domingo, 31 de março de 2019

A Morte de Filipe

A paz então parecia ter sido assegurada de ambos os lados. Filipe tinha alcançado seu maior objetivo. Uma proposta de casamento entre Otão e Beatriz, a filha de Filipe, tinha sido sancionada pelo papa, sob a pretensão de curar a longa disputa entre as casas da Suábia e da Saxônia. Mas incerto é o mandato de toda a grandeza e glória humana. Em 21 de junho de 1208, o imperador Filipe, um dos mais hábeis e gentis de sua raça, foi assassinado pelo conde palatino de Baviera por alguma ofensa particular. O país ficou paralisado pelas notícias sobre o terrível crime. A execração da humanidade perseguiu o assassino; seu castelo foi derrubado até o chão e o assassino foi morto com muitas feridas.

Inocêncio então retraçou seus passos. O crime do bávaro o aliviou da humilhação de sua apostasia. Ele apressou-se a escrever aos príncipes germânicos, os exortando a estarem de acordo com a manifesta declaração de divina providência em favor de Otão. Ele usou todos os meios em seu poder para prevenir uma nova eleição, e para unir todos os partidos em seu apoio, e calorosamente exortou Otão à moderação e conciliação. Em ambos os lados havia um ardente desejo por paz, e Otão foi então eleito o indiscutível imperador.

No ano seguinte, 1209, ele foi para a Itália para receber a coroa imperial. Ele foi recebido por príncipes, prelados e nobres do império, com um numeroso exército de dependentes militares. A marcha deles foi uma sucessão de recepções festivas. As cidades abriram seus portões para dar as boas vindas ao defensor da igreja e imperador escolhido pelo papa. Inocêncio e Otão se encontraram em Viterbo. "Eles se abraçaram, enxugaram lágrimas de alegria, em lembrança de suas provações em comum, enquanto eram transportados ao seu triunfo em comum". Mas o papa não esqueceu a prerrogativa de seu trono pontifício. Ele exigiu, por segurança, que Otão entregasse, imediatamente após sua coroação, as terras da igreja, e entregasse toda pretensão à herança longamente disputada da condessa Matilde. Mas tão bom, tão humilde e tão submisso foi Otão, enquanto se ajoelhava para receber o diadema, que seu coração se entristeceu ante a aparente suspeita de sua lealdade por seu santo padre. "Tudo o que eu fui", exclamou ele, "tudo o que sou,  tudo o que eu serei, depois de Deus, eu devo a ti e à igreja." 

A Guerra Civil na Alemanha

Ricardo, rei da Inglaterra, e Filipe Augusto (Filipe II), rei da França -- que abraçou calorosamente a causa de Filipe -- não pouparam elogios e confissões para conquistar o papa para o partido de seus respectivos candidatos. Mas ele postergou a decisão de tomar partido, tendo em vista outros objetivos para ser tão direto. Enquanto isso, a guerra estourava ao longo do rio Reno. Filipe, no início, ganhou grandes vantagens, avançando quase até os portões de Colônia, mas um poderoso exército dos prelados do Reno e de nobres de Flandres obrigou Filipe a se retirar. A maior e mais poderosa parte do império reconhecia e apoiava a causa de Filipe; o clero e o Conde de Flandres estavam quase sozinhos ao lado de Otão.

Foi uma guerra civil feroz e bárbara. Ao final do primeiro ano, a sorte favoreceu a causa de Filipe. A morte de Ricardo, em 1199, tinha privado Otão de seu mais poderoso aliado. João, que o sucedeu, não estava disposto a investir parte de seu dinheiro em um jogo tão distante e incerto. A guerra podia então ter terminado com uma boa demonstração de honra, até mesmo para Otão; mas a vingança papal contra a odiada casa de Hohenstaufen ainda não estava completa. O papa apoiou abertamente a causa do usurpador, Otão; e por nove anos longos e sombrios, com curtos intervalos de trégua, a Alemanha foi lançada, pelo "tenro pastor" do rio Tibre, a todos os horrores de uma guerra civil. Mas a política fraudulenta de Inocêncio logo tornou-se visível a todos. Seu rebanho sofredor acusou-o e reprovou-o como o culpado por todas as suas misérias, por ter provocado, inflamado e atiçado o desastroso conflito, apenas pela gratificação de seu próprio propósito maligno de arruinar a casa real de Henrique, o Severo. Era necessária toda a sua inteligência, com a ajuda de Satanás, para que pudesse ser absolvido da acusação.

