domingo, 22 de maio de 2016

O Segundo Decreto

Não muito tempo depois que o primeiro decreto tinha sido levado à execução por todo o império, rumores de revoltas na Armênia e Síria, regiões densamente populadas por cristãos, chegaram aos ouvidos do imperador. Essas confusões foram falsamente atribuídas aos cristãos, e proporcionaram um pretexto para um segundo decreto. Insinuava-se que o clero, como líderes dos cristãos, eram particularmente suspeitos nessa ocasião, e o decreto determinou que todos os que eram da ordem clerical fossem lançados na prisão. Assim, em um curto período de tempo, as prisões estavam cheias de bispos, presbíteros e diáconos.

O Primeiro Decreto

Por volta do dia 24 de fevereiro de 303, o primeiro decreto foi emitido. Ele ordenava que todos os que se recusassem a sacrificar aos ídolos deveriam perder seus cargos, suas propriedades, sua classe, e os privilégios civis; que os escravos que persistissem em professar o evangelho fossem excluídos da esperança da liberdade, que todos os cristãos de todas as classes deviam ser destruídos, que as reuniões religiosas deviam ser suprimidas, e que as Escrituras deviam ser queimadas. A tentativa de exterminar as Escrituras foi uma característica nova nessa perseguição e, sem dúvida, foi sugerida pelos filósofos que frequentavam o palácio. Eles estavam bem conscientes de que seus próprios escritos teriam pouca influência sobre a opinião pública se as Escrituras e outros livros sagrados estivessem em circulação. Imediatamente após essas medidas terem sido tomadas a igreja de Nicomédia foi atacada, os livros sagrados foram queimados, e os edifícios inteiramente demolidos em poucas horas. Por todo o império as "igrejas" dos cristãos deveriam ser derrubadas até o pó, e os livros sagrados deviam ser entregues aos oficiais do império. Muitos cristãos que recusaram entregar as Escrituras foram condenados à morte, enquanto aqueles que as entregaram para serem queimadas foram considerados pela igreja como traidores de Cristo, e mais tarde houve grandes problemas no exercício da disciplina para com tais pessoas. *

{* Pode ser do interesse do leitor saber que nenhum dos manuscritos do Novo Testamento existentes datam de antes da metade do quarto século. Um fato responsável por isso, em grande medida, é a destruição dos escritos cristãos, especialmente as Escrituras, no reinado de Diocleciano durante a primeira parte daquele século. Sob Constantino sabe-se que esforços especiais foram empreendidos para criar cópias fidedignas, das quais o famoso crítico Tischendorf acredita que os manuscritos do Sinai sejam uma.}

Mal este cruel decreto tinha sido afixado no local costumeiro e um cristão de classe nobre o rasgou. Sua indignação com a injustiça o levou de modo tão flagrante a um ato de zelo imprudente - a uma violação daquele preceito do evangelho que ordena o respeito para com todos em posição de autoridade. Foi uma ocasião adequada para sentenciar um cristão de classe alta à morte. Ele foi queimado vivo em fogo baixo, e suportou seus sofrimentos com uma serenidade tão digna que surpreendeu e humilhou seus carrascos. A perseguição tinha agora começado. O primeiro passo contra os cristãos tinha sido tomado, e o segundo não demorou.

Não muito tempo após a publicação do decreto houve um incêndio no palácio de Nicomédia que se espalhou quase até a câmara do imperador. A origem do fogo parece ser desconhecida, mas obviamente a culpa foi jogada sobre os cristãos. Diocleciano acreditou nisto. Ele ficou alarmado e indignado. Multidões foram lançadas na prisão, sem discriminação daqueles que eram ou não suspeitos, e as mais cruéis torturas foram empregadas para que houvesse uma confissão; mas foi em vão. Muitos foram queimados até a morte, decapitados e afogados. Cerca de quatorze dias depois, um segundo incêndio irrompeu no palácio. Tinha se tornado então evidente que era obra de um incendiário. Os pagãos novamente acusaram os cristãos, e em alta voz clamaram por vingança, mas como não havia provas que pudessem ser encontradas de que os cristãos tivessem algo a ver com esses incêndios fatais, uma forte e, cremos, verdadeira suspeita, repousava sobre o próprio imperador Galério. Seu grande objetivo desde o início era incriminar os cristãos e alarmar Diocleciano por meio de suas próprias medidas violentas. Estando plenamente consciente da consequência desses eventos na mente sombria, tímida e supersticiosa do velho imperador, ele imediatamente deixou Nicomédia, alegando que não se considerava seguro na cidade.

