domingo, 24 de julho de 2016

Os Concílios de Arles e Milão

No ano 353 um sínodo foi realizado em Arles, e em 355 um outro em Milão. Mais de 300 bispos estavam presentes no último. As sessões do concílio foram realizadas em um palácio, estando Constâncio e seus guardas presentes. A condenação de Atanásio foi artisticamente representada como a única medida que podia restaurar a paz e união da igreja católica. Mas os amigos do primaz eram verdadeiros para com seu líder e para com a causa da verdade. Eles asseguraram ao imperador, no espírito mais humano e cristão, que nem a esperança de seu favor, nem o medo de seu desprazer, os convenceria a se unir na condenação de um ausente, inocente e honrado servo de Cristo. O debate foi longo e obstinado; o excitado interesse foi intenso, e os olhos de todo o império se fixaram em um único bispo. Mas o imperador ariano era impaciente, e antes que o concílio de Milão fosse dissolvido, o arcebispo da Alexandria tinha sido solenemente condenado e deposto. Uma perseguição geral foi direcionada contra todos os que lhe eram favoráveis, e também para efeitos de forçar a conformidade com a opinião do imperador. E tão afiada a perseguição se tornou que o partido ortodoxo levantou um clamor de que os dias de Nero e de Décio tinham retornado. O próprio Atanásio encontrou um refúgio nos desertos do Egito.

A História de Atanásio

Após um banimento de dois anos e quatro meses, Atanásio foi restaurado a sua diocese pelo jovem Constantino II, onde foi recebido com uma recepção alegre por seu rebanho. Mas a morte desse príncipe expôs Atanásio a uma segunda perseguição. Constâncio, que é descrito como um homem vaidoso, mas fraco, logo se tornou um cúmplice secreto dos eusebianos. No final de 340, ou início de 341, um concílio se reuniu na Antioquia para a dedicação de uma "igreja" esplêndida que tinha sido fundada pelo velho Constantino. Dizem que o número de bispos foi de cerca de 97, dos quais 40 eram eusebianos. Dentre o número de cânones que foram aprovados, foi decidido, e com certa aparência de equidade, que um bispo deposto por um sínodo não podia retomar suas funções episcopais até que ele tivesse sido absolvido pelo julgamento de um outro sínodo de igual autoridade. Esta lei foi evidentemente passada com uma referência especial ao caso de Atanásio, e o concílio pronunciou, ou melhor, confirmou, sua destituição. Gregório, um capadócio, um homem de caráter violento, foi nomeado para a Sé, e Filágrio, o prefeito do Egito, foi instruído a apoiar o novo primaz com os poderes civis e militares da província. Sendo Atanásio o favorito do povo, eles se recusaram a ter um bispo nomeado pelo imperador: cenas de desordem, indignação e profanação se seguiram. "A violência se achou necessária para apoiar a iniquidade", diz Milner, "e um príncipe ariano foi obrigado a trilhar os passos de seus antecessores pagãos para apoiar o que ele chamava de igreja".

Atanásio, oprimido pelos clérigos asiáticos, retirou-se de Alexandria e passou três anos em Roma. O pontífice romano, Júlio, com um sínodo de 50 bispos italianos, o proclamou inocente, e confirmou-lhe a comunhão da igreja. Não menos que cinco credos tinham sido elaborados pelos bispos orientais nas assembleias convocadas em Antioquia entre 341 e 345, com o fim de ocultar suas verdadeiras opiniões; mas nenhum deles admitia estar livre de um elemento ariano, embora as posições mais ofensivas do arianismo fossem professamente condenadas. Os dois imperadores, Constâncio e Constante, se tornaram então ansiosos para curar a brecha que existia entre as igrejas orientais e ocidentais, e de acordo eles convocaram um concílio a ser reunido em Sárdica, na Ilíria, em 347 d.C., para decidir os pontos disputados. Noventa e quatro bispos do Ocidente e vinte e dois do Oriente, estando reunidos e devidamente considerados os assuntos de ambos os lados, decidiram em favor de Atanásio: o partido ortodoxo restaurou o primaz perseguido de Alexandria e condenou a todos o que se opunham a ele como inimigos da verdade. No meio tempo, o intruso Gregório morreu, e Atanásio, em seu retorno a Alexandria, após um exílio de oito anos, foi recebido com júbilo universal. "A entrada do arcebispo em sua capital", disse alguém, "foi um cortejo triunfal: a ausência e a perseguição tinham tornado ele querido para os alexandrinos, e sua fama foi difundida da Etiópia até a Grã-Bretanha ao longo de toda a extensão do mundo cristão."

Após a morte de Constante, o amigo e protetor de Atanásio, em 350, o covarde Constâncio sentiu que era a hora de vingar suas feridas privadas contra Atanásio, que não tinha mais Constante para defendê-lo. Mas como ele iria cumprir seu objetivo era a dificuldade. Se ele decretasse a morte do mais eminente cidadão, a ordem cruel seria executada sem qualquer hesitação; mas a condenação e morte de um bispo popular devia ser causada com cautela, demora e alguma aparência de justiça. Os arianos começaram a trabalhar em um plano; eles renovaram suas maquinações, e mais concílios foram convocados.

Os Filhos de Constantino (de 337 a 361 d.C.)

Constantino, o Grande, foi sucedido por seus três filhos, Constantino II, Constâncio e Constante. Eles foram educados na fé do evangelho, e tinham sido nomeado Césares por seu pai, e em sua morte eles dividiram o império entre eles. Constantino II ficou com a Gália, Espanha e Grã-Bretanha; Constâncio ficou com as províncias asiáticas e com a capital, Constantinopla; e Constante ficou com a Itália e a África. O início do novo reinado foi caracterizado -- como era habitual naqueles tempos -- pela morte dos parentes que podiam um dia se provarem rivais ao trono. Mas juntamente com os velhos e usuais ciúmes e hostilidades políticas, um novo elemento agora aparece -- a controvérsia religiosa.

O filho mais velho, Constantino, era favorável aos católicos, e sinalizou o começo de seu reinado chamando Atanásio de volta, e colocando-o novamente como bispo de Alexandria. Mas em 340 Constantino II foi morto em uma invasão da Itália, e Constante tomou posse dos domínios de seu irmão, se tornando, assim, o soberano de dois terços do império. Ele era favorável às decisões do concílio de Niceia, e aderiu com firmeza à causa de Atanásio. Constâncio, sua imperatriz e a corte eram parciais ao arianismo. E assim a guerra religiosa começou entre os dois irmãos -- entre o Oriente e o Ocidente --- e foi levada adiante sem justiça ou humanidade, o que não tinha nada a ver com o espírito pacífico do cristianismo. Constâncio, como seu pai, interferiu tanto nos assuntos da igreja, que pretendia ser um teólogo, e durante todo o seu reinado o império foi incessantemente agitado pela controvérsia religiosa. Os concílios se tornaram tão frequentes que estabelecimentos públicos eram constantemente empregados para abrigar os bispos em contínua viagem; de ambos os lados, concílios foram reunidos para se oporem a outros concílios. Mas como o principal evento do período, assim como a linha prateada da graça de Deus, está conectada a Atanásio, retornaremos a sua história.

Reflexões Sobre os Grandes Eventos do Reinado de Constantino

Antes de prosseguirmos com nossa história geral, será interessante fazer uma pausa por um momento e considerar o significado das grandes mudanças que ocorreram, tanto na posição da igreja quanto no mundo, durante o reinado de Constantino, o Grande. Não seria demais dizer que a igreja passou pelas mais importantes crises de sua história, e que a queda da idolatria pode ser considerada como o evento mais importante em toda a história do mundo. Desde um período pouco após o dilúvio, a idolatria tinha prevalecido entre as nações da terra, e Satanás, por seus artifícios, tinha sido o objeto de adoração. Mas todo o sistema da idolatria foi condenado por todo o mundo romano, se não finalmente derrubado, por Constantino; de qualquer modo, ela tinha recebido sua ferida mortal.