Mas a guerra tinha feito seu trabalho -- seu trabalho de dragão. "Foi uma guerra, não de batalhas decisivas, mas de saqueadores, desolação, devastação de colheitas, pilhagem, destruição de países abertos e sem defesa -- uma guerra, travada por clérigos contra clérigos, por príncipe contra príncipe; boêmios selvagens e soldados bandidos de todas as raças percorriam cada província. Por toda a terra não havia lei; as estradas eram intransitáveis por causa dos salteadores; nada era poupado, nada era tido como sagrado, nem igreja nem claustro". Tal, e daí para pior, foi a guerra civil na Alemanha. No entanto, a mente implacável daquele homem desgraçado continuava a trovejar suas anátemas contra Filipe; declarou todos os juramentos que tinham sido feitos a ele nulos e vazios, e regalou de privilégios e imunidades de todos os tipos aos bispos e sociedades monásticas que abraçavam o partido de Otão. Mas os trovões do Vaticano tornaram-se inúteis, e a força de Filipe aumentava ano após ano.*

{* J.C. Robertson, vol. 3, p. 297. Milman, vol. 4, p. 51. Neander, vol. 7, p. 236.}

Nem mesmo a mente inflexível de Inocêncio podia escapar do poder dos acontecimentos. Ele se sentia ameaçado com a humilhação de uma derrota total. Ao final de dez anos, não havia mais esperança para a causa de Otão. Mas como pode o papa esquecer seus votos de implacável inimizade contra a casa da Suábia, ou lutar por seus votos de aliança perpétua com a casa da Saxônia? Ele tinha que encontrar algum motivo santo e piedoso para abandonar a causa de Otão, e abraçar a causa de Filipe. Seu orgulho encontrou grande dificuldade em cobrir a vergonha de sua depreciada posição, mas Filipe fez tantas declarações e promessas ao papa, por meio seus embaixadores, que ele viu como dever receber de volta seu filho penitente, e absolvê-lo das censuras da igreja. O legado papal foi até Metz, e ali o proclamou como imperador vitorioso.

Filipe e Otão

Filipe tinha vinte e dois anos de idade, e Otão vinte e três. "No caráter pessoal", dizem os cronistas, "em riqueza, e em número de aderentes, Filipe tinha a vantagem. Ele foi louvado por sua moderação e seu amor pela justiça. Sua mente tinha sido cultivada pela literatura a um grau muito incomum entre príncipes, e seus modos populares contrastavam favoravelmente com o orgulho e aspereza de Otão. Mas Otão era o favorito do grande corpo de clérigos, a quem Filipe era detestável, sendo representante de uma família que era considerada opositora aos interesses da hierarquia clerical."*

{*J.C. Robertson, vol. 3, p. 292.}

Mas -- pode o leitor perguntar -- e quanto ao jovem Frederico, que tinha sido coroado e ungido, e a quem ambos os príncipes e prelados tinham jurado lealdade, e sobre cujos direitos o papa foi generosamente pago para vigiar e cuidar? A única resposta a essa pergunta é encontrada na política secreta, porém pérfida, de Inocêncio. Seu único grande objetivo em permitir, se não em criar, essa grande disputa nacional pela coroa imperial, era a humilhação da arrogante casa da Suábia, de modo que toda consideração dos subordinados deviam ser sacrificados objetivando a limitação desse poder. Mas à consciência elástica do papado nunca faltava um motivo aparentemente piedoso para a perpetração das maiores iniquidades, ou da mais infiel e traiçoeira conduta. Inocêncio não podia negar as reivindicações de Frederico, e portanto faz uma demonstração de alta equidade ao admiti-la. Essa era a voz do dragão. Ele admite a legalidade de sua eleição, e o juramento de lealdade tomado pelos nobres do império. Mas, por outro lado, ele desenterra o fato de que o juramento foi exigido pelo pai antes do filho ter se tornado um cristão pelo batismo. Ele decretou que uma criança de dois anos de idade, não batizado, era uma nulidade: portanto seus juramentos eram nulos e vazios e todas as obrigações para com o jovem herdeiro foram inteiramente deixadas de lado.