Mas o objetivo foi alcançado, superando a extensão que até mesmo Galério e sua mãe pagã podiam ter desejado. Diocleciano, agora completamente incitado, irou-se ferozmente contra toda sorte de homens e mulheres que levavam o nome de cristão. Ele obrigou sua esposa Prisca e sua filha Valéria a oferecer sacrifício. Oficiais do palácio, da mais alta classe e nobreza, e todos os habitantes do palácio, foram expostos às mais cruéis torturas, pela ordem, e até mesmo na presença, do próprio Diocleciano. Os nomes de alguns de seus ministros de estado foram proferidos por preferirem as riquezas de Cristo à grandeza de seu palácio. Um dos eunucos foi trazido perante o imperador e foi torturado com grande severidade por rejeitar o sacrifício aos ídolos. Procurando fazer dele um exemplo para os outros, uma mistura de sal e vinagre foi derramada em suas feridas abertas, mas foi tudo em vão. Ele confessou sua fé em Cristo como seu único Salvador, e que não possuía nenhum outro Deus. Ele foi então gradualmente queimado até a morte. Doroteus, Gorgônio e Andrea, eunucos que serviam no palácio, também foram condenados à morte. Antimo, o bispo de Nicomédia, foi decapitado. Muitos foram executados, muitos foram queimado vivos, mas se tornou tedioso destruir homens individualmente, e então grandes fogueiras eram acesas para queimar muitos de uma só vez, e outros foram levados para o meio de um lado e lançados à água com pedras presas em seus pescoços.

A partir da Nicomédia, o centro da perseguição, as ordens imperiais foram despachadas, requerendo a cooperação dos outros imperadores na restauração da dignidade da religião antiga, e a completa supressão do cristianismo. Assim a perseguição se ergueu por todo o mundo romano, com exceção da Gália. Ali governava o brando Constâncio, e, embora ele tenha demonstrado concordância com as medidas de seus colegas, pela demolição das "igrejas", ele se absteve de toda violência contra as pessoas cristãs. Embora ele próprio não fosse um cristão decidido, ele era naturalmente humano, e evidentemente amigável ao cristianismo e aos que o professavam. Ele presidia sobre o governo da Gália, Grã-Bretanha e Espanha. Mas o temperamento feroz de Maximiano e a crueldade selvagem de Galério apenas aguardavam o sinal para levar em efeito as ordens vindas da Nicomédia. E agora os três monstros se erguiam, na plena força do poder civil contra os seguidores indefesos e inocentes do manso e humilde Jesus, o Príncipe da Paz.
"A graça que começou terminará em glória;
Jesus, dEle é a vitória
Em Sua própria triunfante história
Está o registro da nossa própria história."

sábado, 21 de maio de 2016

Os Atos de Diocleciano e o Fim do Período de Esmirna

Até aqui a igreja já havia passado por nove perseguições sistemáticas. A primeira foi sob Nero, depois sob Domiciano Trajano, Marco Aurélio, Severo, Maximino, Décio, Valeriano e Aureliano. E agora chegara o temível momento, quando ela enfrentaria a décima perseguição, de acordo com a palavra profética do Senhor: "E tereis uma tribulação de dez dia" (Apocalipse 2:10). E não é pouco notável que, não apenas houve exatamente dez perseguições do governo, como também que a última tenha durado exatamente dez anos. E, como vimos na parte inicial do período de Esmirna, exatamente dez anos passaram desde o início da perseguição sob Aurélio, no Oriente, até seu fim no Ocidente. O estudante cristão pode traçar outras características semelhantes: preferimos sugerir tais características do que forçar sua aceitação, embora acreditemos que elas tenham sido prefiguradas na epístola à Esmirna.