A igreja, sem dúvida, perdeu muito por sua união com o Estado. Ela não mais existia como uma comunidade separada, e não era mais governada exclusivamente pela vontade de Cristo. Ela tinha abandonado sua independência, perdido seu caráter celestial, e se tornado inseparavelmente identificada com as paixões e interesses do poder governante. Tudo isso foi extremamente triste, e o fruto de sua própria incredulidade. Mas, por outro lado, o mundo ganhou muito com essa mudança. Isto não pode ser ignorado em nossas lamentações sobre o fracasso da igreja. O estandarte da cruz agora se erguia por todo o império; Cristo era publicamente proclamado como o único Salvador da humanidade; e as santas escrituras eram reconhecidas como a Palavra de Deus, o único guia seguro e certo para a bem-aventurança eterna. Antes mesmo de estar ligada ao poder civil, a igreja professa estava, sem dúvida, espiritualmente fraca, e assim deve ter pensado mais em seu bem-estar do que em sua missão de bênção para os outros; no entanto, Deus pôde agir por meio dessas novas oportunidades, e acelerar o desaparecimento das terríveis abominações da idolatria da face do mundo romano.

A legislação geral de Constantino ostenta evidências do trabalho silencioso dos princípios cristãos, e os efeitos dessas leis humanas seriam sentidas muito além do círculo imediato da comunidade cristã. Ele promulgou leis para a melhor observância do domingo; contra a venda de crianças como escravas, o que era comum entre os pagãos; e também contra o furto de crianças com o objetivo de vendê-las, assim como muitas outras leis, tanto de caráter social quanto moral, que nos são informadas pelas histórias já citadas. Mas o maior e mais influente evento de seu reinado foi o extermínio dos ídolos, e a elevação de Cristo. Dizem que os etíopes e ibéricos foram convertidos ao cristianismo durante esse reinado.

A Morte de Ário

Nem Constantino nem Ário sobreviveram muito tempo após o exílio de Atanásio. Ário assinou um credo ortodoxo, e Constantino aceitou sua confissão. Ele o enviou a Alexandre, bispo de Constantinopla, dizendo-lhe que Ário deveria ser recebido à comunhão no dia seguinte, que era domingo. Alexandre, que tinha quase completado cem anos de idade, ficou muito angustiado pelas ordens do imperador. Ele entrou na "igreja"*, e orou fervorosamente para que o Senhor prevenisse tal profanação. Na noite do mesmo dia, Ário falava alegremente, em tom triunfante, sobre a cerimônia marcada para o dia seguinte. Mas o Senhor tinha ordenado de outra forma; Ele tinha ouvido a oração de Seu velho servo, e naquela noite o grande herege morreu. Seu fim é relacionado a circunstâncias que lembram a morte do traidor Judas. Que efeito o evento teve sobre Constantino, nós não sabemos; mas ele morreu pouco tempo depois, aos 64 anos de idade.**

{* N. do T.: "igreja" aqui se refere aos salões, ou templos, usados pelos cristãos para suas reuniões.}
{** Veja a História da Igreja, de Robertson, vol. 1, p. 199; e as Vidas dos Pais, de Cave, vol. 2, p. 145}

sábado, 23 de julho de 2016

O Concílio de Tiro

Em 334, Atanásio foi intimado a comparecer perante um concílio na Cesareia. Ele se recusou, alegando que o tribunal era composto de seus inimigos. No ano seguinte, ele foi citado diante de outro concílio que seria realizado em Tiro pela autoridade imperial, no qual ele compareceu. Mais de cem bispos estavam presentes, e uma comissão de leigos do imperador direcionaram o processo. Uma multidão de acusações foram trazidas contra o destemido clérigo; mas o mais tenebroso, e o único que iremos tomar nota, era o crime duplo de magia e assassinato. Disseram que ele tinha matado Arsênio, um bispo de Mileto -- que tinha cortado-lhe uma das mãos, e que tinha usado ela em rituais de magia; uma mão tinha sido forjada como prova. Mas Atanásio estava preparado para a acusação. O Deus da verdade estava com ele. Ele calmamente perguntou se os que estavam presentes ali conheciam Arsênio. Ele era bem conhecido por muitos. Um homem foi, de repente, levado à corte, coberto da cabeça aos pés por um manto. Atanásio primeiro descobriu sua cabeça. Ele foi logo reconhecido como o assassinado Arsênio. Em seguida suas mãos foram descobertas, e assim foi provado que se tratava de Arsênio, vivo e não mutilado. O partido ariano tinha feito o melhor que pôde para esconder Arsênio, mas o Senhor estava com Seu inocente servo, e os amigos de Atanásio conseguiram encontrá-lo. A malícia dos arianos sem escrúpulos foi novamente exposta, e a inocência de Atanásio triunfalmente vindicada.

Mas os inimigos implacáveis do bispo continuaram com suas acusações. Mais uma vez  ordenaram-lhe que comparecesse em Constantinopla, e que respondesse por si mesmo na presença imperial.

As velhas acusações, nesta ocasião, foram retiradas, mas uma nova foi habilmente escolhida, com vista a despertar a desconfiança do imperador. Eles afirmaram que Atanásio tinha ameaçado interromper o fluxo de navios que transportavam milho do porto de Alexandria para Constantinopla. Deste modo, uma fome seria iniciada na capital. Isto tocou o orgulho do imperador e, seja pela crença na acusação, ou pelo desejo de se livrar de uma pessoa tão influente, ele o baniu para Treves, na Gália. A injustiça da sentença é inquestionável.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Atanásio Contesta a Autoridade de Constantino

Eusébio da Nicomédia inicialmente recorreu a medidas aparentemente amigáveis para com Atanásio, com o propósito de induzi-lo a readmitir Ário à comunhão da igreja. Mas, falhando completamente, ele influenciou o imperador para que lhe ordenasse a fazê-lo. Um mandato imperial foi emitido para que Ário e todos os seus amigos, que estavam dispostos a se ligarem mais uma vez à igreja católica, fossem recebidos; e informando a Atanásio que, se não o fizesse, ele deveria ser deposto de sua posição e mandado ao exílio. Atanásio, no entanto, não se deixou intimidar pelos decretos imperiais, mas firmemente respondeu que não poderia reconhecer pessoas que tinham sido condenadas por um decreto de toda a igreja. "Constantino agora descobria, para seu espanto", diz Milman, "que um decreto imperial -- que deveria ser obedecido em trêmula submissão de uma ponta à outra do império romano, mesmo se ele tivesse decretado uma revolução política completa, ou prejudicasse as propriedades e privilégios de milhares -- foi recebido com deliberada e decidida indiferença por um único bispo cristão. Durante dois reinados, Atanásio contestou a autoridade do imperador"*. Ele suportou a perseguição, calúnia, exílio; sua vida estava em constante perigo em defesa da grande e fundamental verdade -- a divindade do bendito Senhor. Ele enfrentou o martírio, não pela ampla distinção entre cristianismo e paganismo, mas por essa única doutrina central da fé cristã.

{* História do Cristianismo, vol.2, p. 540.}

Uma sucessão de queixas contra Atanásio foram levadas ao imperador pelo partido ariano -- ou, mais propriamente, o partido eusebiano. Mas estaria fora de nosso propósito entrar em detalhes: ainda temos de traçar um pouco mais a linha prateada nessa nobre e fiel testemunha.