Que caráter, podemos exclamar, para a posteridade contemplar! Ele que assumia ser "o representante da justiça eterna e imutável de Deus sobre a terra, absolutamente acima de toda paixão ou interesse", agora absolve todo o eleitorado da Germânia do mais solene juramento de fidelidade ao herdeiro legítimo do reino. Em vez de manter os direitos de sua ala -- a quem ele escreveu quando aceitou o cargo de cuidador de Frederico, "que apesar de Deus o ter visitado pela morte de seu pai e mãe, ele tinha lhe dado um pai mais digno -- Seu próprio vigário na terra; e uma melhor mãe -- a igreja" -- repreendendo os partidos rivais e os persuadindo à paz, o vemos fomentando a animosidade de ambos; vemos a justiça, a verdade, a paz, e toda reivindicação de humanidade, sacrificada na esperança do aumento e consolidação do poder papal. O astuto papa manteve-se por trás da cena, mas era ele que atiçava e alimentava a chama da contenda, sabendo que ambos os partidos seriam obrigados, pela perda de sangue e tesouros, a colocar a causa aos seus pés, e então ele poderia vir como o soberano diretor dos reis, podendo então ditar seus próprios termos. Essas convicções se confirmaram totalmente pelo seguinte juízo dado pelo historiador e decano Milman: "Dez anos de lutas e guerra civil na Alemanha devem ser traçadas como provenientes da obstinação inflexível do Papa Inocêncio III"*.

{* Latin Christianity, vol. 4, p. 33.}

domingo, 17 de março de 2019

Inocêncio e o Império

Antes do final do ano agitado em que estivemos viajando, Constança, a princesa siciliana e imperatriz germânica, morreu. Em 27 de novembro de 1198, ela deu seu último suspiro. Alguns supõem que sua morte foi acelerada pela preocupação maternal que ela tinha por seu filho pequeno, Frederico. Ele tinha, então, cerca de quatro anos de idade, tinha sido coroado rei da Sicília, e era herdeiro do império. Em seu testamento ela o legou à tutela do papa como seu suserano, e solicitou que trinta mil peças de ouro fossem pagas anualmente ao papa por sua piedosa proteção ao seu filho, e que todas as suas outras despesas fossem pagas por meio dos impostos arrecadados do país.

Mas a tranquilidade de Roma não estava assegurada por seus grandes sucessos. A guerra civil, com todos os seus horrores, foi renovada. O pontífice não perdeu tempo em dar a conhecer, em mais alta expressão aos nobres da Sicília, sua ascensão ao governo como regente, e encarregou um legado de administrar o juramento de lealdade. Marcovaldo, enquanto isso, ouvindo sobre a morte da imperatriz, apelou para seu título de senescal* do Império, e, por meio de um documento que professava ser a vontade do último imperador, reivindicou a regência da Sicília durante a minoridade do jovem rei. Para apoiar essas reivindicações, ele tinha reunido uma grande força de aventureiros, sitiou e obteve posse de uma das cidades papais, Germano, e quase se tornou o mestre do grande mosteiro de Monte Cassino, que foi defendido por oito anos por uma guarnição do papa; mas um novo suprimento de tropas e provisões de Roma fortaleceram a posição dos monges guerreiros, obrigando o grande duque a levantar o cerco. De acordo com as melhores autoridades, Inocêncio então assumiu a mais bélica atitude. Ele emitiu uma proclamação, convocando todo o reino de Nápoles e Sicília à guerra. Ele reuniu tropas da Lombardia, Toscana, Romanha e Campânia, pagando-as do tesouro papal. Marcovaldo e todos os seus cúmplices foram excomungados da forma mais solene todos os domingos, com o apagar de velas** e o soar das campainhas. Todo o reino foi devastado pelos exércitos do papa e pelos soldados do império. Mas a morte do chefe dos rebeldes, Marcovaldo, no ano de 1202, aliviou o papa de seu mais poderoso e bem-sucedido antagonista.