O reinado de Diocleciano é de grande importância histórica. Primeiro, porque se distinguiu pela introdução de um novo sistema de governo imperial. Ele virtualmente transferiu a capital da antiga Roma para a Nicomédia, na qual estabeleceu sua sede e residência. Lá ele manteve uma corte de esplendor oriental, para a qual ele convidada homens de erudição e filosofia. Mas o filósofos que frequentavam sua corte, todos nutrindo extremo ódio contra o cristianismo, usaram de sua influência com o imperador para exterminar uma religião pura demais para atender às suas mentes poluídas. Isto levou à última e maior perseguição aos cristãos. E é esta última que nos interessa. E como todas as histórias sobre este período são recolhidas principalmente dos registros de Eusébio e Lactâncio, que escreveu nessa época e testemunhou muitas execuções, podemos fazer pouco mais do que selecionar e transcrever a partir do que já está escrito, consultando os vários autores já mencionados.

Os sacerdotes pagãos e filósofos acima mencionados, não tendo sido bem-sucedidos em seus artifícios com Diocleciano a fim de criar uma guerra contra os cristãos, fizeram uso do outro imperador, Galério, seu genro, para cumprir seus propósitos. Este homem cruel, impelido em parte por sua própria inclinação, em parte por sua mãe, uma pagã muito supersticiosa, e em parte pelos sacerdotes, não deu sossego ao seu sogro enquanto não o convenceu.

Durante o inverno do ano 302-303, Galério fez uma visita a Diocleciano na Nicomédia. Seu grande objetivo era excitar o velho imperador contra os cristãos. Diocleciano, por um tempo, resistiu à sua importunação. Ele era avesso, por algum motivo, às medidas sanguinárias propostas por seu parceiro. Mas a mãe de Galério, uma inimiga implacável dos cristãos, empregou toda a sua influência sobre seu filho para inflamar sua mente com hostilidades imediatas e ativas. Diocleciano, com o tempo, cedeu. Antes disso, Galério tinha tomado o cuidado de remover do exército todos os que se recusavam a sacrificar aos ídolos. Alguns foram dispensados, e outros foram sentenciados à morte.

Um Exame da Condição da Igreja (ano 303 d.C.)

Diocleciano ascendeu ao trono em 284. Em 286, ele se associou a Maximiano, como Augusto, e em 292 Galério e Constâncio foram adicionados ao número de príncipes com o título inferior de César. Assim, quando começou o quarto século, o império romano tinha quatro soberanos. Dois levavam o título de Augusto; e dois, o título de César. Diocleciano, embora supersticioso, não nutria nenhum ódio contra os cristãos. Constâncio, o pai de Constantino, o Grande, era amigável a eles. No início, os assuntos cristãos pareciam ser vistos de forma razoavelmente brilhante e feliz, mas os sacerdotes pagãos estavam raivosos, e conspiravam contra os cristãos. Eles viam sua ruína nos triunfos da grande disseminação do cristianismo. Por plenos cinquenta anos a igreja tinha sido muito pouco incomodada pelo poder secular. Durante esse período os cristãos tinham atingido um grau de prosperidade sem precedentes; mas era algo apenas exterior: eles tinham declinado profundamente da pureza e simplicidade do evangelho de Cristo.