A acusação mais pesada era de que Atanásio havia enviado uma soma de dinheiro para uma pessoa no Egito para ajudá-la em um projeto de conspiração contra o imperador. Ele foi intimado a comparecer e responder pela acusação. O clérigo obedeceu e pôs-se diante dele. Mas a aparição pessoal de Atanásio, um homem de poder notável sobre as mentes dos outros, parece ter inspirado temor à alma de Constantino. As acusações frívolas e infundadas foram triunfalmente refutadas por Atanásio perante um tribunal de inimigos, e assim a virtude imaculada de seu caráter foi inegavelmente estabelecida. E tal foi o efeito da presença de Atanásio sobre o imperador que ele denominou-o um homem de Deus e considerou seus inimigos como os autores dos distúrbios e divisões. Mas esta impressão teve curta duração, uma vez que ele continuava governado pelo partido eusebiano.

Atanásio, Bispo de Alexandria

No concílio de Niceia, Atanásio participou de modo distinto; seu zelo e habilidades logo o designaram como a cabeça do partido ortodoxo, e como o mais poderoso antagonista dos arianos. Após a morte de Alexandre, no ano 326, ele foi elevado à Sé de Alexandria pela voz universal de seus irmãos. Ele tinha então apenas trinta anos de idade, e sabendo algo sobre os perigos assim como sobre as honras do ofício, ele teria preferido uma posição menos responsável; porém ele acabou cedendo aos mais sinceros desejos de uma congregação afetuosa. Ele se manteve como bispo por quase meio século. Sua longa vida foi devotada ao serviço do Senhor e de Sua verdade. Ele continuou firme na fé e inflexível em seu propósito até sua última hora de vida, do mesmo modo como a posição nobre que ele demonstrou no concílio de Niceia. A divindade de Cristo não era para ele uma mera opinião especulativa, mas a fonte e força de toda sua vida cristã. E em nenhum outro lugar ela pode ser encontrada por qualquer outro, como o apóstolo nos assegura. "E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida." (1 João 5:11,12). Essa vida habita no Filho unigênito do Pai. Ele é "a vida eterna". E esta vida, para o louvor da glória da graça de Deus, é dada a todos que creem no verdadeiro Cristo de Deus. Ao receber a Cristo, recebemos a vida eterna e nos tornamos filhos de Deus -- herdeiros de Deus -- e co-herdeiros com Cristo. Esta vida não é propriedade de qualquer mera criatura, por mais exaltada que possa ser. Os anjos santos possuem uma existência muito bendita e incessante pelo poder de Deus, mas o cristão tem vida eterna através da fé em Cristo, pela graça de Deus. Nada pode ser mais fatal ao bem-estar da alma humana do que a doutrina de Ário. Mas vamos retornar à nossa história.

Enquanto o avanço de Atanásio à Sé de Alexandria dava grande alegria e esperança aos seus amigos, também encheu seus inimigos com o mais amargo ressentimento. Eles agora viam como o grande líder dos católicos* o bispo daquela igreja da qual Ário tinha sido expulso, e que foi apoiado pelas afeições de seu povo e por uma centena de bispos que juraram fidelidade ao grande bispo de Alexandria. Eles sabiam de seu poder e zelo incansável em defesa dos decretos do Concílio Niceno, e podem ter julgado de forma correta que, se sua sua influência tinha sido tão grande quando em âmbito restrito, o que poderia-se esperar quando ele foi colocado em posição tão eminente? Dessa forma, eles deixaram de lado seus planos e uniram forças para derrotá-lo.

{* O termo "Igreja Católica", como dado por Constantino, aqui significa simplesmente "a igreja estabelecida".}

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Constantino Muda de Ideia

Como o imperador não tinha um juízo independente próprio sobre os assuntos eclesiásticos, e certamente não tinha discernimento espiritual para essas controvérsias doutrinárias, não podia-se confiar na continuidade de seu favor. Em pouco mais de dois anos ele mudou completamente de opinião. No entanto, esses dois anos foram cheios de acontecimentos na história doméstica de Constantino que eram muito mais sérios do que uma mudança de ideia quanto ao arianismo. No mesmo ano em que ele convocou o concílio de Niceia, ele deu ordens privadas para a execução de Crispo, seu filho mais velho, e para o sufocamento em banho quente de sua esposa, Fausta, com quem estava casado por cerca de vinte anos. A história não pode encontrar motivos melhores para essas obras das trevas além de um ciúme mesquinho e indigno. Dizem que a sabedoria e bravura de Crispo, na derrubada final de Licínio, excitou o ciúme de seu pai, e isto foi provavelmente fomentado por Fausta, que era sua madrasta. Sabendo que ele foi amargamente reprovado por sua crueldade para com o seu próprio filho, ele ordenou a morte de Fausta em seu remorso e miséria. Como temos expressado um julgamento muito decidido contra a natureza ímpia da ligação entre a igreja e o Estado, já falamos demais sobre a vida privada do imperador, de modo que o leitor pode julgar quanto à aptidão -- ou melhor, inaptidão -- de alguém tão manchado de sangue poder se sentar como presidente em um concílio cristão. Desde aquele dia até hoje a igreja estatal tem sido exposta à mesma contaminação, seja na pessoa do soberano ou do comissário real.

Constância
, a viúva de Licínio e irmã de Constantino, possuía grande influência sobre seu irmão. Ela simpatizava com os arianos e estava sob influência deles. Em seu leito de morte, em 327, ela conseguiu convencer o irmão que uma injustiça tinha sido feita contra Ário, e o persuadiu a convidar Ário para sua corte. Ele o fez, e Ário apareceu apresentando ao imperador uma confissão de sua fé. Ele expressou, de modo geral, sua crença na doutrina do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e suplicou que o imperador pusesse um fim às inúteis especulações para que a cisma fosse curada e todos, unidos, pudessem orar pelo reinado pacífico do imperador, e por toda a sua família. Por sua confissão plausível e seus belos discursos, ele alcançou seu objetivo. Constantino expressou estar satisfeito, e assim Ário e seus seguidores, por sua vez, ficaram em posições elevadas no favor imperial. Os que tinham sido banidos foram chamados de volta. Uma lufada de ar real mudou o aspecto externo de toda a igreja. O partido ariano tinha agora posse total da influência de peso do imperador, e logo se apressaram a utilizá-la.

O Credo Niceno

A celebrada confissão de fé geralmente chamada de "O Credo Niceno" foi o resultado das longas e solenes deliberações da assembleia. Eles decidiram contra as opiniões arianas, e firmemente mantiveram as doutrinas da Santíssima Trindade, da verdadeira Divindade de Cristo, e de Sua unidade com o Pai em poder e glória. O próprio Ário foi levado perante o concílio e questionado quanto à sua fé e doutrina; ele não hesitou em repetir, como sua crença, as falsas doutrinas que tinham destruído a paz da igreja. Enquanto ele avançava com suas blasfêmias, os bispos concordemente taparam os ouvidos e clamaram que tais opiniões ímpias eram dignas de anátema juntamente com seu autor. Santo Atanásio, embora fosse no momento apenas um diácono, chamou a atenção de todo o concílio por seu zelo em defesa da verdadeira fé, e por sua penetração em desvendar e expor os artifícios dos heréticos. Veremos mais sobre o nobre Atanásio mais adiante.