{*N. do T.: Um senescal era um oficial nas casas de nobres importantes durante a Idade Média. No sistema administrativo francês medieval, o senescal era também um oficial real, encarregado da aplicação da justiça e do controle da administração nas províncias do sul, equivalente ao '"bailio" do norte da França. Fonte: Wikipedia}

{**N. do T.: O apagar de velas representava a extinção das vidas representadas com a comunhão da igreja.}

Voltemos agora um pouco para observar o funcionamento dessa mesma mente poderosa nos complicados assuntos do império.

Um imperador infantil, agora um órfão; um trono vago, ferozmente contestado por príncipes rivais; isso tudo abriu um campo ainda mais amplo para a ambição papal.

O objetivo imediato da política de Inocêncio era separar o reino da Sicília do império. Enquanto ambos permanecessem debaixo das mesmas mãos, um soberano mais poderoso do que ele próprio poderia ser colocado no trono siciliano. A possibilidade de um vizinho tão poderoso deveria ser removida. A disputa então pela posse da coroa deu-lhe a oportunidade desejada. As tropas, sendo solicitadas em seus respectivos territórios, foram retiradas da Sicília, Apúlia e Cápua. As guarnições sendo assim reduzidas, o domínio germânico foi derrubado, os países separados do império, e a autoridade papal estabelecida pela força.

Imediatamente após a morte de Henrique, seu irmão, Filipe, duque da Suábia, tomou posse dos tesouros imperiais, declarou-se regente do reino e protetor dos interesses de seu jovem sobrinho. E até então ele parecia agir por um motivo correto. Mas um imperador infantil era algo contrário ao costume germânico, e inadequado para aqueles tempos difíceis. Um partido adverso rapidamente se ergueu, e se opôs fortemente à eleição do filho como rei. Os partidários da casa de Hohenstaufen pediram a Filipe que se tornasse representante de sua família, em oposição aos outros candidatos à coroa. Ele consentiu, tendo sido escolhido defensor do reino por um grande corpo de príncipes e prelados reunidos em Mulhausen.

O partido que se opunha à família suábia era encabeçada por Adolfo de Altena, arcebispo de Colônia. Essa facção era principalmente composta de grandes clérigos do Reno. Tal era a principal ocupação dos prelados e clérigos naqueles dias. Eles estavam determinados a levantar um antagonista à casa de Hohenstaufen. Após vários príncipes terem recusado tornarem-se candidatos à dignidade imperial, os clérigos voltaram seus pensamentos à casa da Saxônia, a irreconciliável adversária da casa da Suábia. A escolha deles caiu sobre Otão IV, o segundo filho de Henrique, o Leão, duque da Saxônia.

Em consequência da família de seu pai ter caído sob o banimento do império, ele foi levado à corte da Inglaterra. Sua mãe Matilda era irmã do rei Ricardo Coração de Leão. O jovem cavaleiro tinha mostrado sinais de bravura que Ricardo admirava, e criou Otão como o primeiro conde de York e Poitou. Bem guarnecido com ouro inglês e com alguns poucos seguidores, ele partiu, chegou à Colônia, onde foi proclamado imperador do Império Romano-Germânico e defensor da igreja.

