanado a pessoa do rei, restando apenas o ato de deposição do trono de seus pais, que foi então pronunciada: 'Que João, rei da Inglaterra, seja deposto da coroa e dignidade real; que seus súditos sejam absolvidos de seu juramento de lealdade, e estejam livres para transferi-lo a uma pessoa mais digna de preencher o trono vago.'"*

{*Cathedra Petri, de Greenwood, livro 13, p. 582; Latin Christianity, de Milman, vol. 4, p. 90; History of the Church, de  Waddington, vol. 2, p. 167.}

O trono da Inglaterra estava então pública e solenemente declarado vago pelo decreto do papa, e os domínios do rei eram os despojos, por direito, de qualquer que pudesse arrancá-los de suas mãos imorais. Tal era o poder dos papas naqueles dias, e tal o terror de seus trovões. Ele golpeava grandes nações com seus anátemas, e elas caíam diante dele mirradas e feridas; ele arrancava grandes reis de seus tronos, e os obrigava a se curvarem diante da tempestade de sua ira e a obedecerem humildemente ao mandato de sua vontade. Todos, sem exceção, na Igreja e no Estado, deviam aceitar seus próprios termos de reconciliação, ou morreriam sem salvação e seriam atormentados nas chamas do inferno para sempre. O altivo e esperto Filipe Augusto da França foi domado em poucos meses, enquanto o fraco e desprezível João desconsiderou suas fulminações por anos, apenas para receber, no final, um golpe ainda mais pesado, e acabasse se submetendo a uma profunda humilhação. Veremos agora como isso foi cumprido; e, na trama, o leitor também perceberá a profunda astúcia e sedução do papa. Não teremos dificuldade, ao tratarmos desse assunto, em enxergar nisso as profundezas de Satanás.

domingo, 5 de maio de 2019

João e o Papado

Deixemos agora a história civil, e voltemo-nos mais diretamente à história eclesiástica dos assuntos na Inglaterra nesse interessante momento.

Vimos o papa ignorando as graves imoralidades de João, por conta, supomos, dele ter sido um partidário de Otão e o aliado da Santa Sé, mas João era agora culpado de crimes que sua Santidade não podia ignorar. Suas irregularidades matrimoniais, ainda que criminosas, poderiam ser permitidos passar sem censura; mas a deposição de sés (arcebispos), a imposição de impostos sobre os mosteiros e a interferência na nomeação de um primaz o levaram a uma colisão direta com o papado, e o envolveram numa contenda feroz com seu até então aliado, o papa Inocêncio.

Imediatamente após a morte de Hubert Walter, arcebispo de Cantuária, os monges mais jovens apressadamente elegeram seu vice-prior, Reginaldo, à cadeira vazia. Mas logo percebendo que tinham agido imprudentemente, pediram ao rei para que pudessem realizar uma nova eleição. A escolha de um bispo estava realmente nas mãos do soberano, embora nominalmente estivesse nas mãos do clero. Tal era o sistema anglo-normando. O rei recomendou um de seus principais conselheiros, João de Grey, bispo de Norwich, que foi escolhido, investido com as temporalidades da Sé, e enviado a Roma para confirmação. O papa agora via sua oportunidade, e ansioso por ampliar seu poder na Inglaterra, anulou ambas as eleições, tanto de Reginaldo quanto de João de Grey, e ordenou a eleição de Stephen Langton, um inglês de nascimento, homem erudito e prudente, e de excelente caráter. Não havia pessoa mais adequada que o papa pudesse nomear; mas sua ação desafiava o privilégio reivindicado pelos monges, o direito de sufrágio dos bispos, e o próprio rei. Em vão os representantes de Cantuária e os comissários do rei insistiram na necessidade do consentimento do rei. Inocêncio decidiu em contrário. Ele os constituiu para uma comissão baseada na "autoridade de Deus e da Sé Apostólica". Os monges se encontravam então entre dois tiranos -- o espiritual e o temporal. Doze deles estavam sob juramento ao rei para não elegerem qualquer outro além do bispo de Norwich, mas o papa ordenou que eles elegessem Langton, sob pena de excomunhão e anátema. Intimidados por essa terrível ameaça, a comissão finalmente cedeu ao tirano espiritual e prosseguiu à eleição de Stephen, e em 17 de junho de 1207, o papa o consagrou Arcebispo de Cantuária.

Tal interferência com os direitos da igreja estabelecida e com a prerrogativa da coroa era algo totalmente novo na Inglaterra. Se João tivesse sido um príncipe popular cercado pela força e pela aprovação de seu povo insultado, ele poderia ter rido de desprezo da ousada presunção e ameaças de um padre estrangeiro, mas a insensatez e falta de popularidade do rei deu ao papa a oportunidade que ele desejava. Os monges de Cantuária, em seu retorno de Roma, foram acusados de alta traição, e foram consequentemente expulsos de suas residências, e suas propriedades foram confiscadas. Mas a fúria do rei não conhecia limites; ele despachou uma tropa de cavalos para expulsar os monges para fora do país e, em caso de resistência, matá-los. As ordens foram executadas da forma como foram dadas. Os soldados invadiram o mosteiro com espadas desembainhadas; o prior e os monges foram ordenados a deixar o reino, e ameaçados, se resistissem ou se demorassem, a ver seu mosteiro em chamas, e eles próprios lançados nessas chamas. Muitos deles fugiram e encontraram asilo em Flandres. O rei também se entregou à mais insultante e pungente linguagem para com o pontífice, protestando que nunca aceitaria Stephen Langton como primaz, que ele manteria o direito do bispo de Norwich, e, em caso de recusa do papa, que cortaria todas as comunicações entre seus domínios e Roma. Mas o papa prosseguiu com não menos energia que João, mas com uma dignidade mais calma.

No curso de mais algumas trocas de cartas, o papa discorreu mais ainda sobre a erudição e piedade de Langton, e exortou o rei a se abster de tomar armas contra Deus e Sua igreja; mas, como João não fez nenhuma concessão, Inocêncio ordenou que os bispos de Londres, Worcester e Eli colocassem todo o reino sob um interdito. Quando os bispos entregaram a mensagem, a ira do rei irrompeu em juramentos e blasfêmias selvagens. Ele jurou que, se o papa ou o clero colocassem o reino sob um interdito, ele expulsaria os bispos e os prelados do reino "sem olhos, orelhas ou narizes, para serem os espantalhos de todas as nações". Os prelados se retiraram, e, quando estavam a uma distância conveniente de João, publicaram o interdito. 

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