Igrejas tinham surgido na maioria das cidades do império, e com uma certa demonstração de esplendor arquitetural. Vestimentas e utensílios sagrados de prata e ouro começaram a ser usados. Convertidos eram reunidos de todas as classes da sociedade; até mesmo a esposa do Imperador e sua filha Valéria, casada com Galério, aparentemente estiveram entre esses convertidos. Os cristãos ocupavam altos cargos no estado e na casa imperial. Eles ocupavam posições de distinção, e até de suprema autoridade, nas províncias e no exército. Mas, infelizmente, esse longo período de prosperidade exterior tinha produzido suas usuais consequências. A fé e o amor decaíram; o orgulho e ambição aumentaram. A dominação sacerdotal começou a exercer seus poderes usurpados, e o bispo a assumir a linguagem e a autoridade de vigário de Deus. Invejas e dissensões distraíam as comunidades pacíficas, e disputas às vezes prosseguiam até a violência aberta. A paz dos cinquenta anos tinha corrompido toda a atmosfera cristã: o relâmpago da ira de Diocleciano foi permitido por Deus para refiná-la e purificá-la.

Tal é a confissão melancólica dos próprios cristãos que, de acordo com o espírito dos tempos, analisavam os perigos e as aflições aos quais eram expostos sob a luz dos julgamentos divinos.*

{* Milman, vol. 2. 261.}

sábado, 14 de maio de 2016

O Estado Geral do Cristianismo

Antes de empreendermos um breve relato da perseguição sob Diocleciano, pode ser interessante rever a história e condição da igreja enquanto a luta final se aproximava. Mas, de modo a formar um julgamento correto do progresso e estado do cristianismo ao final de trezentos anos, devemos considerar o poder dos inimigos com quem tinha de contender.

1. Judaísmo. Vimos durante algum tempo, e especialmente na vida do apóstolo Paulo, que o judaísmo foi o primeiro grande inimigo do cristianismo. Teve de lutar, desde sua infância, com os fortes preconceitos dos judeus crentes, e com a amarga malícia dos incrédulos. Em sua região nativa, e onde quer que viajasse, o cristianismo foi perseguido por esse inimigo implacável. E após a morte dos apóstolos, a igreja sofreu muito ao ceder à pressão judaica, levando finalmente a remodelar o cristianismo de acordo com o sistema do judaísmo. O vinho  novo foi posto em odres velhos. 

2. Orientalismo. Próximo ao fim do primeiro século e do início do segundo século, o cristianismo teve de abrir caminho entre os muitos e conflitantes elementos da filosofia oriental. Seu primeiro conflito foi com Simão Mago, como registrado em Atos dos Apóstolos. Embora fosse samaritano de nascença, supõe-se que ele tenha estudado as várias religiões do Oriente em Alexandria. Ao retornar ao seu país de origem, ele avançou em pretensões muito altas em direção a um conhecimento e poder superior, fazendo pasmar o povo de Samaria, anunciando que ele próprio era alguém grande, a quem todos, desde o menor até o maior, davam ouvidos, dizendo: "Este é a grande virtude de Deus". A partir desta observação sobre Simão podemos aprender que influência tais homens tinham sobre as mentes dos ignorantes e supersticiosos, e também que poder terrível de Satanás a igreja tinha que enfrentar. Ele assumiu não somente o elevado título de "grande virtude de Deus", como também se vangloriava de possuir outras perfeições da Divindade. Os escritores geralmente se referem a ele como a cabeça e pai de toda a hoste de impostores e hereges.

Após ter sido tão aberta e vergonhosamente derrotado por Pedro, dizem que Simão Mago deixou Samaria e viajou por vários países, escolhendo especialmente aqueles nos quais o evangelho ainda não tinha chegado. Desde essa época ele introduziu o nome de Cristo em seu sistema, e assim se esforçou em confundir o evangelho com suas blasfêmias, confundindo a mente do povo. Quanto aos seus milagres e mágicas, suas maravilhosas teorias sobre ter ele mesmo descido do céu, e outras emanações, não temos nada a dizer, além de que provam ter sido, especialmente no Oriente, um obstáculo poderoso para o progresso do evangelho.