terça-feira, 5 de março de 2019

Inocêncio e as Propriedades da Igreja

A morte de Henrique, os ciúmes e rivalidades dos chefes germânicos, e o estado exasperado dos italianos, preparou o caminho para o pleno exercício dos grandes poderes da administração de Inocêncio. As crueldades do imperador Henrique para com seus súditos italianos haviam atiçado todo o país em busca de revolta. Eles estavam apenas aguardando um libertador do jugo germânico. Esse libertador era Inocêncio. Ele convocou Marcovaldo, o mais formidável dos tenentes imperiais no comando, para que entregasse a São Pedro todas as propriedades da igreja. Marcovaldo fez uma pausa: embora ele fosse um homem ousado e ambicioso, e possuidor de grande riqueza e poder, ele desejava evitar uma disputa aberta com o papa. Ele estava consciente do perigo que corria pelo ódio que o povo nutria contra o jugo estrangeiro; e assim esforçou-se em conseguir uma aliança com muitas promessas de serviço à igreja. Mas o papa permaneceu firme e resistiu a todas as suas ofertas, fossem de dinheiro ou de serviço. Ele exigiu a entrega incondicional e imediata de todos os territórios da igreja. Marcovaldo recusou. O povo se levantou para apoiar as reivindicações do papa. A guerra começou. As bandeiras germânicas foram rasgadas, cidade após cidade se ergueu em rebelião e lançou ao chão tudo o que fosse germânico. Marcovaldo, insultado e ardendo em ira, "vingou-se ao sair dos portões de Ravena, devastando toda a região, queimando, saqueando, destruindo propriedades e colheitas, castelos e igrejas. Inocêncio abriu os tesouros papais, pegou emprestado grandes somas de dinheiro, ergueu um exército, e lançou uma excomunhão contra o vassalo rebelde da igreja, na qual ele absolvia de seus juramentos todos os que tinham jurado lealdade a Marcovaldo"*.

{*Milman, vol. 4, p. 19}

A queda de Marcovaldo encheu os outros de consternação. Eles propuseram termos de paz e ofereceram pagar tributo, mas Inocêncio não queria aceitar nada. Ele reivindicou a posse dos domínios patrimoniais sem reservas, declarou-se herdeiro da doação da condessa Matilde, e soberano do ducado da Toscana. Mas nenhum evento, vindo em consequência à doença do Imperador, foi mais importante para o papado do que a conduta infiel da imperatriz Constança. Imediatamente após a morte de seu marido, embora tivesse deixado a guarda natural do reino, separou-se da causa germânica e retornou à Sicília com seu filho pequeno Frederico. Ela abraçou os interesses de sua terra natal, lançou-se nos braços da Santa Sé, fez com que seu filho fosse coroado em Palermo, e solicitou a investidura pontifícia do reino para seu filho como um feudo da sé papal. Inocêncio viu sua própria força, sua fraqueza, e fez seus próprios termos. A imperatriz e seu filho foram obrigados a reconhecer a superioridade feudal absoluta do papa sobre todo o reino de Nápoles e Sicília, e que pagassem um alto tributo anual. Os guerreiros germânicos foram obrigados a se retirarem para os castelos no continente, mas apenas para que meditassem em sua presente derrota e futura vingança.

As conquistas de Inocêncio tinham sido rápidas e estavam aparentemente completas. Em menos de um ano após sua ascensão ao trono papal, ele era virtualmente o rei da Sicília, e mestre de seus próprios grandes territórios. Por meio de seus legados, ele fez sua presença ser sentida e forçou obediência em todos os seus recém adquiridos domínios. Mas, como sempre, a besta na qual monta a mulher tornou-se ainda mais obstinada. Os territórios, fortalezas, cidadelas e terras, que tinham sido recuperadas dos germânicos, foram reivindicadas pela sé papal como sendo sua possessão. Mas, como tais exigências fossem tanto injustas quanto ilegais, a resistência da parte dos cidadãos e dos governadores imperiais foi a consequência natural, e por anos a Sicília e suas províncias foram palco de anarquia, violência, derramamento de sangue e incessantes intrigas. E ainda assim, nessa mesma época, Inocêncio lembrou aquelas cidades que se opunham a entregar-lhe o total benefício de sua duramente adquirida libertação, da terrível natureza do poder a que eles ousaram se opôr. A falta de confiança deles para com o papa era considerado um crime contra o próprio Senhor Jesus, cujo sucessor era ele, "alguém em que não havia pecado algum, nem na sua boca se achou engano". Podia a blasfêmia ser mais ousada, ou mais descarada? Poderia haver uma tentativa mais perversa de unir o dragão e o cordeiro?