Este famoso credo foi assinado por todos os bispos presentes, com a exceção de uns poucos arianos. Sendo a decisão do concílio apresentada perante Constantino, ele imediatamente reconheceu a aprovação unânime do concílio como obra de Deus, e a recebeu com reverência, declarando que todas as pessoas que se recusassem a se submeter a ela deveriam ser banidas. Os arianos, ouvindo isso, impelidos pelo medo assinaram a fé estabelecida pelo concílio. Eles, portanto, colocaram-se numa posição em que podiam ser acusados de serem homens desonestos. Apenas dois bispos, Segundo e Teonas, ambos egípcios, continuaram a aderir a Ário, e foram banidos com ele para a Ilíria. Eusébio da Nicomédia e Teognis de Niceia foram condenados cerca de três meses depois, e sentenciados pelo imperador ao banimento. Várias penalidades foram então denunciadas contra os seguidores de Ário: todos os seus livros foram sentenciados a serem queimados, e era até mesmo considerada ofensa capital esconder qualquer de seus escritos. Tendo concluído o trabalho, os bispos se dispersaram para suas respectivas províncias. Além da solene declaração da opinião deles sobre a doutrina em questão, eles finalmente definiram também sobre a questão relacionada a celebração da Páscoa* e estabeleceram alguns outros assuntos que foram levados diante deles.

{* As igrejas orientais, desde o princípio, observavam a festa da Páscoa em comemoração à crucificação de Cristo, o que correspondia à Páscoa Judaica, no décimo quarto dia do mês. Isto pode ter surgido a partir do fato de que no Oriente havia muito mais judeus convertidos. As igrejas ocidentais observavam a festa em comemoração à ressurreição. A diferença quanto ao dia deu origem a uma longa e acirrada controvérsia. Mas, após muita contenda entre as igrejas orientais e ocidentais, foi ordenado pelo concílio de Niceia que fosse observada em comemoração à ressurreição em toda a cristandade. Assim, a Páscoa Cristã ficou estabelecida no domingo que segue o décimo quarto dia da lua pascal, que ocorre próximo ao dia 21 de março: de modo que, se o referido 14º dia fosse um domingo, não seria naquele domingo, mas no próximo, podendo cair em qualquer domingo das cinco semanas que começam em 22 de março e terminam em 25 de abril.}

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O Concílio de Niceia

Capítulo 11: Roma e seus Governantes (313 d.C. - 397 d.C.)

 

Constantino se via agora obrigado a analisar com mais atenção a natureza da disputa. Ele começou a entender que a questão não tinha nada de insignificante, mas era da mais alta e essencial importância; e assim resolveu convocar uma assembleia de bispos de modo a estabelecer a verdadeiro doutrina, e para dissipar para sempre, como ele em vão esperava, esta propensão à disputa hostil. Tudo o que era necessário para a viagem dos bispos foi fornecido a cargo público, como se fosse um assunto de Estado.

No mês de junho de 325 d.C., o primeiro concílio geral da igreja se reuniu em Niceia, na Bitínia. Cerca de 318 bispos estavam presentes, além de um número muito grande de sacerdotes e diáconos. "A flor dos ministros de Deus", como diz Eusébio, "de todas as igrejas que abundam na Europa, África e Ásia, agora se reuniram". O espetáculo era totalmente novo, e certamente ninguém estava tão surpreso como os próprios bispos. Não havia passado muitos anos desde que foram marcados como os objetos da mais cruel perseguição. Eles tinham sido escolhidos por causa de sua eminência como vítimas peculiares da política de extermínio do governo. Muitos deles levavam em seus corpos as marcas dos sofrimentos por Cristo. Eles tinham conhecido o que era ser conduzido ao exílio, trabalhar em minas, ser exposto a todo o tipo de humilhação e insulto. Mas agora tudo tinha mudado, mudado tanto que eles mal podiam acreditar que aquilo era realidade e não uma visão. Os portões do palácio se abriram para eles, e o imperador do mundo agiu como o moderador da assembleia.

Nada podia confirmar e declarar tanto ao mundo a triste queda da igreja e sua submissão ao Estado como o lugar que tinha o imperador nesses concílios. Ele não chegou em Niceia até o dia 3 de julho. No dia seguinte os bispos se reuniram no hall do palácio, que tinha sido preparado para o propósito. Aprendemos de Eusébio que a assembleia se sentou em profundo silêncio, enquanto os grandes oficiais do Estado e outras pessoas honráveis entravam no salão, e assim esperaram em trêmula expectativa a aparição do imperador. Constantino, com muita demora, entrou; ele estava vestido esplendidamente: os olhos dos bispos ficaram ofuscados com o ouro e as pedras preciosas de seu traje. A assembleia inteira levantou-se para dar-lhe honra. Ele avançou até um assento de ouro preparado para ele, e ali ficou parado em pé, em respeitosa deferência aos dignatários espirituais, até que foi convidado a se sentar. Após cantarem um hino de louvor, ele deu uma exortação sobre a importância da paz e união. O concílio sentou-se ali por pouco mais de dois meses, e Constantino parece ter estado presente durante a maior parte das sessões, ouvindo com paciência, e conversando livremente com os diferentes prelados.

domingo, 17 de julho de 2016

A Primeira Impressão de Constantino sobre a Controvérsia

A dissensão logo se tornou tão violenta que julgou-se necessário apelar ao imperador. Ele, a princípio, considerou a questão toda como totalmente insignificante e sem importância. Ele escreveu uma carta a Alexandre e Ário em conjunto, na qual ele os reprova por contender sobre questões ociosas e diferenças imaginárias, e recomenda que eles suprimissem todos os sentimentos profanos de animosidade, e que vivessem em paz e unidade*. É mais que provável que o imperador não tivesse ideia da séria natureza da disputa, ou não teria falado dela como insignificante e sem importância: mas se a carta foi elaborada por Hosius, bispo de Córdova, como  muitos acreditam, ele não podia alegar ignorância de seu caráter, e deve ter escrito o documento de acordo com os sentimentos expressos por Constantino, e não de acordo com seu próprio julgamento. A carta foi altamente exaltada por muitos como um modelo de sabedoria e moderação, e, se não fosse a questão de maior abrangência que fixar a data da Páscoa, realmente mereceria tal elogio. Mas a Divindade e a glória de Cristo estavam em questão e, consequentemente, a salvação da alma.

{* Veja a Carta em Vida de Constantino, de Eusébio, vol. 2}


Hosius foi enviado ao Egito como o comissário imperial, a quem a resolução do caso foi confiada. Mas ele descobriu que a dissensão ocasionada pela controvérsia tinha se tornado tão séria que ambas as partes se recusaram a ouvir as advertências do bispo, mesmo acompanhado da autoridade do soberano.

O Início do Arianismo

O arianismo foi o crescimento natural das opiniões gnósticas, e Alexandria, o viveiro das questões metafísicas e distinções sutis, seu local de nascimento. Paulo de Samósata e Sabélio da Líbia, no terceiro século, ensinavam falsas doutrinas similares à de Ário no quarto século. As seitas gnósticas em suas diferentes variedades, e a maniqueísta, que era a religião persa com uma mistura de cristianismo, podem ser consideradas religiões rivais, mas como facções cristãs, no entanto, todas elas fizeram sua obra má entre os cristãos quanto à doutrina da Trindade. Quase todas essas heresias, como são comumente chamadas, tinham caído sob o descontentamento real, e seus seguidores eram sujeitos a regulamentos penais. Os montanistas, paulitas, novacianos, marcionitas e valentinianos estavam entre as seitas proscritas e perseguidas. Mas havia uma outra heresia, uma mais profunda e tenebrosa, e muito mais influente do que qualquer outra que já tinha aparecido, que estava para estourar a partir do próprio seio da assim chamada "santa igreja católica". A seguir temos um relato do que aconteceu.