Os sucessores de Simão, tais como Cerinto e Valentino, sistematizaram de tal modo suas teorias que tornaram-se os fundadores de uma forma de gnosticismo que a igreja teve que enfrentar no segundo século. O nome "gnosticismo" envolve a ideia de ambições por um conhecimento superior. Costuma-se pensar que Paulo se refere a este significado da palavra ao alertar seu filho Timóteo contra a "falsamente chamada ciência" (1 Timóteo 6:20)

Embora esteja fora do escopo deste livro tentar qualquer coisa como um esboço desse tão difundido orientalismo ou gnosticismo, ainda assim devemos dar aos nossos leitores alguma ideia do que era. Isto se provou por um tempo como o mais formidável oponente do cristianismo. Mas à medida que os fatos e doutrinas do evangelho prevaleciam, o gnosticismo declinava.

Sob a cabeça dos gnósticos podem ser incluídos todos aqueles nos primeiros séculos da igreja que incorporaram em seus sistemas filosóficos as doutrinas mais óbvias e convenientes, tanto do judaísmo quanto do cristianismo. Assim o gnosticismo se tornou uma mistura de filosofia oriental, judaísmo e cristianismo. Por meio desta confusão satânica, a bela simplicidade do evangelho foi destruída e, por um longo tempo, em muitos lugares, seu verdadeiro caráter foi obscurecido. Foi um plano bem pensado e um poderoso esforço do inimigo, não apenas para corromper, mas também para minar e subverter todo o evangelho. Logo que o cristianismo apareceu os gnósticos começaram a adotar em seus sistemas algumas de suas mais sublimes doutrinas. O judaísmo já era profundamente modificado com isto antes da era cristã, provavelmente desde o cativeiro.

Mas o gnosticismo, devemos lembrar, não era uma corrupção do cristianismo, embora toda a escola de gnósticos seja chamada de herege pelos escritores eclesiásticos. Quanto à sua origem, o gnosticismo remonta desde a muitas religiões do Oriente, tais como a dos caldeus, dos persas, dos egípcios, dentre outras. Até mesmo em nossos dias tais filósofos seriam vistos como infiéis e estranhos ao evangelho de Cristo; mas nos primeiros tempos, o título de herege foi dado a todos os que, de qualquer maneira, introduziam o nome de Cristo em seus sistemas filosóficos. Por isso foi dito: "Se Maomé tivesse aparecido no segundo século, Justino Mártir ou Irineu teriam chamado ele de herege." Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que os princípios da filosofia grega, especialmente o platônico, forçaram seu caminho, bem no começo, para dentro da igreja, corrompendo a corrente pura da verdade, e ameaçando, por um tempo, mudar o desígnio e o efeito do evangelho sobre a humanidade.

Orígenes, que nasceu em Alexandria - o berço do gnosticismo - por volta do ano de 185, foi o pai apostólico que deu forma e completude ao método alexandrino de interpretar as Escrituras. Ele distinguia nelas um tríplice sentido - o literal, o moral, e o místico - correspondendo, respectivamente, ao corpo, alma e espírito do homem. O sentido literal, defendia ele, podia ser entendido por qualquer leitor atento; o moral requeria uma inteligência mais elevada; e o místico só poderia ser aprendido por meio da graça do Espírito Santo, que devia ser obtida por oração.

O grande objetivo desse eminente mestre era harmonizar o cristianismo com a filosofia, e este foi o fermento da escola de Alexandria. Ele buscava juntar os fragmentos da verdade espalhados pelos outros sistemas, e uni-los em um esquema cristão, de modo a apresentar o evangelho em uma forma que não ofendesse os preconceitos, e que assegurasse a conversão de judeus, gnósticos e pagãos. Esses princípios de interpretação, e essa combinação do cristianismo com a filosofia, levou Orígenes e seus seguidores a muitos erros graves e sérios, tanto práticos quanto doutrinais. Ele mesmo era um cristão devoto, sincero e zeloso, e verdadeiramente amava o Senhor Jesus, mas a tendência de seus princípios nada mais fizeram, desde aqueles dias até hoje, além de enfraquecer a fé no caráter definitivo da verdade, se não também pervertendo-a toda por meio da espiritualização e alegorização, o que seu sistema ensinava e permitia.