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Inocêncio e o Reino da Sicília

Mas a cidade imperial, nesse momento, estava cercada por muitos vizinhos perigosos. Livrar-se deles foi, então, a primeira e importante questão com a qual Inocêncio tinha de lidar. As mais belas províncias da centro e do sul da Itália, até os portões de Roma, assim como o reino da Sicília, estavam sob o jugo feroz de temíveis aventureiros alemães. Aconteceu da seguinte maneira:

Henrique VI, o Severo, o Imperador Romano-Germânico, no ano de 1186 casou-se com Constança, herdeira legítima da coroa da Sicília, tomando o senhorio de todas as províncias normandas do sul da Itália.

A evidente vantagem dessa união com o Imperador, e a ameaça igualmente evidente ao papado, alarmou o atual pontífice, Lúcio III, o que o levou a tomar medidas de prevenção contra tal casamento. No entanto, ele morreu de repente, não conseguindo cumprir seu propósito. Seu sucessor, Urbano III, também não conseguiu romper o noivado, e o casamento foi celebrado no dia 27 de janeiro de 1186. Mas, como de costume, um pretendente à coroa da Sicília foi encontrado e apoiado pelo papado, o que levou a uma guerra cruel e desoladora que durou muitos anos. Henrique invadiu os território italianos com o propósito declarado de se apossar da herança de sua esposa. A expedição foi completamente bem-sucedida. Província após província caiu em suas mãos, e em pouco tempo todo o sul da Itália e o reino da Sicília se submeteram ao impiedoso tirano, o marido impiedoso de Constança. Antes de deixar os territórios conquistados, diz Greenwood: "Todos os grandes comandos militares foram concedidos aos mais distintos oficiais de seu exército. Castelos, terras, rendimentos, grandes poderes e dos mais diferentes tipos, foram despejados sobre a multidão de aventureiros e mercenários, cujo único objetivo era saquear, e cuja ganância não tinha o mais remoto respeito pelos direitos ou pelo bem-estar daqueles a quem foram designados a governar.

"Filipe, o irmão de Henrique, duque da Suábia, foi encarregado do governo da Itália central, incluindo os estados da Condessa Matilda e o ducado da Toscana. Markwald, um cavalheiro de Alsácia, o favorito do Imperador, foi feito duque de Ravena e Romanha. Conrado de Lutzenberg, um cavaleiro suábio, como duque de Espoleto, tomou posse daquela cidade e de seu domínio. Assim foram os estados pontifícios rodeados por uma cadeia hostil de fortalezas por todos os lados. A comunicação com o mundo exterior foi rompida. Mas a mão-mestre que era necessária para dirigir e controlar as diferentes guarnições foram repentinamente retiradas.

"Henrique morreu em Messina, em 28 de setembro de 1197, cerca de três meses antes da ascensão de Inocêncio."*

{*Cathedra Petri, livro 13, capítulo 1, p. 339}

Nos referimos, assim, rapidamente à ocupação militar do país quando Inocêncio tomou em suas mãos as rédeas do governo. Para mais detalhes, os livros de história podem ser consultados. Mas, como nosso objetivo neste capítulo é mostrar como o poder eclesiástico triunfou completamente sobre o poder civil, sentimos ser necessário mostrar a forte posição deste. E agora Inocêncio tinha um problema a resolver. Como poderia um único homem, por uma única palavra, subverter a força física do império, e compelir tanto o príncipe quanto o povo a se submeterem a um despotismo espiritual? O poder invisível para isso, sem dúvida, vem das profundezas do inferno. A mistura do cordeiro e do dragão, ou do homem de pecado, em um único poder, ou sistema, prova sua origem. (Ap. 13:11-18)