Alexandre, o bispo de Alexandria, em uma reunião com seus presbíteros, parece ter se expressado livremente sobre o assunto da Trindade, quando Ário, um dos presbíteros, questionou a verdade das posições de Alexandre, alegando que estavam aliadas aos erros sabelianos, que tinham sido condenados pela igreja. Essa disputa levou Ário a declarar suas próprias visões sobre a Trindade, que eram, em essência, a negação da divindade do Salvador -- que Ele seria apenas o primeiro e mais nobre dos seres criados, formado a partir do nada por Deus Pai -- que, embora imensuravelmente superior em poder e em glória aos mais elevados seres criados, Ele seria inferior ao Pai. Ele também defendia que, embora inferior ao Pai em natureza e em dignidade, Ele é a imagem do Pai e o representante do poder divino pelo qual Ele criou os mundos. Quais eram suas visões sobre o Espírito Santo não são tão claramente expostas.*

{* A doutrina blasfema de Ário era um desdobramento do gnosticismo, talvez a menos ofensiva em aparência, mas direta e inevitavelmente destrutiva para a glória pessoal do Filho como Deus e, portanto, derrubava as bases da redenção. O unitarianismo moderno nega que o Senhor Jesus seja mais que um homem, negando até mesmo Seu nascimento sobrenatural da virgem Maria. No entanto, Socino afirmou que houve uma modificação singular em sua exaltação após Sua ressurreição, constituindo-O como um objeto adequado de adoração divina. Ário parecia se aproximar da verdade quanto a Sua preexistência antes de ter vindo ao mundo, e afirmava que Ele é o Filho de Deus, que criou o universo, mas manifestava que Ele próprio tinha sido criado, mesmo sendo a primeira e mais elevada das criaturas. Não era a mesma coisa que a negação sabeliana das personalidades distintas, mas a negação de que o Filho, e é claro também o Espírito, são a verdadeira, distintiva, essencial e eterna Divindade.}

O arianismo não apenas é inconsistente com o lugar dado ao Filho do começo ao fim das Escrituras, como também com a obra infinita de reconciliação e nova criação, e é distintamente refutada de antemão por muitas passagens das Sagradas Escrituras. Pode ser interessante citar algumas delas aqui. Aquele que, quando nascido de mulher, foi chamado Jesus, o Espírito de Deus declara (João 1:1-3) ser, no princípio, o Verbo que estava com Deus e era Deus. "Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez". É impossível conceber um testemunho mais poderoso de Sua subsistência não criada, de Sua personalidade distinta quando Ele estava com Deus antes da criação, e de Sua natureza divina. Ele é aqui mencionado como o Verbo, cujo correlato não é o Pai, mas Deus (e assim deixando espaço para o Espírito Santo); mas, para que Sua própria consubstancialidade fosse enfatizada, Ele é cuidadosa e definitivamente declarado Deus*. Voltando para além do tempo e da criatura, tão longe quanto alguém possa pensar, "no princípio era o Verbo". A linguagem é muito precisa: Ele estava no princípio com Deus, não no sentido de vir a ser ou chegar a ser, mas "Ele estava" em Seu próprio absoluto ser. Todas as coisas "vieram à existência" através dEle. Ele foi o Criador tão completamente que o apóstolo João acrescenta: "sem ele nada do que foi feito se fez". Por outro lado, quando a encarnação é afirmada no versículo 14, a linguagem é: "E o Verbo se fez carne", não no sentido de ser absoluto, mas no sentido de vir a ser. Além disso, quando Ele veio entre os homens, Ele é descrito como "o Filho unigênito, 'que está' [não apenas que estava ou esteve] no seio do Pai" (João 1:18) -- uma linguagem ininteligível e confusa a menos que se considere como demonstração de que Sua humanidade de modo algum diminui Sua divindade, e que a proximidade infinita do Filho com o Pai sempre subsiste.

{* A ausência do artigo aqui é necessariamente devido ao fato de que meos é o predicado de o Aoyos, que de modo nenhum poderia dar um sentido inferior de Sua Divindade, o que contradiria o próprio contexto. De fato, se o artigo tivesse sido inserido, seria uma heterodoxia muito grosseira, pois seus efeitos seriam a negação de que o Pai e o Espírito são Deus ao excluir a todos menos o Verbo da Divindade.}

Novamente, Romanos 9:5 é uma rica e precisa expressão da imutável e suprema Divindade de Cristo igualmente com o Pai e o Espírito. Cristo veio, "o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém". Os esforços dos críticos heterodoxos dão testemunho de toda a importância da verdade que eles em vão procuram abalar por esforços artificiais que somente fazem transparecer a insatisfação de seus autores. Não há mais enfática afirmação da suprema divindade em toda a Bíblia; porque a humilhação do Filho na encarnação e na morte de cruz a torna a mais cabal prova da divina supremacia que pode ser usada a favor dEle.

Em seguida, o apóstolo diz de Cristo: "O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele." (Colossenses 1:15-17). Os devaneios dos gnósticos são aqui antecipadamente cortados fora, pois demonstra que Cristo foi o chefe de toda a criação porque Ele foi o Criador, tanto dos seres invisíveis mais elevados quanto dos visíveis: todas as coisas são ditas terem sido criadas para Ele assim como por Ele; e como Ele é antes de tudo, assim tudo subsiste juntamente em virtude dEle.

A única outra passagem que preciso agora referenciar é Hebreus 1, onde o apóstolo ilustra a plenitude da Pessoa de Cristo entre outras escrituras do Antigo Testamento como o Salmo 45 e 102. No primeiro Ele é tratado como Deus e ungido como homem; no outro Ele é reconhecido como Jeová, o Criador, após Ele ser ouvido derramando Sua aflição como o rejeitado Messias.

É impossível, então, aceitar a Bíblia sem rejeitar o arianismo como um libelo hediondo contra Cristo e a verdade, pois não existe maior certeza de que Ele tenha se tornado um homem do que Ele ser Deus antes da criação, sendo Ele Próprio o Criador, o Filho e Jeová.

Alexandre, indignado com as objeções de Ário contra ele, e por causa de suas opiniões, o acusou de blasfêmia. "O ímpio Ário", exclamou, "o precursor do Anticristo se atreveu a proferir suas blasfêmias contra o divino Redentor". Ele foi julgado por dois concílios reunidos em Alexandria, e expulso da igreja. Ele se retirou para a Palestina, mas de modo nenhum desencorajado por sua desgraça. Muitos simpatizavam com ele, dentre eles dois clérigos chamados de Eusébio: um da Cesareia, o historiador eclesiástico, e outro, bispo da Nicomédia, um homem de imensa influência. Ário manteve uma correspondência animada com seus amigos, ocultando suas opiniões mais ofensivas, e Alexandre emitiu avisos contra ele, e recusou todas as intercessões de seus amigos que o queriam restaurado. Mas Ário era um antagonista astuto. Ele é descrito na história como uma pessoa alta e graciosa, calmo, pálido e de aparência branda; de discurso popular, mas com argumentação afiada; de vida rigorosa e irrepreensível, e de modos agradáveis; mas assim, sob um exterior humilde e mortificado,  ele ocultou os mais fortes sentimentos de vaidade e ambição. O adversário tinha habilmente selecionado seu instrumento. A aparente posse de tantas virtudes o tornou adequado para o propósito do inimigo. Sem essas aparências de justo ele não teria poder algum para enganar.

A Controvérsia Ariana

Mal tinha a paz exterior da igreja sido assegurada pelo decreto de Milão e ela foi distraída por dissensões internas. Pouco após o rompimento da cisma donatista na província da África, a controvérsia ariana, que tinha sua origem no Oriente, se estendeu a todas as partes do mundo. Já falamos dessas raivosas contendas como o mais amargo fruto da união antibíblica da igreja com o Estado. Não que elas necessariamente surgiram a partir dessa união, mas pelo fato de Constantino ter se tornado o chefe declarado e ostensivo da igreja, e por ele presidir em suas assembleias solenes, questões de doutrina e prática produziam uma agitação por todo o corpo da igreja, e não apenas na igreja como também exerciam uma poderosa influência política sobre os assuntos do mundo. Sendo o império então cristão, ao menos em princípio, tais questões eram de interesse e importância mundial. A partir daí a controvérsia ariana foi a primeira que rasgou todo o corpo de cristãos, e dispôs em quase todas as partes do mundo os partidos hostis em implacável oposição.