A malignidade da matéria era um dos princípios fundamentais em todos as seitas dos gnósticos, e prevalecia em todos os sistemas religiosos do Oriente. Isto levou às mais loucas teorias quanto à formação e caráter do universo material e todas as substâncias corpóreas. Isto levou muitas pessoas a acreditarem que seus corpos eram intrinsecamente maus, recomendando-se a abstinência e severas mortificações corporais para que a mente, ou o espírito, que era visto como puro e divino, pudesse desfrutar maior liberdade, e ser capaz de contemplar melhor as coisas celestiais. Sem nos alongarmos sobre o assunto - o qual não apreciamos - o leitor poderá observar que o celibato do clero, em anos posteriores, e todo o sistema do asceticismo e monasticismo, tiveram sua origem, não nas Escrituras, mas na filosofia oriental.*

{* Para maiores detalhes sobre as diferentes seitas, veja o Dicionário das Igrejas Cristãs e Seitas, de Marsden. Robertson, volume 1; Neander, volume 2; Milman, volume 2; Mosheim, volume 1. }

3. Paganismo. A igreja não apenas tinha que enfrentar o judaísmo e o orientalismo, como também sofria com a hostilidade do paganismo. Estes eram os três formidáveis poderes de Satanás com os quais ele perturbou a igreja durante os três primeiros séculos de sua história. Na realização de sua alta comissão dada pelo Senhor -  "Fazei discípulos de todas as nações"... "Pregai o evangelho a toda criatura" - ela tinha esses inimigos para enfrentar e superar. Mas estes não poderiam impedir seu curso, se ela tivesse simplesmente andado em separação do mundo e permanecido verdadeira e fiel ao seu celestial e exaltado Salvador. Mas infelizmente, o que o judaísmo, o orientalismo e o paganismo não podiam fazer, as seduções do mundo conseguiram. E isto nos leva a olhar bem de perto para a condição da igreja quando a grande perseguição começou.

domingo, 8 de maio de 2016

O Martírio de Cipriano sob o Reinado de Valeriano

Como o nome de Cipriano deve ser familiar para todos os nossos leitores e um nome muito famoso relacionado ao governo e disciplina na igreja, pode ser interessante observar particularmente a coragem serena deste "pai" apostólico na perspectiva do martírio.

Ele nasceu em Cartago por volta do ano 200, mas não foi convertido até por volta do ano 246. Embora em idade madura, ele possuía o vigor e ardor da juventude. Ele tinha sido um distinto mestre e retórico, e agora ele era um distinto cristão devoto e fervoroso. Ele foi logo promovido aos ofícios de diácono e presbítero, e em 248 foi eleito bispo pela vontade geral do povo. Seus trabalhos foram interrompidos pela perseguição sob Décio, mas sua vida foi preservada até o ano de 258. Na manhã do dia 13 de setembro, um oficial com soldados foi enviado pelo procônsul para que o trouxessem a sua presença. Cipriano então sabia que seu fim estava próximo. Com uma mente pronta e um semblante alegre ele foi sem demora. Seu julgamento foi adiado por um dia. A notícia de sua apreensão agitou toda a cidade. Seus conhecidos ficaram a noite toda em frente ao lugar onde se encontrava preso.

De manhã ele foi levado ao palácio do procônsul cercado por uma grande multidão de pessoas e uma forte guarda de soldados. Após um pequeno atraso, o procônsul apareceu. "És tu Tácio Cipriano, o bispo de tantos homens ímpios?", disse o procônsul. "Eu sou", respondeu Cipriano. "O sacratíssimo imperador te ordena que sacrifiques." "Eu não sacrifico", ele respondeu. "Consideres bem", replicou o procônsul. "Execute as tuas ordens", respondeu Cipriano, "o caso não admite qualquer reconsideração."