Inocêncio e a Cidade de Roma

Como um homem sábio, Inocêncio começou sua grande obra de vida reformando sua própria casa. Uma simplicidade rígida foi estabelecida no lugar do luxo da corte. A multidão de nobres e bem nascidos que antes lotavam o palácio foram dispensados, mas com belos presentes que os retinham como amigos, e que asseguravam seus serviços em ocasiões de alta cerimônia. Dos cidadãos, que clamavam pelo donativo com o qual eles tinham sido muitas vezes gratificados no início de cada novo reino, ele não se esqueceu, e assim assegurou o favor da multidão. Ele se assimilava à ousadia de Gregório VII, e à cautela política e paciência de Alexandre III. Ele conhecia os romanos e como administrá-los, e eles possuíam o pior caráter dentre todos os povos na história. Leia a evidência de São Bernardo ao escrever ao papa: "Por que eu mencionaria o povo? O povo é romano. Não possuo nenhum termo mais curto ou claro para expressar minha opinião sobre seus paroquianos. Pois o que mais poderia ser tão notório a todos os homens e eras como a devassidão e arrogância dos romanos? Uma raça não acostumada à paz, habituada ao tumulto -- uma raça impiedosa e intratável, e que neste instante despreza qualquer tipo de submissão que possa existir... A quem encontrarás até mesmo na vasta extensão de sua cidade que o teria como papa, a menos que fosse por lucro ou pela esperança de lucro, de promessa de fidelidade, de possuir melhores meios de machucar àqueles que neles confiam? São homens orgulhosos demais para obedecerem, ignorantes demais para governarem, infiéis a superiores, insuportáveis a inferiores, desavergonhados para perguntar, insolentes para recusar; importunos para obter favores, e incansáveis até obtê-los; ingratos quando os obtêm; grandes, eloquentes e ineficientes; muito mesquinhos, os mais falsos aduladores, e os mais venenosos detratores. Entre tais como esses procedes como pastor deles, coberto de ouro e de toda variedade de esplendor. O que suas ovelhas estão procurando? Se eu ousasse usar a expressão, eu diria que é um pasto de demônios, e não de 'ovelhas'."*

{*Waddington, vol. 2, p. 158}

Tal, como testemunhado por tal autoridade, era o caráter das pessoas que o novo pastor de Roma tinha em torno de sua pessoa, e a quem ele tinha que vigiar. Mas sua mente não ficaria desanimada, mesmo pelo estilo exaustivo de São Bernardo; com grande energia, prudência e habilidade, ele deu início ao seu reinado de sucesso.

Ao lado dos assuntos de sua própria casa, aqueles da cidade tinham sua atenção imediata. Seu primeiro objetivo era abolir o último vestígio da soberania imperial de Roma. Isto era um passo ousado, mas ele havia facilitado seu caminho ao distribuir, silenciosa e habilidosamente, dinheiro por todas as treze regiões da cidade. Até então, o prefeito de Roma mantinha seu ofício sob o Imperador, sendo representante da autoridade imperial. Mas Inocêncio o influenciou a rejeitar o poder imperial e submeter-se inteiramente ao poder papal. Ele tomou da mão dele a espada secular, o antigo emblema de seu poder, e o substituiu pelo cálice de prata, como símbolo da paz e amizade. O papa o absolveu de seu juramento de lealdade aos imperadores alemães, compeliu-o a fazer um forte juramento de fidelidade a si mesmo e a receber a investidura de suas mãos. Assim foi o último elo quebrado do poder imperial em Roma.

De modo semelhante, o novo papa persuadiu o senador, ou representante da legislatura, a renunciar, para que pudesse ser substituído por outro que se vincularia, por juramento, a si mesmo como soberano. Os juízes, oficiais, e todos os cidadãos eram obrigados a jurar obediência a sua majestade espiritual, e a reconhecer a exclusiva soberania da Santa Sé.

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