Heresias de natureza semelhante à de Ário tinham aparecido na igreja antes de sua ligação com o Estado, mas sua influência raramente se estendia além da região e do período de seu nascimento. Após alguns debates ruidosos e palavras raivosas, a heresia caía em desonra, e era logo quase esquecida. Mas foi muito diferente com a controvérsia ariana. Constantino, que se sentava no trono do mundo e assumia ser a única cabeça da igreja, interpôs sua autoridade de modo a prescrever e definir os princípios precisos da religião que ele tinha estabelecido. A Palavra de Deus, a vontade de Cristo, o lugar do Espírito, as relações celestiais da igreja, foram todas perdidas de vista -- ou melhor, nunca tinham sido vistas pelo imperador. Ele tinha provavelmente ouvido algo sobre as numerosas opiniões pelas quais os cristãos se dividiam; mas ele viu, ao mesmo tempo, que eles eram uma comunidade que tinha continuado a avançar em vigor e magnitude; que eles eram realmente unidos em meio às heresias, e fortes sob a mão de ferro da opressão. Mas ele não podia ver, nem podia entender, que então, apesar de seu fracasso, ela estava olhando para o Senhor e inclinando-se apenas nEle neste mundo. Qualquer outra mão estava contra ela e era guiada pelo trabalho e pelo poder do inimigo. Mas, declaradamente, ela estava prosseguindo através do deserto, encostada em seu Amado, e nenhuma arma forjada contra ela podia prosperar.

O imperador, sendo completamente ignorante das relações celestiais da igreja, pode ter pensado que, como ele podia dar-lhe completa proteção da opressão externa, ele podia também, pela sua presença e poder, dar-lhe paz e descanso das dissensões internas. Mas ele mal sabia que, não obstante estas estarem muito além de seu alcance, a própria segurança, facilidade mundana e indulgência que ele tão generosamente concedia ao clero eram os principais meios que fomentavam discórdias e inflamavam as paixões dos disputantes. E assim aconteceu que ele era continuamente atacado pelas reclamações e acusações mútuas de seus novos amigos.

Reflexões sobre a Primeira Grande Cisma na Igreja

Como esta foi a primeira cisma que dividiu a igreja, pensamos ser interessante nos ocuparmos com alguns detalhes. O leitor pode aprender algumas lições necessárias a partir dessa divisão memorável. Ela começou com um incidente tão insignificante em si que mal mereceria um lugar na história. Não havia qualquer questão de má doutrina ou de imoralidade, mas apenas uma eleição disputada para a Sé de Cartago. Um pouco de correção, um pouco de abnegação, um verdadeiro desejo pela paz, unidade e harmonia da igreja, e acima de tudo um cuidado adequado pela glória do Senhor, teriam prevenido centenas de anos de tristeza por dentro e desgraça por fora para a igreja de Deus. Mas ao orgulho, à avareza e à ambição - tristes frutos da carne - foi permitido que realizassem seu terrível trabalho. O leitor também pode ver, pelo lugar que o imperador tinha nos concílios da igreja, quão cedo sua posição e caráter foram totalmente alterados. Quão estranho deve ter parecido para Constantino que, imediatamente após ter adotado a cruz como seu estandarte, um apelo fosse feito ao seu próprio tribunal por uma decisão episcopal sobre assuntos eclesiásticos! Isto provou a condição do clero. Mas devemos notar as consequências que tal apelo envolve: se a parte contra quem a sentença do poder civil foi dada se recusasse a acatá-la, eles se tornariam transgressores da lei. E foi exatamente isso o que aconteceu.

Os donatistas foram, portanto, tratados como ofensores das leis imperiais; eles foram privados de suas "igrejas" e muitos deles sofreram banimento e confiscação. Até mesmo a pena de morte foi decretada contra eles, embora não pareça que essa lei tenha sido aplicada em qualquer caso durante o reinado de Constantino. Medidas poderosas, no entanto, foram utilizadas pelo Estado visando compelir os donatistas a se reunirem com os católicos. Mas, como é comum em tais casos, e como a experiência tem sempre demonstrado, a força que era usada para compeli-los apenas serviu para desenvolver o espírito selvagem da facção que já existia em sua semente. Despertados pela perseguição, estimulados pelo discursos de seus bispos e especialmente por Donato, que era a cabeça e alma de seu partido, eles incorreram em toda espécie de fanatismo e violência.

Constantino, ensinado pela experiência, por fim descobriu que, embora ele pudesse dar proteção à igreja, ele não podia dar-lhe paz. E assim ele emitiu um decreto concedendo aos donatistas total liberdade de agir de acordo com suas próprias convicções, declarando que isto era um assunto que pertencia ao julgamento de Deus.*

{* Neander, vol. 3, p. 244; Robertson, vol. 1, p. 175; Milman, vol. 2, p. 364.}

Constantino como o Árbitro das Diferenças Eclesiásticas

Novamente os donatistas suplicaram ao imperador pela causa deles, e nessa ocasião para levar a questão inteiramente por suas próprias mãos, ao que ele concordou, embora ofendido pela obstinação deles. Ele ouviu o caso em Milão no ano 316, onde proferiu a sentença em concordância com os concílios de Roma e Arles. Ele também emitiu decretos contra eles, aos quais ele mais tarde repeliu ao ver as perigosas consequências das medidas violentas. Mas o donatimo logo se tornou uma cisma feroz, generalizada e intolerante na igreja. Já em 330 eles tinham crescido tanto que um sínodo foi realizado por 270 bispos, e em alguns períodos de sua história houve sínodos de cerca de 400 bispos. Eles provaram ser uma grande aflição para as províncias da África por mais de 300 anos - na verdade, até a época da invasão maometana.

sábado, 9 de julho de 2016

As Controvérsias do Donatismo e do Arianismo

Duas grandes controvérsias - o donatismo e o arianismo - tiveram seu início nesse reinado: o primeiro surgiu no Ocidente a partir de uma disputada nomeação à dignidade episcopal em Cartago; e o último, de origem oriental, envolvia os próprios fundamentos do cristianismo. O arianismo era uma questão de doutrina, e o donatismo de prática. Ambos estavam corrompidos em suas próprias fontes e essências, e podem ser representados pelo falso profeta e, especialmente, pelos nicolaítas. Vamos agora observar brevemente essas duas cismas, uma vez que lançam luz sobre a natureza e os resultados da união da igreja com o Estado. O imperador tomava parte nos conselhos dos bispos como "cabeça da igreja".

Na morte de Mensúrio, bispo de Cartago, um concílio de bispos das redondezas foi convocado para nomear seu sucessor. O concílio era pequeno -- pois a organização estava por conta de Botrus e Celésio, dois presbíteros que aspiravam ao cargo -- mas foi Ceciliano, um diácono que era muito amado pela congregação, que foi eleito bispo. Os dois desapontados presbíteros protestaram contra a eleição. Mensúrio morreu estando ausente de Cartago em uma viagem, mas antes de sair de casa ele tinha confiado alguns bens da igreja a alguns anciãos da congregação, e tinha deixado um inventário nas mãos de uma mulher piedosa. Este foi entregue a Ceciliano que, é claro, exigiu que os artigos dos anciãos fossem devolvidos, mas eles não estavam disposto a entregá-los, uma vez que supunham que ninguém jamais iria perguntar sobre eles após o velho bispo ter morrido. Assim eles se uniram ao partido de Botrus e Celésio, em oposição ao novo bispo. A cisma foi também apoiada pela influência de Lucila, uma senhora rica a quem Ceciliano tinha anteriormente ofendido por uma repreensão piedosa; e assim toda a província assumiu o direito de interferir no assunto.