O governador consultou seu conselho, e então proferiu a sentença: "Tácio Cipriano, tens vivido por muito tempo em tua impiedade, e reuniste ao redor de ti muitos homens envolvidos na mesma conspiração perversa. Tu tens mostrado a ti mesmo como um inimigo dos deuses e das leis do império; os piedosos e sagrados imperadores têm em vão se esforçado para lembrar-te do culto de teus ancestrais. Desde então tens sido o principal autor e líder dessas práticas culpadas, que sejas então um exemplo para aqueles que tiveste iludido em tuas assembleias ilegais. Tu deves expiar teu crime com teu sangue." "Deus seja louvado!", respondeu Cipriano, e a multidão de irmãos exclamou: "Que sejamos também martirizados com ele.". O bispo foi levado até um campo vizinho e decapitado. Foi marcante o fato de que alguns dias depois o procônsul morreu. E o imperador Valeriano, no ano seguinte, foi derrotado e levado como prisioneiro pelos persas, que o trataram com grande e desdenhosa crueldade - uma calamidade e desgraça sem precedentes nos anais de Roma.

A morte miserável de muitos dos perseguidores causou grande impressão na mente pública, e forçou em muitos a convicção de que os inimigos do cristianismo eram os inimigos do céu. Por cerca de quarenta anos após este ultraje, a paz e prosperidade da igreja não foi seriamente interrompida, de modo que podemos deixar de lado esses anos para chegarmos à disputa final entre paganismo e cristianismo.

sábado, 7 de maio de 2016

O Poder da Fé e Devoção Cristã

O mesmo Dionísio nos conta que muitos se tornaram pilares do Senhor, que por meio dEle eram fortalecidos, e se tornaram maravilhosas testemunhas de Sua graça. Dentre esses ele menciona um garoto de quinze anos, de nome Dióscuro, que respondeu de maneira muito sábia a todos os questionamentos, e demonstrou tal constância sob tortura que conquistou a admiração do próprio governador, que o liberou, na esperança de que ele pudesse reconhecer seu erro quando estivesse mais velho. Uma mulher, que tinha sido trazida ao altar por seu marido, foi forçada a oferecer incenso por alguém segurando sua mão; mas ela exclamou: "Eu não fiz isso: foi você quem fez!", e assim foi condenada ao exílio. Em uma masmorra em Cartago os cristãos foram expostos ao calor, fome e sede, a fim de forçá-los a cumprir com o decreto; mas embora tivessem presenciado a morte por inanição diante de seus olhos, eles continuaram fiéis em sua confissão de fé em Cristo. E da prisão em Roma, onde certos confessores tinham sido confinados por cerca de um ano, a seguinte nobre confissão foi enviada a Cipriano: "Que destino mais glorioso e abençoado pode, pela graça de Deus dada ao homem, do que, em meio a torturas e ao próprio medo da morte, confessar a Deus, o Senhor; do que, com corpos dilacerados e um espírito partindo mas livre, confessar a Cristo, o Filho de Deus; do que se tornar participante do sofrimento de Cristo, em nome de Cristo? Se ainda não derramamos nosso sangue, estamos prontos para derramá-lo. Ore então, amado Cipriano, para que o Senhor possa diariamente confirmar e fortalecer a cada um de nós, mais e mais, com a força de Seu poder; e que Ele, como o melhor dos líderes, finalmente conduza Seus soldados, a quem Ele tem disciplinado e provado no campo perigoso, até o campo de batalha que está diante de nós, armados com aquelas armas divinas que nunca podem ser vencidas."

Dentre as vítimas dessa terrível perseguição estavam Fabiano, bispo de Roma, Babilas da Antioquia, e Alexandre de Jerusalém. Cipriano, Orígenes, Gregório, Dionísio, e outros homens eminentes, foram expostos a cruéis torturas e exílio, mas escaparam com vida. O ódio do imperador foi particularmente direcionado contra os bispos. Mas pela misericórdia do Senhor o reino de Décio foi curto, ele foi morto em batalha contra os godos, por volta do fim do ano 251. *

{* Veja Neander, vol. 1, p. 177; Mosheim, vol. 1, p. 217; Milner, vol. 1, p. 332}

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