Donato, bispo de Casa Nigra, colocou-se à frente da facção cartaginesa. Segundo, primaz de Numídia, por convocação de Donato, apareceu em Cartago liderando setenta bispos. Este auto-instituído concílio intimou Ceciliano a comparecer perante eles, alegando que ele não deveria ter sido consagrado exceto na presença deles e do primaz da Numídia; além disso, considerando que Ceciliano tinha sido um traditor*, não podia ser bispo, e assim o concílio declarou anulada sua eleição. Ceciliano se recusou a reconhecer a autoridade do concílio, mas eles prosseguiram em eleger Majorino para o cargo de bispo, que eles declararam vago pela excomunhão de Ceciliano. Infelizmente, para a reputação dos bispos, Majorino pertencia à família de Lucila que, para apoiar a eleição, doou grandes somas de dinheiro para garantir a eleição, que os bispos dividiram entre si. Uma cisma decidida estava agora formada, e muitas pessoas que estavam indiferentes a Ceciliano, depois disso, voltaram a ter comunhão com ele.

{* "Um nome de infâmia dado àqueles que, para salvarem suas vidas durante a perseguição, tinham entregue as Escrituras ou bens da igreja aos perseguidores." Milner, vol. 1, p. 513}

Alguns relatos dessas discórdias chegaram aos ouvidos de Constantino. Ele tinha acabado de se tornar o senhor do Ocidente, e tinha enviado uma grande soma de dinheiro para o alívio das igrejas africanas. Eles tinham sofrido muito durante as últimas perseguições. Mas, como os donatistas eram tidos como sectários, ou dissidentes da verdadeira igreja católica, ele ordenou que os presentes e privilégios conferidos aos cristãos pelos último decretos fossem limitados àqueles em comunhão com Ceciliano. Isto levou os donatistas a uma petição ao imperador, desejando que sua causa pudesse ser examinada pelos bispos da Gália, de quem supunham que a imparcialidade poderia ser esperada. Aqui, pela primeira vez, temos uma aplicação do poder civil para nomear uma Comissão de Juízes Eclesiásticos.

Constantino concordou: um concílio foi realizado e Roma, em 313, que consistiu de cerca de vinte bispos. A decisão foi a favor de Ceciliano, que logo a seguir propôs termos de reconciliação e reunião; mas os donatistas desprezaram qualquer compromisso. Eles suplicaram ao imperador por outra audiência declarando que um sínodo de vinte bispos era insuficiente para anular a sentença de setenta que tinham condenado Ceciliano. Por esta representação Constantino convocou outro concílio. O número de bispos presentes era muito grande, vindos da África, Itália, Sicília, Sardenha, e especialmente da Gália. Esta foi a maior assembleia eclesiástica que houve até então. Eles se reuniram em Arles, no ano de 314. Ceciliano foi novamente absolvido, e vários decretos canônicos foram estabelecidos com vista ao término das dissensões africanas.

Nesse meio-tempo Majorino morreu, e um segundo Donato foi apontado como seu sucessor. Ele foi apelidado pelos seus seguidores como "o Grande", a fim de distingui-lo do primeiro Donato. Ele é descrito como alguém erudito, eloquente, de grande capacidade, e que possuía a energia e o zelo ardente do temperamento africano. Os sectários, como eram chamados, assumiram então a alcunha de os donatistas, tomando o caráter, assim como o nome, de seu chefe.

O Batismo e Morte de Constantino

O batismo de Constantino deu origem a quase tanta especulação quanto sua conversão. Apesar do grande zelo que ele demonstrava em favor do cristianismo, ele adiou seu batismo e, consequentemente, sua recepção na igreja, até a aproximação de sua morte. Muitos motivos, tanto políticos quanto pessoais, foram sugeridos por diferentes escritores como as razões do adiamento; mas tememos que o verdadeiro era pessoal. A superstição já tinha, nessa época, ensinado os homens a conectarem o perdão dos pecados ao rito do batismo. Sob esse terrível engano Constantino parece ter adiado seu batismo até que não pudesse mais desfrutar de suas honrarias imperiais e saciar suas paixões nos prazeres do mundo. É impossível conceber qualquer indulgência papal mais destrutiva para a alma, mais desonrosa para o cristianismo, e mais perigosa para toda a virtude moral. Era uma licença para que pessoas como Constantino perseguissem os grandes objetos de sua ambição por meio dos tenebrosos caminhos de sangue e crueldade, uma vez que colocava em suas mãos maneiras de conseguir um perdão fácil quando fosse conveniente. Mas, por outro lado, podemos pensar que tenha sido uma grande misericórdia do Senhor que alguém cuja vida privada e doméstica -- assim como sua carreira pública -- fosse tão manchada de sangue, não professasse publicamente o cristianismo ao receber o batismo e participar da ceia do Senhor.

Os bispos, a quem ele chamou ao palácio da Nicomédia em sua última doença, ouviram sua confissão, se deram por satisfeitos e o abençoaram. Eusébio, bispo da Nicomédia, o batizou! Ele agora professava, pela primeira vez, que se Deus poupasse sua vida ele se uniria à assembleia de Seu povo, e que, tendo usado as vestes brancas do neófito, ele jamais usaria novamente o púrpura do imperador. Mas essas decisões foram feitas tarde demais: ele morreu pouco tempo depois de seu batismo, no ano 337.*

{* Vida de Constantino, de Eusébio, p. 147}


Helena, a mãe do imperador, merece uma breve menção. Ele abraçou a religião professada por seu filho. Sua devoção, piedade e generosidade eram grandes. Ela viajou por vários lugares, visitando os lugares sagrados que tinham sido cenários dos principais eventos da história das Escrituras, e ordenou que o templo de Vênus, que Adriano tinha construído no local do santo sepulcro, fosse demolido, e deu instruções para que uma "igreja", que deveria exceder todas as outras em esplendor, fosse construída no local. Ela morreu em 328 d.C.

Já vimos, infelizmente com tanta clareza, a verdade dolorosa das palavras do Senhor, de que a igreja estava habitando onde estava o trono de Satanás. Constantino a deixou lá. Ele a encontrou aprisionada em minas, masmorras e catacumbas, e afastada da luz do céu, e a colocou no trono do mundo. Mas o quadro ainda não está completo: devemos tomar nota de outras características na história, recorrendo à semelhança na epístola.

O reinado de Constantino foi marcado não apenas pela igreja sendo retirada de seu lugar correto através dos enganos de Satanás, mas também pelos amargos frutos dessa mudança degradante. As sementes do erro, da corrupção e da dissensão se espalharam rapidamente, e agora apareciam publicamente perante os tribunais do mundo, e em alguns casos diante do mundo pagão. 

O Verdadeiro Caráter da Igreja Desaparece

Por mais agradável, para a mera natureza, que pudesse parecer a luz do favor imperial, ela foi a destruidora do verdadeiro caráter do cristão individual e da igreja como conjunto. Tanto o testemunho de um Cristo rejeitado na terra quanto de um Cristo exaltado no céu foram esquecidos. O mundo era batizado, em vez de somente os crentes como estando mortos e ressuscitados com Cristo - como tendo morrido em Sua morte, e ressuscitado em Sua ressurreição. A Palavra de Deus é clara: "Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos." (Colossenses 2:12). O batismo é aqui usado como um símbolo tanto da morte quanto da ressurreição. Mas a quem essa solene e sagrada ordenança era agora administrada? Novamente, repetimos: ao mundo romano. A fé em Cristo, o perdão dos pecados e a aceitação no Amado não eram critérios para o batismo por parte do subserviente clero.

Sendo a profissão do cristianismo vista então como o caminho seguro para a riqueza e honra, todos os níveis e classes da sociedade se candidataram ao batismo. Nas festas da Páscoa e do Pentecostes, milhares, todos vestidos com as vestes brancas do neófito*, se aglomeravam ao redor de diferentes "igrejas", aguardando serem batizadas. O número de pessoas era tão grande, e toda a cena era tão marcante, que muitos pensaram que tais novos convertidos fossem a inumerável multidão mencionada no livro do Apocalipse, que estaria diante do Cordeiro trajada de vestes brancas. De acordo com alguns escritores, cerca de doze mil homens, além das mulheres e crianças, foram batizados em um só ano em Roma, e uma túnica branca, com vinte peças de ouro, foi prometida pelo imperador para cada novo convertido das classes mais pobres. Sob tais circunstâncias, e por estes recursos mercenários, concretizou-se a queda do paganismo, e o cristianismo sentou no trono do mundo romano.

{* N. do T.: neófito é o mesmo que "novo convertido". As vestes do neófito eram trajes brancos usados pelos novos convertidos na ocasião do batismo.}

domingo, 3 de julho de 2016

O Testemunho da História

Até mesmo pela história podemos provar que foi melhor para o cristianismo quando os cristãos estavam sofrendo na fogueira por Cristo do que quando foram festejados nos palácios dos reis e cobertos pelos favores reais. Para ilustrar nossa questão, daremos ao leitor uma página da história da grande perseguição sob Diocleciano, e uma dos mais brilhantes dias de Constantino. Citaremos ambos dos escritos de Milman, mais tarde conhecido como Decano de St. Paul, e que, portanto, não pode ser suspeito de injustiça para com o clero. Falaremos apenas dos fiéis. É bem sabido que nas últimas perseguições, quando as assembleias dos cristãos tinham aumentado bastante, muitos provaram a infidelidade no dia da prova, embora estes eram comparativamente poucos, e muitos deles mais tarde se arrependeram.

"A perseguição tinha já durado seis ou sete anos (309), mas em nenhuma parte do mundo o cristianismo demonstrava qualquer sinal de decadência. Estava tão profundamente enraizado nas mentes dos homens, amplamente promulgado e vigorosamente organizado para ser incapaz de suportar esse violento, porém inútil, choque. Se sua adoração pública era suspensa, os crentes se reuniam em secreto, ou cultivavam na inexpugnável privacidade do coração os inalienáveis direitos da consciência. Mas, é claro, a perseguição caiu com maior peso sobre os mais eminentes do corpo. Aqueles que resistiam à morte eram animados pela presença das multidões que, se não se atreviam a aplaudir, mal podiam esconder sua admiração. Mulheres se aglomeravam para beijar as bordas das vestes dos mártires, e suas cinzas espalhadas, ou os ossos insepultos, eram roubados pelo zelo devoto de seus rebanhos."

Sob o decreto emitido do leito de morte de Galério, a perseguição cessou, e aos cristãos foi permitido o livre e público exercício de sua religião. Este tempo de respirar durou apenas alguns meses. Mas que grandiosa a vista do que se seguiu, e que testemunho da verdade e do poder do cristianismo! O Decano continua dizendo:

"A cessação da perseguição acabou por mostrar sua extensão. As portas da prisão foram abertas, as minas devolveram seus trabalhadores condenados, em todo lugar fileiras de cristãos eram vistas se apressando até as ruínas de suas "igrejas" e visitando os lugares santificados por sua antiga devoção. As vias públicas, as ruas e os locais de mercado das cidades ficaram cheias de longas procissões cantando salmos de louvores por sua libertação. Aqueles que tinham mantido sua fé sob essas severas provas receberam as carinhosas congratulações de seus irmãos; aqueles que tinham falhado na hora da aflição se apressaram a confessar seu fracasso e a buscar por readmissão no então alegre rebanho."

Vamos agora nos voltar para o estado alterado das coisas sob Constantino, cerca de vinte anos depois da morte de Galério. Observe a grande mudança na posição do clero.

"Os bispos apareciam como participantes regulares da corte, e as dissensões internas do cristianismo se tornaram assuntos de Estado. O prelado governava, agora nem tanto por sua admitida superioridade na virtude cristã, mas pela inalienável autoridade de seu ofício. Ele abria ou fechava a porta da "igreja", que era equivalente a uma admissão ou exclusão da felicidade eterna. Ele pronunciava as sentenças de excomunhão, que lançava para fora o trêmulo delinquente no meio dos perdidos e moribundos pagãos. Ele tinha seu trono na parte mais distinta do templo cristão, e embora ainda atuasse na presença e em nome de seu colégio de presbíteros, ainda assim era reconhecido como a cabeça de uma grande comunidade, sobre cujo destino eterno ele mantinha um vago, mas não por isso menos imponente e terrível, domínio."*

{* História do Cristianismo, vol. 2, pp. 283-308. Neander, vol. 3, p. 41. Vida de Constantino, por Eusébio.}


Questões intelectuais e filosóficas tomaram o lugar da verdade do evangelho, e a mera religião exterior no lugar da fé, do amor, e da mente voltada para as coisas celestiais. Um Salvador crucificado, a verdadeira conversão, a justificação somente pela fé, a separação do mundo, são assuntos nunca conhecidos por Constantino, e provavelmente nunca introduzidos em sua presença. "A conexão entre o mundo físico e moral tinha se tornado um tópico geral e, pela primeira vez, tinha se tornado uma verdade primária de uma religião popular, e naturalmente, não podia se isentar da mescla com as paixões populares. A humanidade, mesmo dentro da esfera do cristianismo, retornou à condição judia mais inflexível e, em seu espírito, assim como em sua linguagem, o Antigo Testamento começou a dominar sobre o evangelho de Cristo."

Os Efeitos do Favor Real

Chegamos agora à consideração do que tem sido o grande problema histórico dos homens de todos os credos, nações e paixões: a saber, quem causou maior dano à igreja e ao povo de Deus na terra: o Estado, que procura o avanço do cristianismo pelos modos mundanos ao seu comando, ou o poder terreno que se opõe pela violência? Devemos admitir que muito pode ser dito quanto à grande bênção da tolerância imparcial, e das grandes vantagens da supressão legal de todos os costumes perversos para a sociedade; mas o favor da corte sempre foi causa de ruína para a verdadeira prosperidade da igreja de Deus. É uma grande graça não ser molestado, mas é maior ainda a graça de não ser patrocinado por príncipes. O verdadeiro caráter dos cristãos é de estrangeiros e peregrinos neste mundo. A posse de Cristo, e de Cristo no céu, mudou tudo para os cristãos na terra. Eles agora pertenciam ao céu, e agora eram estrangeiros na terra. Eles são os servos de Cristo no mundo, embora não sejam do mundo. O céu é seu lar; aqui eles não têm cidade permanente. O que a igreja deveria esperar de um mundo que crucificou o seu Senhor? Ou ainda, o que ela deveria aceitar deste mundo? Sua verdadeira porção aqui é o sofrimento e rejeição; como diz o apóstolo: "Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todo o dia; Somos reputados como ovelhas para o matadouro." O Senhor pode poupar Seu povo, mas se a prova deve vir, não devemos pensar que algo estranho nos tenha acontecido. "No mundo tereis aflições" (Romanos 8:36, João 16:33)

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